cadernos eav - Parque Lage

Transcrição

cadernos eav - Parque Lage
CADERNOS EAV
20
09
ENCONTROS
COM ARTISTAS
ANNA BELLA
GEIGER
CARLOS
ZILIO
ERNESTO
NETO
IVENS
MACHADO
NELSON
FELIX
TUNGA
Governo do Rio de Janeiro
Governador
Sérgio Cabral
Vice-Governador
Comissão de Projetos
Daniel Senise
George Kornis
Guilherme Bueno
Luiz Fernando Pezão
Coordenadora do Programa
Aprofundamento 2012
Secretaria de Estado
de Cultura
Anna Bella Geiger
Secretária de Estado
COORDENADORA DO PROJETO
DE PESQUISA 2012
Adriana Rattes
Gloria Ferreira
Subsecretária de Relações
Institucionais
Coordenadora do Núcleo
Olga Campista
Subsecretária de Ação Cultural
Beatriz Caiado
Subsecretário de Planejamento
e Gestão
Mario Cunha
Superintendente de Artes
Eva Doris Rosental
escola de artes visuais
parque lage
Diretora
de Arte e Tecnologia
Tina Velho
Assistentes de Administração
Carmen da Costa Souza
Sergio Bastos
Assistentes de Ensino
Cristina de Pádula
Lucas Leuzinger
Estagiária
Vanessa Rocha
Assistente de Projetos
Renan Lima
Claudia Saldanha
Estagiários
Vitor Zenezi
Assessor
Branca Zuma
Vitor Coimbra
Assessora editorial
Assessoria de Imprensa
Coordenador Administrativo
Biblioteca
Coordenadora de Ensino
Maurício Azevedo
Olga Alencar
Coordenadora de Projetos
Supervisão técnica das Oficinas
de Imagem Gráfica
Clarisse Rivera
Roberto Tavares
Comissão de Ensino
Manutenção
Joanna Fatorelli
Herbert Hasselmann
Tania Queiroz
Glória Ferreira
Luiz Ernesto Moraes
Maria Tornaghi
Bárbara Chataignier
Gerson de Araújo Freitas
Homero Gomes de Moraes
Iraci Laurindo de Oliveira
Associação de Amigos da
Escola de Artes Visuais – AMEAV
Presidente
Paulo Albert Weyland Vieira
1º Vice-Presidente
Márcio Botner
2º Vice-Presidente
Guilherme Gonçalves
Conselheiros
Ernesto Neto
Fábio Szwarcwald
Captação e Gestão de Recursos
Sandra Caleffi
Auxiliar Contábil
Luis Carlos Silva
ASSISTENTES ADMINISTRATIVOS
Guilherme Segal
Hércules Souza
SecretARIA
Ana Carolina Santos
Natália Soares
Thais de Souza
EAV
Rua Jardim Botânico, 414
Jardim Botânico
Rio de Janeiro | RJ
22461-000
Tel | Fax: 21 3257 1800
www.eavparquelage.rj.gov.br
Créditos dos Cadernos
Organização
Joanna Fatorelli e Tania Queiroz
Assistente
Vanessa Rocha
Projeto Gráfico, Tratamento de
Imagem e Produção Gráfica
Dupla Design
IMpressão
ENCONTROS
COM ARTISTAS
Ultraset
agradecimentos especiais
Carlos Minc, Cristina Bahiense, Guilherme
Gonçalves, Henrique de Aragão, Iole de
Freitas, José Luis Alqueres, Letícia dell’Orto,
Leticia Verona, Marcos Arzua Barbosa,
Tanit Galdeano
CARLOS
ZILIO
Fotografias
Ambroise Tézenas, Ana Stewart, André Morin,
Cesar Barreto, Eduardo Mattos, Fausto
Fleury, Felipe Felizardo, Gabriela Toledo,
João Mussolin, Sonia Parma, Lucia Helena
Zaremba, Marco Terranova, Pat Kilgore,
Pedro Oswaldo, Rubber Seabra, Sérgio Araújo,
Vicente de Mello, Wilton Montenegro
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE
LIVROS, RJ
Revisão de texto
Itamar Rigueira, Lilian Zaremba, Janaisa Viscardi,
Julia Scamparini, Paulo Serran, Sophie Bernard,
Vanessa Rocha, Rachel Valença
Transcrição
Louise D.D.
Gravação
Bruno Marcus - TOMBA Records
PROJETO DE CAPTAÇÃO
Coordenação: Lucas Leuzinger
Vídeo: Simone Michelin
Com participação de: Aline Besouro
e Lucas Ferraço
Gravura: Tina Velho
Multidão | Catarse: Pedro Struchiner
e Rodrigo Maia
Divulgação: Monocromo
ANNA BELLA
GEIGER
C129
Cadernos EAV 2009 : encontros com artistas /
organização Escola de Artes Visuais do Parque Lage
; Anna Bella Geiger ... [et al.]. ; [organização Joanna
Fatorelli e Tania Queiroz] - Rio de Janeiro : EAV, 2012.
ERNESTO
NETO
IVENS
MACHADO
NELSON
FELIX
il.
ISBN 978-85-64192-06-5
1. Arte brasileira - Século XXI. 2. Arte
contemporânea - Brasil. 3. Instalações (Arte). 4.
Videoarte. 5. Artistas - Brasil. I. Geiger, Anna Bella,
1933-. II. Fatorelli, Joanna. III. Queiroz, Tania. IV. Escola
de Artes Visuais do Parque Lage.
12-6798.CDD: 709.8
CDU: 7.038.6(81)
18.09.12 24.09.12
038948
TUNGA
AP RESENTAÇÃO
A Escola de Artes Visuais do Parque Lage, vinculada à Secretaria de
Estado de Cultura, lança os dois primeiros volumes da série Cadernos EAV: Encontros com Artistas, visando registrar e preservar o
resultado dos encontros que vem promovendo, desde 2009, entre
artistas consagrados e os alunos do seu Programa Fundamentação.
Gratuito e semestral, o Programa é etapa inicial de formação do
jovem artista, curador, crítico ou mesmo daqueles que pretendem trabalhar no campo das artes, combinando aulas de prática
artística a cursos de história da arte. Uma vez por mês, nos finais
de semana, a Escola promove os Encontros, exclusivos para os
alunos do Programa.
O resultado destes encontros vem gerando um precioso acervo,
único em seu conteúdo e inovador em sua forma, que leva diretamente a palavra do artista ao público de jovens estudantes, criando
um diálogo que enriquece todos os que dele participam.
Ao reunir essas conversas nos Cadernos EAV, optou-se por oferecer
uma leitura ágil e dinâmica, capaz de levar o leitor a partilhar da
qualidade viva e espontânea que marcou aqueles momentos de
troca e de experiência. Organizados em volumes anuais, os Cadernos EAV tiveram o apoio de diversos colaboradores através do crowd
funding viabilizado pela plataforma virtual Multidão | Catarse.
Essa nova forma de captação e a ideia de disponibilizar o conteúdo
desses encontros se alinham ao perfil da Escola de Artes Visuais do
Parque Lage – democrática, livre e transdisciplinar, estabelecendo
um importante elo com a sociedade civil e possibilitando um espaço
rico em trocas e diálogos.
Agradecemos a valiosa colaboração de todos os artistas e professores que participaram dos Encontros, debatendo sobre a sua obra e
seus processos de criação.
CLAUDIA SALDANHA - Diretora da EAV Parque Lage
AN N A BELLA GEIG ER
CARLOS ZILIO
ERN ESTO NETO
I VEN S machado
N elson Felix
T U N GA
10
34
54
102
118
162
10
AN N A BELLA GEIG E R
“A imagem fictícia possui sua própria verdade.”
Giordano Bruno, 1591
Quando a Claudia me apresenta relacionada a uma longa trajetória,
isso causa estranheza até a mim mesma. Pois penso que tanta coisa
ainda está por ser feita... Eu venho trabalhando nas minhas causas,
ou melhor, em defesa delas. De histórias muito longas como a que
vai de 1974 a 2009, e refere-se ao meu trabalho em videoarte. E que
acabaria sendo a trajetória da própria videoarte no Brasil. Claro
que a videoarte não começa no Brasil. Ela começa com Wolf Vostell
e Nam June Paik, em meados dos anos 60.
O fato de começar a trabalhar em vídeo ainda nos anos 70 nada tem
a ver com a questão da novidade do vídeo. E apesar da videoarte
Flumenpont nº1, 2001/2005
Fotografia, encáustica, vidro e plástico
43 x 33 cm
Foto: Rubber Seabra
12
13
C A DER N OS EAV
AN N A B EL L A G EI G ER
continuar atualíssima, ainda precisamos indagar: o que é a videoarte? Como categoria seria como dizer “pintura”. Não define nada.
A videoarte tomou vários caminhos, assim como a pintura. No seu
começo, podemos citar artistas como Nam June Paik, cujo sentido
da obra é completamente diverso de um Dennis Oppenheim, que é
completamente diverso de um Bill Viola, como ainda de Gary Hill,
que esteve há alguns meses atrás na Oi, no Espaço Oi Futuro. A obra
de alguns desses expoentes tem tudo a ver com o que alguns de nós
aqui, no Rio de Janeiro, nos anos 70, pensávamos sobre o que era
a videoarte, muito diverso do que tem sido feito em abordagens
pseudojornalísticas ou de cunho pseudoantropológico.
Há um vídeo1 de Vito Aconcci, dessa época, em que ele sai aleatoriamente pelas ruas de Nova York, seguindo um transeunte. Já havia
essa maleabilidade no uso da máquina de vídeo portátil. E havia
o Super 8 em cor, que eu já vinha usando desde fins dos anos 60.
Primeiro filmando a família, os filhos, quando moramos em Nova
York. E essa acaba sendo uma das características não só do Super
8, como do vídeo nos Estados Unidos. Por ser um pequeno objeto
portátil, o seu uso era ligado, por exemplo, à mulher, no sentido
de se filmarem situações domésticas. Algumas das mulheres que
entram na história do feminismo na arte, principalmente nos EUA,
o fazem desse modo.
Porém, o começo da videoarte no Brasil (Rio de Janeiro, 1974),
diferentemente do que ocorreu nos Estados Unidos, enfrentou
dificuldades enormes entre querer pensar certos trabalhos em
vídeo e ter a instrumentação necessária. No começo dos anos 70
já havia nos EUA uma pequena câmera portátil de vídeo, em p&b,
não tão diferente das que existem agora. Acontece que a videoarte
aqui, além de outras limitações, só era possível lidando com uma
máquina Sony Portapack que pesava uns quarenta quilos. Se isso
me condicionou e limitou, por outro lado me levou a indagar mais
profundamente sobre suas possibilidades, sobre o conceito, a ideia
a ser desenvolvida nesse suporte.
Realizei dois curtas em Super 8 e os editei em 72. Para a sua edição
era preciso juntar os vários trechos dos filmes. Então, adquiri uma
maquininha de colar os trechinhos. Por ser tão precária, resultou
depois de alguns anos na sua descolagem e consequente destruição
desses filmes. Não havia onde conservá-los. Numa cinemateca?
Antes de começar a trabalhar com vídeo, o Super 8 me trouxe
grandes retornos, fosse pelo elemento cor ou pela maleabilidade de
se sair filmando por aí. Concomitantemente, havia naquela época
uma alternativa, usando a projeção de slides, e acabou criando-se
um gênero, o audiovisual. No audiovisual, você, como fotógrafo
ou não, o que era o meu caso, registrava as imagens em slides.
14
15
C A DER N OS EAV
AN N A B EL L A G EI G ER
O slide possuía a qualidade de poder ser projetado numa parede
qualquer, ampliando-o, sem perder a nitidez. Isso era o próprio
Mágico de Oz na época. No audiovisual havia um mecanismo que
permitia introduzir, dentro do ritmo projetado das imagens, o
som gravado. O Super 8 não gravava o som automaticamente. O
vídeo, porém, apesar de todos os defeitos de imagem, e de ser só em
p&b, ao registrar a cena, gravava automaticamente todos os sons
possíveis. Até agora, quando se filma com a câmera de tv, mesmo a
profissional, tudo em torno tem de ficar em silêncio para não haver
interferência. No caso do audiovisual, as imagens projetadas (slides) eram perfeitas, fosse em cor ou em p&b. E podia se interferir na
imagem, como fiz para a instalação Circumambulatio2 ao queimar
o centro de algumas das suas imagens em celuloide. Também os
apresentei, junto com o Super 8, em 73, na Expo-Projeção-Grife3,
em São Paulo.
ruptura. O “retorno” a uma realidade externa, figurativa, se deu
pela necessidade de falar de um momento social, político, histórico, em que essas imagens vindas da mídia passam a colocar novas
possibilidades para se interpretar aquele momento. Porém, nós
não estávamos aqui, nos anos 60, num mesmo momento como o
dos Estados Unidos, dentro de uma sociedade de consumo e de
uma cultura de massa que resultaria na Arte Pop. Aqui, no final
dos anos 60, surgem artistas, eu inclusive, cuja atitude crítica
leva, em suas obras, a indagações de ordem conceitual. Estava
acontecendo uma crise maior, no próprio discurso da arte, na
própria natureza, significado e função da obra de arte. Junte-se
a isso a situação política que estávamos atravessando. E que se
acirrara desde1968.
O uso experimental de novos meios e suportes seria denominado
mais tarde de novos mídia. O artista tinha, por vezes, a necessidade
de introduzir na sua obra imagens vindas da mídia publicitária,
jornalística ou outra. Para uma artista como eu, que passou durante
quinze anos pelo rigoroso processo formal do abstracionismo,
até meados dos anos 60, e tendo já meu trabalho reconhecido,
a busca de uma linguagem própria se fez dentro de uma grande
Mas imaginem que havia uma atitude reacionária por parte de
certa crítica jornalística e de alguns artistas da época quanto ao
uso do vídeo. E de que vídeo? Por exemplo, o meu modo de pensar
a linguagem da videoarte era completamente diverso do de Nam
June Paik ou do de Wolf Vostell.
Então, aqui, nos anos 70, a crise na arte ocorreu motivada, creio, por
dois fatores: a mudança radical de paradigmas nas novas formas
de representação da arte e o caráter político daquele momento.
16
17
C A DER N OS EAV
AN N A B EL L A G EI G ER
O Rio de Janeiro sempre foi o core, o centro mais ativo dessas investigações, também politicamente. Em 68, com a instituição do AI-5, os
artistas que vinham participando das bienais dos anos 60 reuniram-se no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Vieram também
alguns artistas de São Paulo e nos decidimos por um boicote. Não
participaríamos mais de eventos como a Bienal de São Paulo, assim
como de quaisquer outros do país, tipo salão. O boicote perdurou até
81. Procuramos com muito risco informar aos artistas internacionais, no exterior, participantes das bienais, do que estava ocorrendo
aqui. Ao se estender até 81, essa situação de isolamento levaria
alguns de nós a maior engajamento político no próprio trabalho.
Entendia-se, porém, que não era uma questão de criar panfletos
no que se referia à arte. E com isso não estou dizendo que aquele
longo período nos trouxe qualquer benefício, mas a complexidade
daquele momento nos levou a aprofundar ainda mais a própria obra.
Penso ser um desses artistas. O Cildo também iria compreender
bem aquele momento. Por sinal, ele veio dos cursos do MAM-RJ do
começo dos anos 70. Cursos que o Frederico Morais e eu criamos,
denominando-os de Unidade Experimental e Arte Crítica. Estávamos sendo muito visados no MAM-RJ, a ponto de eu convencer
os alunos de que a experiência prática dos meus cursos só poderia
ocorrer fora do perímetro urbano, em lugares ermos, praias desertas.
E assim ocorria. A um dos resultados chamei de Circumambulatio.
Nos anos 60, acontecera um fato importante para a arte brasileira:
a oportunidade de Hélio e Lygia terem seus trabalhos criticados
pelo crítico inglês Guy Brett. Era um crítico de arte interessante,
escrevendo em revistas internacionais. O que se conhecia do Brasil
lá fora era Tarsila, Di Cavalcanti, Portinari, e a arte abstrata do
Brasil ainda era uma vanguarda quase desconhecida mesmo aqui
dentro. Com o apoio desse crítico, houve crescente informação no
exterior de que havia uma arte abstrata concreta e neoconcreta
brasileira.
Estamos em 2009 e sabemos que o caráter experimental da arte
mudou muito também. O que se processou aqui, naquele longo
período político entre 64 e 85, cada vez menos forneceria sentido ao
artista para lidar de forma significativa na arte através de soluções
apenas de caráter abstrato e formal. Surgiriam questões ligadas à
crise do suporte, a interferências como o uso das mídias, à inter-relação entre arte e a apropriação pelos artistas de métodos vindos
das ciências sociais, da linguística, da antropologia, etc.
Aqui, pelo prolongado boicote conseguiu-se esvaziar a Bienal.
Porém, o boicote ao vento nos deixou totalmente isolados culturalmente, apesar de uma intensa produção que acontecia aqui na
década de 70.
18
19
C A DER N OS EAV
AN N A B EL L A G EI G ER
“Objetos, do modo
como nós os captamos
e os devolvemos em
forma de arte, serão
sempre um testemunho
do tempo.”
O pensamento acadêmico no campo das Artes Visuais iria se
desenvolver na USP e a sua prática no Museu de Arte Contemporânea de São Paulo. Uma pessoa essencial naquele momento foi o
então diretor do MAC-USP, Walter Zanini, além de sua assistente
Annateresa Fabris, pessoas muito incríveis. Porque, como historiadores eles poderiam ficar se dedicando apenas a Portinari, Di
Cavalcanti, Tarsila, mas entenderam que precisavam apoiar naquele
espaço as novas linguagens.
Em 80, artistas se reúnem com Walter Zanini para pensar numa
possível bienal. Isso quantos anos depois? De 69 a 81. Não imaginávamos que o isolamento perduraria por tanto tempo. O que
esse isolamento iria provocar? Um quase total desconhecimento
no exterior sobre o que estava acontecendo experimentalmente
na obra de vários artistas daqui.
Além da USP, creio que, dos anos 90 em diante, o Departamento de
Arte da Universidade Federal do Rio de Janeiro vem publicando
o seu pensamento teórico, assim como a revista Concinnitas da
UERJ, produzida pela Sheila Cabo. Temos aqui no Rio a Glorinha
Ferreira, como em São Paulo a Daria Jaremtchuk, doutora na USP,
que vem dando cursos sobre arte contemporânea brasileira em
universidades da França e da Espanha. Então, de alguns anos pra cá,
20
21
C A DER N OS EAV
AN N A B EL L A G EI G ER
brasilianistas que estudavam só Hélio e Lygia começam a indagar,
com mais cuidado, sobre essa complexa passagem que resultaria
numa outra produção, a dos artistas dos anos 70. É o caso de um
artigo escrito por Maria Iñigo Clavo para a Revista de Occidente,
de fevereiro de 2008 (nº 321), em Madri, denominado “Una vez
pensé el proyecto de um país...”
Vídeos de “monitor”, que são produzidos para serem mostrados independentemente, não pertencem às instalações. E nas
videoinstalações os vídeos pertencem, fazem parte integrante
delas. Mostrarei três vídeos, um recentíssimo e outros menos
recentes.
Eu falo meio brincando que precisarei esperar mais uns trinta anos
até tomarem conhecimento do meu trabalho recente.
Vou lhes mostrar alguns vídeos meus. Um recente e outros dois de
1976: Circa I4 e Mapas elementares 15 e 36.
Objetos, do modo como nós os captamos e os devolvemos em
forma de arte, serão sempre um testemunho do tempo. Circa
é um termo usado para determinar uma data em torno da qual
ocorreu um fato histórico, geográfico, arquitetônico, artístico,
cultural ou antropológico da nossa civilização. Circa pode apresentar datas que diferem, em sua imprecisão, até em 100 anos
ou mais; essas imprecisões, porém, não afetam a verdade do fato
de que as tais coisas aconteceram dentro daquele período de
tempo. Esse fator me interessa muito, e está bastante incluído
na minha obra.
É preciso entender esses dois vídeos em p&b no contexto dos
anos 70. Naquela época, em Nova York, já havia gente discutindo
sobre videoarte, uma discussão sobre o que era linguagem de
vídeo e o que era linguagem de cinema. E havia o que chamavam
de cinema expandido, também experimental. O vídeo levantava
essas especificidades.
Vídeos que não se teria como editar precisavam acontecer em
tempo real. À minha ação subindo aquelas escadas lentamente, e
num grande esforço, eu chamei de Passagens. Acho que em parte
seu significado é de ordem simbólica.
Aluno:
Esse vídeo teve edição? É uma única tomada?
Não, a filmagem foi em três tempos diversos, e não se pensava ainda
na edição, pois não havia hipótese de venda. Depois foi preciso. A
história da videoarte no Brasil inicia-se em 74, mas também era
22
23
C A DER N OS EAV
AN N A B EL L A G EI G ER
recente nos EUA. Em fevereiro de 75, alguns dos meus vídeos, como
Passagens I7, Declaração em retrato I8 e Centerminal9, participaram
da Video Art, primeira mostra internacional de videoarte, no Instituto de Arte Contemporânea da Filadélfia.
Não havia Internet, não havia fax, não se recebiam revistas de
arte, nada disso. Em Beuys, o sentido de esforço que transmite
em suas ações se expressa no Eurasia12, por exemplo. Mapas elementares 1 leva três minutos e há uma diferença radical entre os
meus vídeos de 74 e esses de 76. Quanto à própria compreensão
em passar uma “mensagem” mais veloz e imediata. Passo a uma
atuação mais parodiada em Mapas elementares 1 e 3. Ao ritmo de
Carta a um amigo, música do Chico Buarque, pareço “agir” como
que obedecendo às suas palavras, as da carta que ele escreveu, em
cujo refrão repete por quatro vezes que “a coisa aqui está preta”.
Eu já vinha utilizando cartografias de caráter geopolítico para falar
da arte também nos desenhos e gravuras.
Nesse museu, encontram-se O grande vidro10 e o Étant donnés11.
Neste último, por um buraquinho se vê uma cena onde repousa
um manequim de nu feminino. Foi o próprio Duchamp que pediu
que essas obras estivessem nesse espaço.
Na mostra Video Art em 75 nos EUA, não se tratava ainda de uma
questão de mercado, do circuito de arte. Creio que isso também
possibilitou o meu acesso a essa mostra junto a Nam June Paik,
Bruce Nauman, Dennis Oppenheim, Bill Viola, alguns desses também começando a usar o vídeo naquela época.
O uso do termo performance só irá aparecer no fim dos anos 80. Eu
chamava de ação ao que acontecia nos meus vídeos. Esta foi uma
das razões de ficar emocionada quando conheci o Beuys em 75.
Desconhecia até então quase toda a sua obra, e o uso que ele fazia
desse termo em sua obra.
Aluno:
Pois não havia Internet.
Não havia ainda o videoclipe, uma criação posterior. Acho que
aquilo se tornaria depois um gênero, o do videoclipe. Relacionei
a letra da música e a ação neste vídeo. No próximo vídeo, Mapas
elementares 3, o fundo musical é um bolero argentino daqueles
mais cafonas, em que a cantora pede sorte e ajuda à Virgem Negra.
Interpretei-os como sendo os mitos da América Latina: juntei as
semelhanças fonéticas entre América Latina, amuleto, a mulata
e a muleta, e semelhanças antropomórficas entre o formato da
América do Sul e essas figurações. Por exemplo, enquanto ela canta,
“Salva-me, ajuda-me”, desenho uma muleta. Quando mostraram
24
25
C A DER N OS EAV
AN N A B EL L A G EI G ER
esse vídeo no MoMA13, em Nova York, essa palavra precisou ser
traduzida como crutch, perdendo o sentido fonético original.
Em 78 apresentei esse e um outro vídeo, Local da ação14, com a
videoinstalação Pão nosso de cada dia15 na antiga galeria Cândido
Mendes em Ipanema, situada ainda no subsolo. Em Ideologia16,
também uso esse tom irônico, quando dois jovens de uniforme
escolar soletram diante de um mapa do Brasil “dra dre dri dro
dru” – Quadro e “bra bre bri bro bru” – Brasil. Ele é o Rodolfo
Capeto, atual diretor da Esdi. Ela é a Noni Geiger, professora da
Esdi e minha filha.
Eu estive na exposição do Oi Futuro e, ao assistir aos
vídeos, fiz uma associação do seu trabalho com uma coisa
mística, mágica. Queria que você falasse um pouco a respeito
disso. Se tem alguma ligação e qual seria.
Aluno:
Você achou isso? Nas videoinstalações?
Tanto na instalação, do Circa principalmente, quanto
nos vídeos. No vídeo em que você faz um círculo de fogo, no
vídeo em que você finca uma madeira (flecha) no centro do
chão de terra e depois a retira.
Aluno:
Euhropa am.Lat.Bra-sil, 1995
Série Fronteiriços
Foto: Rubber Seabra
26
27
C A DER N OS EAV
AN N A B EL L A G EI G ER
Eu acho que o que a gente transmite na obra depende muito do que
cada espectador, o público capta. E a que nível. A obra, principalmente
de caráter contemporâneo, oferece ou contém uma possibilidade de
leitura de várias camadas de significado. É da complexidade contemporânea. Em Passagens, por exemplo, posso passar um sentimento, uma
percepção no sentido mais mítico que existe na obra de arte. Que existe
nessa obra. Nos anos 60 eu tinha lido todos os livros de Jung, inclusive
aquele “tijolão” Psicologia e alquimia, assim como a Interpretação dos
sonhos, de Freud, assim como Roger Caillois, entre outros. Pensa-se que
o mito é uma coisa do passado, da qual não necessitamos, mas vários de
seus aspectos continuam a se renovar no homem. Nós não existimos
sem criar mitos. E esse sentido mítico se revela na obra. O ser humano
busca se religar de diversos modos, procurando entender o sentido
da vida. Gauguin, ao perguntar na sua tela “de onde viemos, para onde
vamos?17”, não foi demagógico. Tendo abandonado Paris, mesmo com
todo o ambiente de arte que já conhecia, iria para uma ilha da Polinésia,
numa busca existencial. Nossas tentativas, consciente ou inconscientemente, nos sugerem caminhos, mas é preciso decifrá-los. Não da
ordem das calamidades, das ameaças apocalípticas, não no sentido
do calendário asteca, que diz que em 2012 vai acabar o mundo (risos).
ou não, o de isolar mais do que ligar as pessoas ao criar uma nova
babel de comunicações, mas tem o seu lado positivo. O de podermos
compartilhar a informação através das novas mídias, e de outros
modos, através de suas culturas, linguagens e plataformas. Não
devemos ser maniqueístas ou aceitar teorias da conspiração sem
discussão. Muito cuidado mesmo.
Procuro estar atenta ao que acontece em nosso vasto mundo, a
fenômenos como o da globalização, que apresenta um paradoxo,
E a utopia existe. Nós não vivemos sem alguma utopia. A nossa
poiésis se expressa na arte através das possíveis ferramentas de
trabalho, seja o vídeo, um desenho ou uma pintura. A obra de
Rembrandt nos leva a entender não só a sua pintura, mas a época
em que ele viveu. Assim como, por exemplo, o sentido da organização do espaço nas telas de Vermeer. Além disso, se observarmos
em Vermeer aquelas paredes com mapas, que descrevem conflitos locais, o que vinha acontecendo naquela região da Europa.
A cartografia estava ali exatamente como alta tecnologia, como
informação atualizada.
Falando em cartografia, Anna, como é que ela
aparece no seu trabalho? Além da referência que você faz
sempre ao Brasil, América Latina.
aluno:
O meu trabalho em meados dos anos 60 deu uma guinada, primeiro
28
29
C A DER N OS EAV
AN N A B EL L A G EI G ER
quando passei a fazer um trabalho visceral, num modo de representação do corpo, do funcionamento de seu organismo. Porém, o
contexto político da época me levaria a uma outra forma de manifestação, tornando-se uma questão vital na minha obra.
com elementos topográficos da paisagem. Daí para o mapa do Brasil
e da América Latina e suas semelhanças formais e possibilidades
de comparações antropomórficas. Tive de lidar com o contexto da
época e quis falar do nosso isolamento cultural. Mas também me
interessava, no meu trabalho, experimentar, discutir outras formas
de representação. Começo por aí os meus mapas. Os primeiros
se apresentam como um Brasil e uma América Latina isolados,
mergulhados num vazio abissal. Depois vai surgir fortemente, no
meu trabalho, a necessidade de resgate de alguns de seus aspectos
históricos, desde a descoberta do Brasil. Nesse sentido as videoinstalações Circa I e II lidam com esse outro tempo.
Surgem nessa época as primeiras análises topográficas da paisagem
criadas por computador. Ilustravam uma outra geografia. Aquilo
podia não ser desenho de arte, mas era uma outra possibilidade de
representação. Anteriormente, em 66, a editora Delta publicaria
uma série de dez volumes sobre a geografia do Brasil. O Pedro
Geiger, geógrafo, trabalhou nessa publicação. Precisavam de várias
ilustrações representando desde a esfera do globo terrestre meio
transparente à descrição geológica das camadas do solo, e tantas
outras descrições minuciosas. Eu trabalhara muito com ilustração nos anos 50 e 60. Para o Jornal do Brasil, o Correio da Manhã,
para a editora Civilização Brasileira. Isso eu sabia fazer, mas com
a geografia era mais difícil, porque essas ilustrações precisaram
ser precisas.
O que foi e continua sendo um desafio é tornar o uso da representação cartográfica significativo na minha obra. Eu não inventei
a representação cartográfica. Parti de uma representação pré-existente. Então, em 69, comecei uns desenhos em tinta guache,
Aluno:
Em que a gravura influencia o seu trabalho hoje em dia?
Olha, se você reparar, tem artistas que são essencialmente gráficos. Ser gráfico não quer dizer que você vai trabalhar só com a
coisa gráfica, ou apenas em termos restritos da técnica da gravura.
Outros são mais pictóricos. Não é que esta seja uma classificação
que qualifique o valor desses artistas, mas existem diversas tendências, às vezes inerentes. No meu caso, o uso da gravura e do
desenho vem desde os primórdios do meu trabalho, passando por
várias transformações. Mas sempre tive uma atração fatal pela obra
gráfica. Mesmo em alguns dos meus vídeos há várias soluções que
30
31
C A DER N OS EAV
AN N A B EL L A G EI G ER
“E a utopia existe.
Nós não vivemos sem
alguma utopia. A nossa
poiésis se expressa
na arte através das
possíveis ferramentas
de trabalho, seja o
vídeo, um desenho ou
uma pintura.”
são gráficas. Em Passagens I, entre outras coisas, me interessava
que aquelas escadas se assemelhassem a uma página de caderno
pautado. A imagem bidimensional do vídeo oferecia uma qualidade de ordem gráfica. Interessava-me que os degraus por onde
eu passava fossem como linhas de um grafismo bidimensional.
Notem que vou sempre subindo de lado, para que a minha imagem
se mantenha bidimensional.
Continua meu interesse no uso da gravura, ao surgirem questões
que para mim só podem ser traduzidas graficamente. O desenho
também sempre vem permeando minha trajetória, assim como a
gravura. Há dois anos fiz uma edição de cinco gravuras para uma
editora de arte de Madri, Arte y naturaleza, e é sempre instigante
para mim essa prática do uso da gravura. Acho importantíssimo
na formação do artista saber muito bem diversas técnicas. Não
importa se vai ser um artista só gravador ou não. E quem tem uma
prensa de gravura em metal, que não se desfaça nunca dela. Tem
gente que adora carro, não é? Eu adoro a minha prensa. Os recursos de que ela dispõe ficaram tão estranhamente ligados aos meus
trabalhos atuais que não é necessariamente gravura o que sai da
prensa. O que não gosto, porém, é do aspecto ideológico que alguns
gravadores dão à gravura, relevando a dificuldade do seu fazer, de
sua manipulação, atribuindo-lhe uma qualidade de linguagem.
32
33
C A DER N OS EAV
AN N A B EL L A G EI G ER
Notas
Saiba mais
1. ACCONCI, Vito. Following Piece. Performance/ vídeo. Série Street Works IV.
Nova York, 1969.
http://www.annabellageiger.com
2. GEIGER, Anna Bella. Circumambulatio. Instalação / Ambiente parcial.
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1972.
http://www.circa2011.com.br
3. Expo-Projeção. Exposição coletiva realizada no Espaço Grife. São Paulo, 2003.
ANNA Bella Geiger. Texto Fernando Cocchiarale. Rio de Janeiro: Funarte, 1978. 40 p., il.
4. GEIGER, Anna Bella. Circa I. Vídeo em cores. Duração: 30’. 2005.
ANNA Bella Geiger: constelações. Apresentação Marcus de Lontra Costa; textos Fernando
Cocchiarale, Mário Pedrosa, Tadeu Chiarelli, Paulo Herkenhoff, Luíza Interlenghi,
Karin Stempel, Dore Ashton. Rio de Janeiro: MAM, 1996. 88 p., il. Edição bilíngue
português-inglês.
5. GEIGER, Anna Bella. Mapas elementares I. Vídeo p&b. Duração: 3'. 1976.
6. GEIGER, Anna Bella. Mapas elementares III. Vídeo p&b. Duração: 3' 24''.
Coleção Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. 1977.
7. GEIGER, Anna Bella. Passagens I. Vídeo p&b. Duração: 12'. 1974.
8. GEIGER, Anna Bella. Declaração em retrato I. Vídeo p&b. Duração: 7'10''. 1974.
9. GEIGER, Anna Bella. Centerminal. Vídeo p&b. Duração: 3’. 1974.
10. DUCHAMP, Marcel. O grande vidro, 1915-1923. Óleo, verniz, fios metálicos,
fios de aço, pó e cacos de vidro sobre duas placas de vidro. 272,5 x 175,8 cm.
Instituto de Arte Contemporânea da Filadélfia.
11. DUCHAMP, Marcel. Étant donnés, 1948-1966. Instalação. Instituto de Arte
Contemporânea da Filadélfia.
12. BEUYS, Joseph. Siberian Eurasia Symphony 1963, 1966. Painel com desenho de giz,
feltro, gordura, lebre e postes pintados. 183 x 230 x 50 cm.
13. Mostra individual no MoMA, Nova York, 1978.
14. GEIGER, Anna Bella. Local da ação. Vídeo p&b. Duração: 5’. 1978.
15. GEIGER, Anna Bella. Pão nosso de cada dia, 1978. Videoinstalação.
Galeria Cândido Mendes, Rio de Janeiro.
16. GEIGER, Anna Bella. Ideologia, 1973 / 1983. Vídeo em cores.
Duração: 1’. Coleção no MoMA, Nova York.
17. GAUGUIN, Paul. De onde viemos? Quem somos? Para onde vamos?, 1897-1898.
Óleo sobre tela. 1,39m x 3,74m. Museu de Belas-Artes de Boston.
NAVAS, Adolfo Montejo. Anna Bella Geiger: territórios, passagens, situações. Rio de
Janeiro: Casa da Palavra, 2007. 356 p., il.
34
Carlos Zilio
Aluno:
Como foi sua experiência como professor?
Eu fui professor da Escola de Belas Artes por alguns anos. Foi
uma experiência bastante difícil, porque a Escola é uma instituição secular, mas que não utilizou a experiência para se renovar.
Considerando isso, tentei mudar um pouco a situação e propus
a criação de uma área na pós-graduação voltada para a formação
do artista. Esta é uma solução comum na universidade brasileira:
quando a graduação possui resistências institucionais difíceis de
superar, busca-se contornar os problemas pela pós-graduação.
Mas a coisa não é tão simples assim, porque, mesmo sem querer,
você fica sujeito à inércia conservadora. Foi um trabalho que, acho,
ajudou a arejar um pouco a Escola, mas não ainda na dimensão
Memória, 2006
Óleo e bastão de óleo sobre tela
140 x 188 cm
Foto: Vicente de Mello
36
37
C A DER N OS EAV
CARLOS ZI L I O
em que seria preciso. Isso do ponto de vista geral. Do ponto de vista
pessoal foi uma experiência boa no sentido de que travei contato
com alunos interessantes. Todo professor diz isso, e é verdade: a
única coisa boa de ser professor é que você é obrigado a responder
ao questionamento do aluno. Isso cria uma dinâmica produtiva
para você, professor, também.
Aluno:
Como foi a sua formação de artista?
Eu fiz uma escola que se chamava Instituto de Belas Artes. Como
mostrou aquele DVD1, era na Praia Vermelha, onde hoje tem um
clube de militares. Era um lugar privilegiado, à beira-mar. O Instituto de Belas Artes foi depois transferido para cá (Parque Lage).
É o avô desta Escola. Foi na gestão do Rubens Gerchman que o
Instituto de Belas Artes se transformou em Escola de Artes Visuais.
O Instituto era uma escola semelhante à Escola de Belas Artes,
com maioria de professores acadêmicos e uns poucos modernos.
Acho que tem a ver com vocação. Você acha que gosta de arte, gosta
de fazer arte, se interessa por arte e procura um lugar no qual vai
encontrar a orientação necessária. Um dos poucos professores
modernos do Instituto era o Iberê Camargo. Minha convivência
com ele foi muito importante para adquirir uma dimensão mais
precisa do que representava ser um artista.
Qual a importância da música, já que tem uma
presença tão forte no DVD?
Aluno:
Isso é muito curioso. Durante muito tempo eu trabalhava ouvindo
música. Meu ateliê tinha muita música. De um tempo pra cá isso
parou, não sei por quê. Da mesma maneira espontânea que começou, de uns anos pra cá parou. Não tenho escutado muita música.
Mas a música está na cabeça. Nem sempre você precisa escutar
para ouvir. Realmente, durante grande parte da minha vida foi
uma coisa muito intensa. Por um problema de geração, ouvia
muito dois tipos de música: bossa nova e jazz. Jazz, sobretudo,
beebop. Charlie Parker, Mingus, Coltrane, enfim... Eu tenho algumas manias na vida, mania de alguns artistas plásticos que me
perseguem, eu sonho com eles. Hoje em dia estou mais curado
disso. Em certas épocas eu ficava, ainda na fase do long-play,
com o mesmo disco do João Gilberto um ano na vitrola. Long-play dava muito trabalho de mudar, eram doze ou treze faixas.
Eu ficava absolutamente obsessivo. Bossa nova pra mim é muito
João Gilberto. Marcou muito minha geração. Outro dia tive uma
discussão – no bom sentido – com um sobrinho. Ele, com ouvido
de outra geração, não sei se a mesma de vocês, dizia que achava
o João Gilberto muito chato. É, pode ser. O sujeito reinventou a
música popular brasileira. Conseguiu criar outra sistemática de
38
39
C A DER N OS EAV
CARLOS ZI L I O
“O importante politicamente
da arte é ser arte. Você
conseguir produzir um
trabalho artístico que traga
à sociedade uma inquietação
que só a obra de arte pode
trazer, diferente de outras
formas de cultura, da
ciência e da filosofia.”
tempo, uma batida nova. Pouco tempo depois saiu uma crônica
do Veríssimo n’O Globo falando sobre pequenas aquisições que
mudam a história de determinados comportamentos humanos.
Ele falava do estribo. Durante centenas de anos o homem cavalgava e o cavalo era tudo: meio de locomoção básico, força de
trabalho. Cavalgava sem estribo. Até que na Idade Média criou-se
o estribo, mudou toda a historia da equitação. E o João Gilberto
também criou um estribo, uma batida.
Bom, mas estou falando sobre música. Outro dia eu estava
relendo, ou melhor, “reouvindo” uma citação que, com todos
os acontecimentos recentes, me levam a citar o Hélio Oiticica
dizendo que tudo o que ele fazia era música. A música tem essa
coisa muito determinante na arte do século XX. Acho que ela
mostrou para os artistas plásticos uma espécie de liberdade de
busca, de possibilidades, sem estar ancorada numa determinação
pragmática ou sem estar determinada por uma relação muito
objetiva com o real. Isso foi muito caro para os artistas plásticos,
muito importante na história das artes plásticas. Então, acho
que a gente está sempre procurando fazer música de alguma
maneira. Em algumas obras, mais diretamente, e em outras,
como é meu caso, mais indiretamente. Mas estamos sempre
dialogando com a música.
40
41
C A DER N OS EAV
CARLOS ZI L I O
Como surgiu o seu interesse em produzir
textos sobre arte?
Aluno:
Ao longo desses anos da minha experiência com a arte deu para
sentir mudanças importantes no circuito de arte brasileiro. Vocês
podem achar que as coisas estão ruins, e a gente tem tudo para
achar isso. Porque estamos vivendo ainda o rescaldo do incêndio
da coleção do Hélio, uma coisa dramática. Mas já foi tudo muito
pior. Teve uma época em que no Brasil os museus eram muito mais
precários do que são, as galerias, quase inexistentes e a produção
teórica, muito modesta. Hoje em dia você vai a uma livraria qualquer e tem uma ampla bibliografia sobre arte. Quando eu comecei
a fazer arte, nos anos 60, você tinha uma ou outra livraria especializada, que tinha alguns livros importados, e tinha uma biblioteca
do Consulado Americano chamada Thomas Jefferson, na Avenida
Atlântica. A minha geração começou com uma proposta que se
materializou nas exposições Opinião2 e Nova Objetividade Brasileira3, que traziam alguns elementos novos, lidando já com a crise
do moderno, ao mesmo tempo em que estabelecíamos um diálogo
muito intenso com a geração anterior à nossa, a da arte neoconcreta. Eles eram mais velhos, artistas mais maduros, mas criou-se
um vínculo muito intenso entre as duas gerações. Por outro lado,
ainda tínhamos questões que remontavam ao modernismo, à
Semana de 22, como por exemplo a de pensar o que seria a arte
brasileira, a antropofagia, enfim, questões que haviam sido colocadas mas ainda pouco pensadas. Neste momento, começa a haver,
tanto aqui quanto nos Estados Unidos e na Europa, essa atitude
dos artistas falarem sobre seu trabalho e o de seus colegas, porque
eles não viam na crítica daquele momento uma resposta sobre as
suas indagações. Embora na época não houvesse a globalização
que há hoje e as comunicações não fossem tão rápidas, havia um
sentimento comum, difuso internacionalmente, que era esse dos
artistas começarem a pensar a produção. E eu comecei a fazer isso
de maneira mais intensa, até porque passei quatro anos morando
na França nessa época e lá me deparei muito com essa questão de
museus, bibliografia, etc. Esse distanciamento, paradoxalmente,
permite uma proximidade muito grande de uma maneira mais
neutra, sem tantas paixões, permite um distanciamento teórico. E
aí comecei a pensar o Brasil e escrevi um livro sobre isso chamado A
querela do Brasil4. Quando editado, a primeira vez foi pela Funarte
em 1982, o livro teve uma repercussão que, sem maior pretensão,
foi importante para se repensar o modernismo brasileiro. Eu não
fiz doutorado em História da Arte, sou “metido” em História da
Arte. Fiz doutorado em Arte. O problema é que a história da arte
no Brasil era muito empírica, baseada em fatos do tipo quem nasceu, onde nasceu, foi aluno de quem. Então, mesmo estando no
42
43
C A DER N OS EAV
CARLOS ZI L I O
doutorado de Arte, eu achei que poderia dar uma contribuição
mais teórica.
Aluno:
Como você escolhe o título dos seus trabalhos?
É uma questão interessante, mas deixa eu pensar melhor... Acho
que não houve uma solução única ao longo do tempo para título.
Titular um trabalho significa primeiro criar uma identidade mais,
digamos assim, objetiva para o trabalho, mais funcional. Você
consegue distinguir um trabalho do outro, no arquivo. Esse é um
objetivo mais catalográfico. Mas o título pode abrir uma nova
questão para a leitura da obra por meio de uma articulação entre o
objeto plástico e a sua denominação de modo a produzir um outro
elemento que atua na própria significação do trabalho. Ao longo
do meu trabalho utilizei diferentes estratégias. Quando eu fico
muito sem ideia, me utilizo da solução mais simples e coloco “Sem
Título”. Aí a autonomia do espectador com relação ao trabalho é
grande. Outras vezes eu faço relações um pouco mais amplas, que
podem remeter a episódios e a coisas que não estão imediatamente
visíveis na pintura (eu falo pintura porque sou, sobretudo, um
pintor, embora não seja exclusivamente um pintor). Por exemplo:
tem uma fase minha, que vai de 1992 a 2000 e pouco, muito marcada por uma monocromia e uma indagação sobre o repertório
Tamanduá no outono, 2010
Tinta esmalte sobre tela
150 x 212 cm
Foto: Vicente de Mello
44
45
C A DER N OS EAV
CARLOS ZI L I O
da pintura. Então eu pegava a tela em branco, demarcava dentro
dela um espaço e dentro desse espaço eu trabalhava diversas possibilidades de ocupação com uma mesma cor, mas de maneiras
sucessivamente diferentes. Essa série toda tem o título 794A0.
Depois vem 794A0/1, 794A0/2, esse tipo de coisa. Você pode dizer
que isso é uma denominação aparentemente catalográfica, porque
tenta estabelecer uma relação estreita entre número e forma. Não.
794A0 era o segredo da porta da minha casa quando eu voltei a
morar em Paris durante seis meses em 1992. Ou seja, o código
para entrar na minha intimidade.
possibilidades da arte. O importante politicamente da arte é ser arte.
Você conseguir produzir um trabalho artístico que traga à sociedade
uma inquietação que só a obra de arte pode trazer, diferente de
outras formas de cultura, da ciência e da filosofia. Estou falando
especificamente de artes plásticas. Tem ali uma especificidade.
Eu acho que se a arte conseguir trazer essa inquietação singular à
sociedade, ela está cumprindo um papel histórico, político e social.
Então era uma maneira indireta de eu situar uma relação com a
pintura. Se você entender o código da pintura, você tem acesso a
um diálogo comigo.
Você deixou de fazer uma arte mais política.
Como foi isso?
Aluno:
A gente nunca deixa de ser político. Impossível. Você vive numa
sociedade e está sempre atuando politicamente. Acho que existem
diversas formas de ser político. No caso específico da arte, você
pode ter no seu trabalho um vínculo político imediato. E você tem
excelentes artistas que fazem isso. Mas eu acho que isso é uma das
Outro dado importante com relação à arte é a possibilidade de
experimentação, de investigar as suas formas de comunicação
com o mundo. Evidentemente, isso está muito ligado à experiência
de vida do artista e ao seu momento histórico. Vivi um momento
histórico na minha juventude muito especial. Havia uma sensação nítida de que com determinadas formas de comportamento
pessoal e de atuação política se transformaria o mundo. Em dez,
vinte, trinta anos isso se tornaria possível. Eu me lembro que nessa
época a ficção científica chamava-se 2001. Transformar o mundo
significava propor um modelo mais generoso de convivência social,
mais solidariedade, mais justiça social. Por outro lado havia uma
ditadura militar no Brasil, e você não podia ler, não podia ver ou se
expressar publicamente. A vida era censurada. Então, para minha
geração e para mim pessoalmente, a arte se mostrou um veículo
importante nesse combate. Até que eu vi que a arte tinha suas
46
47
C A DER N OS EAV
CARLOS ZI L I O
limitações nessa militância. E resolvi parar com a arte, em benefício da própria arte, e me transferir para uma prática de militante.
embate com o espectador, acaba virando uma coisa homogênea, de
uniformização. Então se o espectador médio, o público, tem uma
visão de arte extremamente simplória e se dizem para ele que um
boneco é uma obra de arte, ele vai se identificar imediatamente
com aquilo. Vai ser a lógica do senso comum. “Ah, isso é arte?” Não
há nenhum conflito, não há nenhum confronto, nenhum questionamento, nenhuma indagação que surja dessa relação. Isso é um
problema político. Por outro lado, desde 1980 resolvi, por uma
série de fatores, ser também professor. O único lugar que tinha
para dar aula como artista era a Escola de Belas Artes. Na época,
não havia possibilidade de lecionar lá, então eu fui para a PUC,
onde criei um curso de História da Arte. Acho que era um modelo
novo no Brasil e se distinguia por uma visão de história da arte
baseada em padrões mais conceituais e teóricos. Procurei reunir
uma equipe de professores que tinham essa concepção de história
da arte. Além do debate dentro de novas bases, desenvolveu-se um
trabalho significativo de pesquisas e publicações como a revista
Gávea, que divulgava os trabalhos de alunos e professores, bem
como de diversos autores fundamentais para o pensamento sobre
arte, muitos dos quais, até então, inéditos no Brasil. Um legado
concreto deste curso foi a produção de exposições que repensavam a história do modernismo brasileiro, que era calcada em Di
Cavalcanti, Portinari, e nós propusemos Goeldi e Guignard como
Acho que o escopo da política mudou muito. Nós achávamos que
de uma maneira difícil, dura, com muito sofrimento, seria viável
a transformação do mundo. O que demonstrou ser ingenuidade
política. Nos anos 70, por aí, começou a haver uma revisão desse tipo
de pensamento utópico. Desses grandes sistemas de pensamento
que estavam por trás do pensamento utópico. E uma das possibilidades que marcaram muito a minha geração nessa revisão foi a
questão da micropolítica. Esta tem uma eficácia não tão ambiciosa
quanto a outra, mas uma eficácia mais direta. O que é micropolítica na minha vida hoje em dia? Primeiro, algo que demarcou a
minha geração de artistas, que é a consciência da responsabilidade política com o trabalho produzido. O que você expõe, como
expõe, onde expõe, como aquilo circula. Esse é um compromisso
político do artista. Não deixar que seu trabalho seja diluído por um
sistema de apropriações que esvazie sua densidade cultural. Esse
é um dado político importante. Por que nós, por exemplo, há uns
dois meses, estávamos aqui no Parque Lage, dezenas de artistas
reunidos brigando por ocupação do espaço público? Porque se
você começa a colocar boneco por toda a cidade, o papel da arte,
que é de questionamento, de criar relação de perplexidade ou de
48
49
C A DER N OS EAV
CARLOS ZI L I O
“Um dia fez-se arte.
Existe um gesto do
homem que transforma
a vida social. E esse
gesto nunca parou de
ser feito daí em diante
porque se tornou algo
vital para a sociedade.”
alternativas mais pertinentes. Uma nova relação com a história da
arte, um novo tipo de abordagem, produzindo diversas pesquisas
que eram reunidas em catálogos-livros, e que conseguiu formar
diversos profissionais que hoje atuam expandindo esses princípios. Eu tenho a pretensão de ter ajudado a tornar isso possível.
Acho que foi uma militância político-cultural-profissional. Como
também política foi minha inserção na Escola de Belas Artes, para
a qual fiz concurso em 1994. Eu podia ter chegado lá para ser um
professor como faz grande parte dos meus colegas, que cumprem
seu dever pontualmente. Vão lá, dão boas aulas, corrigem as provas
e pronto, terminou. Mas achei que era minha obrigação política
trazer alguma inquietação àquele ambiente de tranquilidade conservadora. E coloquei uma pedra lá no caminho das pessoas. Não
sei se a pedra continua lá, mas eu espero que sim. É uma outra
maneira de atuar politicamente.
A arte está no terreno da investigação. Acho que a característica
da arte é o fato dela ter duas dimensões: uma dimensão histórica,
e a outra é sua relação com o presente. Nós artistas reatualizamos
no nosso ofício o gesto do primeiro homem que criou a arte. Esse
primeiro homem criou a arte do nada. Imagina a humanidade: milhares de anos atrás, digamos, trinta mil anos aproximadamente, não
existia arte. Um dia fez-se arte. Existe um gesto do homem que
50
51
C A DER N OS EAV
CARLOS ZI L I O
transforma a vida social. E esse gesto nunca parou de ser feito daí em
diante porque se tornou algo vital para a sociedade. Mas ele tem duas
características: carrega essa potência de ter feito do nada algo, mas
ao mesmo tempo se renova porque responde a novos desafios, a uma
nova realidade, a novos momentos históricos, a um novo arranjo da
sociedade. Para ele se transformar, os agentes dessa transformação,
que são os artistas, têm que experimentar, têm que buscar esse algo
que corresponda a essa nova arrumação da sociedade.
conseguir uma solução, uma resposta para você mesmo sobre
aquele problema, depois não tem sentido permanecer nele. Daí os
cortes internos no processo global do trabalho. O trabalho pode,
em alguns momentos, comportar uma subjetividade própria, meus
fantasmas pessoais, mas mesmo eles estão sintonizados em relação
à obra de alguns artistas. Esses artistas vão se sucedendo como
referenciais a serem problematizados, gerando essa aparente
descontinuidade interna no processo geral do trabalho como uma
sucessão de questionamentos que, uma vez enfrentados, se abrem
para um próximo desafio.
Esse DVD é de 2002. Posteriormente, em 2006, foi editado um
livro sobre o conjunto do meu trabalho. O acompanhamento dessas
duas iniciativas me motivou a ter uma visão mais global do meu
trabalho. Se você pegar o conjunto, tem estes cortes abruptos, uma
aparente descontinuidade.
O eixo central que articula esse processo é pensar o que é pintura,
ou, em outras palavras, pintar a pintura. Este questionamento
adquiriu, com a crise da modernidade e a perda do estatuto da
pintura como suporte padrão, uma nova característica destituída da certeza de que a prática pictórica trazia um sentido em si.
Optar, portanto, pela pintura no final da década de 1970 impunha
se relacionar com ela como um dado externo a ser problematizado.
Então você vai pensando determinados problemas pictóricos até
52
53
C A DER N OS EAV
CARLOS ZI L I O
Notas
Saiba mais
1. Carlos Zilio. Direção Mario Carneiro, Márcia de Medeiros. Produzido por Trampo
televisão e cinema. Série Rioarte Vídeo – Arte Contemporânea. Rio de Janeiro: Rioarte,
2002. DVD, 24 min.
http://www.carloszilio.com
2. Exposições coletivas realizadas no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1965 e
1966.
3. Exposição coletiva realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1967.
4. ZILIO, Carlos. A querela do Brasil: a questão da identidade da arte brasileira: a obra de
Tarsila, Di cavalcanti e Portinari, 1922-1945. Rio de Janeiro: Funarte, 1982. 2. ed.: Rio
de Janeiro: Relume-Dumará, 1997. 5. ZILIO, Carlos. Série 794AO, 1992-1998.
6. VENÂNCIO FILHO, Paulo (Org.). Carlos Zilio. São Paulo: Cosac & Nayfy, 2006. 216 p.
ZILIO, Carlos. Arte e política: 1966-1976. Curadoria Vanda Mangia Klabin; textos Paulo
Sérgio Duarte, Fernando Cocchiarale, Frederico Morais, Jayme Maurício, Roberto
Pontual; versão em inglês Ricardo Gomes Quintana; Hélio Oiticica, Ronaldo Brito,
Rosa Freire D’Aguiar. Rio de Janeiro: MAM, 1996. 71 p., il.
ZILIO, Carlos. Carlos Zilio. Curadoria e texto Paulo Venâncio Filho; textos Cesar Oiticica
Filho; versão em inglês Carolyn Brisset. Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica,
2000. 54 p., 35 il.
ZILIO, Carlos. Carlos Zilio. Organização Paulo Venâncio Filho; textos Jorge Guinle, Paulo
Sérgio Duarte, Paulo Venâncio Filho, Ronaldo Brito, Wilson Coutinho, Yve-Alain Bois.
São Paulo: Cosac Naify, 2006. 216 p., il.
54
ERNESTO NETO
Estudei aqui. Faço escultura, mesmo quando desenho ou fotografo.
Às vezes até acho que faço pintura em alguns trabalhos, mas os
pintores se chateiam quando falo isso, aí prefiro dizer que faço
esculturas com cores. Os pintores labutam muito para misturar
as tintas e eu nunca gostei de trabalhar com essa coisa grudenta,
não gosto de limpar pincel.
Aos 16 anos tentei entrar na escola no MAM. Na época, não fazia
ideia do que era arte, nem sabia onde ficava uma galeria. Matriculei-me no curso que tinha um fôlder, desenhado pela Fernanda Gomes,
uma artista muito interessante. Ele se desdobrava todo de um
quadradinho até aparecerem todos os cursos, cada um num quadradinho. No primeiro quadrado o texto dizendo: “Para desenvolver
Descaminhos de Lili, 2000
Tule de poliamida e areia
Dimensões variáveis
Vista da instalação: Museu de Arte
Moderna, Rio de Janeiro, 2000
Foto: Ana Stewart
56
57
C A DER N OS EAV
ERN ES TO N ETO
o artista em potencial”. Como não era artista, só queria fazer umas
esculturas, fiquei muito intimidado, com medo que tivesse um
monte de artistas, e não fui. Dois anos mais tarde, depois de abandonar o curso de engenharia, no meio do segundo período, fiz o
vestibular para astronomia. Eram 25 vagas e eu não passei. Acho
até engraçado achar que ia passar, mas talvez fosse uma maneira
de sair da engenharia, onde meus colegas gostavam de conversar
sobre o funcionamento das máquinas, do micro-ondas, e eu só
gostava das aulas de matemática e de física. Embora minhas notas
não fossem muito boas, era maravilhoso passar aquelas seis horas
numa segunda-feira estudando matemática.
muito para isso. Meu pai pirou, minha mãe me dava apoio, meus
irmãos achavam legal e os amigos adoravam. Aos poucos, minha
mãe ficou preocupada com as finanças, com a sobrevivência, depois
meus irmãos começaram a achar estranho e meus amigos acharam
que eu devia viajar.
Sem destino certo, fui para a Bahia, e uma namorada carioca me
disse que fazia aulas de escultura em barro no Parque Lage. A minha
infância inteira fiz escultura em barro, e vim para o Parque Lage
ter aulas com o Jaime, no início da Geração 80. A escultura não era
valorizada, porque era a época da pintura. Mas eu gostava de pegar
na matéria e não queria um pincel como intermediário.
Fazer arte tem relação com a vida, com o cotidiano, com o que
tocamos. Caí nisso meio por acaso. Quando fiz minha primeira
escultura, fiquei muito feliz e percebi que era aquilo que queria
fazer da vida. Nunca tive uma certeza tão grande e tive que lutar
Depois que você aparece no jornal, as coisas começam a mudar. A
realidade é muito mediada pela opinião dos outros, pelos resultados. Queria fazer escultura e estava numa escola em que a pintura
era totalmente dominante. Dois anos depois da primeira tentativa,
voltei para o MAM e me inscrevi, porque eu já não tinha mais tempo
para ter medo. Tem hora que podemos ter medo e outras não, talvez
não tivesse mais medo porque amadureci a ideia. Tenho dúvida se
a questão é relativa ao amadurecimento ou à falta de alternativa.
Se você pode pular num abismo ou correr para o outro lado, acho
que você tem uma oportunidade. Ninguém pula no abismo, se tiver
outra oportunidade e, de alguma forma, talvez na minha situação
emocional ou situação real, era só um curso de arte, não precisava
ficar com medo das pessoas, dos artistas, até porque já comecei a
achar que ia virar isso mesmo.
No MAM, tinha aulas com o Moriconi. O fato é que estava fazendo
esculturas e quis fazer uma conceitual. Não sabia bem o que era
58
59
C A DER N OS EAV
ERN ES TO N ETO
isso, não era uma coisa tão seca como acho que é a arte conceitual.
Umas coisas dos anos 70 apareciam no meu imaginário.
o bloco de fórmica, a espuma e o tecido iriam apresentar o peso
dessa bola e a relação desse peso com aquele ambiente.
Fiz a escultura conceitual. Era um quadrado de fórmica, de 60
x 60 cm e 10 de altura, com uma bola em cima, depois o mesmo
quadrado de espuma, e essa bola teria um peso que deformaria
essa espuma, e o terceiro trabalho era uma estrutura de madeira
pendurada com um tecido esticado e uma bola sobre esse tecido,
essa bola esticaria o tecido. Primeiro, descolei o tecido na casa da
minha avó, que vivia costurando. Perguntei a ela qual o tecido que
esticava e ela respondeu: “jérsei”. Comprei, descolei a madeira e
fiz uma bainha para entrar a escultura na madeira. Enfiei o tecido
na madeira, saía farpa para todo lado, não escorregava, não tinha
nada a ver. Pensei que madeira e tecido sintético não se bicam.
O meu trabalho é muito sobre relacionamento, isso para mim é
muito importante. Tudo na vida é relacionamento, das coisas com
o espaço, da mesa com o chão e do objeto que está sobre ela, e essa
mesa com esse espaço. Nunca dou uma palestra igual à outra, não
preparo uma palestra, acho interessante a coisa acontecer dentro da
atmosfera do momento. A situação e a pergunta alteram a resposta.
Faço escultura assim, como uma coisa que altera a outra. Era isso
que queria ver com a bola, o peso da bola ia deformar em relação
ao recipiente que a recebia, o material da bola era constante, mas
Cada artista tem uma maneira de desenvolver seu trabalho, uma
relação de afeto com o trabalho, não é à toa que fui direto ao tecido
e trabalho com isso até hoje. E nessa coisa do relacionamento,
tem um artista que acho demais entre os modernistas, e não é o
Duchamp – é o Brancusi. O Brancusi fez várias versões de O beijo1,
discutiu muito a questão da base na escultura, questão que foi quase
eliminada na arte contemporânea. Você faz um desenho e tem a
folha em branco, você tem a sua história, tem a história da arte e
tem os seus desejos e a sua própria loucura. Faz uma pintura, tem a
tela em branco, faz uma escultura, tem a pedra, mas o que acontece
hoje é você ter a galeria – ela passou a ser o papel em branco. Um
espaço vazio para o artista ir lá e fazer o trabalho. A galeria cubo
branco é uma invenção do século XX, de meados do século para cá,
que domina o nosso fazer artístico.
Quando se começou a falar em instalação, eu fazia escultura e faço
até hoje. Vocês veem uma instalação minha – ela é uma escultura.
Até entendo que alguns trabalhos possam parecer mais com uma
instalação, mas são esculturas para mim quando não tendem para a
pintura. Talvez seja tradicionalista, mas a arte hoje tem milhares de
60
61
C A DER N OS EAV
ERN ES TO N ETO
opções que não têm nada a ver com o que faço. Você pode fazer arte
de qualquer maneira e o lugar mais livre hoje é a galeria de arte. Tem
gente fazendo cinema inviável no grande circuito que acaba caindo
numa galeria de arte, crescendo e desenvolvendo novas linguagens,
sem falar da Internet. Fui apresentado ao computador com trinta
anos de idade. Existe uma renovação do relacionamento social na
música e na arte através da tecnologia. Quem sabe a arte consiga sair
um dia do cubo branco, da galeria, e acontecer em outros lugares.
você, Geração 80?2, mas, a partir de um dado momento, comecei
a achar os artistas dos anos 70 muito mais interessantes, como
Tunga, Waltercio, Cildo, Antonio Manuel, Barrio, José Resende.
É normal ser crítico ao trabalho anterior, é importante. Todos eles
foram muito importantes pra mim, e tenho certeza de que vieram
depois gerações que eram extremamente críticas ao meu trabalho
também. Faço esse trabalho aqui, é só o que faço, é a minha vida,
onde fui me encontrar, ocupar meu tempo. Às vezes, trabalhar
significa ficar deitado na rede até se achando deprimido, é não fazer
nada e depois conseguir se levantar e fazer alguma coisa. Muitas
vezes não sabemos para onde ir e não adianta bater pra cá e pra lá,
mas a vida e a arte são assim. Você realiza um dia uma coisa e acha
que seus problemas estão todos resolvidos, até o momento em que
você cai de novo no vazio e tem que recomeçar. De alguma forma, a
arte é algo em que você começa, chega num momento e despenca,
e se encontra novamente, como se fosse um eterno retorno. Essa
escultura, a pseudoconceitual,­não a fiz, e só fui perceber a importância dela na minha vida anos depois. Quando reconheci isso,
percebi que, de alguma forma, já tinha feito essa escultura várias
vezes, sem reparar que estava fazendo. Embora não tenha feito
aquela escultura naquele momento, e quando digo aquela, digo a
última parte, a de tecido, pois as outras nem comecei, a afetividade
me levou para a elasticidade e a gravidade, como se as outras duas
Antes falava sobre Brancusi, da passagem da base para o espaço.
Vejo uma galeria como uma folha em branco. Qual é a roupa que vou
colocar nessa festa? Como vou me comportar ali, quais as relações
dessa galeria com o espaço em torno dela, é um lugar institucional?
É um museu, uma galeria comercial, quem me convidou? Qual a
relação afetiva que tenho com essa pessoa? Essa já é uma situação
quando você vai expor o seu trabalho.
Sobre a situação da escultura que achava conceitual, que tem muitas maneiras de se manifestar, a arte sempre tem conceitos por
trás, não basta colocar emoção. Embora a Escola de Artes Visuais
do Parque Lage tenha sido uma influência muito forte em minha
vida, eu fui inclusive influenciado pelos principais escultores da
Geração 80, Barrão, Venosa e Mauricio Bentes, estava na Como vai
62
63
C A DER N OS EAV
ERN ES TO N ETO
partes fossem uma estratégia mental para chegar onde queria, a
esfera pendurada na superfície de tecido deformando-a. Enfim,
não a realizei naquele momento, mas tinha o material em casa.
Algumas semanas depois dessa tentativa frustrada, fui ao balé do
Nikolais Dance Theater, que tinha uns trabalhos de elasticidade
de tecidos em relação ao corpo. Pensei que era o que queria fazer,
fiquei muito impressionado e percebi isso como escultor. Por isso,
quando faço um desenho, uma pintura, me vejo como escultor,
penso o corpo no sentido tradicional da escultura. Me amarro nas
esculturas egípcias, gregas, me formei assim, lendo a história da
arte ocidental. Até três anos atrás achava que era ocidental, não
sei o que ensinam nas escolas hoje em dia, mas quando era garoto,
me ensinaram na escola que eu era ocidental, estudei a história da
Europa e do Brasil, em paralelo. Mas há uns dois anos, descobri que
não sou ocidental. Morava fora do Brasil e os ocidentais originais,
os europeus, os que inventaram o Ocidente, disseram que o Brasil
não era Ocidente e comecei a pesquisar esse assunto, lá mesmo,
perguntando a todos e finalmente liguei para dois grandes amigos,
que conhecem bem o Rio, descobri que, pelo menos para o europeu,
o Brasil não é considerado Ocidente. Tudo começou quando uma
estudante finlandesa me mandou umas perguntas: “Como é esse
seu trabalho nesse lugar? (fiz um trabalho3 no Panteão na França,
um lugar feito para ser uma igreja, com uma estrutura neoclássica
que se tornou túmulo de pessoas importantes, um templo-túmulo,
representante da república). E ela queria saber como duas culturas tão diferentes podiam estar em tanta sintonia no mesmo
lugar? Pensei, culturas tão diferentes? E a quinta pergunta dela
foi: “Como você se sente, expondo em países ocidentais”?” Estranhei a questão e, como já disse, perguntei a todo mundo. Na época
morava no interior da França, em Saché, na pequena cidade onde
fiz residência no ateliê do Calder, novamente cruzando meu destino, artista americano bem importante, que foi para a França em
meados dos anos 20 e tinha uma ligação muito forte com o circo.
Ele fazia umas esculturas figurativas incríveis de arame. Nas aulas
do Moriconi, tive acesso a um livro dele, pesquisei, até me tornei
bom aluno. Pela primeira vez, o cara dava um dever de casa, sugeria
dois exercícios e eu trazia dez, quinze, o professor ficava feliz da
vida e eu também, era um aluno exemplar. Realmente foi uma
mudança radical em minha vida, eu que sempre tive dificuldade
em passar de ano...
Voltando à aula. Fiz essa escultura de arame. Tinha esses arames
em casa, porque fiz várias esculturas com ele. Eram uns cinco
milímetros, de alumínio, mole, mole de fazer qualquer coisa. No
dia seguinte do balé Nikolais, foram todos à praia, domingão, eu
não fui – caí num vazio, ali de repente. Essa questão da arte foi
64
65
C A DER N OS EAV
ERN ES TO N ETO
“Vocês veem uma instalação
minha – ela é uma escultura.
Até entendo que alguns
trabalhos possam parecer
mais com uma instalação,
mas são esculturas para
mim, quando não tendem
para a pintura.”
quando vi aquela primeira escultura, de barro, mais tradicional,
e se relaciona com os trabalhos de hoje, se olharmos com atenção.
Olhar com atenção é uma questão. Essa atenção, a criança tem
muito rápido. O mundo ficou completamente diferente depois que
comecei a fazer arte. E o que é difícil de conceber na ideia de, de
repente, começar a fazer arte, me parece não ser o ato de fazer, mas
uma tomada de consciência de começar a encontrar a arte pelos
cantos do mundo, uma espécie de olhar que adquirimos sobre o
cotidiano. Demorei alguns meses para perceber isso, mas o mundo
onde vivia e o mundo onde passei a viver se tornaram duas coisas
completamente diferentes, o olhar das coisas, o espaço entre as
coisas, a relação entre as coisas, entre as pessoas, para mim, tudo
é escultura. Nós, aqui agora, o aglomerado de vocês, a posição de
cada cadeira, a maneira como vocês estão sentados, como um está
posicionado, o microfone, as duas águas em volta, o copo, os fios
que se cruzam, ele aqui com headphone, tudo entrando e saindo.
O que acontece quando tudo isso entra, sai, vai para outro lugar,
se expande, a imagem vira som, as relações sociais, políticas, tudo
para mim é passível de ser visto como uma escultura. Em tudo
existe uma tridimensionalidade, seja estática ou em movimento,
criando uma relação entre as coisas, entre os poderes, entre as
forças envolvidas; mesmo que você entre numa questão abstrata
de poder, de força, de energia, essas coisas também têm forma,
66
67
C A DER N OS EAV
ERN ES TO N ETO
tempo, espaço, peso, volume, cheiro. Comecei a ver o mundo de
maneira muito diferente.
Tem artista que adora andar, o Tiravanija e o Francis Alÿs, por
exemplo. No andar você pensa, oxigena, tem a ideia da viagem,
vários escritores falam disso. Você se dá liberdade de parar de
trabalhar, o artista é aquele que olha. Como desenhar modelo vivo,
escorço, certas coisas quando você olha de fato e começa a botar
aquilo no plano para desenhar, pode ser assustador. No nosso cotidiano, quando olhamos as pessoas ou as coisas, é o nosso cérebro
que reorganiza tudo, mas se observarmos de fato o olho, a boca, o
nariz, aquilo é tão presente que pode ser assustador, a realidade
das formas, das cores do que é olhado, pode ser muito brutal. A
terceira coisa interessante sobre o fato de ser artista é que no vazio
se pode ter uma situação de começar a olhar alguma coisa e uma
pipa começar a voar, ou um papel, e você começar a ver a poesia
naquilo, a embarcar dentro dela. Existe essa válvula de escape, esse
lugar onde você pode embarcar numa outra realidade, e pode ser
simplesmente um momento trivial.
A questão do desconforto é também importante, a vida é cheia de
pequenos desconfortos, às vezes enormes, uma série de momentos
em que aparece um vazio gigantesco. Essa situação do “entre”,
não foi mais bem descrita que por Lygia Clark, cujo trabalho, a
vida toda, foi em torno do entre. Acho que o meu também, embora
já veja de outra forma. Essa artista, essencial na história da arte
brasileira e no entendimento da passagem do modernismo para
o mundo hoje, descobriu a Linha orgânica4. A definição da linha
orgânica tem muito a ver com Brancusi. Com O beijo, com o entrebeijo, aquele bloco dividido, aquelas duas caras separadas que se
unem. Ele fez a Avenida dos heróis, uma rua com a forma de um
termômetro: no bulbo fica a Mesa do silêncio, depois o Portal
do beijo e a Coluna do infinito5. Era romeno, foi para a França
andando. Brancusi estudou na Escola de Belas Artes na Romênia,
fez uma escultura tipo esses bonecos de plástico com os músculos aparecendo para estudo de anatomia. Ele fez uma escultura
que era só musculatura, sem a pele, na época da academia dele.
Ele queria ser artista e parece que a França era “o lugar”. Ele foi
andando, não sei se não tinha dinheiro, nem sei se tinha trem
nessa época.
Desenvolvi esculturas, basicamente criando a estrutura de um
cubo feita daquele arame de alumínio, só as arestas e dentro desse
cubo colocava dois pedaços de tecido em estado de tensão, como
se tivesse um reator, um acontecimento dentro daquele cubo, em
seguida comecei a agrupar aqueles cubos e modular a posição dos
tecidos, das relações e das cores. É um trabalho pictórico. Um dia o
68
69
C A DER N OS EAV
ERN ES TO N ETO
Zé Maria, que dava aula ao lado, viu, curtiu e me animou. Isso que
vou narrar para vocês discute essa passagem da escultura para o
espaço, que é a situação dominante na cultura que vivemos hoje nas
artes plásticas. Queria tirar a estrutura porque, no relacionamento
daqueles elementos modulares, pensava muito no Amílcar, no
Sérgio Camargo, queria eliminar a presença daquela estrutura de
alumínio, e o Moriconi disse para pintar de preto que ela sumiria.
Fiquei um ano pintando a estrutura de preto, claro que ela não
sumiu – ficou discreta, mas ainda lá, e pintada. Para eliminar a
estrutura, comecei a usar a gravidade, comecei a pendurar a estrutura para ver como se comportava no espaço. Basicamente retirei as
colunas do cubo utilizando um chassi acima e abaixo do acontecimento, que finalmente evoluiu para duas placas de ferro pintadas de
preto. O peso dessa placa de baixo deformava o tecido e achava que
a escultura ficava numa situação de suspensão temporal, além do
espaço tensorial. Um equilíbrio que me interessava muito, porque
continuava estudando astronomia e a gravidade, isso me levava
exatamente para o centro do problema. A ciência, assim como a
história e a antropologia, me interessa – uma descrição científica
para mim é quase um poema. A Mesa do silêncio6, do Brancusi, é
simplesmente uma base, bem pesada, com um disco maior em
baixo e um menor em cima, e acima do chão ele podia criar uma
escultura, um espaço no plano para ela existir sobre o plano. Como
se ele quisesse botar aquela escultura no espaço vazio, e ainda não
fosse possível por uma questão cultural, talvez. As questões com que
lidamos são as possibilidades culturais, sua operação de trabalhar
as bases como protagonistas da obra era quase o deslocamento da
escultura para o espaço, que veio em seguida, no pós-guerra. Há
um livro interessante chamado A história do espaço: de Dante à
Internet7. A autora fala que o espaço medieval era muito diferente,
tinha o espaço dos vivos, dos mortos e das pessoas que ficavam no
meio. Os vivos se comunicavam com os mortos por intermédio do
padre, dando dinheiro para eles ascenderem. Para o imaginário
coletivo daquela época isso era uma realidade e a pintura, que de
alguma forma era conceitual, também era uma realidade. A religião
ocupava um espaço na estrutura simbólica do ser humano dando
sentido à vida. Assim, quando Giotto pintou pessoas tridimensionais, pela primeira vez na história, foi a primeira vez na história
da humanidade que tinha a pintura naturalista, pelo menos na
cultura ocidental.
Ainda sobre sermos ocidentais, liguei para meus dois amigos que já
estiveram aqui no Brasil e perguntei se eles achavam que o Brasil
é um país ocidental. Eles disseram que não. Perguntei a um deles
se era porque tem o preto, o africano, o índio; ele respondeu que
sim. Perguntei sobre os EUA e disseram que lá era ocidental. Disse
70
71
C A DER N OS EAV
ERN ES TO N ETO
que lá tem preto também, tem índio, mas lá não teve essa mistura...
A cultura latino-americana é muito diferente da americana, talvez pela miscigenação, primeiro com o índio, depois com o negro.
Minha outra amiga falou que não éramos desenvolvidos, perguntei
do Japão, novamente um conflito sem resposta! Bolei uma frase, em
inglês fica melhor: We are not pure, we are poor (não somos puros
somos pobres), isso faz a gente ser diferente e acho maravilhoso
não ser ocidental, libertador.
lugar para a pureza das esculturas gregas ou aquela introspecção
das esculturas egípcias, é diferente.
Em artes plásticas tem todo um estudo que vem da Europa, quando
estive no México pela primeira vez e vi as esculturas astecas e olmecas, fiquei chocado, inacreditável! A escultura egípcia tem a questão
da função, parece que uma pirâmide que vem daqui, sai dali e vai
para o céu, e tem uma coisa gasosa, preta, lembra a morte, a escuridão. A escultura grega segue um ideal de movimento, de estética, de
beleza, a sociedade ideal, parecia que eles queriam que a escultura
também deixasse de ser pedra. A sensação que tive quando vi essas
esculturas olmecas e astecas é que eles queriam que elas fossem
mais pesadas que a pedra. Acho que dá para entender um pouco
a estética ocidental pela relação da figura com o fundo – a visão
de horizonte expandido, a força do espaço vazio, onde o ser está
isolado por grandes distâncias, até as florestas espaçadas do Chapeuzinho Vermelho. Há uma violência no trabalho que não deixa
Foi muito importante para mim o entendimento da escultura
desse mundo clássico e acho interessante essa relação orgânica
pela dinâmica com o espaço. Há a noção do espaço como um lugar
vazio e muitas vezes o espaço que a gente trabalha hoje é o espaço
virtual, é o espaço contemporâneo. Quem faz um microchip para
criar relações e transferir imagens, cria uma série de circunstâncias, trabalha num espaço reduzido e extremamente orgânico,
uma coisa muito ligada à outra. A cada dia, a sociedade tem mais
gente, as pessoas vivem em apartamentos menores, tudo é mais
apertado. Cada vez mais, temos que lidar com espaço menor. Assim
voltamos a Margaret e seu livro, o espaço de Giotto, apesar da figura
volumétrica no entrefiguras, continuava sendo uma massa, pois
o vazio ainda era um tabu, o Deus cristão estava em todo lugar.
Assim o vazio não podia ser representado, passaram-se duzentos
anos para se reverter esta estrutura simbólica.
Na escultura do Brancusi, na Avenida dos heróis, tem essa mesa, esse
espaço hipotético, a base para uma escultura pousar naquele lugar,
porém ela está vazia. Os bancos dessa mesa são esferas cortadas ao
meio e viradas uma para cima da outra, fazendo seis banquinhos.
72
73
C A DER N OS EAV
ERN ES TO N ETO
Você continua nessa avenida e vê o Portal do beijo8, é um local que
representa o beijo. Todo o relacionamento das pessoas, todos os
relacionamentos seriam um beijo. O próprio relacionamento que
temos aqui seria “um beijo”, porque as circunstâncias das perguntas que vocês fazem vão definir a minha resposta. E no final
tem a Coluna do infinito9, como falei antes, as bases começaram
a virar esculturas, as horizontais/mesas e as verticais/colunas. O
que acontece nesses dois trabalhos? O trabalho começa com uma
base e termina com outra base passando pelo portal, a escultura
que dá origem é a mesa e a que termina é a coluna, são duas bases.
Já não é mais a escultura, mas a base que virou escultura. Acho
que isso tem uma perspectiva de uma entrada no espaço do cubo
branco, que seria esse espaço de transição da modernidade para
a pós-modernidade, porque ela talvez comece com esse espaço,
mas, de alguma forma, a pós-modernidade já saiu desse espaço.
Você fala que a pós-modernidade
saiu do espaço para a galeria?
Aluno:
Acho que sim. O espaço do cubo branco se desenvolveu no final
do modernismo e o começo da pós-modernidade pôde se dar pelo
nascimento do cubo branco. Neste mesmo momento, nos anos 60,
já tinha um monte de gente fazendo coisas fora da galeria, como o
BarraBola, 1988
Barra de ferro, bola de borracha
6 peças _ 175 x 5 x 5 cm cada
1 peça _ 140 x 5 x 5 cm
Vista da Instalação: Espaço Petite Galeire,
Rio de Janeiro, 1988
Foto: Marco Terranova
74
75
C A DER N OS EAV
ERN ES TO N ETO
Yves Klein, o Manzoni e outros artistas. Na verdade, essa entrada
na galeria já acontecia, se pensarmos nas esculturas gregas, astecas,
mas não tinha a menor relação com o cubo branco. O cubo branco
talvez represente o ápice do modernismo.
se tornando um monumento desta, que ainda é, apesar de voltar
a ser igreja e alternar entre templo republicano e igreja até que a
república depois de muitos anos se consolidasse finalmente. Ela é
uma representante simbólica da passagem da idade medieval para
a moderna, no sentido político. Outra experiência sensacional lá é
o Pêndulo de Foucault. A cúpula tem 60 metros de altura e no alto
tem um cabo com uma bola. A experiência, feita em outro lugar
primeiro e depois levada pra lá, é a seguinte: puxamos a bola para
um lado e a liberamos em movimento pendular. Se o pêndulo for
voltar sempre para o mesmo lugar significa que a Terra não gira
em torno de seu próprio eixo, mas, se ele, a cada movimento de vai
e vem, for um pouquinho para o lado até dar uma volta completa,
significa que a Terra gira em torno do próprio eixo. A teoria já
existia e a experiência provou a teoria. O que tinha nessa igreja
quando fui colocar o trabalho lá? Essa transação política e esse
objeto da representação da coisa fundamental da modernidade,
a ciência. Foi ela quem quebrou a estrutura religiosa: Descartes,
Leibniz, Newton, no sentido da razão, causa e consequência. Tem
um livro de um cara muito interessante chamado Bruno Latour
da Editora 34, Jamais fomos modernos10, e ele fala a mesma coisa
que estava pensando, ele fala do Hobbes com o Leviatã, e é o nome
dessa escultura que botei lá no Panteão, era para ser uma escultura
de especiarias...
Aluno:
Modernismo ou pós-modernismo?
Modernismo, meados do século XX. Estava até falando que ele seria
a passagem para a modernidade, mas o ápice pode ser a passagem
ou o fim nos dois sentidos do termo. Quando fiz a escultura no
Panteão, o espaço era o monumento. O Panteão foi realizado na
época de Luís XV, e a igreja de Santa Genoveva foi destruída pela
guerra, mas as pessoas se uniram ali e alguma coisa se salvou. Então
esse rei resolveu fazer uma igreja no mesmo local. Ele queria fazer
algo para o povo, mas também para mostrar poder – é uma estrutura enorme, neoclássica, uma arquitetura de poder. Essa igreja
demorou uns vinte anos para ficar pronta, foi o projeto do arquiteto
Soufflot, que já tinha morrido quando a obra foi inaugurada. E isso
aconteceu no ano da Revolução Francesa, parece piada, ou talvez
seja por isso mesmo, uma coisa impulsionando a outra. A igreja feita
para o rei mostrar poder talvez fosse a determinante para destruir
o poder dele. Pois rapidamente deixou de ser igreja, representante
da monarquia, e passou a abrigar o corpo dos heróis da república,
76
77
C A DER N OS EAV
ERN ES TO N ETO
Quando fiz essa escultura no Panteão, era o ano do Brasil na França
e fui convidado pelo Festival de Outono para fazer uma escultura
numa igreja chamada Salpetrière. Esse festival de arte, música,
dança e teatro convida artistas todos os anos. Ocupa espaços na
cidade, nas artes plásticas, e o projeto principal é o da Salpetrière,
é uma igreja linda, doce, tem uma relação com a mulher, em contraste com o Panteão, extremamente masculino, no sentido bruto.
O mundo é feito de homens e mulheres, é tudo uma continuidade,
uma coisa termina e começa outra, meu trabalho é sobre isso. A
Salpetrière é mais delicada que o Panteão, ela é parte de um hospital para onde, até o final do século XIX ou começo do XX, eram
enviados os malucos, as histéricas e as putas.
o Pêndulo. Ia fazer a escultura de especiarias. Acordei, cinco dias
antes da reunião dos curadores com os representantes civis, com
outra escultura na cabeça, toda de isopor, pendurada, com o nome
Leviatã. Estava em pânico, tem um monte de gente que não gosta
do meu trabalho e outros me acham folgado de chegar e fazer trabalhos grandes. Tem uma amiga e artista genial, Rosângela Rennó,
que queria fazer um trabalho sobre os negativos do Carandiru.
Ela queria ter acesso a esses negativos e entrou numa burocracia
enorme para obter isso. Começamos a conversar de trabalho, ela
reclamou dos problemas e encontrou uma solução por fazer algo
que ela ama. É assim comigo também, tenho meus problemas, o
que é bom, administro os problemas do meu trabalho.
O projeto já estava pronto, e o trabalho anterior que ocupou o
espaço era da Nan Goldin. No caso, o trabalho era sobre sua irmã,
sobre sua educação religiosa e repressora, e como essa se matou.
Achei tudo surreal de acontecer numa igreja. Em dezembro, apresentei os projetos aos curadores e a exposição abriu em setembro
do ano seguinte. Em janeiro, recebo uma carta dizendo que os
padres se juntaram e fecharam as portas, não queriam mais saber
de Festival de Outono e nem de exposição nenhuma ali, pegaram o
trabalho da Nan Goldin como exemplo e romperam. Passaram-se
seis meses e me ofereceram o Panteão. Já tinha ido lá para conhecer
Estava preocupado em fazer uma coisa muito grande com essa
escultura, sabia que teria uma ressaca. Avisava que faria um monstro, uma anomalia, para a ressaca vir menor. E acordei com esse
nome, Leviatã, e com essa escultura diferente, tive de correr atrás
para desenhar esse projeto também. Apresentei os dois projetos e
felizmente escolheram esse. O trabalho já tinha esse nome, Leviatã,
o do Hobbes, no qual Leviatã é o nome do monstro monárquico, o
Estado. Esse nome tem vários significados, mas para mim “perverso
é aquele forno de micro-ondas todo branquinho na vitrine e o cara
babando querendo comprar”. Nunca fomos modernos, voltando ao
78
79
C A DER N OS EAV
ERN ES TO N ETO
livro do Latour, ele usa dois elementos para falar da modernidade
e depois dizer que nunca fomos modernos – Hobbes, em Leviatã,
falando da política. e a experiência Bolha de Boyle, uma experiência
em que se cria um espaço num vácuo, para fazer uma experiência
científica, um lugar ideal, livre de “ruído”. A experiência científica
seria o significante maior da modernidade, além da república na
parte política? Você cria um espaço ideal para, nesse espaço, realizar
uma experiência. Acho que o cubo branco é isso, por isso comecei a
pensar o cubo branco como ápice do modernismo. O modernismo
se desenvolveu de certa maneira dentro da tela, com Malevitch,
fazendo o branco sobre branco11, ou Mondrian, ou quando você
decupa o máximo possível do espaço e traz a arte conceitual. O
próprio Manzoni, com o pedestal do mundo12, ou com a merda do
artista13, representa o momento em que se chegou a essa decupação
total do espaço. Isso sem falar do Duchamp, que me parece mais
ligado à instituição, ao valor do lugar. O mais interessante na contemporaneidade é a saída do cubo branco.
espessura, fazia dois furos, de 8 mm de largura na parte de cima
da placa. Primeiro fazia um furo menor de 5 mm e outro de 10
mm sobre esse furo e enfiava o tecido por esse buraquinho, dava
um nó, escondido pela chapa, e o tecido esticava. Mas depois esse
tecido rasgava, talvez por causa do corte, hoje até daria para fazer
sem rasgar. Eu não gostava dessa questão da porquinha, dos dois
buracos, achava essa finalização suja. Suja até no sentido de que
tinha muitos elementos e no sentido ético também. Então fiz uma
escultura. Era apenas um buraco no alto e centro de chapa de ferro
de 20 por 50, por este furo passava uma corda e com um nó aparente
conectava esta em equilíbrio a um gancho na parede. Tinha uma
perda de sensualidade e carnalidade que era importante para mim,
mas tinha um ganho conceitual. Na minha crítica à arte conceitual,
o interessante é que para se apresentar o conceito tem que tirar a
carne e entrar na questão do Platão. Sou antiplatônico, o que é até
interessante, porque meu trabalho é muito racionalizado, tenho
que calcular uma série de coisas, equilibrar, mas a carnalidade
é muito importante. Então criei o sistema ABA, chapa/corda/
chapa14, eram duas chapas, cada qual com seu furo, e uma corda
atravessando-as com um nó de cada lado. Variando a posição do
nó, poderia colocar cada elemento de uma maneira diferente.
O nó era importante, segurava aquele universo todo. Fiquei em
contemplação com a escultura, a situação acontecendo no tempo
Depois da escultura que fiz após o balé Nikolais, tirei as estruturas
e trabalhei com a gravidade, foi como cheguei nessas esculturas
da placa solta no espaço, mas achava que essas esculturas estavam
com um problema. Existe uma questão ética. Como fazia essa
escultura? Tinha uma placa de mais ou menos meia polegada de
80
81
C A DER N OS EAV
ERN ES TO N ETO
e no espaço, e o nó segurando tudo. É extremamente poético ter o
nó como elemento construtivo. E para terminar, parei de pintar, já
que com essas esculturas resolvia o problema estrutural, conectava
a escultura de forma independente e atuante no espaço físico e
deixava o peso na carne.
O tempo todo via a bolinha e cada hora em um lugar. Fui comprar
uma chapa de ferro de meia polegada e não tinha na Praça da Bandeira, tive que ir a São Cristóvão, onde vi umas chapas de ferro e
umas coisas inacreditáveis! Essa é a quarta coisa importante no
mundo da arte, a necessidade de material faz com que você encontre
coisas que não acha no cotidiano, descubra possibilidades, porque
as coisas são feitas de coisas.
Quando parei de estudar no MAM e voltei para o Parque Lage,
para um curso de seis meses com o João Carlos Goldberg, conheci
o Franklin Cassaro, que, por acaso, tinha um trabalho com meia
e ferro esticado, semelhante ao que eu fazia, pintado de preto.
Outro parceiro nessa época foi o Carlos Bevilacqua. Nessa época a
questão da ‘ética’ se tornou muito importante. Tudo envolvido no
trabalho tinha que ser apresentado, fazer uma escultura soldando
tudo, qual era o sentido disso? Era a ideia de que a coisa não estava
acontecendo e tinha a transparência, tanto Franklin quanto o Carlos compartilhavam esta ideia, crescemos na época da ditadura,
83/84. Em 82, nas eleições para governador, o Brizola foi eleito no
Rio, era uma abertura, por mais que não tivesse se realizado ainda.
A questão ética era refletida aí – ver as coisas claras, nada escuro,
não ter algo hermético ou algum truque escondido.
Teve uma situação do BarraBola: tinha uma bola de borracha que
zanzava pela casa da minha mãe, onde morava, com o cachorro.
Vi uma barra de ferro nesse lugar, linda! Comprei, e nem sabia pra
quê. Um belo dia, a barra estava lá, a bola do cachorro cada dia num
lugar... Peguei a tal bolinha, coloquei a barra de ferro em cima e
achei que era uma escultura. Depois comprei uma barra de ferro
maior e esmaguei a bolinha na parede. Era muito interessante pra
mim porque tinha a obra de arte, mas, se tirasse a barra da bolinha,
não tinha mais. Tinha arte, não tinha. Além disso, a bola estava
esmagada, era como se a plasticidade e a dramaticidade elevassem
o drama, o momentum a nossos olhos, nessa relação com o espaço
pós-Brancusi que quis dizer.
A mostra do BarraBola15 foi a primeira individual que fiz. De acordo
com a posição, a bola se deformava e ficava diferente. Depois do
ABA, queria fazer uma escultura mais orgânica, a bolinha de borracha, quando amassada, parecia que queria células, que fosse mais
82
83
C A DER N OS EAV
ERN ES TO N ETO
“O mundo ficou
completamente
diferente depois que
comecei a fazer arte.”
carne. Pensando construtivamente, queria um construtivismo
biológico, algo que tivesse mais a ver com o corpo. Demorei muito
tempo para fazer Peso16, era pequenininha no começo. Para a exposição do BarraBola, tinha um mezanino na galeria e queria botar
um tecido lá e uma barra de ferro pendurada, como se estivesse
flutuando naquele vão da Petite Galerie. Fiz um teste, aproveitei um vão em forma de U largo onde ficava a cama, na verdade
tinha um colchão que pendurava durante o dia para trabalhar no
quarto. Estiquei o tecido com umas estacas fazendo uma quarta
parede, a uns trinta centímetros do chão, e botei a barra de ferro,
mas era muito agressiva com o tecido, os ângulos retos da barra
tocavam com violência o tecido. Assim, retirei a barra depois de
um tempo e coloquei umas bolinhas de bilha. Achei interessante,
tinha a questão mais biológica. Procurava chumbo para pesca, e o
Franklin Cassaro me indicou uma loja no Saara. Comprei alguns,
em saquinhos de 50 g e 200 g cada.
Fiquei seis meses para fazer essa escultura, colocando o peso em
vários suportes, mas em nenhum deles funcionava. E um dia, no
ateliê, pensei em colocar numa meia de mulher. Fiz a escultura,
tinha 1,5 kg, parecia uma ova, e ela acontecia no que eu chamava
de transformação de estado, primeiro quando ela está pendurada
e, depois, se deixar cair reta, ela adquire outra forma. Em Colônia17
84
85
C A DER N OS EAV
ERN ES TO N ETO
ela já foi jogada de uma maneira mais relaxada. A unidade desses
trabalhos, os pesos, é muito importante, é a semente de tudo que
fiz até hoje – fiz essas colônias e comecei a perceber que, com essa
unidade, podia fazer, desenvolver vários trabalhos. Isso era muito
importante no sentido de pensar como fazer a escultura, dela
existir no espaço. Trabalhei a questão da população, da relação
das pessoas umas com as outras, das células.
que mais tarde chamei de Labioide19, de meia com cal. Era um
potinho de meia cheio de cal colocado no chão, com uma boquinha
para cima, o cal era fino, transpirava pelos poros da pele da meia,
ficava cheio de pó em volta e uma parte do pó caía fazendo um
anel em volta, naturalmente. Gosto de trabalhar com a natureza,
sempre tento utilizar a natureza dos elementos, a propriedade
das coisas para carregar a expressividade da obra. Mais uma vez,
a escultura estava lá, sem forma definida, mas cheia de açafrão
e transpirando pó e aroma. Voltei à Casa Pedro, levei cravo e
outras especiarias, e fiz uma escultura de cada. Comecei a ter uma
paisagem de cheiros, e o aroma pesado do açafrão variou e ficou
interessante, não era mais desconfortável, era bom viver ali. A
escultura tinha uns pescoços, ficava em pé ou deitada, ocupava
espaço, sujava tudo, no fim era um saco com a matéria, era digamos “bonito”, mas não estava legal, não tinha identidade. Um
dia peguei uma delas, enrolei a boca, levantei-a no ar e a deixei
cair enquanto segurava a boca batendo-a no chão. Aquilo criou
um corpo, uma explosão do pó, ampliando um campo em torno
dela e, no meio desse campo odorífico, do perfume, do impacto,
houve uma ação sobre ela. Entendi a escultura, ela adquiriu uma
identidade. A partir daí comecei a desenvolver uma linguagem,
mas, até o momento em que a joguei no chão e compreendi a
linguagem dela, demoraram quatro meses.
Embora com um pensamento construtivo, realmente rigoroso em
relação a certas coisas, existia algo que não transitava entre mim
e esse movimento. Resolvi fazer uma escultura para ser expulso
de sala, quer dizer, do grupo no qual no fundo nunca fui aceito.
Comecei a ler Freud e a fazer esculturas oníricas. Tirei um molde
da minha cabeça, de gesso, respirando por um canudinho na bacia, –
foi quando fiz M.E.D.I.T.18 (metamorfose espiritual do inconsciente
topológico). Esses trabalhos fundamentais me livraram do peso
de minha história, me tornei mais livre, o que é muito importante
para seguir em frente, encontrei soluções e novos problemas.
Um dia fui à Casa Pedro, no Saara, e mesmo já tendo estado lá,
foi especial. Era um sábado de sol, e aquele cheiro, aquelas cores,
me levaram a uma relação existencial. Comprei açafrão, mas em
uma semana estava lá de novo. Uma vez fiz uma esculturinha,
86
87
C A DER N OS EAV
ERN ES TO N ETO
Comecei a fazer uma relação com os trabalhos antigos e cheguei
a essas esculturas que são as Naves, o oposto dos Puffs paffs poffs
e piffs20, em relação à densidade. As Naves são totalmente etéreas,
enquanto Casa Nave21, são esculturas que você pode tirar o sapato
e andar sobre elas. No Nude Plasmic22, temos três gotas, uma mais
branca que a outra. É quase uma situação de pintura também, existe
uma poesia também no fazer, nas escolhas. O público raramente vai
perceber, talvez poucos, mas isso vai fazer uma diferença quando
olharem, mesmo sem que percebam a ação, a escolha – de alguma
forma esta é a mágica, ter um fiozinho fazendo a conexão entre
uma e outra.
como se uma representasse a carne e a outra o vegetal. Comecei
a achar as coisas muito limpas, puristas e sonhadoras nas naves
ovaloides, de cor marfim, queria ser mais crítico, mais ácido, e
fiquei com raiva de certas situações que aconteciam no meio em
que convivia. As naves são esculturas atmosféricas, filtram a luz
e dão volumetria ao espaço, com o verde e o rosa criei um espaço
de contraste de luminosidade.
Com a Blue Cave23, queria abraçar mais as pessoas por mais que você
entrasse numa escultura Nave, se deitasse nela, ia dar direto com
o chão, aquilo duro e frio. Fiz essa escultura para um chão quente
e absorvente, coloquei umas luzes do lado de fora, acho até que ela
é um pouco artificial por causa disso. Tenho uma certa dificuldade
em trabalhar com eletricidade. Comecei a fazer umas esculturas
equilibradas dessas (Celula Nave24), maior e com um colchão dentro. Sempre tive essa tendência ao equilíbrio, mostrar ao máximo
tudo o que acontece. Comecei a trabalhar com cores complementares, verde e rosa num tom mais leve, que é meio Mangueira, mas
não por este dado simbólico, e sim por serem complementares e
Quando fiz a Greta gruta25 estava cansado, de certa maneira. Tinha
feito um texto antirreligião para a Bienal de Veneza, em 2001, e
dois meses depois houve o ataque às Torres Gêmeas durante o
governo Bush, e a consequente guerra que assistimos. Queria fazer
uma escultura na forma de um cubo de espuma coberto com uma
espécie de veludo cinza lavado, que havia encontrado. Algo bem
minimalista por fora, e o interior uma caverna vermelha, lasciva,
forte e sexual, opaca, você não veria o que tem dentro. Seria para
a Galeria Yvon Lambert, em Paris. Chegamos para cortar os blocos de espuma com facas, contrataram um cara para trabalhar
comigo, meio negativo, ele dizia que não ia dar certo e eu só trabalhando. Ele disse que era sábado e que não teria nenhuma loja
aberta, até que começou a cortar também, a querer mostrar serviço,
finalmente quando já eram três da tarde, ele me disse que tinha
uma loja que ficava até as cinco, que podia ter material de cortar.
88
89
C A DER N OS EAV
ERN ES TO N ETO
Cheguei lá e comprei a serra de fita na qual já vinha pensando. No
dia seguinte, começamos a cortar. Quando abrimos, encontramos
esse corte facetado e curvo, foi muita emoção, a fita nunca corta
reto, sempre em curva, e ali fizemos toda a escultura, era um cubo
com vários blocos. Chamei o galerista e todo o pessoal, entramos
na peça, começou a entrar transparência, elementos do meu trabalho anterior, e eu não queria botar mais o veludo, porque achei
maravilhoso, tudo se encaixava com a minha história – tentei ser
perverso e não consegui. Isso aqui (Garden26 e/ou Gate) foi difícil
de fazer, eram quatro pessoas cortando, dois de cada lado, uma
serra de fita de três metros com dois punhos, gente na escada,
tipo lenhador, com pé na espuma fazendo força. Tem duas coisas
que percebi: se você vira a lâmina para um lado, ela faz a curva
para fora, para o outro, ela faz a curva para dentro. Fizemos esse
nichozinho (House27), onde a luz entra porque no bico da parte
cônica a espessura é mais fina para entrar nela e as pessoas tinham
que vestir uma roupa para entrar. Além disso, estas obras, tanto
a House quanto a Greta gruta, são obras que quando entramos
temos uma potente pressão acústica, não ouvimos nada de fora e
o som de dentro é superdenso.
uma folha de tecido, gotas e ganchos na parede inteira, eu esticava o tecido nos ganchos e botava as gotas. Tinham umas meias
que prendíamos no teto também para suspender, o centro era de
20 m x 10 m, nessa sala. É um curry, não é uma especiaria, é uma
mistura de temperos, cada um pode fazer um curry diferente, isso
é um curry impressionista, tem vários temperos, não misturados,
cravo, pimenta, açafrão e cominho. Já esta aqui, não podia esticar
o tecido para a parede, pois esta era tombada, não podia botar
gancho nem na parede e nem no teto, mas tinham várias vigas.
No avião liguei para minha mulher com esse problema, não podia
fazer nada, eram três meses antes da abertura da exposição e ela
me perguntou como ia resolver isso. Respondi que não sabia, mas
que ia acordar no dia seguinte com uma ideia. De fato, dormi no
avião e acordei com a ideia: costurar dois tecidos, um em cima e
outro em baixo, conectar o tecido de cima com o de baixo e essa
peça aqui que está caindo, e colocar contrapesos partindo do tecido
de cima passando por um gancho S numa fita na viga e pendendo
novamente para baixo. Sustentando assim o centro da peça, esse
trabalho quase se chamou Arquitetura Animal, mas como achei que
ela ia ficar o bicho, ficou É o Bicho. E qual a diferença deste trabalho
para este outro? O outro é um céu, um horizonte. Quando fiz essas
esculturas, a primeira delas é só uma gota tocando no chão e se
chama O céu é a anatomia do meu corpo30. Outra que nasceu meio
Outra escultura, chamada Nós pescando o tempo28, e É o Bicho!29,
o trabalho principal para a Bienal de Veneza de 2001. O Nós... tem
90
91
C A DER N OS EAV
ERN ES TO N ETO
ao acaso. Há vários anos queria fazer um trabalho desse tipo, um
trabalho que tivesse a sensação de estar abaixo da linha d’água. Sabe
essas pinturas do Dali com o mar boiando? Sempre gostei desse
lance, nunca consegui fazer, porque tinha dificuldade de costurar,
achava que ia tirar a pureza da obra. Um dia, me convidaram para
fazer uma individual na feira de Basel pela Camargo Vilaça, isto é,
num estande que não tinha teto! Assim nasceu a obra, da ausência.
escultura em que apareço vestido de roupa branca envolto nela, é
um tubo que fica em volta do meu corpo, tocando totalmente, e da
foto cheguei aos Humanoides32. Pensei em como fazer uma roupa
e anexar esse volume de isopor à roupa, não dava certo, mas tive
um click em cima da hora. Pensei que, se estudo uma escultura
para ser vestida, o primeiro objeto a ser pego é uma roupa para
tentar juntá-la com outra. Não deu certo, e então, pensei: o que é
o negativo do corpo?
Assim, quando temos uma folha de tecido, temos uma relação de
paisagem, quando temos duas, uma relação de bicho, animal, corpo
– porque ele é fechado. Quando se tem só um tecido, ele é aberto e
temos dois lados de fora, temos um horizonte, uma paisagem. No
meu trabalho é importante essa continuidade entre horizonte e
paisagem, a figura e o fundo. Quando falei de figura e fundo não
foi à toa, penso nessa continuidade, nesse trânsito. Em muitos
trabalhos, como esses das Naves, a sensação é de como se estivesse
entrando em um corpo. Interesso-me pelo que acontece dentro
do corpo, na paisagem que vivemos – composta por outras a que
temos acesso e que enriquecem nosso mundo. Ter esse recurso
estimula o meu imaginário, a minha criatividade.
Na escultura do Panteão, a cúpula é dividida em quatro partes:
chamo de cabeça, braços e corpo. Outra se chama Arco ventre31, uma
Aluno:
O espaço em volta.
E o que melhor representa isso? A roupa. Uma camisa é o negativo
do tronco, algo óbvio que nunca pensei. Demorei 15 minutos para
chegar à conclusão da camisa. Deitei o tubo de tecido e fiz quatro
buracos, para cabeça, braços e tronco. Encaixei uma camiseta, e
pronto. Mas é objetivamente o negativo do corpo, temos a tendência
a “figurativar” tudo, a se ver nas coisas.
Na exposição33 da Artur Fidalgo, que talvez vocês tenham visto,
ele queria fazer a exposição há muito e eu não tinha tempo. Fiz um
trabalho, Papai e mamãe34, e quis fazer esse trabalho com essa fita
que são desenhos no papel, mas queria fazê-los tridimensionais.
Fiz o corte a laser, que, quando corta, deixa a margem preta dando
92
93
C A DER N OS EAV
ERN ES TO N ETO
esta vibração ótica. O Artur me convidou e eu disse que não ia dar
para ser naquele ano, só no outro. Um dia, em casa, tinha o lance
do piano, nunca tive aula, mas toco, me divirto. Tenho os filhos,
tenho a sala que não é grande, tem um monte de brinquedo espalhado, carrinho, velocípede, aquela bagunça. Um dia, as crianças
estavam lá no meio daquilo e chegaram os pais, foi legal. Pelo lance
da escola, ficamos amigos de vários pais, de origens diferentes,
visões de mundo diferentes, tomamos cerveja, acho essa loucura
da convivência em grupo de crianças e adultos muito interessante.
Resolvi fazer desta relação a mostra. A ideia era trazer esta sala
de convivência para a galeria. Parti de um assoalho para tirar um
pouco da neutralidade do cubo branco, talvez isso já seja uma
vontade de transformar o cubo branco... Fiz esses vasos tortos,
que sempre quis fazer, e botei duas plantas em cada um, fiz essas
mesas, os banquinhos, queria fazer uma oficinazinha, um bar, mas
todo mundo tomando cerveja lá ia ser um problema, resolvi fazer
um café e uma biblioteca. Ainda existe essa biblioteca, até gostaria
de dar continuidade, que ela pudesse circular por aí. Tinha que
fazer mesa e cadeira, então, desenhei esses móveis, que se encaixam sem prego nem nada. Tem um garoto genial que trabalha
comigo, o Marcelo, que botou no computador e mandamos cortar
no laser. Fiz esses móveis, foi genial a abertura, a maior loucura,
piano, nego tocando...
A-B-A, 1987
Corda e chapa de ferro de 15 mm
2 peças _ 100 x 20 cm cada
Vista da Instalação: Atelienave,
Rio de Janeiro, 1987
Foto: Gabriela Toledo
Aluno:
94
95
C A DER N OS EAV
ERN ES TO N ETO
E a respeito do Casamento35 no MAM?
bêbado, encontrei o Agnaldo na saída e contei todo o projeto, útero,
gravidez, relação mãe/filho, estrutura simbólica social e o cara
adorou! No dia seguinte, no Rio, recebo uma mensagem do Agnaldo
que disse que não sabia se eu estava muito bêbado, mas que a proposta da exposição era incrível, tinham adorado e queriam fazer.
Tinha o problema da data, queria o salão grande e demos a sorte
de um cancelamento, a exposição aconteceu 16 de dezembro e o
Lito nasceu 18 de janeiro. Lili estava de oito meses, um barrigão
enorme. Fiz três esculturas grandes e uma de transição, chamamos
dez amigos que fizeram o papel de padrinhos para a cerimônia,
desenhei a roupa de todo mundo, baseado na personalidade de
cada um. O rito começava na obra Descaminhos de Lili36. Ela descia
a escada, tinha um garotinho, meu afilhado Manuel, carregando
um pano, numa bandeja. Eles desciam a escada, a Lili tirava os
sapatos e entrava no Descaminhos... que representava o corredor
em que a noiva entra, em direção ao altar, ela atravessava esses
descaminhos, como se fosse a vida dela, e num desses caminhos
ela encontrava o buquê, saía, seu pai a pegava pelo braço, seguiam
andando envolvidos e protegidos por uma corrente circular de
padrinhos que abriam caminho na multidão em direção à nave
Útero capela37. Chegavam nessa nave, foi lindo, uma sorte, os deuses
são muito legais, eles gostam de ver se você está legal, se você está
esperto eles te ajudam, se você começa a dar uma bobeada, pensar
Sim, O casamento. Muita gente acha que tem uma coisa uterina,
de entrar dentro do corpo. Me interesso muito pela coisa do bebê,
do espaço infantil. O próprio Picasso disse que, com 15 anos, ele
pintava como Rafael e demorou 50 para pintar como uma criança,
acho bem legal. Acho interessante o espaço do bebê, de um a dois
anos, quando a criança tateia tudo, uma relação sensorial com o
espaço das coisas, com o peso, tendo compreensão de seu próprio
peso. Enfim, tudo aconteceu meio por acaso. Lili estava grávida.
Agnaldo Farias era o diretor do MAM, já havia uma intenção de
fazer algo, eu estava ocupado, mas a Lili ficou grávida, primeiro
filho, loucura total. Liguei para ele, pensei nessa obra Casamento
no MAM. A Lili foi modelo várias vezes dos meus trabalhos e pensei
que ia ficar lindo ela grávida dentro de uma nave e, nesse momento,
as naves eram um grande acontecimento, estavam fazendo um
puta sucesso mundo afora, tem uns oito anos. Era um momento
muito feliz, a Lili grávida, tinha essa relação da topologia. Não
somos casados de fato, no papel, mas queríamos demarcar esse
território da nossa forma. Houve um desencontro, o Agnaldo estava
saindo do MAM, mas encontrei com ele numa festa no MAM de
São Paulo. Ele disse para eu ligar, que ainda não tinha saído e etc.,
no meio da festa, os caras serviam uísque a rodo, já estava meio
96
97
C A DER N OS EAV
ERN ES TO N ETO
em outras coisas, eles te puxam. Quando descola corpo e mente, dá
problema, pelo menos comigo, já aconteceu várias vezes. Aqueles
deuses gregos são mais humanos... Teve esse ritual e o acaso é
escultor. A nave tinha o desenho, digamos, de um balão com as
pontas sextavadas, um eixo vertical, mas comprido, onde a base era
a entrada principal, a outra ponta o altar, acima do centro um eixo
horizontal, com uma entrada em cada ponta. Antes de chegar ao
SalAltar, no sentido do eixo principal, fiz duas colunas largas para
levantar o chão e criar corredores. São coisas muito importantes
quando você pensa num espaço vazio. Faltava um lugar para as
famílias, não queríamos que as famílias ficassem dentro da nave,
ali seríamos só nós e os padrinhos fazendo o ritual. Surgiu a ideia
mágica: as famílias podiam entrar por debaixo da peça e ficar dentro
das colunas uma para cada, assim estavam dentro da cena, mas,
topologicamente, fora da nave. Mais um acaso, quando a corrente
de amigos chegou com a Lili e seu pai, ela se abriu, eles seguiram
em direção às entradas laterais, o Cristian me entregou a Lili e
foi, por debaixo da nave, para sua CélulaColunaFamiliar, eu e Lili
atravessamos o corredor em direção ao centro de acontecimentos.
Os padrinhos formaram um círculo à nossa volta, nos abraçaram
todos juntos e abriram o círculo novamente, um deles escreveu
um poema, outro leu. O Manuel veio com a bandeja e o tecido, o
desenrolaram , era um triângulo com MeiasPatas nas pontas e um
TuboGota com um nó na ponta, o abriram o e colocaram em volta
da gente como se fosse uma camisinha e nos enrolaram de modo
que saímos abraçados os dois. Era como se estivesse rolando o ato
sexual. Saímos da nave em direção a uma área onde estavam no
chão: três tubos de alumínio, três ânforas de barro com arroz e
um balde de poliestireno, o TecidoEscuturaPele foi desenrolado
de nossos corpos e aberto, o conteúdo das ânforas foi transferido
para as três MeiasPatas da Pele em torno de nós e a levantaram com
os TuboEstacas de alumínio, enquanto simultaneamente botavam
isopor no negativo da gota, o interior dessa, de onde estávamos
saindo por baixo, como se fosse o gozo. Eu fiquei para equilibrar
a obra (Depois das núpcias38) enquanto Lili foi para a EsculturaColchão Corpos, corpos, corpos...39, de onde escolhia os sacos ovas
de arroz, (esculturas Peso de arroz), coordenava o movimento dos
EspermatoPadrinhAmigos que faziam uma corrente, levando-os,
de mão em mão, até mim com as gotas de “ArrozSêmen”, com as
quais fazia uma colônia fechando o círculo em direção a Lili, eles
saíam da mão dela, e chegavam na minha, até que na última, cheguei
ao lado dela, peguei-a, fomos em direção à saída, jogamos para o
alto os últimos SacoCélulaGotaArrozSêmem e saímos correndo, e
berrando. Isso tudo foi filmado, fotografado e, quatro dias depois,
a exposição abriu para o público com o filme da performance projetado na parede.
98
99
C A DER N OS EAV
ERN ES TO N ETO
Anthropodino40 foi o último trabalho que fiz, foi muito difícil, precisou de muita concentração, mas fiquei muito contente. Algumas
peças são interativas, onde tudo é conectado sem parafuso, prego,
sem nada, tudo isso veio daquele banquinho que mostrei, do desenvolvimento que dei na escultura de sachê, do papel pluma. Esses
buraquinhos existem porque tem o tecido de dentro e o de fora e,
por fora, é do mesmo tecido da escultura do teto, que é mais clássica
do meu trabalho. E por dentro é rosa, amarelo e verde. No outro,
tem uma mescla das cores. Os buraquinhos são meias que conectam
a parte de dentro com a de fora, porque ela está sendo esticada, é
uma simbiose. Esse tecido fica equilibrado em pé, mas o que mais
dá rigidez é a tensão do tecido. Tem um risco envolvido, também, a
conexão do teto com o chão, por ser um lugar muito grande, pensei
numa escala que desse conta. O teto é o mesmo sistema do trabalho
da Bienal de Veneza, É o bicho (tem esse nome porque pensava,
“essa escultura vai ser demais, vai ser o bicho!” Tem uma coisa
animal também, mas É o bicho era mais estranho).
Notas
1. BRANCUSI, Constantin. O beijo, 1ª versão, 1907. Escultura em pedra. 28 cm.
Museu de Arte, Craiova.
2. Exposição coletiva que reuniu trabalhos de 123 artistas, realizada na
Escola de Artes Visuais do Parque Lage - EAV/Parque Lage, Rio de Janeiro,
aberta em 14 de julho de 1984.
3. NETO, Ernesto. Léviathan Thot, 2006. Instalação. Place du Panthéon – Paris.
4. CLARK, Lygia. Descoberta da linha orgânica, 1954. “O que eu quis fazer
com essa experiência foi negar a relação do quadro dentro da moldura,
integrando-o dentro da moldura através da cor”.
5. BRANCUSI, Constantin. Portal do beijo, Mesa do silêncio, Coluna sem fim.
Conjunto escultórico, 1937-1938. Parque Targu-jiu, Romênia.
6. BRANCUSI, Constantin. Mesa do silêncio, 1938. Pedra calcária. 2.15 x 2 m.
7. WERTHEIM, Margaret. Uma história do espaço: de Dante à Internet. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2001.
8. BRANCUSI, Constantin. Portal do beijo, 1938. Pedra. 5.27 x 6.58 x 1.84 m.
9. BRANCUSI, Constantin. Coluna sem fim, 1938. 17 módulos de ferro fundido. 29,33 m.
10. LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica.
Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.
11. Kazimir Malevich, Quadrado branco sobre fundo branco, 1918. Óleo sobre tela.
78,7 x 78,7 cm. MoMA, Nova York.
12. MANZONI, Piero. Base do mundo, 1961. Ferro e bronze, 82 x 100 x 100 cm.
Museu de Herning, Dinamarca.
13. MANZONI, Piero. Merda d’artista, 1961. Latas etiquetadas com conteúdo
não identificado. 48 x 65 x 65 mm, 0.1 kg.
14. NETO, Ernesto. A-B-A (chapa-corda-chapa), 1987. Ferro e nylon. Coleção particular.
15. NETO, Ernesto. BarraBola, 1988. Barra de ferro, bola de borracha
e ar. 6 peças 175 x 5 x 5 cm cada, 1 peça 140 x 5 x 5 cm.
16. NETO, Ernesto. Peso, 1988. Meia de poliamida e esferas de chumbo. 25 x 25 x 4 cm.
100
101
C A DER N OS EAV
ERN ES TO N ETO
17. NETO, Ernesto. Colônia, 1989. Esferas de chumbo e meias de poliamida.
Dimensões variáveis.
34. NETO, Ernesto. Papai e mamãe. Imbuia e pau-marfim, 2005. Macho: 26 x 21 x 1,3 cm
Fêmea: 24 x 18 x 1,3 cm.
18. NETO, Ernesto. M.E.D.I.T., 1993. Série de fotografias p&b. 7 peças de 65 x 55 cm cada.
35. NETO, Ernesto. O casamento – Lili, Neto e os loucos, 2000. Exposição individual.
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
19. NETO, Ernesto. Labioides, 1996. Tecido de poliamida e gesso.
20. NETO, Ernesto. Piff, Paff, Puff…Puff, Poff Puff, Piff…Piff, Paff, 1997. Tule de poliamida,
urucum, cúrcuma, cravo e farinha. Dimensões variáveis.
21. NETO, Ernesto. Nave casa, 1998/99. Tule de poliamida, esferas de poliestireno e areia.
300 x 884 x 488 cm.
22. NETO, Ernesto. Nave Nude Plasmic, 1999. Tule de poliamida, especiarias, areia e
poliestireno. Dimensões variáveis.
23. NETO, Ernesto. Walking in Venus Blue Cave, 2001. Meia de poliamida, esferas de
poliestireno, botões e luzes incandescentes. 396 x 777 x 833 cm.
24. NETO, Ernesto. Celula Nave (It Happens in the body of time, where truth dances), 2004.
Tule de poliamida, meias de poliamida, tubos de alumínio, areia, bolinhas de isopor e
bolas de borracha. 2000 x 400 x 475 cm.
36. NETO, Ernesto. Descaminhos de Lili, 2000. Tule de poliamida e areia.
Dimensões variáveis.
37. NETO, Ernesto. Útero capela, 2000. Alumínio, esferas de poliestireno,
areia e tule de poliamida. 2.000 x 1.400 x 1.600 cm.
38. NETO, Ernesto. Depois das núpcias, 2000. Tule de poliamida e tubos de alumínio.
Dimensões variáveis.
39. NETO, Ernesto. Corpos, corpos, corpos, 2000. Tule de poliamida e esferas
de poliestireno. 800 x 1.000 x 60 cm.
40. NETO, Ernesto. Anthropodino. Instalação interativa realizada no Park Avenue
Armory, Nova York, 2009.
25. NETO, Ernesto. Greta gruta, 2002. Blocos de espuma branca. 238 x 590 x 940 m.
26. NETO, Ernesto. The Garden, 2003. Espuma de poliuretano branca. 2.77 x 7.14 x 9.9 m.
27. NETO, Ernesto. The House, 2003. Espuma de poliuretano branca. 276.9 x 353 x 553.4 cm.
28. NETO, Ernesto. We fishing the time, densidade e buracos de minhoca, 1999. Tule
de poliamida, meia de poliamida, cúrcuma, pimenta-do-reino, cravo em pó e curry.
450 x 2000 x 1000.
29. NETO, Ernesto. É o bicho!, 2001. Tubos de poliamida, açafrão, cúrcuma,
cravo e pimenta. 500 x 1.200 x 1.200 cm.
30. NETO, Ernesto. O céu é a anatomia do meu corpo, 1998. Tule de poliamida,
tubo de poliamida e cravo em pó. 300 x 650 x 500 cm.
31. NETO, Ernesto. Arco ventre, 1999. Fotografia em cor (díptico). 99,5 x 99,5 cm cada.
Saiba mais
32. NETO, Ernesto. Humanoides. Tubo de poliamida, meia de poliamida,
veludo, especiaria e esferas de poliestireno. Dimensões variáveis.
NETO, Ernesto. Ernesto Neto: o corpo, nu tempo. Santiago de Compostela: Centro Galego
de Arte Contemporánea, 2002. 350 p.
33. NETO, Ernesto. É a vida, o espaço interior, 2007. Exposição individual.
Galeria Artur Fidalgo, Rio de Janeiro.
NETO, Ernesto. Naves, céus, sonhos. São Paulo: Galeria Camargo Vilaça, 1999. 60 p.
NETO, Ernesto. Ernesto Neto: Leviatan Thot. Paris: Regard, 2006. 103 p.
102
IV ENS M ACHA DO
Texto gentilmente cedido pela historiadora e
crítica de arte Marisa Flórido. Publicado originalmente no catálogo da Exposição “Ivens
Machado”, realizada de 11 de dezembro de 2011
a 25 de fevereiro de 2012, na Casa França-Brasil,
Rio de Janeiro.
Gêneses. Destroços encenam corpos
rudes, agrupando eventos. Persigo estas
composições, espantalhos tranquilizadores,
mundos que não sabem o silêncio. Gritam.
Seres ásperos tramam e transmutam-se, pedindo
abrigo. Representam gestos insensatos.
Guardiães. Imagens protetoras e protegidas,
filhos impossíveis.
Fragmentos. Habitam e nascem em mim. Alegres.
Ivens Machado – Rio de Janeiro, outubro de 2001.
Sem título, 2011
Terra, toras de eucalipto e aeromodelo
Vista da Instalação: Casa França-Brasil,
Rio de Janeiro, 2011
Foto: Pat Kilgore
104
105
C A DER N OS EAV
I VEN S MACHADO
Entre gêneses e dissoluções
O DESCONCERTO
Certo estranhamento nos assombra quando adentramos o salão da
Casa França-Brasil e nos deparamos com a obra de Ivens Machado.
Certa inumanidade exala dos montes de terra ou das toras de
madeira superpostas. De um lado, paisagens devastadas, ermas.
De outro, eucaliptos, desses usuais na construção civil, que, empilhados, abrem ocos no corpo engenhosamente tramado. Releitura
de uma obra do artista apresentada na Bienal de São Paulo de 2004,
esses troncos empilhados nos surpreendem com o contraste poético
entre a precariedade e crueza do material e a engenharia finamente
elaborada. Por vezes, eles desenham uma onda no ar como se seu
movimento, abruptamente suspenso, nos salvasse (ao menos por
agora) da precipitação e do desastre.
Esses trabalhos, do modo como estão ali reunidos, situam-se entre
escultura, paisagem e arquitetura, como se estivessem no limiar dos
gêneros artísticos. Inclassificáveis, portanto. Entretanto, estamos
indiscutivelmente diante de uma presença, ainda que pressentidamente embrionária — como se fosse o primeiro signo sensível,
a gênese de mundos e de “seres ásperos” à espera da palavra que
os nomeie. E se uma dessemelhança inquietante insiste em nos
assaltar é porque estamos defronte de um espelho baço, por demasiado impreciso, com toda a ambivalência sufocante do arcaico:
como a physis (termo que um dia pertenceu ao vocabulário dos
mistérios) antes do logos, a matéria antes da forma, o tempo antes
de seu escoar, o deus antes do nome, o homem antes da face.
Ao longo de sua produção, Ivens Machado vem utilizando materiais diversos, inclusive da construção civil, como cimento, pedra,
azulejo, vergalhões e madeira. Constrói esculturas incomuns, de
contornos ásperos e superfícies irregulares, erigidas por uma tensão
desarmônica, mas surpreendentemente atraentes e gráceis. Objetos
excêntricos que por vezes aludem a formas da natureza, a partes do
corpo humano ou sugerem símbolos de culturas primitivas. Muitos
já disseram que suas peças se assemelham a menires, dólmenes,
totens.... Como monumentos consagrados a deuses improváveis,
terríveis e ctônicos.
Ao longo da história da arte ocidental, artistas seriam atraídos
por outras formas de se relacionar com o cosmo sem a mediação
de sistemas ou de um arcabouço conceitual rígido, em busca de
modelos teóricos, perceptivos e especulativos que descerrassem
106
107
C A DER N OS EAV
I VEN S MACHADO
“Ivens Machado é o
engenheiro das impurezas,
o poeta dos restos, o artista
dos despojos. Aquele que
descobre suavidade na
truculência do mundo sem
precisar negá-la ou sublimála. Delicadezas (in)contidas
na esterilidade.”
mundos recalcados ou ignorados. Sobre formas e símbolos arcaicos,
estruturas de pensamento e modos de vida tribais, se debruçariam
inúmeros artistas: Gauguin e as tribos polinésias, Picasso e as máscaras africanas, os surrealistas e a prática da bricolagem, Pollock e a
ritualidade dos navajos, os artistas da Land Art e os sinais de demarcação de territórios, das linhas nazcas aos símbolos paleolíticos.
Mas, em Ivens Machado, é a incomparável potência simbólica
do que parece – e apenas “parece” — arcaico (pois esse “parecer”
guarda um infinito de incertezas e invocações) que é revista pelo
artista como um catalisador de forças esparsas e vitais, brutas e
secas. Daí a gravidade de uma matéria espessa, a tensão entre os
materiais, entre a estrutura que os amarra e a ameaça do desmoronamento. Como se fosse necessário dissolver qualquer tipo de
conforto que domesticasse a ferocidade da existência.
Pois se trata disso: de expor a brutalidade e a delicadeza que determinam os acontecimentos, as coisas, os seres. As forças e poderes
em conflito que geram e destroem, que protegem e ameaçam, como
“espantalhos tranquilizadores”. A mesma energia que gera destrói.
E vice-versa. Suas peças estão entre a reiterada gênese e a iminente
dissolução, entre a palavra por nomear e o grito inarticulado, entre
a violência e a sedução (da arte).
108
109
C A DER N OS EAV
I VEN S MACHADO
Tensões que encontramos também em seus vídeos dos anos 1970,
naqueles de 2008 (exibidos no Oi Futuro) e neste inédito realizado
para esta mostra. Em comum entre sua produção em vídeo e a escultórica é essa contundência que desconcerta. Em alguns de seus vídeos,
homens e mulheres— como matéria inerte — se submetem passivos a
uma violência sugerida, mas conduzida ao limite da realização. Como
se tal choque entre opostos não apenas recusasse qualquer fusão ou
unidade como afirmasse a existência como uma insuficiência que
busca o outro não para completar-se em substância, mas para ser
composto e metamorfoseado, violenta e silenciosamente.
Dissolução, vídeo de 1974, nos oferece uma bela metáfora desse desconcerto e insuficiência, entre gênese e desastre. O artista assina seu
nome à exaustão, à rarefação da tinta e à caligrafia ilegível. É preciso
o apagamento de seu próprio, se submeter à violenta dissolução para
acolher o outro em si. Existir não é mais que isso.
Do mesmo modo, as obras nesta mostra não possuem título: “criar
um título seria uma nova obra, portanto minhas obras são assim,
sem título”. E como não concordar que as palavras fundam mundos,
seres e obras? E que, sem sua proteção reveladora, em que natureza
e natureza humana sairiam de sua cripta, o silêncio do visível, seu
hermetismo e potência, irrompe em possibilidades e fissuras?
O TEMPO, A DISTÂNCIA, O SORRISO
Eventualmente experimentamos, diante das obras de Ivens, a
sensação de que o tempo foi suspenso na evocação de certa
ancestralidade. Nesta exposição, todavia, o estupor de uma
atemporalidade ancestral, de um deserto não localizável, é logo
desmentido por um elemento irônico e inédito em seus trabalhos:
um pequeno avião, um aeromodelo que, em movimentos circulares,
voa sobre as “montanhas” de terra.
Se o movimento vem perturbar a prometida suspensão do tempo,
o jogo de escalas e distâncias com nosso corpo finito vem nos provocar certa desorientação existencial, logo interrompida quando
avistamos o pequeno avião. Um inevitável sorriso é suscitado por
aquela engenhoca. Afinal é uma Land Art de gabinete, jocosa com
as concepções de paisagem e com os desbravamentos épicos da
arte e da cultura; desconfiada tanto do pathos sublime experimentado diante dos espetáculos da natureza (a experiência de uma
desagregação perante o contraste entre a imaginação limitada e
um espetáculo que a ultrapassa) como daquele provocado pelas
novas tecnologias.
Afinal, como a natureza, a tecnologia também seria considerada fonte
de potências incontroláveis, capaz de convulsionar a face do mundo,
110
111
C A DER N OS EAV
I VEN S MACHADO
tanto salvá-lo quanto destruí-lo. A tecnologia não transtornaria as
noções usuais de dimensão e distância, lugar e tempo? Dos aviões e
satélites à televisão e às redes eletrônicas: o ambiente da existência é
sacudido pela errância imagética, por um tempo eternamente atual,
pela “atopia” e ubiquidade virtual. As fronteiras físicas se diluem: o
que até então era superfície da matéria, os limites de um material, se
transformará na interface da tela, acesso a um topos incorpóreo, em
que o tato e o contato cedem lugar ao impacto televisual, em que as
antigas distâncias geométricas do espaço se convertem no infinito
das imagens que nos chegam pelas janelas eletrônicas.
Como um deus que faz troça de seus inventos, Ivens cria mundos,
altera as escalas de suas montanhas e lança um avião para contemplá-los. É como se avistássemos uma terra incógnita, anterior ao
homem, mas mediada por suas tecnologias, seus pequenos brinquedos: da janela de um avião à tela da tevê, das imagens captadas
pelas câmeras de segurança ao Google Earth. Entre o arcaico e os
delírios da ciência, entre o não cultivado e a barbárie da civilização,
entre auroras e apocalipses.
ASSEPSIA NAUSEANTE
Ivens Machado é o engenheiro das impurezas, o poeta dos restos, o
artista dos despojos. Aquele que descobre suavidade na truculência
Sem título, 2011
Terra, toras de eucalipto e aeromodelo
Vista da Instalação: Casa França-Brasil,
Rio de Janeiro, 2011
Foto: Pat Kilgore
112
113
C A DER N OS EAV
I VEN S MACHADO
do mundo sem precisar negá-la ou sublimá-la. Delicadezas (in)contidas na esterilidade.
tempo e espaço, e a assepsia da arte autorreferente que reivindicava
o afastamento do mundo. A grelha que sustentava a perspectiva tridimensional seria trazida à radicalidade do plano, posta na vertical
para estabelecer com ele sua máxima cumplicidade.
É isso que ele faz em uma das salas laterais, ocupada por painéis
de azulejos em cuja superfície interfere. Uma instalação que é
também uma releitura de um trabalho apresentado, em 1973, no
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
As superfícies quadriculadas e brancas, banhadas por uma luz fria
que cega e lava o ambiente como um frigorífico, provocam atordoamento e mal-estar. A função do azulejo é a assepsia protetora
e asseada que impede a passagem da umidade, a contaminação
de organismos, a sujeira da vida exposta. Mas ali produz o efeito
oposto: a assepsia não nos concede sensação de proteção, mas de
nauseante mal-estar, de exposição incômoda, de asfixia branca.
A pureza é assassina e perigosa, nos salva então a contaminação
indesejada, o reverso das coisas: Ivens corta alguns azulejos e os
cola expondo o avesso cinza. Cintilações espraiadas naqueles planos
brancos e abstratos, desenhos salpicados nos devolvendo aragens
e exibindo a vitalidade dos destroços.
É inevitável a associação do quadriculado das paredes azulejadas
com a grelha ortogonal da pintura, a estrutura das coordenadas de
A concepção messiânica da arte de Mondrian, por exemplo, compreendia um caminho de purificação em busca de um equilíbrio
universal que, uma vez realizado, exigiria o suicídio do quadro e
da escultura na redenção da vida. A “opressão individual da forma
singular” seria substituída “pela expressão universal do ritmo”.
A arte, ao harmonizar e eliminar os conflitos da vida, seria enfim
nela dissolvida. Para Mondrian, a vida era demasiado trágica, era
preciso esvaziá-la do lirismo expresso no natural e que alimentava
tal tragédia. Para Ivens, trata-se, ao contrário, de devolver o lirismo
trágico da vida à arte.
O LIRISMO TRÁGICO DA VIDA
Uma videoinstalação em uma das salas laterais encerra a exposição. Como um neófito em um ritual de iniciação, atravessamos um
ambiente opressivo construído com caixas de papelão de vários
tamanhos e formatos. Ao final do percurso, um vídeo projetado
produzido para esta exposição estende a sensação de claustrofobia
experimentada na passagem pelo túnel de caixas. Como em um
114
115
C A DER N OS EAV
I VEN S MACHADO
filme hitchcockiano, vemos o artista protagonizar a fuga por um
labirinto de corredores e escadas. Ele é perseguido por uma sombra, uma figura tão dúbia e imprecisa como suas peças escultóricas
ou o Minotauro do Labirinto de Dédalo: é um travesti, esse habitante das fronteiras dos gêneros, à margem dos comportamentos
socialmente aceitos.
Um labirinto é uma prova de iniciação que guarda uma revelação.
Um cruzamento de caminhos que anuncia e protege a existência
de algo sagrado ou valioso: um centro, um lugar, uma presença
cujo acesso só é concedido aos iniciados. Aquele que penetrou o
labirinto, sem conhecer a priori as coordenadas de sua estrutura
espacial, experimentará a errância. Vertigem e alteridade, imprevisibilidade e desvario o aguardam em suas inúmeras interseções.
A reconciliação prometida entre a existência e seu significado —da
vida e da morte — é um horizonte sempre fugaz, talvez irremediavelmente perdido. (O labirinto cretense não protegia um centro,
mas aprisionava uma excentricidade: o Minotauro rompeu a ordem
natural do universo. Condenado a vagar nos caminhos do labirinto
sem conhecer a sua lógica, prisioneiro de sua alteridade, o Minotauro é a irracionalidade que irrompe no mundo e o retira de seus
eixos. Uma irracionalidade a ser reprimida, deslocada do mundo
para que este preserve seu fundamento e integridade.)
Sem título, 2011
Azulejos e lâmpadas HQI 400w
Foto: Pat Kilgore
116
117
C A DER N OS EAV
I VEN S MACHADO
No decorrer do vídeo, vão se desenhando geometrias e linhas de fuga:
o giro circular da tesoura (relógio marcando o destino); a perseguição
que realiza movimentos em profundidade ou em diagonais e verticais; as linhas traçadas pelos cabos do elevador; a grelha formada
por sua porta pantográfica. Um réquiem compõe a trilha daquele
encalço. O protagonista, ao fim do filme, vê-se acuado no elevador.
Basta um toque do espectro que o acossa para sugerir sua morte.
Mas o que a princípio nos sugere uma desintegração evocadora da
morte, nada além de uma pulsão trágica e destrutiva, talvez seja
a grande revelação redentora: a fatalidade é a única certeza da
existência, seu inescrutável desígnio; a consciência de sua presença
negativa, que só pode ser pensada como o indefinível absoluto, é a
grande distinção do humano, ínfimo humano...
O reverso do espelho: a Morte é a Gênese às avessas, e o homem
errante e agonizante percorre a misteriosa senda que o conduz ao
seu nascimento, ao processo embrionário e prodigioso em que algo
se engendra e começa a existir.
Saiba mais
MACHADO, Ivens. Acumulações. São Paulo: Galeria Virgilio, 2006.
MACHADO, Ivens. O engenheiro de fábulas. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 2001. 198 p.
SARAIVA, Alberto; ABUJAMRA, Amir. Encontro/Desencontro. Rio de Janeiro:
Oi Futuro – Contracapa Livraria, 2008. 112 p.
118
N ELSON FELIX
Este texto, gentilmente cedido, resultou do
encontro entre a historiadora e crítica de arte
Marisa Flórido, o curador Alberto Saraiva e o
artista Nelson Felix, na ocasião do lançamento
do livro Concerto para encanto e anel. Espaço Oi
Futuro - Flamengo, no Rio de Janeiro, durante
exposição homônima de 17 de maio a 3 de julho
de 2011.
Alberto Saraiva :
Durante três anos negociamos com
Nelson Felix a realização desta exposição1: uma escultura
sonoro-visual, um trabalho de imersão. Falamos de conceitos
de escultura que lidam com elementos muito transparentes,
muito sensíveis, mas, ao mesmo tempo, fortes e intensos
como o som e a imagem. Embora só mais recentemente
Nelson tenha começado a trabalhar com vídeo e fotografia,
que são veículos da luz, podemos considerar que esse
elemento já estava presente em sua escultura, dada a
capacidade que suas peças têm de criar espaços destinados
para a luz. Concerto para encanto e anel é uma obra que
absorve tudo o que está no ambiente. Ela tem passagens,
vãos, estágios luminosos em ângulos diversos, ou melhor, no
Cavalariças, 2009-2010
Vista da Exposição: Cavalariças da
Escola de Artes Visuais do Parque Lage,
Rio de Janeiro - 27 de novembro de 2009
a 21 de março de 2010
Foto: Vicente de Mello
120
121
C A DER N OS EAV
N EL SO N F EL I X
seu processo de ser. E Nelson decidiu que o Oi Futuro era o
lugar ideal para realizar o projeto. Ficamos felizes, porque ele
é um dos nossos artistas prediletos e um dos mais importantes
do cenário atual.
Estamos aqui hoje para o lançamento do livro2 com Nelson
Felix e Marisa Flórido, uma das críticas com texto na
publicação, que tem acompanhado a obra do artista, e
que vai poder nos falar um pouco desse trabalho. O livro é
um livro de desenhos, um livro de projeto. A ideia de projeto,
de desenho como projeto, é antiga e permanente, mas o livro
também fala de aspectos muito sensíveis como a linha e o
pensamento reflexivo. Eu tenho dito que o desenho é quase
uma elevação, e se existe algo na arte que se equivale
à filosofia, para mim é o desenho, algo que ultrapassa os
limites do material.
Agradeço a todos pela presença, a Marisa especialmente e ao
Alberto pelo convite. Quando convidei Ronaldo Brito para participar desta conversa, havia a possibilidade de ele viajar nesta
data, o que acabou ocorrendo de modo meio relâmpago. Agradeço a ele, também, pelo prazer de trabalharmos nestes cinco
ou seis anos juntos.
Fiz o livro com um amigo artista, mais jovem, Wanderlei Lopes.
Trabalhamos no livro alguns anos, numa boa sintonia, lhe agradeço
também por esta luxuosa parceria. Sua disponibilidade foi fundamental e por isso o livro consegue tatear o pensamento poético que
direciona o trabalho. Esta foi uma questão que sempre orientou o
livro e o estruturou com desenhos e não com discurso. Desenhos
que desenvolvi quando construía o trabalho.
Acho que o meu trabalho é construído por camadas de pensamentos, significados que se agregam a outros e mais outros, ora
poéticos, ora teóricos. Esta soma de significados se anula, não pela
negação, mas sim pelo excesso. E a perda do significado gera um
oco, até esperado, que faz a obra renascer ao olhar, que a reestrutura. Sua visualidade então é calcada nestes pensamentos ligados
abstratamente, que muitas vezes não se encadeiam para se evidenciar. É uma linguagem de cunho poético, solta, e ao mesmo
tempo totalmente construída. Por isso, não queria que o livro
fosse especificamente demonstrativo das ações do trabalho, como
me propuseram.
Para não amarrar esta exigência poética, senti a necessidade de
outra poesia. Quando penso, penso desenhando na mente — a
poesia desse processo prima por estar fluida, gráfica. E, como toda
122
123
C A DER N OS EAV
N EL SO N F EL I X
poesia, pode se transformar a qualquer identificação ou definição,
na maioria das vezes é o que se tateia.
local onde fui não se chega no inverno, e o inverno lá dura vários
meses. Tinha todo um processo, independente do processo poético,
a ser resolvido, questão a questão... aduana, peso, etc. Vi que se eu
começasse a amarrar muito as datas e diversas outras exigências,
eu colocaria uma camisa de força e não iria realizar nada poeticamente, principalmente com a concentração necessária. Precisava
de liberdade naquele momento e foi o que fiz, conversei com o
Alberto e suspendemos o convite. Tempos depois, com o trabalho
realizado e com esta visão, de fazer um trabalho sobre o trabalho,
nos encontramos novamente.
Há uma diferença entre fazer um livro definindo e o fazer abrindo
o trabalho. Uma linguagem discursiva, muitas vezes, explora ponto
por ponto, pausadamente, mas não tem a possibilidade de abrir um
só viés e todos ao mesmo tempo. Essa convivência de um ou dois,
ou todos, unidos e únicos, é de outro princípio de inteligência. Para
desenhar, é necessário definir o outro pelo mesmo, com o princípio
que está aqui e lá. Bem, o livro é todo o processo da colocação do
Anel ao contrário.
O livro e o vídeo3 me permitem anular o tempo. Como essa obra foi
feita em vários anos e em vários locais, semelhante a uma ópera
e seus atos, ou a um concerto e seus movimentos. Foi possível, no
livro, ter quatro ou cinco anos ligados e não romper a sensação cronológica desse tempo, pois se tem uma fração de segundo na mente
para percorrer esses quatro anos — uma ou duas viradas de página.
Para o vídeo, Alberto Saraiva tinha me feito um convite, há uns
anos atrás, mas teria que viajar provavelmente com um videomaker.
Além disso, tinha questões como, em alguns lugares, só conseguiria
ir em uma determinada época do ano. Na Islândia, por exemplo: no
O vídeo é exatamente o contrário do livro, é um só momento do
trabalho. Há dois pontos centrais no Concerto: a ideia de deslocamento, no meu percurso e da escultura, e a escultura se realizando
nos dois espaços arquitetônicos. Vejo que, nesse trabalho — desde
que ele começa no Museu da Vale4, aliás antes, desde o ponto de
Camiri (como centro da Cruz na América) até a Cavalariças5 — tudo
culmina na ação da entrada desse anel. Posso estar até sendo um
pouco pragmático, mas essa ação, tanto ela em si, como teoricamente, constituiu uma performance e todo o resto é sobra. Sobras
que formam a obra, mas sobras. O vídeo é isto: o momento dessa
performance, sem as sobras. Tem sua própria natureza, que é diferente daquela do livro.
124
125
C A DER N OS EAV
N EL SO N F EL I X
O trabalho com o vídeo tende a ser documental, é próprio da linguagem dessa mídia. Sempre gostei muito dessas coisas diretas
das linguagens, mas ser documental, nesse momento, como uma
obra contínua, seria ruim.
Percebi no som, ali, na entrada do Anel nas vigas, a contração de
todo o processo. Era música, e música criada pelo peso: uma questão
primeira da escultura. O que fiz foi criar ritmo. O vídeo tem quatro
projeções em quatro paredes, num espaço cúbico fechado e todo
coberto de espuma, teto, chão e parede. A espuma é um material
relacionado ao som, mas aqui a transformo em espaço, em escultura.
E no chão, inclusive, interage, desequilibra. Uma destas projeções
é a original, das outras retirei cinco, sete e onze frames, respectivamente. Isso faz com que o som de uma projeção seja levemente
diferente do tempo das outras, e, com o andamento do trabalho,
essa diferença cria uma música ritmada que nunca será a mesma
nestes 45 dias de exposição.
musicais. Para os pitagóricos, os tons emitidos pelos planetas
dependiam das proporções aritméticas de suas órbitas ao
redor da Terra, do mesmo modo que o comprimento das
cordas de uma lira determina seus tons. Se as esferas próximas
produzem tons graves, os agudos vão aparecendo na medida
em que a distância aumenta. Assim, a combinação entre os
sons de cada esfera, em seu perpétuo girar em torno da Terra,
produziriam uma música suave, a “música das altas esferas”,
harmonia cósmica apenas audível em condições muito especiais.
Há algum tempo, os cientistas da NASA descobriram que
os astros, de fato, cantam. Um satélite gravou tal “canto”.
A atmosfera do sol emite ondas sonoras trezentas vezes mais
graves do que o ouvido humano pode captar. Há uma “música
das altas esferas”, sim, mas o som que se ouve é muito mais
próximo de um rangido, de um atrito metálico, do que da doce
melodia das liras gregas. E se classificássemos a música das altas
esferas, seria, quando muito, uma espécie de heavy metal.
Marisa Flórido: Gostaria de agradecer a Nelson e a Alberto pelo
convite e começar contando a sensação que experimentei ao
entrar na sala de exposição de Concerto para encanto e anel. Não
sei se vocês sabem que os antigos gregos acreditavam que as
distâncias entre os astros obedeciam às proporções de intervalos
Foi da música gutural das altas esferas que me lembrei
quando entrei na sala expositiva e ouvi Concerto para encanto
e anel: era um rugido. O rugido das nove toneladas do imenso
anel de mármore se encaixando nas vigas de ferro que se
126
127
C A DER N OS EAV
N EL SO N F EL I X
deformavam em sua passagem. Pois essa videoinstalação foi
concebida a partir do vídeo da montagem da exposição de
Nelson no Parque Lage em 2009.
Era o rugido do atrito da matéria circulando à nossa volta.
E tudo circula ali (ainda mais caminhando sobre aquele chão
instável): o som circula, as imagens circulam, Nelson circulou
pelo mundo... Como a Terra, que gira ao redor do Sol. Mas,
ocorre que ela não faz um círculo perfeito, mas uma elipse: 23
graus de desvio da órbita em relação ao eixo do Sol.
Do mesmo modo, longe da harmonia da lira, da harmonia
universal dos gregos, o som que se ouve ali tem também a sua
“marca de imperfeição”, como define Nelson esses 23 graus.
Uma marca ou um desvio que, em seu processo artístico,
torna-se fundamental. Eu gostaria que você falasse sobre isso,
Nelson, sobre essa marca, sobre essa imperfeição e desvio.
E sobre Cruz na América.
Ok, mas, para chegar aí, necessito chamar a atenção para um ponto
central do nosso tempo: o homem atual lida constantemente com
muita informação, e no artista contemporâneo esta informação é
saturada de história da arte, inclusive a recente. Hoje, quando o
artista coloca um trabalho no mundo, imediatamente tem alguém
querendo fazer relações ou estabelecer algum laço deste trabalho
com algo histórico, ou mesmo com outro atual. Estar ciente que
constantemente vamos lidar com essa presença “histórica”, com
essa total possibilidade de imediata inserção num processo de
linguagem, é no mínimo necessário.
Durante o século XX, nos libertamos de determinadas situações
na construção da obra, de certo academicismo rompido com a
visão moderna, e mais ainda, com a contemporânea. No cubismo
abrimos a forma, no fauvismo, a cor, no tachismo, no concretismo,
na performance, etc. Fomos abrindo o leque na arte povera, nos
materiais, ou mesmo com Beuys, etc. Expandimos o horizonte,
mas ao mesmo tempo incorporamos fortemente outras questões,
mais mentais, como o pensar na formulação da obra. Vejo no processo uma potência – existe um refinamento de linguagem muito
sofisticado nos dias de hoje.
Agora voltando à sua pergunta. No meu caso, utilizo determinadas
técnicas, que me são próprias. Meu pensar é abstrato. Não é só a
forma que é abstrata, como os cubos, a cruz, o círculo; é o pensar
que é abstrato, sem palavras, num encadeamento de ideias que desdenha o discurso. Isso me libera momentaneamente da história, do
128
129
C A DER N OS EAV
N EL SO N F EL I X
“Percebi no som, ali, na
entrada do Anel nas vigas,
a contração de todo o
processo. Era música, e
música criada pelo peso:
uma questão primeira da
escultura. O que fiz foi
criar ritmo.”
estar no mundo de respostas. Eu me considero um artista abstrato.
Mesmo quando parto para o mundo, parto para o mundo com coordenadas. Para situações onde a forma é impregnada de situações
externas a ela, ou prestes a se modificar, ou mesmo abandonadas,
o que não deixa de ser uma abstração também.
Muitas vezes, trabalho com formas que já existem: cruz, círculos,
etc. Sempre que possível, evito me propor a criar formas. No fundo,
acredito que tudo é a mesma coisa, tanto faz trabalhar com a forma
de um cubo, de um anel ou de um calcanhar — elas já existem. Na
realidade, é a busca da poesia que agrega significados, que são embebidos e abstraídos ou absorvidos nestas formas, que me satisfaz.
Já as coordenadas, vejo o mesmo princípio destas formas, elas já
existem. Assim como todo cubo é igual, todo lugar é igual para as
coordenadas. Isso me permite, no instante mesmo de estruturar o
trabalho, me libertar da composição. Não escolho onde colocá-lo e
muito menos tenho que dialogar, naquele momento, com a paisagem.
Existem, no processo de trabalho, várias questões, questões que se
sucedem, se unificam e conservam sua identidade, amalgamam-se.
A tal ponto que me é difícil falar de uma coisa sem mencionar outra.
Já conversei muito com Marisa sobre isto, uma vez ela cunhou os
significados.
130
131
C A DER N OS EAV
N EL SO N F EL I X
Quanto aos cubos, vou traçar aqui o que me lembro da construção
mental do Vazio sexo6, que é um cubo dentro de um cubo, e assim
chegar à utilização dessa forma e, por reflexo, às outras, como a cruz
e a torção. Observava os diversos buracos que existem no corpo
humano, e me concentrei no cérebro, no sexo e no coração. Existe,
nesses três locais, grande intensidade de energia e, principalmente,
poesia. São espaços mais centrados nos seus vazios que nos cheios
e são sintéticos, como uma abreviação de todo nosso organismo.
No sexo, por exemplo, que gera o orgasmo, percebo — aliás, não
só no orgasmo, mas também no êxtase e na morte — uma extrema
organização. Perfeita, plena, e dentro de uma estrutura plausível
de se desorganizar, à presença de tudo o que não seja seu ou da
sua natureza. Mas no sexo o “fazer”, o contato, é fundamental e
aí está sua potência. Resumindo, a princípio, o sexo se faz. Estes
pensamentos meio poéticos vão se tornando matéria, à medida
que você vai incorporando-os, na forma, no material, no ritmo,
etc., e depois, quando já na escultura em si, são permeados pela
história ou pelo espaço.
composição. Excluir na raiz este “gosto/não gosto”, e coisas desta
ordem, era fundamental. Me pareceu bom ser uma forma dada, já
existente, que, apesar do “fazer”, carregasse nela o “não fazer”, por
isso a forma tão marcadamente minimalista. Descobri a raiz desta
forma cúbica em Leonardo da Vinci, mas presente hoje em Sol
LeWitt, aliás é por ele que ela nos chega atualmente, mas Leonardo
conviveu com ela, resumindo, uma forma sem dono.
O pensamento sobre o “fazer” foi adquirindo uma posição central
na obra e torceu o eixo para um diálogo com questões centrais da
estrutura da arte contemporânea, mais do que com o sexo, mas está
tudo ligado. Começou na forma, não queria que ela me trouxesse
Essa relação próxima com o minimalismo me interessou. Este
“não fazer” minimalista, que vinha imbuído nela, era primordial.
A realização dessa forma seria muito complexa, pois acrescentei
mais um cubo ao seu interior: são dois cubos inteiros, sem emendas, esculpidos de um único bloco – um feito dentro do outro.
Assim, o fazer é que se tornou minimalista, pois todo dia repetia
os mesmos gestos, dentro do mesmo procedimento, num longo e
repetido processo serial, que só se alterava quando virava a face
do cubo. Uma inversão com a forma preestabelecida, existente.
O ato de fazer a peça é que torna o seu centro, e chega à razão, ao
pensamento da peça.
O olhar é mental, acredito que há olhares diferentes, mais e menos
poéticos, sua sensibilidade de percepção depende muito do grau de
“conhecimento” que você tem sobre o que observa. Logo, quando
132
133
C A DER N OS EAV
N EL SO N F EL I X
se sabe que não existe cola naquele objeto, você tem um outro olhar
sobre ele, mas a escultura não teve nada agregado a ela. Nada lhe
foi somado, ou retirado, mas a vemos diferente. Existe um salto no
devir poético, e isso me interessava, há algo aí não só do fazer, mas
também da natureza do orgasmo, da poesia e do sagrado.
Sempre que quero, faço o trabalho. Vejo nisso um ganho que surge
da relação com o material. Sem sombra de dúvidas, a interação não
é de ordem discursiva. O fazer estimula uma percepção não verbal,
mas também posso mandar fazer. Não tenho e não sei por que criar
problema com isso. A questão contemporânea, para mim, não é se
você faz ou não faz o seu trabalho, mas sim a densidade de pensamento que você coloca no circuito com o trabalho. Fazer ou não
fazer diretamente o trabalho depende do processo de cada um e, às
vezes, de cada trabalho específico. Penso, até, que se você sempre
menciona que nunca faz, ou mesmo, que sempre faz o trabalho, cria
uma importância, um ponto relevante onde não é preciso. Gosto de
desprezar teoricamente esta questão, faço quando for necessário.
Terminando, na peça torço os cubos com um molde em prata de
uma vagina, nada feito, moldado direto, uma dupla homenagem a
Duchamp. Esse trabalho contém varias citações, dedicatórias, que
se agregam ao significado.
Marisa Flórido :
na América.
Nelson, seria bom falar como se inicia Cruz
Cruz na América se realiza por quatro trabalhos feitos na América.
As primeiras ideias começaram em 84, 85 e por acaso deu em quatro
paisagens diferentes. São trabalhos com uma relação com o tempo
e escala composta por uma forma. O espaço desses trabalhos tem
uma escala meio gráfica, Glória Ferreira escreveu sobre ele. Cada
um deles responde por si, começam e acabam neles mesmos, mas
ao mesmo tempo os quatro são um. O Grande Budha7 foi o primeiro
que idealizei, mas só fui instalá-lo depois do segundo trabalho, a
Mesa8. Isto porque o compraram e teve uma distorção na proposta,
depois outros problemas, e aí eu o recomprei para colocá-lo no Acre.
No Grande Budha me utilizo de uma árvore e latão, mas principalmente da ideia da floresta, de trabalhar com árvore, porque me
possibilitava não só usar o tempo, mas principalmente o espaço da
floresta, que é onde eu centrava meu interesse. A árvore na floresta
cria um espaço de um igual entre vários iguais. Uma imensidão
cheia, feita de iguais. Onde tudo é o mesmo, se tem uma unidade,
onde não existe referência e se perde a escala. Esta perda me trazia
um espaço poético, onde poderia trabalhar pontualmente, mas com
a sensação desta enorme dimensão colada, cria um espaço de ordem
134
135
C A DER N OS EAV
N EL SO N F EL I X
desnorteada. Enfim, tinha uma poesia espacial e plástica, que me
interessava. Então, a obra é uma árvore em que eu boto umas garras
e essa árvore cresce e essas garras vão se perder, como qualquer
transformação que existe nas nossas realizações. Mas o que mais
me atraía é que o centro do pensamento estava na sensação de que
esta árvore já estava perdida nesse lugar, mesmo antes das garras,
mesmo antes de eu defini-la pela coordenada como obra. É uma
escala mais mental. Duas poéticas direcionavam: a impossibilidade
de se conviver com o trabalho, na dimensão de tempo, mil, mil e
duzentos anos de formação, e as transgressões e transformações
que geram as atividades estéticas e sagradas.
foto para cada direção dos outros trabalhos da cruz que vinha construindo. Mas um segundo e pouco na máquina em pleno deserto
– e eu ainda cheguei ao local por volta do meio dia – estouram as
fotos. Quando notei isto, a quase falta de imagem nas fotos, a princípio percebi que todo o pensamento, que havia convivido anos e
que alinhava o trabalho aos outros, estava perdido.
A Mesa no pampa, no paralelo 30º, é o contrário, o trabalho era plano.
Chapa de ferro e árvores. São acasos, acasos predeterminados. Uma
chapa de ferro horizontal no pampa é um plano no plano. A Mesa,
como ponto oposto, na cruz com Grande Budha, destoa dele e cria
com o tempo um local no todo, uma referência no plano.
O terceiro trabalho9, no deserto de Atacama, novamente traz o
tempo. Um tempo mínimo, não mais o longo, de séculos. Aqui o
instante, e para isto me utilizo do processo fotográfico. Coloco a
velocidade do ritmo do meu coração na velocidade da máquina
fotográfica, vou ao ponto de coordenada preestabelecida, e tiro uma
Este processo ganhou uma dimensão maior para mim, que não é
da arte em si, não se encontra no objeto gerado, na sua forma, por
exemplo. Não o qualifica como melhor nem pior. Vem de outra
natureza, do conviver, do sentir, do fazer que antecede a própria
percepção do que se faz. Eu trazia conceitualmente todo o trabalho de casa; me locomover por dias, avião, carro, coordenadas,
lugar exato, tempo do coração, direções das fotos, tudo estabelecido a priori, e de repente escorre. Mas ali observei que existia no
momento uma outra potência poética, que mesmo com todo o pensamento anterior, eu ainda não a tinha comungado. Vi uma beleza
nesta impossibilidade da imagem, que me deslocou a linearidade
da construção de uma poesia à outra. Existe um acaso nos tempos
mínimos, onde as coisas podem mudar de rumo, se deslocam por
si e é só, tudo passa a ser outro... Este trabalho no deserto é um
pensamento sobre o coração, onde utilizei a fotografia. Não me
considero fotógrafo, a usei como pensamento.
136
137
C A DER N OS EAV
N EL SO N F EL I X
No quarto10, estico uma linha de um ponto do deserto ao meio
da distância entre os dois trabalhos anteriores, Grande Budha e
Mesa, e a prolongo até o litoral. Coloco uma esfera de mármore
com vários pinos de ferro e a deixo lá, na maré. Com o tempo, o
ferro irá se expandir, pela sua oxidação, e abrir o mármore, como
as fotos estouradas. Neste eixo os dois trabalhos se complementam.
Floresta, pampa, deserto e litoral, como um só trabalho.
em vários locais do mundo definidos por cruzamentos
abstratos no mapa entre essas exposições.
Acontecimentos que nos recusam o contato direto, que se
tramam em um arco de invisibilidade entre os dois momentos
expositivos, os dois instantes de uma doação aos olhos,
quando a obra/ópera efetua o movimento de seu aparecer.
Marisa Flórido : Cruz na América é um imenso xis no
mapa. No centro dessa cruz está Camiri, na Bolívia. Apenas
complementando Nelson: na mesma latitude do Camiri
na Bolívia, o centro da Cruz na América, estava Vila Velha,
no Espírito Santo, onde o artista expôs em 2006 no Museu
Vale. Se 23 graus separavam os dois locais, a coincidência de
latitude e graus os entrelaçava. (Por isso as peças escultóricas,
em algumas de suas exposições seriam dispostas em 23 graus:
como no Parque Lage em 200111 ou no Museu Vale. )
Com o rebatimento da coordenada de Camiri no
Hemisfério Norte, Nelson encontrou Anguilla e a República
Dominicana, no Caribe; sua projeção para o outro lado do
mundo, a ilha de Dong-sha, no mar da China, e Karratha
na costa australiana; a inversão das coordenadas de Camiri,
o vulcão Hekla na Islândia. Em cada um desses lugares,
ele depositou uma escultura que esteve exposta no Museu
Vale – devolveu-a ao mundo, portanto – realizou uma ação,
ou extraiu de horas de viagem uma única fotografia, um
instante conciso e circunspecto.
É a partir desse centro, Camiri, que se inicia o Concerto ou
a “ópera” organizado, como diz o artista, em três atos: duas
exposições (Camiri em 2006, no Museu Vale, e Cavalariças
em 2009, no Parque Lage) e uma série de inserções artísticas
Cruzes, cubos, alianças, são figuras geométricas que Nelson
utiliza nos seus trabalhos, são também signos de orientação e
pacto convocados em meio a incessantes deslocamentos que
ele empreende.
138
139
C A DER N OS EAV
N EL SO N F EL I X
Sobre esses três signos, poderíamos dizer: a cruz supõe um
tríplice acordo, do homem com sua existência corpórea e
finita, com os espaços e as distâncias do mundo, com os
tempos cósmicos e o ordinário das horas. Entre céu e terra,
imanência e transcendência, a cruz é signo de reconciliação e
ao mesmo tempo de medida.
Camiri (o centro da Cruz) que se estende pelo mundo: uma
distensão infinita. Sem divisões, o círculo é signo de perfeição
e homogeneidade. Uma totalidade indivisível, portanto. Por
seu movimento contínuo, como uma sucessão de instantes
idênticos, foi o desenho do tempo para os antigos: o círculo é
perfeito, imutável, sem começo e fim.
O cubo está muito próximo dos escultores: é o monólito
escultórico e a base. Como monólito — a pedra bruta que
será esculpida — é uma potencialidade, um “ainda não”.
Como pedestal, é o elo de passagem entre arte e mundo,
uma ancoragem ao solo. O cubo é também a estrutura de
representação euclidiana, as coordenadas do espaço-tempo,
a naturalização do mundo, a perspectiva como forma natural
de nele se inserir e perceber. O cubo é o a priori da percepção
– não é à toa que os minimalistas citados há pouco por
Nelson vão se utilizar do cubo (para confrontar os a priori da
percepção com a contingência da experiência).
Mas Nelson toma desses signos não a potência de orientação
ou de fundação de um lugar, de um sítio, de um site: ele
toma desses signos a potência do entrelaçamento, aquilo
que chamou de “aliança”. Mas alianças que não reconciliam,
apenas tramam relações e, ao mesmo tempo, provocam
desvios e deslocamentos – não por acaso ele usa os 23º, a
marca de imperfeição a que me referi anteriormente. Nelson,
fale mais sobre esse ângulo.
E finalmente o anel e o círculo, de onde vem o corpo do
Concerto. O anel, por um lado, supõe uma aliança, uma religação, por outro, um isolamento e uma solidão. O círculo,
por sua vez, é um ponto estendido. É um ponto, como
23 graus é o ângulo que faz o eixo de rotação do Sol com o eixo de
rotação da Terra. Na realidade 23 graus e alguns minutos. Todos
os planetas rodam meio tortos em torno do Sol. Se existe alguma
coisa em posição perfeita no nosso sistema solar, é o eixo do sol,
todo o resto está fora de eixo. A Terra roda numa imperfeição de
23 graus e pouco e é por esta imperfeição da rotação que temos
as estações do ano, a nossa flora, fauna, nós mesmos, etc. Logo,
140
141
C A DER N OS EAV
N EL SO N F EL I X
a beleza veio do torto, esta beleza instintiva, que nos é próxima,
a natural.
Sempre que tive que escolher como posicionar as peças no espaço,
as coloquei em paralelo ao eixo do Sol. No início, com um astrônomo, calculava a sua posição para o momento exato em que
abriria o evento. Depois, simplifiquei, e colocava a 23º com as paredes ou com o norte, como escreveu o Ronaldo Brito: “um partido
aleatório radical”. O certo para mim é que, usando o ângulo, evitava
“arrumar” as peças no espaço expositivo.
Marisa Flórido: Como falava, esses signos, símbolos, são sólidos
perfeitos: a esfera, o círculo, o cubo. Nelson toma desses signos
sua potência de entrelaçamento, mas deslocando-os. Nesse
movimento, a imperfeição não apenas é inserida no processo,
mas, de fato, o determina. Isso não supõe apenas colocar
as peças em 23º, significa que todo o processo é gerado ao
se derivar um trabalho de outro e o desviar, a um só tempo
trazendo esses signos e distorcendo sua pretensa perfeição.
Explico melhor: não habitamos um vazio onde se situam coisas
e seres a partir de um centro que seria a origem e o destino
das cogitações do pensamento e dos apaziguamentos do
espírito. Nossa vã tentativa de colocar o mundo em latitudes,
em longitudes, em globos, em elipses, para contê-lo, para
desenhá-lo. Vivemos, sim, em meio ao infinito das relações,
dos cruzamentos de convenções e simbologias, de naturezas
e artifícios que não se reconciliam. Por isso, quando ele coloca
suas peças a 23º alinhando-as à órbita da Terra, elas entram em
imediata estranheza com o local em que estão. E, no entanto,
estão perfeitamente alinhadas com o cosmo, melhor, com o
movimento do cosmo. Pois o que é específico não é o lugar,
o site, mas essa trama de relações que define por um irrisório
momento nossa posição no mundo. Tão interdependentes das
vizinhanças, do que ocorre em nossa imediata proximidade,
quanto dos acontecimentos mais distantes; tão sujeitas aos
desenhos e símbolos arbitrários com os quais convencionamos
os espaços e os tempos (como latitudes e longitudes, como
o tempo em linha reta da História e o tempo circular dos
Antigos), como os acidentes e as errâncias que nos extraviam
e deslocam. O que existe é esta frágil e contingente posição
em um universo descentrado, oscilando entre as medidas e o
incomensurável, entre a existência como um lapso (como uma
distração do tempo) e as horas dilatadas dos astros. E Nelson
vai operar justamente com esses espaços e tempos cósmicos,
mesmo cosmogônicos, como um (re)desenho do mundo. Mas
um desenho que se sabe impossível: entre os desígnios e os
142
143
C A DER N OS EAV
N EL SO N F EL I X
Camiri, 2006-2007
Vista da Exposição: Museu Vale,
Espírito Santo - 26 de outubro de 2006
a 11 de fevereiro de 2007
Foto: Sérgio Araújo
144
145
C A DER N OS EAV
N EL SO N F EL I X
acasos, entre o cálculo e o imprevisível, tramam-se os tempos
e as geografias íntimas e cósmicas, a rotação dos astros e a
pulsação do corpo. Como, por exemplo, no Atacama. Gostaria
de te ouvir um pouco sobre isto.
Quando fui fazer o trabalho no Atacama, de que a Marisa nos falou
agora, estava voltado para os vazios, especificamente o do coração,
e sobre um tempo mínimo e simbólico. Até então, a poesia que
existia no tempo, para mim, era sempre distendida, a que pela longa
duração torce a nossa noção do tempo. Temos noção entre dez e
cinquenta anos, mas a perdemos entre quatrocentos e setecentos
anos, não temos muita consciência da diferença destes trezentos
anos que existem aí, por exemplo, não há muita percepção real.
O coração me fez pensar, no momento, no tempo do pulsar, e por
que não ver o tempo como um todo, o grande e o pequeno, como
um objeto, ou mesmo uma entidade, e usar o mínimo, o instante,
como usava o extenso. Vi uma poesia também neste infinito ao
revés. E que “caberia” em mim, no meu ritmo. Fiz dois trabalhos
com este tempo, o do coração no deserto e um outro com plantas
sensitivas, dormideiras, intitulado Mesas12.
Marisa Flórido : Várias temporalidades se cruzam: o tempo
da pulsação do corpo e o tempo da máquina fotográfica,
o tempo dos trezentos, quinhentos anos de uma árvore
engolindo as garras de bronze na Amazônia ou das árvores
deformando uma mesa nos Pampas. Esses tempos, espaços e
suas simbologias se entretecem com extrema complexidade.
Nelson nos coloca diante de algo que nos ultrapassa, que nos
excede. Mas como não fazer da arte apenas uma passagem
a uma transcendência? Passagem, aqui, não é o acesso a um
suprassensível, a algum significado transcendente, mas é a
própria arte como passagem: um abismo ontológico que, a
todo o momento, se abre.
Nelson dispõe dos signos, das convenções, das órbitas e dos
vacilantes passos humanos para articular com tal complexidade
os sentidos que inviabilize qualquer retorno à ligação simbólica
ou a um significado fixo. É uma espécie de violência da
indeterminação sobre o determinado (como os cálculos precisos
na cartografia do mundo e o encontro casual com o que ali
está), a abertura de um abismo ontológico nos desejos da forma.
Daí, desconfio que esse périplo, essa circunvolução do
artista pelo mundo, para e pela qual ele vai depositando suas
esculturas, é uma dádiva, um dom. Como um excesso de
energia que precisa retornar ao mundo. Ao fazê-lo, Nelson se
146
147
C A DER N OS EAV
N EL SO N F EL I X
refere ao processo da tradição escultórica, em que se retira o
excesso, se desbasta o mármore do bloco de pedra e joga-se
fora essa sobra.
Ele faz a obra, desfazendo-a, eis a questão. Não creio que seja
da ordem de uma construção formal apenas, reproduzindo
essa ação clássica da escultura. O que termina então por se
confundir, o que se turva e embaralha, no final das contas, é o
que é o excesso e o que é síntese, o que é sobra e o que é a obra.
Por isso o que ouvimos nesse Concerto é o canto ruidoso da
matéria. Esse é o encanto e a perdição da arte: orquestrar,
desenhar, reinventar mundos, mesmo sabendo que eles não
cabem em obras.
Certa vez escrevi um texto para Nelson em que eu citava
Jean-François Lyotard. Lyotard diz que a paisagem é
indiferente ao lugar; que, para ser passível à paisagem,
é preciso ser impassível em relação ao lugar. O lugar é
a “encruzilhada dos reinos e do Homo sapiens. Minerais,
vegetais, animais ordenam-se ao saber e este último dá-se a
ele de forma espontânea”. A paisagem é apenas partida, sem
destino (desorientadora, portanto). “A paisagem enquanto
lugar indestinado”, que suspende “a narração e o próprio
mostrar”. São como “pequenos toques ou vislumbres que
cegam e anestesiam”. E observa: a paisagem é “uma queixa da
matéria acerca dos limites dentro dos quais é aprisionada pelo
espírito”. Ou seja, invertem-se os lamentos e as preces usuais
atribuídas ao espírito: não é ele, o espírito, que se debate no
interior da matéria (e como “espírito” devemos entender:
sentido, forma, pensamento, etc.) É a matéria que deseja
libertar-se das amarras do espírito (e como “matéria” devemos
entender o inesperado, o irrepresentável, o impensado...) Há
sempre uma demasia na paisagem.
É esse lamento, esse canto da matéria “queixando-se” de suas
amarras, que fecha o Concerto. Um canto ruidoso. Mas, de
modo distinto de Lyotard — que crê que para ser passível em
relação à paisagem era preciso ser impassível em relação a
um lugar —, Nelson multiplica as encruzilhadas, multiplica as
relações que fazemos para delimitar ou formar um lugar, para
definir ou sintetizar uma forma. Se o lugar é a encruzilhada
dos reinos e dos homens, Nelson Felix opera uma hipérbole
desses entrelaçamentos, multiplica ao infinito as encruzilhadas
– ou seja, multiplica os significados, as simbologias, as
coordenadas, com os quais convencionamos os espaços
148
149
C A DER N OS EAV
N EL SO N F EL I X
e os tempos e nossa orientação no mundo. Esses vão se
sobrepondo e se relacionando com tal complexidade que em
dado momento aquela hipérbole não suporta o seu próprio
peso e rui. Sobredeterminação significa também sua anulação.
Os momentos de aparecer da obra não são uma condensação
ou uma síntese do pensamento extremo em uma forma. É o
momento em que o pensamento dubiamente se exacerba e
explora seus limites, exibe sua complexidade e sua falha.
Nelson, gostaria que você contasse como montou o livro
e o vídeo, porque tem a mesma extração da matéria, o
mesmo processo.
Como disse, o trabalho se ergue em torno dessa invisibilidade,
de sua ida pelo mundo, doando essas esculturas. Há apenas
alguns momentos precisos de uma doação ao visível: as
exposições nas Cavalariças e no Museu Vale. Mas Concerto e
o livro são também modos de fazê-lo aparecer.
Às vezes você tira uma única fotografia de alguma dessas
viagens, extrai apenas um momento. Poderia converter tais
imagens em simples documentação, em mero relato. Mas
transforma-os numa obra, em desenho e som.
Interessante também é o fato de que cada uma de suas ações
é em geral uma repetição, é uma ação circular, mas não como
sucessão contínua e invariável de instantes idênticos que se
repetem, mas como algo que se repete se diferenciando.
Algo talvez próximo ao “eterno retorno” de Nietzsche: se
não há origem, se a realidade não possui fundamento ou
finalidade, a combinação de forças em conflito, que compõe
cada um dos instantes, em algum momento se repetirá. Por
isso, vemos os eventos, os pequenos detalhes, os mínimos
atos retornarem infinitamente. Por isso cada gesto deve ser
realizado de tal modo que se deseje seu eterno retorno, que se
deseje que ele aconteça outra vez. Um mundo de forças em
incessante movimento, sem repouso ou equilíbrio. Concerto
é também uma reflexão sobre a noção de acontecimento,
ao mesmo tempo singular e repetido, que não se fecha em
relações de causalidade-finalidade. A um só tempo uma
subtração e um excesso.
Ou junto e não linear. A repetição, que você observa, acho que vem
desta constante tentativa de fazer as coisas conversarem, elas não
são iguais, elas se repetem. No fundo, em Concerto repito não o
igual, mas o circular e a repetição no círculo geram um ritmo, e este
é mais próximo ao tempo. É sensível para mim que quando estou
150
151
C A DER N OS EAV
N EL SO N F EL I X
“Sempre que possível,
evito me propor a criar
formas. No fundo, acredito
que tudo é a mesma coisa,
tanto faz trabalhar com a
forma de um cubo, de um
anel ou de um calcanhar
— elas já existem.”
concentrado, o espaço não me é extremamente necessário, quando
ele está perfeito, até some, o abstraio, uso coordenadas. Mas, no trabalho terminado, a compreensão do espaço gerado e o movimento
feito nele adquirem na obra um sentido ímpar e sua observação é
necessária. A questão do espaço na arte, do nosso último século,
é um processo de construção. E não dá para conversar sobre isto
sem puxar a história de como vejo esta construção do espaço na
arte neste nosso último século. Vou tentar resumir o que eu sinto.
O espaço era o quadro, a escultura, por exemplo, Matisse pinta um
quadro de um metro e meio por um metro e meio. Toda a sensação
dele, toda a atenção dele se dá nesse quadro, tudo ali. Você pega o
quadro, tira de uma parede e leva para outra, de um museu para
outro, e tudo continua ali. Grosso modo e sintetizando: é centrado,
não conversa muito com o entorno. Vamos escolher os ícones,
Brancusi – a terceira dimensão tem uma potência – ele constrói
formas poderosas, como “buracos negros”, existe nelas uma força
que quando as observamos, realmente, adquirem uma intensidade,
de repente, se perde a noção do espaço e ficamos, por alguns segundos, inteiramente “dentro” do objeto. Matisse tem isto também,
mas senti pela primeira vez esta observação em Madalena13 de
Donatello, e logo depois, em Brancusi. Depois creio, os surrealistas e dadaístas colocaram mais uma estaca, trabalharam com
152
153
C A DER N OS EAV
N EL SO N F EL I X
carvão, fios, plantas, etc., no espaço de exposição, mas tudo era
meio onírico. Teve um artista, que para mim é crucial, um russo-americano, Rothko, um pintor, que entrou pelo espaço e afinou o
pensamento sobre o espaço externo à obra. Ele definia a sequência
dos trabalhos, a luz necessária. Rothko foi convidado pra fazer um
trabalho para um restaurante, de repente acho que gostou do trabalho e resolveu doar para a Tate de Londres, porque ele admirava
Turner. Resumindo, entregou o trabalho com a condição de que
sempre fosse mostrado na sequência que ele tinha projetado, na
mesma luz, na mesma dimensão espacial de sala, etc. O que é isso?
Uma ambientação espacial do trabalho, aqui o espaço é também
a pintura. Depois, uns dois anos antes de morrer, fez uma capela
em Houston, com pinturas praticamente monocromáticas, de uma
austeridade, e com o espaço todo planejado com elas, algo anterior
e meio minimalista.
para a construção do mercado de arte e não para uma aventura
que deslocava o eixo do espaço expositivo rumo a uma exteriorização do objeto de arte. Bem, esse diálogo com o espaço externo
delineou para o artista contemporâneo questões fundamentais
de pensamento e, principalmente, o gosto de pensar sobre isto e
sobre o próprio trabalho, que trazemos até hoje.
Mas já vivemos outro momento. O espaço externo atual é “menor”,
mais dinâmico e com uma nova questão: muito informado. Esta
informação chega a ser quase que matéria. É notório que qualquer
objeto que colocamos no mundo hoje sofre imediatamente uma
relação.
Percebe o salto? O espaço não é tão necessário – o espaço some – e
logo a presença espacial é fundamental e estrutura a obra.
Para pensar, ou melhor, para perceber o que fazia, comecei a abstrair este espaço, primeiro usando as coordenadas. Com elas senti
que não necessito conviver com ele direto. Crio um estado de certa
concentração, onde não é só o espaço que se dilui, é a sensação do
pensar sobre o trabalho que volta a ser centrada só nela.
Nos anos 60, realmente começamos a lidar com o espaço externo
novamente, depois dos antigos. Nesse momento, existia uma audácia nos artistas. A grande maioria dos museus, principalmente na
América, assim como toda a situação da época, estava estruturada
Coordenadas não existem, não tem o objeto coordenada aqui, por
exemplo, mas existe este acordo, esta medição, como nas horas. Sei
que existe uma linguagem, poética talvez, que é anterior mesmo a
uma necessidade do diálogo. O pensar se constrói como um desenho,
154
155
C A DER N OS EAV
N EL SO N F EL I X
não tem imagem no fundo e não preciso descer até as palavras para
entender. Essas questões me nortearam em determinados trabalhos,
principalmente quando envolvem deslocamentos.
pelo mundo. Os deslocamentos e o movimento da natureza do
espaço – da arquitetura ao exterior e daí novamente para a arquitetura – são um veio forte na construção do trabalho.
Às vezes, uso espaços que são mais mentais que físicos. Quando se
trabalha com o tempo, oitocentos, novecentos anos, por exemplo.
Como na esfera do Vazio, no litoral, que se “abrirá” com a oxidação,
ritmada pelos diversos “aparecer e sumir” na areia. Você faz esse
trabalho na mente o tempo inteiro, mesmo indo ao local com a
esfera descoberta, se observa somente um momento do trabalho.
O espaço é mental, construído na cabeça. Poderia colocá-la numa
caixa d’água com sal, ao invés da praia no Nordeste, também o
faríamos na cabeça, com menor poesia, é lógico, mas também o
faríamos. É um jeito de lidar com o espaço, de não nos determos
com ele, mas não o excluímos. Se constrói o trabalho no pensamento
e esse pensamento termina o trabalho na mente.
A primeira exposição no Museu da Vale e a segunda nas Cavalariças do Parque Lage trazem uma questão com o local, que se
utiliza da referência de um trabalho anterior, o centro da Cruz na
América, Camiri.
Marisa Flórido : E as relações entre as exposições de Camiri
e Cavalariças com os 4 Cantos14 no mundo, a construção do
Concerto para encanto e anel?
Concerto para encanto e anel tem uma dimensão mais estruturada,
uma coisa só e sequencial. São duas exposições e uma série de ações
Em Camiri, nunca quis fazer nada ali. Era direto demais e fecharia a obra num bloco. Deixar o centro da cruz aberto me parecia
melhor. Comecei a pensar em rebater este ponto pelo globo, para o
Hemisfério Norte, depois a sua oposição no mundo e esta oposição
para o Hemisfério Sul novamente. Estava sobre estes rebatimentos quando surgiu o convite do Museu Vale. Algum tempo depois,
reparei que o museu estava na mesma latitude que Camiri e a 23º
de longitude de distância. Não me era novo o trabalho, me deslocar no globo e usar o angulo de 23º, e percebi que já o tinha feito.
Sintetizando o processo, segui o que estava me sendo dado. Fui a
Camiri, olhei para o museu, fui ao museu e olhei para a direção
de Camiri. No museu coloco as vigas e as peças de mármore ora
em acordo com a arquitetura do museu, ora inclinadas no mesmo
ângulo do deslocamento na longitude.
156
157
C A DER N OS EAV
N EL SO N F EL I X
Camiri, no Museu Vale, foi isto, vigas de ferro horizontais e inclinadas a 23º com a arquitetura do museu e cinco peças de mármore. As
vigas na horizontal em quase todo o museu fizeram com que, apesar
da presença da escultura, o visitante não percorresse a exposição,
sua relação de contemplação era igual à da pintura, olhava-se de
três lugares distintos, e o trabalho se referia constantemente a um
deslocamento no globo, Ronaldo observou isto.
um bloco único e escavadas – dava para fazer ao contrário, aliás,
dava tudo, dava pra ligar para o marmorista e pedir para ele colar
quatro placas. Mas no detalhe da construção deste pensamento
“circular” eu não responderia a mim esta falta de exigência formal.
Esta camada de pensamento me é necessária. Por exemplo, uso o
mármore de Carrara, ou o grego, não por um meio em si, mas por
uma questão conceitual. Eu não o acho mais bonito, para ser sincero eu nem escolho o bloco. O uso porque nele existe a presença de
uma tradição da nossa história escultórica; somos greco-romanos,
ocidentais, e, para comungar com essa tradição, uso este mármore.
Concerto para encanto e anel tem na construção da sua poética uma
sequência de relações com os limites dos trabalhos. Algumas coordenadas ou locais irrigaram conceitualmente o espaço expositivo
e definiram posições ou elementos próprios da escultura, como
forma, material, proporção ou o ritmo.
A coordenada rebatida de Camiri define os locais de trabalho. Não
faço um trabalho para um local escolhido a priori, o trabalho foi
resolvido anteriormente, eu só o coloco no lugar. Reposiciono,
como num desenho no globo, as peças da primeira exposição e
deixo uma única peça, um grande cilindro de mármore. Com ela
retorno a expor, como um terceiro movimento de uma só obra.
Todas as peças de mármore, também trazem uma ideia de circularidade, ora na forma, ora na sua inteireza. São esculturas em
Estas coisas geram uma força, como estacas no pensamento, que
me ajudam a responder a um sentimento poético, e assim construo
uma linguagem para mim mesmo, sem razão nenhuma. O que faz o
artista é gerar potência, porque no fundo, na arte, se faz o que sempre foi feito. O que nos resta, hoje, é a relação com o pensamento
estrutural da obra; a forma, a cor, o material, tudo de um certo modo
já foi aberto, expandido, por diversas conquistas. Às vezes me sinto
construindo idiomas para falar com os mesmos sentimentos.
Voltando à Cavalariças, as vigas sofrem uma rotação no espaço e
ficam na posição vertical; as três posições que definem uma linha
no espaço tradicional euclidiano – horizontal, inclinado e vertical.
158
159
C A DER N OS EAV
N EL SO N F EL I X
Com o Anel, fixo o espaço de exposição. Como se todo espaço fosse
agora uma única escultura. Sobre isso Ronaldo escreveu: “é uma
escultura que se desloca”, construída retirando partes, como qualquer outra, “mas o processo de retirar nesta construção não se
subtrai, se soma”. A exposição nas Cavalariças do Parque Lage
tinha uma sensação de inacabada, tosca, e foi uma única ação, só.
Longa ou curta, depende de como a olhamos.
de tinta, você já não percebe essas camadas, mas se não as tivesse,
acredito que o trabalho não sairia. São questões próprias da natureza de quem faz, isso acontece com a arte. Tem situações, no meio
do processo, que você sabe que não vão gerar uma obra que possa
ser vista, mas geram a própria obra. Não é uma ação feita para
mercado, é feita pra você responder ao pensamento. Esta resposta
adquire presença, se posso falar assim. Sem ela, determinados
trabalhos não existem.
O Concerto aparece e some, como Marisa escreveu: “entre as duas
exposições – dois momentos de uma doação aos olhos, dois instantes em que a obra efetua o movimento de seu aparecer”.
Marisa Flórido :
E a Islândia15, em que ano foi?
Foi em 2009, maio de 2009. Queria que o Concerto carregasse nos
seus “movimentos” a presença do verso, do canto, que começa e
acaba igual. Então, refaço a mesma ação de me deslocar e olhar
para onde expor. Inverti as coordenadas, o Norte com o Sul: essa
aleatoriedade deu na Islândia.
Na realidade, o trabalho não foi só esse, construí uma cruz por lá,
teve outras questões no deslocamento. Mas é algo que se incorpora,
como Rothko, de novo, sua pintura tinha trinta, quarenta camadas
160
161
C A DER N OS EAV
N EL SO N F EL I X
Notas
1. FELIX, Nelson. Concerto para encanto e anel. Exposição individual realizada no
Espaço Oi Futuro – Flamengo, Rio de Janeiro, 17 de maio a 3 de julho de 2011.
2. FELIX, Nelson Tavares. Concerto para encanto e anel / Nelson Tavares Felix, Marisa
Flórido Cesar, Ronaldo Brito. Rio de Janeiro: Suzy Muniz Produções, 2011. 303 p., il.
Edição bilíngue português-inglês.
3. Concerto. Concebido por Nelson Felix. Criação e edição de imagens por Begué, Nelson
Felix e Luís Felipe Sá. Produzido por Suzy Muniz Produções. Brasil: 2011. 12min 19s.
DVD, son., color.
4. FELIX, Nelson. Camiri. Exposição individual realizada no Museu Vale, Espírito Santo,
26 de outubro de 2006 a 11 de fevereiro de 2007.
14. FELIX, Nelson. 4 Cantos, 2004-2008. Quatro trabalhos de intervenção realizados na
República Dominicana e Anguilla, Caribe; Dong Sha, Taiwan, Mar da China; Karratha,
Austrália.
15. “Desde o início, a extravazar os pontos geográficos rebatidos, a escultura intui
um quinto ponto aleatório, errante, uma fuga para o alto, quase em suspenso,
que a complementa: o vulcão Hekla, na Islândia. Diante dele, aí sim, calma e
pensativamente, Nelson Felix olha para o ponto futuro, em direção ao Parque Lage, o
ponto de partida.” (BRITO, Ronaldo. Percurso da escultura. In FELIX, Nelson Tavares.
Concerto para encanto e anel. Rio de Janeiro: Suzy Muniz Produções, 2011. p. 86).
5. FELIX, Nelson. Cavalariças. Exposição individual realizada nas Cavalariças da Escola
de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro, 27 de novembro de 2009 a 21 de
março de 2010.
6. FELIX, Nelson. Vazio sexo, 2004. Mármore de carrara e prata. 90 x 90 x 90 cm.
7. FELIX, Nelson. Grande Budha, 1985/2000. Mogno e garras de latão. 0,70 x 0,70 x
0,15 m (cada garra). Estado do Acre, Seringal Nova Olinda.
8. FELIX, Nelson. Mesa, 1997/1999. 22 figueiras-da-índia e chapa de aço. 0,80 x 2,45 x
51,00 m. Estado do Rio Grande do Sul, Uruguaiana.
9. FELIX, Nelson. Vazio coração / Deserto (1999-2003). Seis fotografias , com tempo de
exposição definido pelos batimentos cardíacos do artista. Deserto do Atacama, Chile.
10. FELIX, Nelson. Vazio coração / Litoral (1999-2004). Esfera de mármore de carrara e
22 pinos de ferro, 60 cm ø, deixada na Praia Redonda com Ponta Grossa, Ceará.
11. FELIX, Nelson. Série árabe. Instalação realizada nas Cavalariças da Escola de Artes
Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro. Inaugurada em 11 de abril de 2001.
12. FÉLIX, Nelson. Mesas, 1995. Seis mesas de granito com 70 x 70 x 70 cm, sobre elas são
colocadas peças em ferro com molde do corpo do artista e de glândulas endócrinas,
azeite e mimosas pudicas (plantas sensitivas – dormideiras). Uma das mesas pendula
sobre um tapete dessas plantas e provoca reação nos vegetais com seu movimento.
13. DONATELLO. Madalena, 1453-55. Escultura em madeira. 188 cm de altura.
Saiba mais
FELIX, Nelson. Camiri. Texto crítico, Ronaldo Brito; diálogos Nuno Faria. Espírito Santo:
Museu Vale do Rio Doce, 2007. 136 p.
FELIX, Nelson. Concerto para encanto e anel. Textos de Nelson Tavares Felix, Marisa
Flórido Cesar, Ronaldo Brito. Rio de Janeiro: Suzy Muniz Produções, 2011. 303 p.
Edição bilíngue português-inglês.
FELIX, Nelson. Nelson Felix. Textos de Glória Ferreira, Nelson Brissac e Sonia Salzstein.
Rio de janeiro: Editora Casa da Palavra, 2001. 176 p.
NAVES, Rodrigo. Nelson Felix. São Paulo: Cosac & Naify, 1998. 208 p.
162
TUNGA
Sobre o que vamos falar? Poderíamos falar sobre qualquer coisa,
mas falar sobre qualquer coisa seria um pouco mais que isso. Falar
e estar disposto a responder sobre qualquer coisa. Responder sobre
qualquer coisa é certa prepotência, porque pareceria dizer que
posso responder sobre qualquer coisa, mas quero ser mais preciso. Posso estar aqui para responder sobre toda e qualquer coisa,
não porque eu saiba a resposta, mas porque posso incluir toda e
qualquer coisa dentro do meu discurso. Qual é a única disciplina
no mundo que lhe permite incluir toda e qualquer coisa no seu
discurso? Que eu saiba é a arte, porque ela vai procurar dentro do
discurso outras ligações, outros sentidos, outras possibilidades de
conectar, criar novos sentidos e compreender aquilo que anda por
aí. Portanto, estou aqui para responder sobre toda e qualquer coisa.
Xifópagas capilares
Objeto, performance e filme realizados
primeiramente nos anos 80
Foto: Wilton Montenegro
164
165
C A DER N OS EAV
TUNGA
Mas, antes disso, hoje acordei e me lembrei que tinha tido um
sonho, logo hoje. Era um sonho muito peculiar porque me lembrei que tinha sonhado com a verdade, só que quando acordei, me
esqueci. Acho que isso é uma boa pergunta para começar: que história é essa de um sonho em que você sonha com a verdade, acorda,
sabe que sonhou com alguma coisa, e essa coisa é a verdade, e logo
esqueceu a verdade? Será verdade que você sonhou? Esse tipo de
paradoxo, que o sonho volta e meia nos oferece, de algum modo nos
aproxima um pouco do modo de trabalhar em arte. O bom de trabalhar em arte é que vamos procurando uma outra lógica, outro tipo
de associação, e que tem que ter algumas regras, só que essas regras
ninguém nos dá, o que temos são os exemplos de outras pessoas
que seguiram essas regras. Resolvi que havia uma coisa comum em
todas essas atitudes, que era o fato de juntar coisas: a narrativa de
um sonho, a narrativa de um fato ou a construção de uma obra de
arte, de uma música, de uma poesia, tudo e qualquer coisa que a
gente se lembre ou tenha esquecido é fatalmente a ação de juntar
coisas. Juntar coisas é, basicamente, a atividade que fazemos, e isso
tem algumas regras e é a partir delas que nos perguntamos o que
estamos fazendo. Acho que o discurso que interessa é o discurso
da conjunção: arte seria então essa capacidade de criar ligações
entre coisas, conjunções essas que nos dão sentido. Quando você
liga uma coisa com outra, acontece um fenômeno de radiação, uma
coisa que está num sentido e outra num outro, ao se juntarem,
produzem um terceiro sentido. E é a partir desse terceiro sentido
que devemos começar a pensar. Vamos passar um filme.
[ Exibição dos vídeos Inside up outside down (Kassel-1997) 1
e Resgate (CCBB-2001)2 ]
O primeiro filme que assistimos foi de uma performance e instalação
em Kassel, e o segundo foi o trabalho apresentado na inauguração
do CCBB de São Paulo.
Em Resgate, a circunstância era a seguinte: o departamento de
marketing do Banco do Brasil indicou que haveria um artista para
a inauguração do novo espaço, que é uma coisa meio paradoxal, é
evidente que não fiquei muito contente com esse approach estrutural, disse que participaria, mas que seria contra essa instituição,
aceitaram. Fizeram uma reforma no prédio onde pretendiam abrir
o Centro Cultural Banco do Brasil em São Paulo, o prédio é numa
área de extrema vitalidade, de uma economia marginal e lateral,
e eles pretendiam alojar lá esse centro cultural de arte contemporânea, revitalizando toda aquela área. Achei uma contradição,
porque esta noção de vida deles é inteiramente diferente da minha,
para mim, aquela é uma zona extremamente vital da cidade, há
166
167
C A DER N OS EAV
TUNGA
milhares de camelôs, um comércio intenso, só que não era o perfil
de arte, de cultura que propriamente o Banco do Brasil aprecia
ou que um departamento de marketing pretende que seja a nossa
cultura. Fiz uma instalação gigantesca ocupando o prédio todo,
com a participação de duzentos personagens.
Quando disse que estava aqui disposto a responder perguntas sobre
tudo, era para falar dessa atitude, que é um pouco a atitude que
quem está começando a fazer arte deve ter: se inquietar por tudo,
tentar entender de tudo. Não entender na pretensão de dominar,
de ser capaz de deter opinião sobre tudo, mas saber que, para fazer
arte, você estará lidando com uma disciplina na qual todos os sentidos podem se agregar e se incorporar a alguma coisa que você diz.
Talvez uma coisa característica dessa peça no CCBB e da outra em
Kassel que possa introduzir a nossa conversa foi um pouco o que
disse da ideia de que arte, seja ela qual for, é sempre uma conjunção, colocar duas coisas juntas e criar um terceiro sentido que não
estaria na primeira nem na segunda, o surgimento entre duas coisas
heterogêneas, que não necessariamente tenham a ver uma com a
outra, concebendo um sentido quase como uma mágica, um sentido
que, de repente, surge. Explorar esses sentidos, conectá-los, produz
uma forma de conhecimento, uma forma de saber um pouco bizarra,
não obedecendo necessariamente às regras da razão, às regras da
compreensão geral, mas obedecendo a uma regra, uma espécie de
certeza que se cria quando você está frente a uma obra de arte e
sabe que tem alguma coisa certa ali mas não sabe direito o que é.
É esse estado que me interessa na arte. Para produzir esse estado,
para que se provoque um estado como esse, será necessário, também, uma série de outras coisas, saber muita coisa e saber de tudo.
Ao enunciar a palavra vermelho ou mostrar uma tela vermelha,
perceber que por trás desse gesto existe uma complexidade de
evocações que aquele fenômeno vermelho aporta. Quanto mais
o artista sabe o que pode vir junto com aquele vermelho, mais
ele terá essa capacidade, essa habilidade, esse domínio de criar
um discurso e surpreender mais ainda. Surpreender é ir além do
senso comum, produzir uma experiência única, radical, diferente.
É disso que trata a arte.
Chamaram a minha atenção os símbolos
que você usou nos vídeos e também na trilha sonora
para a edição desses trabalhos.
Aluno:
Nos dois casos, a trilha sonora do vídeo era baseada efetivamente
no que acontecia durante a instalação, durante a performance.
168
169
C A DER N OS EAV
TUNGA
O primeiro vídeo foi realizado na X Documenta de Kassel, esta
cidade remota e longínqua na Alemanha, à qual fui levado para
escolher um lugar para fazer essa performance, essa instalação. Fazia
muito frio ali, era inverno. Cheguei à estação de trem morrendo de
frio, disseram que ali ia ter uma mostra no segundo andar. Olhei
em volta, vi uma parte com menos movimento e perguntei se não
podia fazer o meu trabalho ali. Disseram que podiam investigar e
resolvi que seria naquele lugar.
cada um faz parte da instalação também, porque de algum modo
está ali dentro. Rememorar isso, chegar em casa e sonhar com isso
é realmente efetivar a realidade daquilo que apresentei.
O lugar possuía vantagens para apresentar essa peça: primeiro, um
público garantido, uma estação de trem ativa, vinte mil pessoas por
dia passariam por ali, passariam num contexto do meu interesse,
que era o contexto de testemunhar um fato.
Acho que numa performance ou numa instalação – prefiro chamar
de instauração – produzimos algo efetivo, instaura-se algo, há uma
espécie de fenômeno. Costumo pensar e ver essas interferências
como uma espécie de filme sem câmera nem película. Um filme em
que você se sentisse dentro dele, a rigor esse filme tem uma câmera
e uma película, só que essa câmera é o nosso aparato ótico, nosso
corpo é o nosso aparato sensorial e o filme disso é uma conjunção
neural, a capacidade de reter uma coisa que testemunhamos e
depois refazer, recriar essa coisa. Então, numa situação dessas,
A arte posta desse modo, portanto, está disposta a falar não com o
espectador à frente daquilo que ele já sabe ser uma obra de arte ou
mesmo quando em um local destinado para obras de arte. Numa
situação dessas, você é invadido pela arte. Uma cena cotidiana,
com um leve desvio, uma leve alteração, pode marcar você e fazê-lo
refletir, a ponto de poder sonhar com ela e narrá-la depois já com
outro aspecto. A arte hoje nos permite essa atitude, ou seja, olhar
para tudo e ver arte.
Mas não é tão simples assim, não é só chamar de arte aquilo que
você quer, é preciso que aquilo esteja incorporado a um projeto, a
uma intenção construída por você. É preciso entrar no sonho visual,
falar com os processos primários, que são aqueles processos nos
quais os sonhos são elaborados, onde o self, o sujeito, é realmente
mais denso e mais livre.
As músicas em Kassel estão sendo tocadas diretamente no equipamento de som da estação, aquela primeira música é do Jorge
Ben, ele canta “O que está no alto é como o que está embaixo” – uma
170
171
C A DER N OS EAV
TUNGA
referência a um texto alquímico – a rigor, na música, ele lê o texto.
Editei esta gravação dele, cortando a frase e deixando só esses dois
elementos. É evidente que isso se refere ao que vemos: o que vemos
é o que está embaixo e o que está no alto, o meio divisor que é a
escultura, aquele chapéu bizarro, chapéu comunitário. Essa música
já seria uma indicação, além de ser um hit bizarro, entrar numa
estação de trem alemã e ouvir o Jorge Ben cantando desse jeito.
algum modo aludida nessa música (Com’è triste Venezia), a Bienal
de Veneza tem um quê de excesso de plasticidade contraposta a
essa mostra alemã, pretensamente mais mental, mais florentina,
seria o termo.
A outra música, também presente nesse áudio da performance em
Kassel, destaca um trecho do Charles Aznavour, um cantor francês,
um hit clássico: “Com’è triste Venezia (Como é triste Veneza)”, igualmente editada, para deixar só este trecho que alternava com o do
Jorge Ben, isto é: O que está no alto, o que está embaixo ao mesmo
tempo Como é triste Veneza / Como é triste Veneza.
Essa exposição, a Documenta de Kassel, é bastante importante no
circuito ocidental, pretendendo ser internacional, e acontecia ao
mesmo tempo da Bienal de Veneza, então era também oportuno
falar de Veneza e de Kassel e manter essa polaridade, de algum
modo, a polaridade que funda a arte a partir do Renascimento.
É possível pensar a arte através de duas escolas básicas: a escola
veneziana e a escola florentina. Essa escola veneziana estaria de
Para esclarecer um pouco: artistas florentinos são aqueles similares
a Leonardo da Vinci, para quem pensar e fazer são uma coisa só.
Artistas venezianos, como Ticiano, por exemplo, são os grandes
artistas da plasticidade, do olhar, da expressão. São duas vias que
se encontram o tempo inteiro e continuam presentes na arte até
hoje, indicando dois caminhos. Os dois são válidos, acredito em
exercitar os dois, viver nessa polaridade.
A primeira performance já havia sido apresentada, a parte do chapéu
de palha, na Bienal de Veneza anterior, foi uma peça que migrou
de Veneza a Kassel para se incorporar a uma complexidade maior.
Já na segunda performance, apresentada no Banco do Brasil,
algumas das obras ali tinham sido apresentadas em outras circunstâncias. A primeira delas era Teresa, mesmo nome da música;
e Teresa era uma obra muito antiga, dos anos 70, que tive a oportunidade de realizar pela primeira vez numa conjuntura bastante
favorável. Criamos muitas obras e pensamos que nunca iremos
172
173
C A DER N OS EAV
TUNGA
“Qual é a única disciplina no
mundo que lhe permite incluir
toda e qualquer coisa no seu
discurso? Que eu saiba é a
arte, porque ela vai procurar
dentro do discurso outras
ligações, outros sentidos,
outras possibilidades de
conectar, criar novos sentidos
e compreender aquilo que
anda por aí.”
realizá-las, lógico que vamos, colocamos num caderninho e deixamos ali de lado, num pedaço da cabeça, esfriando.
Lá pelos anos 90 alguém me comunicou que eu seria o vencedor do
Prêmio Johnnie Walker, fiquei muito satisfeito, mas esse prêmio
consistia na aquisição de uma pequena obra e numa exposição
num museu. Naquele momento não queria nem vender obra nem
fazer exposição num museu. A rigor, esse prêmio era quase um
castigo, porque me obrigava a vender uma obra por um preço x, além
de fazer uma exposição no Museu de Belas Artes que, para mim,
não seria o perfil ideal para situar a arte contemporânea, sobretudo na época. Me ocorreu resgatar esse antigo trabalho, ligado às
tranças, e que é a versão do uso mais popular das tranças, talvez
não a mais popular, mas a mais saborosa que é a teresa. Teresa é a
trança armada pelos presidiários, e isso é universal, para escapar.
Você precisa de muito pouca coisa, um lençol, um cobertor, rasga,
enrola, trança e escapa.
Encontramos várias ideias embutidas, envolvidas, nessa ideia de
fazer trança. A primeira delas, particularmente me seduziu e me
levou a fazer tranças. É a ideia da geometria, dessa construção tão
arcaica, talvez tenha sido a primeira escultura a ser feita pelos
humanos, ao mesmo tempo em que os homens faziam tacapes para
174
175
C A DER N OS EAV
TUNGA
ir à caça, as mulheres trançavam, seja cabelo, palha, outras fibras
para fazer cobertas, utensílios dos mais genéricos. O mistério das
tranças reside num substrato muito arcaico da mente humana, ao
mesmo tempo, parte da geometria até hoje pensada na teoria dos
nós. A trança está para o quadrado, na teoria euclidiana, como a
teoria dos nós para a trança, os nós seriam o primeiro, ao que todos
eles se reduzem. Na trança, curiosamente, você separa três coisas
independentes, uma coisa não tem nada a ver com outra, apenas
a matéria, que se transforma num objeto só.
uma música. Conversamos sobre a música, escrevi aquelas palavras
de modo que podiam se recombinar infinitamente, criando sentidos
cada vez mais múltiplos. O Arnaldo compôs um rock meio mantra
que se repete infinitamente, gravamos isso e a primeira versão foi
usada no Museu de Belas Artes, quando os premiados receberiam
o cheque do Johnnie Walker, cheque este recebido pelos fugitivos
que tinham acabado de fazer uma trança. Apagaram as luzes, eles
pegaram o cheque e foram embora, isso foi incorporado. Esta performance foi reapresentada no Centro Cultural Banco do Brasil.
Existia essa música, mas no vídeo ela é usada de outro modo.
Voltando àquela operação, onde a arte é qualquer coisa junto, na
trança temos, primeiro o gesto de fazer de três coisas separadas,
independentes, uma coisa única. Várias coisas me levaram a fazer
trança, essa versão são as tranças de escape. Colocar essa atividade
no interior do museu, caracterizar isso sendo feito por personagens
que evocam uma situação que existe efetivamente na sociedade,
esta tensão social nas prisões, a vontade de evasão, transferir isso
tudo para um espaço cultural, já tem uma carga semântica imensa.
Essas pequenas transferências e essa apresentação de coisas juntas começa a borbulhar sentidos, e é dentro deles que devemos
procurar as razões e os porquês dessas coisas.
Nessa elaboração da trança, chamei o Arnaldo Antunes para fazer
Aluno:
E a escolha das formas dos vasos?
No Banco do Brasil havia um conjunto de obras heterogêneas.
Assim como juntar duas coisas me interessa, acho que construímos uma obra juntando momentos diversos de outras obras que
fizemos. É um segundo momento, digamos, sinfônico.
Costumo lembrar às pessoas sobre o trabalho do compositor,
quando escreve uma sinfonia. Primeiro escreve um quarteto, um
solo, uma linha melódica e depois vai juntando até criar uma sinfonia. Em arte é possível ter o mesmo pensamento, percebendo,
compreendendo o seu trabalho como uma obra. Momentos os mais
176
177
C A DER N OS EAV
TUNGA
diversos podem se encontrar, produzir chispas diferentes, leituras
de uns sobre os outros. Partindo dessa ideia, de que uma trança é a
transformação de três elementos discretos, isolados, numa unidade
só, tentei aventurar isso num outro campo. Imaginei três, quatro
formas que pudessem ser geradas a partir da mesma linha. Desenhei uma linha sinuosa e percebi ser esta linha o perfil de um sino,
e parte desse perfil eu poderia continuar e transformar num perfil
de uma copa, de um cálice, e neste mesmo perfil poderia continuar
e transformar no perfil de uma garrafa, e esse mesmo no perfil de
um funil, e, assim, fui agregando algumas formas, a partir de uma
linha comum, e dei volume a elas, as fiz rodarem sobre um eixo.
compreender o sentido de cada palavra isolada; e trabalhar na
tensão, no sentido de cada uma dessas palavras no sentido dessa
frase, é uma das operações aludidas nessas peças.
De um fragmento nasce um sino, de outro fragmento nasce um
vaso, de outro uma copa e, curiosamente, essa linha geratriz,
tal qual essa linha da trança, agrega um objeto só, e jamais será
um objeto só na medida em que você reconhece o sino, o cálice,
a garrafa, mas há essa vontade de estarem juntos, originária da
concepção dessas formas todas; mesmo tendo objetos separados,
você termina em algum lugar sabendo que eles estão juntos, eles
fazem parte de uma totalidade.
Essa tensão entre escrever uma frase, compreender o sentido de
uma frase, e depois pegar cada palavra que compõe essa frase e
Me ocorreu primeiro fazê-las em ferro, em metal, porque estaria
mais próximo do sino, um objeto que seria dominante, preponderante e nos chamaria de volta ao ruído do sino. Fundi-las,
também, porque me interessava esse resfriamento oferecido
pela fundição, como se uma ideia que tivesse sido pensada a
1.200 graus, cinco minutos depois a 1.100 graus, tudo aquilo já
está congelado, já é um corpo só, ou seja, na fundição você pega
pedaços de ferro, junta, aquece tudo e eleva a uma temperatura
muito alta. Depois, verte aquilo sobre um modelo, uma forma, e
imediatamente faz aquelas coisas separadas serem convertidas
em uma coisa só, coesa. Essa operação é também metáfora para
mim, esse isolamento que seria um sino, um cálice, todos eles
fundidos na mesma temperatura, mas em momentos diversos.
A rigor, já estamos acumulando uma série de operações com
sentido extenso.
Depois me ocorreu o seguinte: como incorporar isso? Lembrei
da grande sensibilidade das mulheres em se maquiar e da ideia
da maquiagem como uma espécie de reencarnação. Pedi aos
178
179
C A DER N OS EAV
TUNGA
dançarinos3 para maquiarem essas peças, mas, dado o tamanho
descomunal delas, a quantidade de maquiagem teria que ser imensa.
Além disso, os dançarinos teriam que se maquiar também, terminando por maquiar o próprio corpo.
Esta ação da performance durava doze horas seguidas, começou
de manhã e prosseguiu pelo dia inteiro. Um processo meio inebriante, as pessoas iam ficando possuídas pelo ritmo da música,
pela intensidade das sopas, pela luz. E, num dado momento, aquelas
bailarinas, cuja função era maquiar sistematicamente as peças,
me viram parado e começaram a me maquiar, timidamente pelo
sapato, e eu disse que podiam continuar.
Era um modo de falar da hipótese de um terceiro gesto, pictórico
e também cotidiano, que todos nós conhecemos: se transformar
num all over, numa superfície muito maior, e incorporar, fazer
a mesma pele sobre o seu corpo e sobre a escultura, uma espécie de criação de continuidade; como dizer que a escultura, em
sua totalidade, não apenas no seu olhar, mas o seu corpo inteiro é
parte daquilo, pode dialogar com a peça, é como mais um desses
elementos desenhados. O outro elemento, que faltava ali, seria o
corpo com essa maquiagem. Evidente, numa situação com uma
exposição dessa ordem, dada a quantidade de maquiagem, dada a
intensidade do som, dada a existência de um grande contingente
de atores e personagens, o público que entrava ali terminava por
esbarrar naquelas formas maquiadas e se maquiar também. Foram
muitas as reclamações de visitantes que entraram elegantemente
vestidos e saíram manchados, eu inclusive.
Você também fez parte da performance,
em alguns momentos eles maquiavam você?
Aluno:
O que estava acontecendo ali: eu estava me incorporando àquela
obra, por dentro e por fora, como a maioria das pessoas, porque
eram oferecidas, no próprio coquetel, não caipirinhas ou vinho
branco, mas sopas, que estavam fervendo, eram todas com base
vermelha, beterraba. Evidentemente, com bebidas vermelhas, luz
vermelha, maquiagem vermelha, havendo forte presença dessa
intenção de transformar tudo aquilo numa totalidade, todo e qualquer personagem ali fazia parte daquela obra.
Falo sobre fazer parte, efetivamente. Se entro num museu, olho
para a tela, vou para casa e me lembro dela, e alguém atravessou
na frente, pode ser que me lembre do contraste de cor com a roupa
dessa pessoa na frente da tela. Mas numa situação dessas, a presença
daquela pessoa, fatalmente, vai fazer parte da picture, da imagem
que tenho da obra de arte.
180
181
C A DER N OS EAV
TUNGA
Hoje em dia é possível pensar o público como sendo parte da
obra. Esse é um dos pressupostos dessa atitude, não acho que seja
dogmático, nem necessário, ser assim com toda obra, mas é uma
possibilidade de que hoje em dia dispomos, e é uma possibilidade
rica, na medida em que você agencia mais coisas.
O confinamento das artes face à industria cultural tem a ver, exatamente, com aquilo adquirido pelo espetáculo no último século.
Você vai a um espetáculo, por mais banal que seja, é luz, é energia,
milhares de coisas o envolvem, capturam, e a presença da arte é
muito discreta. Mas nada nos diz que a intensidade gerada, abarcando todos os sentidos, não possa ser agenciada nesse campo de
reflexão da arte, algo um pouco mais denso, e acho que me propus
a isso, nessa ideia.
A partir do momento em que você se deixa
maquiar, você tira a sua autoridade do corpo da obra,
é como se você permitisse que a obra crescesse,
fosse transpassada, correto?
Aluno:
É correto pensar assim. Estamos tocando numa questão muito fina,
o que faz a arte sobreviver? Por que ela sobrevive? Que mistério é
esse aonde fazemos toneladas de excremento para três poemas,
Inside Out, Upside Down, 1997
Vista da performance: X Documenta
de Kassel, Alemanha, 1997
Foto: Lucia Helena Zaremba
182
183
C A DER N OS EAV
TUNGA
como dizia o Artaud, toneladas de acidentes, de guerras, de sangue, e
quantos poemas? Meia dúzia? Que mistério é esse no qual tão poucas
obras de arte, quase nada frente à produção industrial, se mantenham, e continuem tendo o valor que elas têm, não só o financeiro,
mas o valor de serem preservadas, de serem cultivadas, cultuadas?
Tem que se aprender a fazer arte, aprender a fazer coisas, é a
curiosidade sobre todas as coisas, de que falava no começo desta
palestra, se interessar sobre tudo; e depois você pensa saber o
que está fazendo, seu trabalho, uma obra, um poema, uma pintura, e então percebe, depois que coloca aquilo no mundo, que
o trabalho começa a te ensinar, descobre coisas que não tinha
pensado sobre aquilo. No entanto, foi você quem o fez, você acha
que sabe tudo, mas não sabe, e acho que a arte começa a existir a
partir desse momento. É esse momento que perseguimos, esse
saber que nos interessa, evidentemente, é um saber subversivo,
de outra ordem, contra o saber institucional, porque obedece a
regras, as mais estranhas, similares às dos sonhos, à formação
dos processos primários do pensamento. Como esse sonho que
relatei aqui, sonhei com a verdade e me esqueci quando acordei.
Essa situação é paradoxal, é dessa ordem e dessa natureza o
nosso interesse.
Existe ali uma descoberta, uma hierarquia, um poder que esses
objetos possuem, desses poemas feitos, se impondo, invadindo o
outro. Estou descrevendo, desse modo, esse poder sutil, mas por
que não falar claramente dele e se deixar invadir por esse poder? É
nessa situação que o personagem ali está atuando, sendo invadido
pela arte e perdendo a hierarquia. Nos surpreendemos, descobrimos um artista, um poeta, um poema e ficamos perplexos. Isso
acontece com todos vocês, é a razão que os traz aqui, um dia terem
estado perplexos frente a uma evidência estética, que é o que nos
interessa, e é maior que nós, porque ela nos invade. Mesmo o autor
se surpreende com a sua obra.
Cada elemento dessa obra tem um significado,
tanto individualmente como em conjunto, você vai
elaborando os três elementos, mas é preciso racionalizar
o máximo possível e saber o que significa cada elemento
para saber o ponto. E você perde o feeling, o “se deixar
levar” sem chegar a pensar sobre o fato...
Aluno:
A rigor, fazemos arte para saber, saber aquilo da gente que não
sabemos, e que através da arte podemos vir a saber. Esse fazer,
não representa o gesto de uma inocência, de se deixar ir, ou ter
uma inspiração reveladora de alguma coisa. Não, é um trabalho
árduo, se dirige ao limite do seu saber, da sua vontade de conhecer.
184
185
C A DER N OS EAV
TUNGA
Você está colocando: em que momento você opera racionalmente
sobre seu trabalho e em que momento você opera sensualmente
sobre seu trabalho, qual é o momento da inspiração, vulgarmente
falando, da intensidade, do feeling, e em que momento você está
pensando: isso é isso e isso é aquilo. É mais ou menos isso?
você acerta um gesto no desenho e depois fica perplexo e pensa:
“beleza, como ficou legal, acertei, acho que posso fazer isso sempre!”. Eu acho que é uma sereia que chama e te leva a dizer “não
quero nem pensar sobre isso, quero ir fazendo”, e essa coisa brota
e sai, e é uma sereia, também, levando você para o departamento
de filosofia: começa a especulação sobre o trabalho, e você termina
esquecendo a existência de um fato estético e que a razão de fazer
poesia é trabalhar com uma coisa estética. Quando digo estética não
é no sentido acadêmico da palavra, mas aquilo que nos faz sentir.
Aluno:
Costumam chamar de “gastar a onda”.
Investir na onda! Onda, não se gasta, se investe. (Risos) Essa, é uma
questão que acho que vai sempre me perseguir, e a todo mundo, e
a conclusão, por minha experiência, é que se trata de uma tensão
contínua, se trata de nos mantermos num fio entre a compreensão
e a incompreensão. Descrever isso seria uma grande obra de arte e
pretendo fazer isso. A atitude normal é você saber e não saber, sei
que a chuva me molha, mas quando me refresca, não é a mesma
chuva que me molha, é um outro prazer, outra sensualidade...
Aluno:
“Só sei que não entendo” – Guimarães Rosa.
Só sei que não entendo! Essa pergunta, penso, pertence a quem
está interessado em fazer arte e tentar descobrir a sua disciplina
em relação a isso, até onde se pode ser curioso e até onde pode se
deixar ir. Existe o canto da sereia desejando nos seduzir, quando
Tenho a impressão que, de algum modo,
quando começamos a racionalizar demais, acabamos
perdendo a questão da “transcendência”. É bacana pairar
sobre o trabalho, não perder o controle, mas...
Aluno:
Esquecer dele e aprender com ele, digamos. Se alguém conseguir
enunciar direito isso que você está me dizendo, me conte, vou
ficar feliz da vida. É isso mesmo, penso, o trabalho é de associação.
Procuramos estudar arte, olhar obras de arte do passado remoto,
da gênese da arte, porque é um tipo de saber que se dá um pouco
através desse sentido também. Você se coloca à disposição do
espetáculo que a coisa oferece e intriga, deixando-se levar pela
coisa e só depois refletindo. Quando se reflete, percebe-se que deve
186
187
C A DER N OS EAV
TUNGA
se deixar levar mais ainda, e assim continuamente. É isso mesmo.
coisas assolando o seu sentido, sua mente, e você tenta organizá-las
da maneira mais estrita, para conseguir dar conta delas. À medida
que você aumenta essa possibilidade de ser pragmático, você está
mais próximo ao real, mas é bem mais difícil andar, porque são mais
impregnações, é muito mais prazeroso, intenso, rico. Narrativas
são possíveis.
Me parece que no seu trabalho tem uma questão
alinhada com a sua presença, um caráter biográfico e ao
mesmo tempo ficcional. Vi um vídeo seu, há muito tempo,
começava: “meu nome é Tunga”, mas não era você.
Aluno:
É uma anedota curiosa. Numa dessas conversas, aqui no Parque
Lage, me chamaram para fazer um workshop. Eu estava com muita
preguiça, estava com o Paulo César Pereio e disse a ele para ir lá e
fingir que era eu. Ele deu a aula fingindo ser o Tunga, num certo
momento eu disse: “Esse cara não é o Tunga, o Tunga sou eu”. É
uma performance, mas tudo é performance.
Vamos esquecer a palavra performance. Tudo é passível de ser
impregnado por sentidos outros, que não aquele nominal da linguagem, estou aqui falando e usando este gesto que não faz parte
do sentido, este gesto já é uma performance. Posso criar um gesto
contraditório ao que estou falando e o sentido desse gesto passa a
ser tão importante ou mais do que estou falando, amplia o sentido
do discurso. Abandonamos a linguagem, como ela é concebida
pelo senso comum, e começamos a utilizá-la de modo muito mais
próximo a como se pensa, como se lida com o real. Um turbilhão de
Quando comecei a trabalhar, observei certa vocação reflexiva, que
meu trabalho estava impregnado dessa vocação que é, geralmente,
encaminhada para o campo teórico, ligado à filosofia, à estética,
e, obviamente, termina por se afastar do fenômeno, por tratar
o fenômeno como objeto de estudo. Nunca quis me afastar do
fenômeno da poesia, do fenômeno estético. Como poderia exercer
essa vocação reflexiva sem me isolar do meu objeto, fazendo com
que essa reflexão fosse parte do objeto, se agregasse ao objeto
como sentido?
É possível criar uma teoria, um conjunto de reflexões do objeto que
seja uma ficção. A rigor, a teoria também é uma ficção, mas você
pode usar essa ficção e incorporar outros objetos mais “divertidos”.
Nessa medida, você faz uma paródia da crítica de arte, também.
Assim, a crítica é uma construção que pode pertencer à obra,
como a percepção de uma obra pertence à obra, assim como estar
188
189
C A DER N OS EAV
TUNGA
presente frente a uma obra de arte é se colocar no interior dessa
obra e incorporar a ela um sentido novo.
estético, e, eventualmente, não gostamos de algumas companhias.
Mas é preciso, antes, tomá-los, não como algo individual, autoral,
mas pensar isso num conjunto maior, isso enriquece.
Essa atitude é apenas uma formalização de uma coisa que está presente, latente, é uma prática comum, mas jamais é anunciada com
essa graça, pois pretende um ar de seriedade por ter sido investida
de um poder cultural. Poder cultural este que termina eliminando
ou destruindo modos de pensar. Gostaria que essa prática, da teoria, fosse sempre uma prática enriquecedora, o pressuposto desse
exercício será sempre enriquecedor em relação à obra de arte.
Esse modo de ver e usar isso dentro do meu trabalho é, a rigor,
também o meu modo de ver o trabalho dos outros. Olho o trabalho dos outros como sendo meu trabalho e, quando estou vendo
a obra dos outros, é também um pouco do meu trabalho, porque
possuo uma visão única daquilo. Todo mundo tem uma visão que,
em algum momento, é única de uma obra de arte do outro. Já falei
aqui da “quantidade de merda pra pouco poema”, citando o Antonin
Artaud, que, num certo momento, processou outro escritor que
teria publicado um romance plagiando ele. O Artaud abriu um processo na Justiça, mas parece que este romance já tinha sido escrito.
Esse exemplo traduz um pouco essa verdade, de que existe certa
temporalidade, certa incorporação do trabalho dos outros. A rigor,
todos nós fazemos parte de um barco, mobiliado de poesia, saber
Recentemente, tive uma experiência e pude colocar à prova essa
questão. Uma inquietação que paira sobre o meu trabalho, sobre
uma questão muito atual: a questão do poder de certas culturas
hegemônicas do Ocidente que enunciam a arte como uma coisa
feita em uma sociedade avançada, num contexto cultural, etc. Ao
mesmo tempo, arte contemporânea, com-tem-po-râ-ne-a: tem
um cara no Tibet fazendo uma mandala, na África, fazendo um
ícone, uma fogueira, etc., isso parece não entrar no discurso da arte
contemporânea, porque ela só lida com valores da alta sociedade,
desenvolvida no Ocidente, pela alta racionalidade, ou seja, eixo Nova
York-Londres-Paris-Milão, etc. Uma das minhas inquietações é
que o trabalho seja passível de compreensão por pessoas dos mais
diversos meios culturais. O fato de você usar elementos precisos e
claros, oriundos de um contexto cultural preciso, isola o seu trabalho.
Por exemplo, quando olho o cachorro-quente do Lichtenstein ou
uma lata de Campbell soup do Andy Warhol, sou capaz de apreciar
isso, mas tenho um certo desgosto de ser obrigado a saber o que é
sopa Campbell, isso realmente não contribui para a minha cultura,
é apenas afirmação da hegemonia de produtos culturais locais, num
190
191
C A DER N OS EAV
TUNGA
determinado contexto. Há uma inquietação no meu trabalho ao falar
de coisas passíveis de serem compreendidas por contextos bem mais
amplos. Se vocês olharem bem, dentro do repertório, uma trança,
um sino, um pente, cabelo, maquiagem, estou falando de coisas que
gente de qualquer lugar do mundo, em qualquer época, é capaz de
entender. As primeiras sociedades, ainda paleolíticas, produziram
sino, produziram tacape, trança, maquiagem, se pintavam. Você
cria um vocabulário acessível, é uma boa tarefa para nós, situados
neste hemisfério, nesta posição, pensar desse modo.
uma parte do público passa a ter, “isso é uma porcaria, isso é bom”,
faz parte desse jogo. Mas há museus como o Louvre ou a National
Gallery de Londres, há similares a eles em Pequim e vários cantos
do mundo, para não falar só nesses campos hegemônicos, há visitas
a esses lugares similares a um museu de antropologia, você vai lá,
sabe que vai ver arte e aquilo é arte porque parece que Deus disse
que é arte. Aquilo é tão sério, tão conotado de sentido e passou por
tantas peneiras na história, que te oferece quase certeza de que
vai ver arte. Um lugar onde você vai botar uma obra de caráter um
pouco estranho e sabe que o público vai chegar lá e já considerar
aquilo como arte, chegar acriticamente, é uma equação curiosa
da arte contemporânea.
Recentemente recebi um convite do Museu do Louvre para fazer
uma exposição, instalar uma peça embaixo da pirâmide. A pirâmide do Louvre é um lugar bizarro, um lugar de visitação maciça,
quatro milhões de pessoas assistiriam a isso. Público hoje em dia
é muito fluente, expor no Museu do Futebol, Museu de não-sei-o-quê, como fiz em Kassel, 120 mil pessoas vão ver o trabalho... Vão
ver coisa nenhuma! Vão passar por ele, ver é outra coisa. Pessoas
que vão ao museu vão ver arte, normalmente, vão ao museu nesse
ritual de arte contemporânea, vão ver e, em geral, criticamente.
Você vai ao MoMA de Nova York, mas se dá ao luxo de dizer gosto
disso ou não gostei disso, isso não entendi. Essa é uma atitude que
dá certo conforto ao público, poder estranhar, e é até um pouco
a graça dos museus de arte contemporânea, essa indignação que
[ Exibição do vídeo sobre a obra exposta no Louvre4 ]
Reparei que você usa alguns símbolos que remetem
à morte: a caveira, a morte do sapo... O trabalho do início
é melancólico, dramático, teatral. A escolha de usar esses
símbolos tem a ver com a sua vida, com algo que você queira
mostrar, ou com a contemporaneidade de uma maneira geral?
Aluno:
Não. É curioso você dizer isso sobre a morte, porque para mim não
é uma coisa presente como símbolo. Um dos significados da caveira
192
193
C A DER N OS EAV
TUNGA
“Nos surpreendemos,
descobrimos um artista, um
poeta, um poema e ficamos
perplexos. Isso acontece
com todos vocês, é a razão
que os traz aqui, um dia
terem estado perplexos
frente a uma evidência
estética, que é o que nos
interessa, e é maior que nós,
porque ela nos invade.”
é a morte quando você a reconhece dessa forma, mas nós portamos
em vida uma caveira, todos nós. Talvez a intensidade dessa ideia
de morte seja para reafirmar a continuidade, a transformação. Um
dos temas, que é contínuo e se ligaria àquela ideia de conjunção, de
colocar duas coisas e surgir uma terceira, são as sucessivas transformações. É pensar dinamicamente, os sentidos se formam e são
incapazes de ser estáticos, estão sempre evocando outros sentidos.
E, possivelmente, se colocar duas coisas juntas elas vão ter uma
atração e haverá um sentido comum nessas mesmas duas coisas,
sendo capaz de se ligarem, para gerar outras.
Alunos: A sua intenção é deixar os trabalhos abertos para
nossa interpretação, totalmente abertos, ou você acha que
tem alguma coisa que fecha esses sentidos?
Nem um nem outro. Acho que sim, totalmente aberto, o mundo
está aberto a interpretações e os produtos que se fazem a partir do
mundo, as transformações também são abertas a interpretações.
Coisas não abertas a interpretações são sinais de trânsito: em vermelho você para, porque te coloca em risco.
A arte é um território onde você pode produzir, cutucar o imaginário alheio, e esse imaginário pode ser surpreendente. Restringir o
194
195
C A DER N OS EAV
TUNGA
sentido a uma possibilidade, a um conjunto de sentidos precisos,
seria restringir esse poder da linguagem da arte.
daquela tribo inteira. Isso não aparece no filme, aparece aquele
conjunto de caveiras que, embora não possamos analisar morfologicamente, intuímos que sejam todos parentes ou relacionados, e
nos dá uma ideia de multiplicidade da morte. O fato de achar uma
prótese dentária reabre o sentido para reintroduzir a narrativa
que já estava ali antes. Transformo essa narrativa em algo mais
dramático: ao invés de achar aquela obturação numa boca viva,
achar na boca de uma caveira.
Por outro lado, existem interpretações que estão implícitas, você
constrói coisas, um objeto poético é uma construção que tem as
suas normas, suas razões internas, suas coesões e indicações de
como funcionam. Dificilmente vai se contrariar aquilo, é preciso
compreender isso, os esquemas formais que viabilizam aquilo
como linguagem, isso é rígido. Esses esquemas formais, se existem,
estão ali exatamente para abrir o território dos sentidos e não
para restringi-los a um só. Sobre a recorrência de signos de morte,
eventualmente ou evidentemente, ali existem construções em que
a morte reincide sempre, mas nunca como finitude e sempre como
abertura para alguma coisa.
O conjunto de caveiras observadas naquele plano, que estão no
chão, aconteceu por acaso. Estávamos filmando5 no Museu Histórico Nacional e eu estava procurando outra sala, de repente, abri
a porta e vi essas caveiras no chão. Perguntei de que se tratava e
me informaram que uma das doutoras que estava trabalhando ali
fazia um estudo e aquilo era uma tribo inteira de índios dizimada
por um vírus de gripe, possivelmente levado pelos brancos, e ela
estava fazendo um estudo para tentar identificar a causa mortis
Esse modo de construir, de contar uma história e de impregnar de
uma história o conteúdo da obra, é um modo de enriquecer e abrir
mais portas; quanto mais portas abertas, mais se pode criar uma
fluência, uma evasão de sentidos para adensar a obra.
Por que adensar a obra? Porque a característica maior da linguagem
e aquilo que mais nos seduz na linguagem humana é exatamente
a abertura de sentidos, é a possibilidade de surpreender com um
sentido novo. As linguagens construídas lidam com um território
hoje em dia muito desenvolvido por causa da informática, você
constrói sistemas de linguagem fechados. A linguagem natural,
que é a linguagem falada, já está demonstrada pelo Kurt Goebel6,
um matemático lógico, isto é, toda linguagem em que a ideia de
contínuo esteja embutida fatalmente será autocontraditória em
196
197
C A DER N OS EAV
TUNGA
algum momento. A linguagem humana é incompleta, não haverá
jamais um discurso completo. O discurso pode abrir mais sentidos, não criando uma coerência total, porque sempre haverá uma
incoerência em algum momento. Procuramos essa incoerência, é
paradoxal essa situação do limite da linguagem, onde ela explode
para um sentido que não carrega mais. Tudo isso nos interessa,
porque nos faz relacionar uns com os outros não a partir dos
códigos sociais dados, senão estaríamos nos relacionando só a
partir daquilo que cada um é segundo as normas – “sou aquele
cara que faz isso, etc.”. A arte faz surpreender, desperta o sentido de surpresa que a linguagem, característica do humano, nos
imprime, nos oferece.
contínua. Esse toro seria o modelo ou a referência para como as
histórias vão acontecer, como os sentidos vão se formar, sentidos
que eu agencio, eu capto, edito, lanço, eles funcionam como se
existissem dentro de um toro.
Essa construção que você fez dos recortes
das imagens não foi aleatória, você criou um efeito
de circularidade, não é?
A pintura, por exemplo, considera sua existência a partir de um
plano, fala-se da materialidade da pintura, materialidade?
Plano não existe, é uma suposição teórica, um lugar geométrico da
continuidade, da equidistância. O toro é outro lugar geométrico,
mas fala de um espaço geométrico, um espaço em que as coisas
terminam por se reencontrar, toda paralela pode se encontrar, não
há o estatuto da paralela sobre o modelo do toro.
Aluno:
A ideia de circularidade aí é mais a recorrência de ciclo, retransformação. O objeto modelo onde as coisas acontecem está explicitado
na narrativa do começo ao fim deste filme ÃO 7, em vários momentos, pela presença do toro, daquele anel circular. Toro, para quem
não sabe, em topologia, que é um modo diferente de pensar a geometria, é um lugar geométrico com um buraco só e uma superfície
Como construção do filme, está não só na narrativa, como no
modo de organizar diversos trabalhos. Quando fiz esse filme,
antes tinha feito a história das siamesas capilares, que apresentei
num congresso de psicanálise, e era o primeiro modo de conectar
uma série de obras que havia realizado no curso de sete ou oito
anos. As obras eram a trança, o tacape de ímã, aquela cabeleira
com pente, etc., aparentemente, trabalhos muito díspares e eu
tinha um projeto de que todos esses elementos deveriam estar
juntos. A história é bastante longa, mas vou tentar encurtar por
198
199
C A DER N OS EAV
TUNGA
um dos caminhos dela. Uma forma de colocá-los reunidos foi
naquela pintura sobre seda, em que coloco os objetos um ao lado
do outro, criando um objeto total composto por essas partes, tal
qual mencionei o sino, cálice, etc. Outro era a narrativa contando
a história das gêmeas capilares, que dava conta da totalidade
desses objetos, dessas esculturas todas que eu havia produzido.
A segunda versão foi o filme, a terceira já foi a escultura, e assim
sucessivamente, mas o que está por trás, o que rege tudo, é essa
presença do toro, é um modo de pensar no espaço não euclidiano,
não newtoniano, é um modo de pensar no espaço topológico; a
rigor, a construção funciona nos lugares geométricos da construção, são conexões improváveis.
é uma coisa problemática, isso não é ruim, porque todos nós somos
cheios de problemas; somos problemáticos porque somos finitos
e construídos de uma incompletude. Temos sempre uma vontade
de completar, de organizar essa finitude, mas sabemos: vai acabar
e não vamos dar conta dessa complexidade.
Essa relação seria a fagulha do significado
inicial do seu trabalho?
Aluno:
O significado inicial é uma questão: existirá um significado inicial? A
questão é interessante na medida em que volta a recolocar a posição
do artista, sua presença, o que é um artista. Qual a diferença de um
artista para um não artista? Acho que nenhuma. É apenas a atenção
que aquele sujeito dá aos seus problemas, à sua problemática, ou seja,
ao seu conjunto de significados iniciais. Vamos falar não só de um
significado inicial, mas de uma situação problemática. O ser humano
É um modo de cada um lidar com sua incompletude.
A sua problemática é que imprime à linguagem uma visão pessoal, é
isso que se chama de artista. Todos nós sonhamos e cada sonho, de
cada artista, das pessoas mais bizarras e estranhas, vai ser diverso
de outro, único e particular, intransferível. Na medida em que consegue transferir esse sonho, ele vai começar a ser artista. O modo
de você ditar essa sua complexidade inicial em linguagem faz de
você um artista; somos todos artistas e precisamos encontrar esse
modo de expressar.
Você fala muito da questão do sonho.
Tem algum motivo?
Aluno:
Falo muito do sonho porque passamos metade da vida dormindo e
mal nos damos conta disso. E depois porque, embora a psicanálise
seja extremamente vulgarizada no Ocidente, a relação que se tem
200
201
C A DER N OS EAV
TUNGA
com o sonho continua sendo arcaica e o sonho continua a ser um
lugar depositário do saber sobre nós mesmos arcaico. Não damos
muita bola para um sonho nosso, ou fazemos interpretações ora
de um jeito ora de outro. Mas no sonho você agencia metade da
sua vida, está próximo aos processos primários de elaboração da
linguagem. Acho didático falar do sonho, é mais por isso.
conseguir formulá-los através de uma linguagem, qualquer linguagem, pode ser cozinhar sopa, como no caso da exposição. Cozinhar
sopa vermelha, oferecendo aquela situação, não é só o sabor da
beterraba, não é só o sabor do morango, das frutas vermelhas. É
lembrar que aquelas pessoas que tomaram a sopa de beterraba,
quando fizeram xixi foi avermelhado. O vermelho estava incorporado em seus corpos, a consciência desse vermelho interno sai sob
forma de xixi no dia seguinte. Entre a maquiagem e o xixi vermelho,
você está ocupando bastante território do seu respeitável público,
ou seja, você autoriza as pessoas a se sentirem parte daquela obra.
São esses dispositivos que vamos criando para cercar um trabalho, para cercar a vontade de criar um significado, de apresentar
uma problemática e apresentar esse sujeito problemático na sua
integridade, para que ele seja ressonhado por outro e talvez nos
entenda. Fornecemos elementos para tentar nos fazer reconhecer
pelo outro como humanos, e ele tente sonhar o mesmo sonho. Oferecer sonhos para serem remontados, ou sonhos remontados sem
você estar dormindo, e sim consciente; logo não são sonhos, mas
são da mesma natureza que os sonhos. Na vigília, você é capaz de
viver uma intimidade com seu self com uma agilidade capaz de lidar
com o cotidiano, e isso é uma situação interessante para o mundo.
A rigor, poderia fala do esquecimento, dos momentos de devaneio,
talvez sejam tão ou mais intensos que os sonhos e estamos na vigília,
acordados, no dia a dia. A atenção nesse momento é também um
paradoxo, mais ou menos como o primeiro paradoxo de acordar,
sonhar com a verdade e me esquecer quando acordei.
Prestei atenção quando estava distraído, essa atenção a essa distração, ou esse conhecimento do universo dos sonhos, dentro dos
sonhos, talvez seja a resposta à questão que você me colocou. Pensar
na razão, pensar em reconstruir o sonho ou se deixar levar por ele.
Ou pensar em como construir um poema, como construir uma obra
de arte, ou se deixar levar pelo fazer daquela obra.
Quando prestamos atenção no devaneio, a distração já não está
mais, sabemos como é e procuramos essa situação. Criar, fazer
arte é criar condições para ficar nesses estados intermediários e
Aluno :
O seu processo criativo vem em forma de sonho?
202
203
C A DER N OS EAV
TUNGA
Você não inventa na sua imaginação? Como se dá seu
processo de criação?
A minha produção não vem dos sonhos e nem sequer dá atenção
aos sonhos. Estou usando e abusando dos sonhos porque não
estou sonhando. Vem de saber que existem processos – e a prova
disso são os sonhos – de compreensão, de apreensão, nos deixando frente ao mundo real e não são só aquilo que aprendemos
no convívio social, nas instituições que nos oferecem educação
para se conviver e viver. Tem o lado do ser humano deseducado,
ineducável ou irredutível aos padrões de educação, são eles vivenciados aqui e continuam emergindo. Eles afloram sob a forma
de violência e são quase indomáveis. Aspectos que a arte resgata
e traz a um bom caminho, bom na medida em que existir um
caminho humano.
Seria preciso nos alongarmos muito nessa reflexão para tentar
saber o que é o humano. Sei que humano não é só aquilo que todos
os dias nos dizem que é, estou convencido de que as normas sociais
não me fazem humano, me deixam apenas ser humano. Gostaria de
encontrar uma sociedade em que emergissem mais dessas categorias, em que as relações humanas se intensificassem, o amor fosse
de outra forma e exatamente pudesse lidar com esse humano que
somos obrigados a recalcar, acalmar, esconder para lidar uns com
os outros e formar uma sociedade.
Queria que você falasse um pouco da sua
formação profissional. Você fez arquitetura, mas
chegou a exercer a profissão?
Aluno:
Muitos seguiam para a arquitetura como uma espécie de compromisso, para ter uma posição liberal na sociedade, lidar com arte e ao
mesmo tempo lidar com a técnica, era talvez como a informática é
hoje. Muita gente na minha geração estudou arquitetura. A arquitetura me deu – não a Escola de Arquitetura, que levei muito pouco dela
– a atenção e a prática do exercício, as convenções para construir e a
necessidade de perceber, de se fazer consciente das dimensões com
as quais a arquitetura equaciona, extremamente enriquecedoras para
alguém que lida com escultura. A escultura tradicionalmente é alguma
coisa vista de fora e, recentemente, no século passado, começou-se
a falar do que hoje chamamos de instalação. A única diferença da
instalação, iniciada com Kurt Schwitters em 1912, para a escultura
é que na instalação você está dentro e na escultura você está fora.
Quando se trata de arquitetura você está dentro e fora, essa tensão e
experiência da arquitetura talvez me tenham dado muito subsídio e
204
205
C A DER N OS EAV
TUNGA
muitas facilidades para compreender e lidar com essa linguagem de
estar dentro e fora. Coloco a questão radical da continuidade entre
exterioridade e interioridade uma vez que arquitetura é abrigo e
monumento, sendo abrigo um lugar onde se acolhe e monumento
um lugar onde você honra alguma coisa.
Aluno :
Você fala de outras culturas, das mandalas, do ícone
chinês. Não é um pouco eurocêntrico considerar essas
manifestações arte? Não seria o contrário? Elas não são
feitas com esse objetivo, são rituais...
Você tem toda razão, são rituais em que a arte não é sequer um estatuto. Seria você compreender a existência de uma fusão inexorável
que está acontecendo no mundo, onde certas estruturas ocidentais
terminam se impondo e se generalizando, resgatar um território
mantido misteriosamente, como é o da poesia e da arte – da arte
falamos depois, porque estamos vivendo à beira de um abismo em
relação à arte. Mas manter esse território, onde o espírito vai se
manifestar de outro modo e não dentro da ordem da razão, como
se espera, é saudável.
Trazer esses objetos, que são manifestações de outras culturas,
para um modo de pensar artístico no Ocidente é apenas identificar
Vanguarda Viperina, 1986
Três serpentes, éter
Foto: Lucia Helena Zaremba
206
207
C A DER N OS EAV
TUNGA
aquilo de positivo no Ocidente na relação com a poesia, com aquilo
que há de positivo no processo de elaboração de linguagem nessas
outras culturas. Isso não é uma coisa nova e é bastante discutível. Coloquei essa questão no trabalho apresentado no Louvre.
O nascimento dos museus está estritamente ligado à dominação
de um povo sobre outro; o museu, a rigor, não deixa de ser o lugar
de pilhagem, daquilo que você toma do inimigo quando invade a
casa dele. Os museus são uma espécie de resgate desse saque de
dominações, de guardar o lado precioso.
São operações distintas, de ordem diversa, e você encontra uma
intimidade muito grande em manifestações de culturas, as mais
diversas. O lugar da poesia no Ocidente, onde você ainda consegue estabelecer esse diálogo, é esse lugar. Quando vou em direção
a outra cultura, olhar outro tipo de manifestação, vou com meu
espírito aberto de poeta, não de artista, de profissional. Por acaso,
você vai encontrar muito dessas coisas em museu de antropologia,
etnologia, arte, mas o que vou procurar não é arte, basicamente,
é outro modo de pensar o mundo, muito mais persistente que os
últimos trezentos anos de razão.
O que existia nessa peça do Louvre era quase que um texto sobre
isso. Tinha uma balança, onde de um lado havia caveira e de outro
havia réplicas de cabeças que estavam no Louvre, da cultura grega,
de culturas diversas. Havia uma alusão a isso, a quanto de domínio
foi exercido para guardar esse tesouro precioso, um bem comum do
humano. Quanto o homem destruiu, a partir de seu antagonismo
com outra tribo, para no fim reconhecer o tesouro dessa tribo?
Que estranho movimento é esse, para assimilar o que há de bom
no outro é preciso destruí-lo? Acho que o museu é uma síntese
perversa disso, ele guarda a memória do saque.
Não parto do princípio da arte, inclusive tenho usado sistematicamente a palavra cozinha aqui até para evitar essa confusão.
Quando você vai ao Oriente é muito surpreendente, em certas
regiões, o fato dos caras pensarem, o modo que isso repercute na
representação daquilo que é vida, é extraordinário. Você compreende
essa linguagem lidando com signos, símbolos, mas com um discurso
armado, e você é capaz de conversar sobre isso com essa linguagem,
pelo fato de estar habituado com esculturas e coisas dessa ordem.
O que se deve proteger não é o meio de arte, não são os museus, sou
contra isso tudo, mas outro dispositivo mental, outro modo de pensar capaz de dialogar com seres humanos que produzem coisas, as
mais diversas, mas que você pode interpretá-las. Por exemplo, você
entra de manhã no banheiro, lava a mão com sabonete, vai embora e
208
209
C A DER N OS EAV
TUNGA
deixa aquele sabonete ali, no dia seguinte você faz a mesma coisa e
o sabonete está ali. Um dia você se dá conta do sabonete como uma
escultura. A rigor, essa operação que você está fazendo, homeopaticamente, é exatamente uma operação de fazer uma escultura,
pegar uma quantidade de matéria, colocar ali e retirar até fazer
uma escultura. Não é dizer que você está trazendo o sabonete para
o campo da arte; não, estou transformando a minha vida em algo
mais positivo, é saber que lavar as mãos não é só para limpar as mãos,
olhar não é só para não cair no buraco, mas para desfrutar de outras
coisas, para compreender o mundo de outro modo.
uma grande exposição na França chamada Magiciens de la terre,
organizada por Jean-Hubert Martin, o curador, e foi a primeira
vez que ele trouxe para o museu uma diversidade cultural. Ele foi
muito acusado de acrítico ou de ser eurocentrista ao contrário. Eu
estava expondo e meu vizinho era um monge tibetano desenhando
mandalas de areia.
Hoje em dia arte virou profissão, quando comecei era “vagabundo”,
hoje temos a impressão de que o meio de arte é uma coisa poderosa, museus, galerias. Isso é uma balela do começo do milênio,
do século, daqui a dez anos se esquece e fica na moda um outro
negócio. Arte é aquela tarefa solitária de procurar alguma coisa
que você quer ver de outro jeito, não porque você faz daquilo uma
profissão e seu meio de vida.
Acho que é importante ser crítico em relação à ideia de arte do Ocidente. É onde a gente lida, joga, e onde a gente transita, mas acho
importante manter essa distância crítica, essa vigilância crítica
em relação ao que dizem ser arte ou não. Na década de 80 houve
Há uma anedota bem curiosa: o cara chegou na hora do almoço
com seu séquito e perguntaram se ele queria comer, e o pessoal
dele disse que sim, até que tanto insistiram e ele disse que não
comia. Ele estava ali como artista, mas é evidente que ele não era
artista nesse sentido ocidental, o preço que há de se pagar para ter
essa audiência, essa proximidade, talvez seja o preço dessa crítica.
É uma questão política ver se vale a pena ou não lidar com isso.
Em relação ao modo de ver, ao modo de perceber, acho que é bom
estarmos atentos e conscientes. Como no começo da conversa, em
que falei da instalação para a inauguração do Banco do Brasil de
São Paulo, o vetor era revitalizar uma área urbana de São Paulo e
por isso queriam um centro cultural naquela área. Uma área vital,
cheia de vida, cultura popular emergente!
O seu trabalho me parece ligado
a uma coisa espiritual.
Aluno:
210
211
C A DER N OS EAV
TUNGA
Talvez seja um anacronismo, mas acredito ser uma coisa pendular
na cultura do Ocidente recente, um tempo muito rápido, muito
acelerado, há uma desmaterialização do conteúdo espiritual na
história da arte e uma volta. Quando se tende a um esvaziamento
total de conteúdo, se tende a uma volta.
Espiritual é uma palavra difícil, me lembra
Rothko ou Malevich, mas hoje em dia falar nisso
é complicado.
Aluno:
É uma palavra complicada. Estava falando nas fronteiras da linguagem, as bordas da linguagem, as bordas da percepção, talvez seja o
fato de trabalhar com limites tão tênues, tão sutis, me obrigando
a usar o vocabulário dessa maneira. Durante muitos anos fiquei
extremamente triste ao usar esse vocabulário, e até usava a palavra
“emergir” fora do contexto, mas hoje em dia é mais negócio você
correr risco e tentar fazer presente e evocar coisas mais sutis com
que a vida lida, a linguagem lida, do que passar por um nacionalista
estreito e deixar passar essas coisas como sendo banais. A vida,
penso, está mais apoiada nessas pequenas coisas, nessas sutilezas,
do que nas grandes razões. Costumo dizer que somos monoteístas,
politeístas, ou falsos ateístas, mas tenho encontrado bastante dificuldade em ser convencido por um ponto de vista ateísta.
Aluno:
Mas aí você cai no agnosticismo.
Caímos muito longe. Uma espécie de humanismo universalista,
ou para-humanismo, porque para falarmos com árvore não custa!
(Risos)
212
213
C A DER N OS EAV
TUNGA
Notas
Saiba mais
1. Inside up outside down – performance apresentada na X Documenta de Kassel,
Alemanha. A peça principal desta performance era um enorme chapéu de palha
(no estilo veneziano), abaixo do qual e sustentando este chapéu, várias jovens
caminhavam pela estação de trem. Acima do chapéu, várias caveiras acomodadas
como parte dele.
TUNGA. Assalto. Brasília: CCBB-Brasília, 2001. 146 p.
2. Resgate – performance apresentada no Centro Cultural Banco do Brasil, São Paulo.
Nota: Os trabalhos podem receber mais de uma realização, por isso é comum
encontrarmos nomes distintos para diferentes versões destes trabalhos, na verdade,
desdobramentos de ideias. No caso, por exemplo, de Resgate, outras versões foram
realizadas com os títulos de Assalto e Teresa.
3. Bailarinos da Companhia Lia Rodrigues de Dança.
4. À La Lumière des Deux Mondes – escultura montada no Museu do Louvre, Paris, 2005.
5. Filme O nervo de prata, de Tunga e Arthur Omar, 1987. Xifópagas capilares – dupla
de gêmeas unidas por uma única cabeleira, objeto, performance e filme realizados
primeiramente nos anos 80.
6. Kurt Goedel – (1906-1978) – matemático austríaco cujo trabalho mais famoso foi o
teorema da incompletude. Nos anos 40 imigrou para os Estados Unidos para trabalhar
na Universidade de Princeton.
7. ÃO – instalação de som com filme 16 mm, montada em 1981 na Galeria Cândido
Mendes, Rio de Janeiro.
8. Kurt Schwitters – (1887-1948) – pintor alemão que trabalhou com diversos tipos
de mídias, utilizando poesia, som, pintura, colagens, escultura, desenhos gráficos,
tipografia e aquilo que viria a ser conhecido como instalação. Figura atuante no
dadaísmo, construtivismo e futurismo.
TUNGA. Barroco de lírios. São Paulo: Cosac & Naify, 1997. 308 p.
TUNGA. Caixa de livros Tunga. (Olho por olho, Encarnações miméticas, Se essa rua fosse
minha, Lúcido Nigredo, Prole do bebê, Trou rouge e Cartaz Louvre). São Paulo: Cosac
& Naify, 2007.
214
215
C A DER N OS EAV
apoiadores
APOIADORES CADERNOs EAV
Adriana Carrasco
Alice Strauch
Aline Carreiro
Ana Costa
Ana Cunha
Ana Franco
Ana Hortides
Ana Lucia Leal
Ana Luiza Moraes
Ana Santeiro
Analu Cunha
André Dametto
Andrea Matriciano
Anna Helena Cazzani
Antonio Caetano S. Neto
Antonio F. de Queiroz Junior
Augusto Lima
Barbara Emanuel
Barbara Targino
Benjamin Rothstein
Bet Katona
Beth Young
Bia Amaral
Brigitte Bruns
Bruna Fazolo
Bruno Belo
Cadu
Carli Portella
Carlos Alberto Mattos
Carlos Zilio
Carmen Ferreira
Carmen Silvia Nora Dias
Carole Chueke
Carolina Cattan
Carolina Cortes
Carolina Kaastrup
Cata Schedel
Cathrine Clarke
Clarissa Baumann
Clarisse Rivera
Claudia Hirszman
Claudia Moog
Claudia Saldanha
Claudia Tebyriçá
Claudio Diegues
Claudio Gabriel
Cláudio Luiz Garcia
Cristiane Friggo e Barros
Cristiane Geraldelli
Cristina Amiran
Cristina Cantergiani
Cristina de Pádula
Cristina Pimental
Cristina Salgado
Cristine Flores
Daniel Penteado
Daniel Yuhasz
Débora Guimarães
Diana Josefina Rosa
Guenzburger
Dulce Lessi
Eduarda de Aquino
Edval Ponciano Carvalho
Elisa Brasil
Elizabeth Jobim
Ernesto Neto
Evangelina Seiler
Evany Cardoso
Fátima Pereira
Fernanda Pequeno
Fernando Abrao
Flavio Colker
Franz Manata
Frederico Bonfatti
Gabriela Caspary
George Kornis
Gilberto Malva Filho
Giodana Holanda
Gisele Leme
Gloria Ferreira
Gloria Marcia Percinoto
Gloria Seddon
Gustavo Peres
Gustavo Torres
Herbert Hasselmann
Illiada Carvalho
Isabella Fernandes
Jacqueline Medeiros
Jacqueline Paschoal
Jayme Fuks
Jj Junior
João Modé
Jonas Aragutti
Jose Antonio Ferreira
José Eduardo Nogueira Diniz
Jozane Braz Resende
Julia Rebuzzi
Karla Barros
Katia Borneo
Khalil Charif
Laura Barreto
Leila Ripoli
Leo Ayres
Leonita Colussi
Lia do Rio
Lidice Matos
Lila Montezuma
Lilian Zaremba
Livia Flores
Loise Rodrigues
Lucas Milanez Leuzinger
Luciana Algarte
Luciana Paiva
Luciano Diniz
Lucimara Letelier
Luiz Vergara
Luiza Aché
Lyana Peck
Lydia Carmo
Malu Fatorelli
Manny Bernabé
Manoela Cardoso
Marcel Alcantara
Marcelo Cattan
Marcelo Diego
Marcelo Rocha
Marcia Britto
Marcia Limoeiro
Marcia Regina Fregolon
Marcio Zardo
Marcos Bonisson
Maria Ângela P. Caetano
Maria Clara Barbosa
Maria Clara Dias
Maria Cristina R. Amendoeira
Maria Cristina Sacramento
Maria Direnna
Maria Florentina Camerini
Maria Mendes
Maria Mercedes Lachmann
Maria Rocha
Maria Romani
Maria Tornaghi
Marilia Xavier
Marilú Santos
Marina de Andrade
Marisa Bessa
Marisa Braga
Martha Hirsch Gusmão
Martha Niklaus
Matheus Pizão
Maysa Britto
Mila Bianco
Monique Lima
Monocromo
Nelson Felix
Norma Spagnuolo
Olga Alencar
Ovideo de Abreu
Pauan Soares
Paula Santa Rosa
Pedro Struchiner
Priscila Guedes
Raquel Holsbach
Regina Amorim Mendes
Regina de Alencar Rosa
Regina de Paula
Regina Werneck
Renan Pinto
Ricardo Becker
Ricardo Senra
Rick Yates
Roberto Tavares
Rodrigo Bocater
Rogério Emerson
Roselene Sergio
Sandra Felzen
Sergio Albuquerque Brandão
Sergio Martins
Sergio Ribeiro
Silvia Neves
Simone Michelin
Simone Rodrigues
Suzana Queiroga
Suzy Fecher
Tadeo Saldanha
Tamiris Thomazini
Tania Queiroz
Tatiana Moura
Tatiana Podlubny
Teresa Salgado
Tina Velho
Tom Ferr
Vanessa Gerbelli
Vanessa Rocha
Vera Cordeiro
Victor Mattos
Vitor Zenezi
Viviane Matesco
Viviane Teixeira
Waleska Praxedes
Wan Olissant
Zalinda Cartaxo
__
AMEAV
A Gentil Carioca
Monocromo
Prêmio PIPA
REAL IZAÇÃO
PAT RO C ÍN IO

Documentos relacionados