- Bazar Monlevade

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- Bazar Monlevade
Bazar Monlevade
Por Trás das Vitrines
Jairo Martins de Souza
2008
Dedicatória
Olívia, Sonia Cristina, Rafael Henrique,
Lívia Luíza, Guilherme e Bê: é para vocês!
Agradecimentos
A Lúcia, pelo incentivo e ajuda, mesmo com
os olhos encardidos pelo sono; e à Olívia pela
arrancada final!
© Copyright by Jairo Martins de Souza, Vitória, 2008.
Projeto gráfico e editoração: Douglas Barbosa de Magalhães
Capa: Douglas Barbosa de Magalhães
Digitação: Jairo Martins de Souza
Revisão Final: Olívia Alves Fagundes de Souza
Catalogação: Ana Maria de Matos Mariani - CRB: 12/ES 425
Impressão e fotolito: Grafer Editora Ltda
Souza, Jairo Martins,
S729b
Bazar Monlevade: por trás das vitrines / Jairo Martins de Souza – Vila
Velha: Grafer, 2008.
316 p. : il., restrs.; 21 cm.
ISBN 978-85-86986-23-9
1. Souza, Jairo Martins, 1948 – Autobiografia. 2. Souza, Jairo Martins de, 1948 – Memórias. 3. Relações familiares. 4. João Monlevade (MG)
– Aspectos sociais. 5. João Monlevade (MG) – Aspectos culturais. I. Título.
II. Título: Por trás das vitrines.
CDU: 929
CDD: 920
Esta obra foi impressa em papel reciclado. Portanto, mesmo sendo impresso em máquinas de
última geração, pode apresentar variações de textura e tonalidade em suas páginas.
Todos os direitos reservados. A reprodução de qualquer parte desta obra, por qualquer meio, sem a autorização
do autor, constitui violação da LDA 9.610/98.
Sumário
Introdução ........................................................................... 9
Capítulo 1 – Onde se diz sobre as características da obra e se
adverte antecipadamente sobre suas falhas ............................ 11
Capítulo 2 – Aqui o autor por polidez, mas de forma equivocada,
se apresenta formalmente ao leitor ......................................... 15
Capítulo 3 – Comenta-se sobre a escrita de memórias. Dá-se um
exemplo bíblico ...................................................................... 21
Capítulo 4 – Há melhor forma de se escrever memórias. Nestes
escritos pode ser que um dia não suceda ao outro ....................... 25
Capítulo 5 – Parte 1 - Onde, ainda com alguns resquícios das coisas
do autor, se diz algo do Brasil e de Monlevade a partir dos anos
trinta do século passado ......................................................... 31
Capítulo 5 – Parte 2 - Onde o autor prossegue com mais algumas
contextualizações e diz superficialmente sobre Vargas, imigrantes,
emigrantes e, estranhamente, sobre a depressão de algumas
pessoas................................................................................... 35
Capítulo 5 – Parte 3 - Diz-se que Ouro Preto influenciou muito a
família de Monlevade ............................................................. 39
Capítulo 6 – Retrato do artista quando jovem. Onde se diz como
era Jaime Raimundo, o futuro fundador do Bazar........................ 43
Capítulo 7 – Onde se diz dos pais de nossa mãe, vô Clemente
e vó Rosinha. O negro e a índia que tinha sangue do país da
bota ....................................................................................... 51
Capítulo 8 – Diz-se das raras oportunidades em que nosso avô
brincava com alguns dos filhos da filha Alice, seus netos ........ 55
Capítulo 9 – Vô Clemente usa algumas linhas para falar da
esposa Rosinha ...................................................................... 65
Capítulo 10 – Os últimos dias de vô Clemente. Onde se terminam
também os seus registros, por falta absoluta de informações..... 69
Capítulo 11 – Onde se diz dos que precederam a Jaime
Raimundo e Alice Martins ...................................................... 73
Capítulo 12 – Apoiados sobre cabos de enxada, dois irmãos
conversam. Duas cabeças... Duas sentenças .......................... 81
Capítulo 13 – Tudo começou com umas pedradas .............. 95
Capítulo 14 – Introduzido por antigo craque de futebol, o autor
expõe o documento oficial de liberação desses escritos (nihil
obstat…)................................................................................ 101
Capítulo 15 – Onde se faz um breve estudo sobre as causas
finais do nosso nascimento. As várias vidas que vivemos. O autor,
de certa forma, admite ser como o escorpião que picou o sapo na
fábula de Esopo .................................................................. 107
Capítulo 16 – Onde se diz das tosses da nossa Avó Dica. O
rapaz de fala fina! ................................................................ 113
Capítulo 17 – Onde o memorialista, após algumas divagações,
retorna finalmente a Monlevade. Ah, que falta faz um menino de
recados! ................................................................................ 117
Capítulo 18 – Diz-se da Vila Tanque. Explica-se como um garoto
fabrica um bodoque. Comenta-se também a importância dos
critérios cristãos, e por aí segue ............................................ 121
Capítulo 19 – A importância dos burros no cotidiano de Monlevade,
em particular, a do chamado burro do Geo............................. 127
Capítulo 20 – Onde se sugere possíveis origens para o nome
Tanque. Da Vila Tanque ....................................................... 131
Capítulo 21 – Onde se diz a verdade sobre o nome Tanque . 137
Capítulo 22 – Onde se volta a dar mais informações sobre a Vila
Tanque, mas incidentalmente diz-se do Bar Central da Praça do
Mercado ............................................................................... 141
Capítulo 23 – Onde se faz um passeio de Jardineira da Praça do
cinema até a Vila Tanque ..................................................... 145
Capítulo 24 – A Rua dos Cabritos e o espetáculo aéreo das
andorinhas da Vila Tanque ................................................... 149
Capítulo 25 – Os galos que despertavam a Vila Tanque. Onde
se fala do Dilsinho e da Sá Luzia ........................................ 157
Capítulo 26 – Onde se fala principalmente de uma
procissão ........................................................................ 163
Capítulo 27 – Pode-se escrever sem pensar ...................... 169
Capítulo 28 – Psicanálise caseira. Um caso de cura momentânea
na Vila Tanque ..................................................................... 175
Capítulo 29 – Onde, lembrando o poeta, se descreve uma das
casas paternas ...................................................................... 179
Capítulo 30 – Um clássico no gigante do Jacuí. Menino gosta
mesmo é de ser assistido pelo pai ......................................... 187
Capítulo 31 – Parte 1 - Onde se diz de um passeio imaginário,
talvez um sonho. Um padre, a Matriz, o Bairro Tieté, e o Bazar
Monlevade ........................................................................... 195
Capítulo 31 – Parte 2 - O segredo suposto indevassável do
confessionário. O caso do roubo da lingoteira da Belgo ............ 203
Capítulo 31 – Parte 3 - O final do passeio. A chegada triunfal ao
Bazar .................................................................................... 207
Capítulo 32 – Onde se diz da antiga chácara do Raimundo
Piriquito. Uma mercearia e o mercado municipal. O autor arriscase a imitar a arte dos japoneses ............................................ 211
Capítulo 33 – Ainda que eu ande no vale das sombras da
morte ................................................................................... 221
Capítulo 34 – Onde se fala do Colégio Batista e a educação.
Também se fala das meninas da época e dos bons modos de se
proceder... ............................................................................ 225
Capítulo 35 – O francês dos anos 50 e 60 ......................... 231
Capítulo 36 – Onde se diz de livros. O namorado ideal ......... 235
Capítulo 37 – Onde se lembra de uma pequena estante de
livros .................................................................................... 239
Capítulo 38 – Deus era um pai de família muito ............... 243
Capítulo 39 – Confirma-se que, também no comportamento
humano, somente um pingo de café no leite, é realmente café
com leite............................................................................... 251
Capítulo 40 – Parte 1 - Onde se diz do sonho do cofre da Caixa
comprado em Rio Piracicaba. O estudo de uma carroça ...... 255
Capítulo 40 – Parte 2 - Onde se continua dizendo do
sonho do cofre da Caixa comprado em Rio Piracicaba. A
caminhonete ...................................................................... 259
Capítulo 41 – Uma breve reflexão ainda sobre o cofre da
Caixa. Uma loja da Rua Caetés. Corta um metro e vinte para o
rapaz! ................................................................................... 263
Capítulo 42 – Parte A - Onde se afirma que os boiadeiros
também viviam do comércio ................................................ 267
Capítulo 42 – Parte B - Mais negociantes do ramo do faroeste.
Um duelo ao por do Sol ....................................................... 271
Capítulo 42 – Parte C - Qual menino não gostaria de ser um
boiadeiro? ............................................................................ 275
Capítulo 43 – Onde prosseguimos dizendo principalmente
sobre os boiadeiros, mas lembra-se outras fascinações dos anos
50 ........................................................................................ 279
Capítulo 44 – Onde se confirma que a morte é assunto
para adultos. A verdade sobre a morte. Uma história familiar
de assombração. Nosso pai era um contador de histórias
nato ..................................................................................... 283
Capítulo 45 – Algumas considerações sobre a velhice. A
paciência de ouvir ............................................................... 293
Capítulo 46 – Onde o nosso pai diz que o ano durava menos
que 365 dias......................................................................... 297
Capítulo 47 – A marcenaria do nosso pai. O nome do nosso tio
Gervásio veio copiado de um religioso medieval .................. 303
Capítulo 48 – Onde se diz dos três filhos que se foram. Mas a
vida seguiu adiante .............................................................. 307
Capítulo 49 – Onde se diz algumas coisas sobre o final de vida
dos nossos pais: anos 90 e início dos anos 2000 .................. 311
Capítulo 50 – Final ............................................................ 313
Bazar Monlevade
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Introdução
O Bazar Monlevade foi fechado há cerca de 50 anos para
definitivo balanço de suas intimidades e mercadorias. Não por
iniciativa do meu pai, que era o proprietário. Seus negócios iam
bem.
Na ocasião o terreno do seu comércio foi requisitado por seu
verdadeiro dono, a Belgo Mineira, e deu lugar a novos trilhos da
Vitória-a-Minas. Antes disso, era por outro caminho que sobre vagões viajavam caixotes e fardos de mercadorias que abasteciam
a região.
Por lá também eram escoados parte dos produtos da própria
Belgo. O orgulho da cidade!
Na mesma época aconteceu não somente a demolição do
seu prédio, como foi dado termo final à rua de chão batido em
que, juntamente com outras lojas e casas, o sonho dos meus pais
fora construído.
Meu pai não protestou e acabou sendo recompensado com
transferência para ponto mais central também sob domínio da
Companhia. Mudou-se para a Praça do Mercado com otimismo.
Foi lá, mais próximo dos clientes, que considerou encerrado o
período inicial de sua vida de mascate e comerciante: o ciclo do
Bazar.
Meus pais levantaram as paredes dessa loja com muito esforço, imitando o poeta, tábua por tábua, tijolo por tijolo. A partir daí
foram construídas todas as nossas futuras ilusões.
Foi quando também passou a surgir uma família renascida
que prospera a cada nova geração!
Até aqui Deus tem nos abençoado!
(Cancer dicebat filis “mi fili, non debes sic
gradi; rects perge, quaeso”. Cui respondit
filius: “Pater mi, libenter tibi obsequir cupio
sed exemplo mihi: monstra quomodo...”)
O caranguejo disse ao filho: “filho, anda reto,
peço-lhe.” Responde-lhe o filho: “pai, gostaria
muito de lhe agradar. Dê-me o exemplo,
mostre-me como...”
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Capítulo 1
Onde se diz sobre as características da obra e se adverte
antecipadamente sobre suas falhas
N
ão sou um cronista da época em que o Bazar esteve aberto ao público, e nem passa pela minha
cabeça escrever um livro de informações (tão em voga nos dias
de hoje!). Mas, disfarçado em notas sobre a cultura, muito do que
vou escrever é ligado a Minas, a Monlevade, e a Vila Tanque.
Muito mais ainda às coisas dos meus pais, Jaime Raimundo
e Alice Martins. Por eles, escrevo tudo que vou escrever, tendo
como ponto de partida a triste nota de que deixaram o mundo em
anos recentes. A inevitável ausência confirma a dura realidade da
vida; eles realmente se foram... Não mais os veremos conversando, descompromissados, trocando opiniões sobre assuntos caseiros. Não adianta chorar sobre o leite já derramado. Não adianta
lastimar. Não adianta...
O que adianta, e faz andar as coisas, é refletir sobre os valores
que nos ensinaram. Nossa herança principal. Por conseqüência,
muito mais que a dor da falta, a presença deles se torna mais
intensa com o avançar dos anos que dão seqüência ao ciclo vital
a que nós, humanos, estamos sujeitos. O Bazar Monlevade simplesmente materializa essa afirmação.
Ele é muitas coisas. É o resumo fracionado da história de
uma família, de um casal, de um menino, de uma loja, de um
bairro, de uma cidade... A maior parte de suas páginas foi escrita
por uma criança que queria as coisas feitas, em algumas ocasiões,
de forma diferente. Como em historinhas do faz-de-conta. Faz de
conta que era assim…
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Jairo Martins de Souza
Aqui, confesso, não sei bem nem como, nem até onde devo ir
na condução desses escritos! Por ora, resta-me consolo que tudo
que pensar fazer pode ser traduzido em consoantes, vogais, palavras... A língua é ferramenta universal. Não nos diz o verso do
Leminski que a portuguesa é um animal de vinte e três patas,
uma centopéia com pernas amputadas que, por onde passa, vai
construindo letras e frases?
Contudo também não sei, eu e o menino escritor, se me ponho a escrever memórias enxertadas com cores autobiográficas
e pinceladas de romance. Uma quase-novela. Ou se escrevo um
relato fantástico, por exemplo, que de certa feita um leão entrou
no meu quarto e eu próprio achei normal. Ou até mesmo se vou
fazer aflorar algo do Inconsciente que restou escondido dos meus
antigos estudos de psicanálise.
Do que não tenho qualquer resquício de dúvida é que não é
meu propósito levar ao prelo um livro com jeito de didático. Não
sou daqueles que...
Salvo pequenas exceções, facilmente justificadas por ser marido de uma física-engenheira. Uma professora. Entre outras coisas, ambos andamos buscando respostas na física quântica não
explicadas pela religião. Ou vice-versa. Mas isso não inclui discriminar no pé da folha que, nessa ou naquela frase, a concordância
ficou assim ou assado, conforme aprovado por esse ou aquele
gramático. Nem é meu forte. Quanto ao resto, repito, não sei muito bem como esses escritos, e a minha vida de escritor devem
seguir. Tal hesitação deverá perseguir-me até o final…
Com um detalhe técnico que esclareço por meio de palavras
citadas por Barthes (modificadas para atender os meus propósitos): “consegui eliminar a pontuação, o verso é um todo, uma
palavra nova jamais ouvida; quem pontua tem necessidade de
muletas, sua frase não funciona só”.
Com o que não finalizo, - pois recuperando algo da Máscara
e o Espelho de Borges -, obviamente devo recusar, e nem mesmo
nunca terei o direito de ser premiado com a Adaga que o rei terminou por ofertar ao poeta. O meu rei é quem me lê.
Assim, rogo ao leitor não ficar imbuído de muito rigor quanto
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à pontuação que utilizo, - caso venha a se deparar com ocasionais
licenças poéticas, ou pontuações inadequadas ao texto, ou idas e
vindas de tempos e conjugações verbais.
Com um ou outro equívoco perdoável, deverá haver grande
excesso de usos dos verbos lembrar, relembrar, recordar...
Então lembro que os alemães identificam os verbos de um modo
geral com o sugestivo nome de zeitwört. A palavra do tempo. Aqui
a ser vastamente utilizada nos seus tempos pretéritos, nada diferente
do que deveria ser esperado para um livro que tem como meta a
lembrança de fatos passados.
Por fim, que não tenham também maior rigor quanto a análises críticas. Como em outras faces da minha vida, sem mãos
firmes, esse texto deverá sair muitas vezes do meu controle. Aqui
o menino escritor tem mais força que o adulto que com ele segue
escrevendo, personagens reais misturam-se entre si e tornam-se
fictícios, e por aí vai…
Escrever sobre a vida... Jorge Amado, certa ocasião, disse à
esposa que não assinava Amado, mas Gattai: ‘Zélia, escreva o
livro que me dissestes querer escrever. Você tem a história da sua
infância totalmente no seu coco’.
Tomei o conselho de Amado.
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Capítulo 2
Aqui o autor por polidez, mas de forma equivocada, se
apresenta formalmente ao leitor
F
osse sensato, a ponto de seguir regra básica do
trabalho de escritor principiante, deveria ter combinado a escrita de alguma referência pessoal sobre minha vida
fora da literatura. Esquecendo a timidez da qual sou portador,
poderia inclusive permitir a inserção de alguns floreios adicionais.
Faz parte. Com isso, talvez tivesse maior chance de obter de imediato a sua atenção. O responsável seria um terceiro de respeito
e reputação imaculada, preferencialmente um crítico de arte de
uma publicação conhecida, e que, antecipadamente, gastara algumas horas lendo os rascunhos que fiz. Por exemplo, com sua opinião
colocada em jornal de boa tiragem, em coluna de cultura de uma
página do meio, e que antecedesse ao lançamento da obra. Uma
carta de apresentação! Com esse homem seriam quebradas muitas
barreiras.
Falta-me o tal profissional! Nada me resta senão alinhavar
meu próprio cartão de visitas. Começando pelo princípio, não
me agrada inverter a ordem natural das coisas, pois a verdade
é que logrei caminhar, já de há muito era passada a hora, com
as perninhas magras empurradas por corrente de águas de um
regato. Disseram-me, coadjuvadas por leite de égua e supervisionadas por um homem que era conhecido pelo nome de Justo. O
local foi o sítio do Onça, dele nada mais me lembro. Sobre parte
de suas antigas terras estão construídas casas da cidade de Bela
Vista de Minas.
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Jairo Martins de Souza
Foi mais ou menos assim. Aquele que vem ali é o seu Joaquim Justo. Veste terno de brim e chapéu marrom levemente encardido. Pára por alguns segundos e, franzindo as sobrancelhas,
rapidamente observa os céus. Faz tempo limpo e já curva a rua.
Amigo recente da família, tinha fama de milagreiro. Não demora
estará chegando a nossa casa. Já chegou.
Jaime! Minha mãe chamou meu pai. Seu Joaquim Justo está
aqui na varanda. Bom dia, seu Jaime, como vai de saúde? Na paz
do Senhor, seu Joaquim. De fato vou muito bem... E o senhor?
Não tanto quanto vocês, mas a vida segue melhorando... Mas
vim mesmo aqui hoje foi para falar do Jairo, seu filho. Acho que
tenho um jeito de fazê-lo andar, melhorar, ser um menino normal.
A solução é tratamento à base de leite de égua. E antecipo, se vai
ser bom para ele, deverá ser bom para o seu neto, o filho que, no
futuro, o Jairo seguramente virá a ter… mas tratemos do presente,
em tempo justo deverão vir todas as demais coisas.
Tem que dar leite de égua para ele todos os dias, que não se
falte nenhum. Depois é só levar a criatura no córrego, no córrego
do Onça. É segurar e soltar as pernas do menino no caminho da
gravidade, o resto é deixar com as águas... Daqui a alguns dias
estará comendo arroz, feijão preto e ovo, tudo em grandes volumes e quantidades. Deus o ouça, seu Joaquim. Pode crer, dona
Alice, isso é certo e eu garanto. É mais certo que 2 mais 2 é igual
a 4 (gostava desse ditado), complementou, sorrindo e sentindo-se
bem. Esse menino vai sobreviver e vai alcançar coisas que aquela
cabeça de vento jamais sonhou sonhar. Talvez possa mesmo vir a
ser um soldado. Está bom, seu Joaquim, faço tudo para fazer esse
menino andar, meu pai e minha mãe responderam quase ao mesmo tempo. Ao lado, pouco faltando para ser uma mocinha, Cormaria Costa, a nossa Maria, a tudo observava cuidadosamente.
Finalmente, estávamos todos presentes naquela varandinha
da casa da Rua Araguaia às margens do Piracicaba. Alice! Côa
um café forte para o seu Joaquim. Não esquece da broa de fubá!
O visitante sorri satisfeito. De cor parda, o sorriso e a dentadura
acompanham o movimento. Riso de gente sincera. Figura estranha era esse Joaquim, os seus olhos tinham um verde diferente,
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de bolinha de gude. Usava chapéu de boa qualidade que, raras
vezes, vi retirado da cabeça pequena. Era calvo.
Com o que, se bem que com alguma reserva, volto a falar
de mim (menos mal que não vá fazer como o agregado de Dona
Glória, o José Dias. Quem leu Dom Casmurro conhece o tipo
de escrita de homem que gosta de exageros). O fato é que tinha
rosto fino e nariz grande. Nariz de árabe. Os anos e o crescimento
assimétrico do corpo hoje amenizam um pouco o impacto. O do
meu irmão um ano mais novo também tinha a mesma característica, só que mais delgado. Quem sabe que, por força dessa e de
outras afinidades e fraquezas, fôssemos o pinhão e a cremalheira,
o martelo e o bisel, o balaio e sua tampa, a corda e a caçamba...
Meditando suavemente sobre tal revelação, reparo que outra coisa do passado vaga insistentemente pelas profundezas da
minha consciência. Sentimentos contíguos. Uma sombra remota
de menina. Meu primeiro amor! Tinha em torno de 11 anos e era
interno de colégio juvenil em Alto Jequitibá. Enquanto saía das
aulas da manhã, deparei-me com ela, estava com uma amiga
no passeio que dava acesso à portaria da instituição. Era filha
do diretor e diziam sofrer de doença grave, coisa de sangue ralo
ou sangue azul fraco, nunca soube nada daquilo: o que sabia é
que tornava mais terno o amor que sentia. Foi a primeira e única
vez que falou comigo. Aluno noviço, perguntou-me de onde era.
De Monlevade, respondi-lhe. Disse-me algo de volta, enquanto
mirava-me investigativamente com olhos que pareciam emitir luz.
De esmeraldas. Não me recordo do seu nome, talvez por recalque
inconsciente. Mas poderia ser I ou V.
Ambas tinham o mesmo sobrenome, Rocha, foram irmãs que
a sucederam nas minhas paixões.
Ela disse-me. Você parece com um artista. Qual? Perguntei. O
Juca. O Juca Chaves, foi o que confirmou, sorrindo com a boca e
o olhar. Percebi que a menina dos seus olhos brilhava mais ainda.
Ri olhando para os lados. Para disfarçar, pois a vontade mesmo
era dizer-lhe que meu coração dava saltos estranhos quando a
via. O que não significava muito, pois senti-me bem e cheio de
orgulho: nunca tinha visto o homem de quem ela dissera. Dele só
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Jairo Martins de Souza
sabia de uma coisa, um bom sinal! Dizia, em suas canções, morrer
de amor pela namorada: a tal de Anamaria ficou conhecida em
todo o Brasil!
Meses depois vim a conhecê-lo em uma tarde fria. Estava por
cair a habitual garoa que marcava as horas para os paulistanos.
Nunca faltava. São Paulo já foi uma cidade com ar romântico.
Vestindo traje negro, e chamando a atenção dos transeuntes, o
artista caminhava preguiçosamente no pacato centro comercial
da cidade. Estávamos à cata de mercadorias para comercialização no Bazar.
Aquele sujeito extravagante que vem lá da 25 de Março e que
está por subir a Porto Geral, é o Juca Chaves, nosso pai disse-me.
Do alto da Ladeira, olhei na direção indicada. Trazia um violão
às costas, parecendo um vagabundo. As famílias diziam isso dos
homens jovens que se dedicavam à arte de tocar violão nos anos
cinqüenta. Não levei essa consideração a sério, somente reparei
de longe o nariz que era destaque do rosto magro. Nariz de turco.
Um homem que meu pai conhecia, das bandas de Monlevade,
tinha um parecido. Passamos ao seu lado. Olhei-o como quem
olha casualmente e, em um átimo, reconheci a minha semelhança
com o cantor que subiu na vida romanceando a silhueta do rosto.
Que mortificação!
Aí, nesse dia, foi que o perfil do meu rosto chegou até a minha consciência. Com atraso e por linha torta. A ironia da menina de Jequitibá fez-me sentir na carne a dor de Quasímodo. Um
corcunda de Monlevade.
Décadas depois, quando por lá passava trafegando próximo,
estava reflexivo perdido em imagens ligadas ao antigo colégio
onde estudara. Minha mulher que, como sempre, conduz o carro
em nossas viagens, e que, como é do seu jeito, sobre mim tudo
quer saber, perguntou-me. Em que você está pensando? Nada.
Apenas sobre algumas coisas do tempo de criança em que morei
aqui por perto!
Permaneci calado enquanto o cenário verde e montanhoso
de Minas passava por minha janela. Já passávamos pela vista
familiar de morro de casas sem reboco em Manhuaçú (por fração
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de segundo, penso estar na pobre Bolívia), e ainda prosseguia
rebuscando calafrios. Ninguém se esquece do primeiro amor! Por
fim, olhando o perfil suave da jovem mulher sentada ao meu lado,
sem que percebesse, ainda com a mente impregnada com sentimentos ternos, tomei-a pelas mãos, e com ela fui reconduzido até
aquele tempo remoto, onde terminei de encaixar o seu corpo, e
rosto, nas vestes brancas que a menina que amei vestia.
Com o coração voltando a saltar satisfeito e sem controle,
coisa de menino que passa a conhecer o amor, a felicidade revestira todo o meu rosto. Lembro-me bem, como no conto da princesa, do sapo e do príncipe, por instante que prossegue eterno, o
fantasma de antigo patinho feio definitivamente desapareceu!
Mas em família também me chamavam gordo, porque era
magro. Jogo dos contrários. Fosse baixinho seria chamado gigante, aliás, ser magro sem regimes quando adulto significa que se foi
magro quando criança.
Para simplificar, corto etapas, relatando que, afastado pelas
dissecações de batráquios e pela nudez da medicina, acabei graduando-me como engenheiro eletricista. No dia festivo, o diploma foi recebido diretamente das mãos do governador A. Chaves,
futuro vice-presidente da república. Procurei dignificá-lo. Não ao
político, mas ao título, tal como aprendi com Kant em dia que fiz
uma leitura feliz. Kant dizia de sua busca por integridade interior,
e da admiração que tinha pela beleza das estrelas que nos vigiam
dos céus. Desafio que continuo perseguindo sem sucesso, não
obstante ciente que poucos conseguem tal distinção.
Ao buscar tal inalcançável medalha, exponho, a bem da verdade, nunca ter sonhado ser, metaforicamente, - pois por metáforas também deverá ser conduzida essa obra -, capitão de grande
submarino, ou soldado merecedor da cruz de ferro por bravura
em combate... Pois esse é modo de vida para outros, não para
mim!
O que não significou empecilho, pois a limitada engenharia
elétrica que pratiquei por décadas, ajudou-me a entender as coisas complexas do mundo que vi desenvolver a partir da década
de 50. Nela tudo mudou! O que desconhecia é que, naqueles
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Jairo Martins de Souza
mesmos anos, a escrita já tinha tomado conta da minha alma.
Começou simples como continua sendo. No Jardim da Infância
com o batatinha quando nasce, o fui no tororó, e o atirei o pau
no gato...
Por fim, fechando aqui a tal inadequada apresentação do autor, escrevo que em família era chamado de Cusecco (é esse menino que escreverá comigo algumas histórias desse Bazar). Mas
sou Jairo. Jairo é nome que vem da bíblia, pois foi copiado, por
meus pais, do homem a quem Jesus curou a filha no livro de
Lucas. Apesar disso, minha mãe com toda sua simplicidade de
berço chamava-me Jario. Uma exceção. Ela dizia assim: Jario!...
Jario!... Vem cá, menino!...
Passaram-se anos. Hoje, já burro velho, algumas pessoas
próximas, lembrando-se dela, e imitando o seu jeito de expressar
amor, continuam a chamar-me Jario! A eles, quem primeiro responde é o filho saudoso que, dentro de mim, repousa insone, e
diz, meio confuso… Tô indo, mãe. Tô indo...
Tô indo acordar a nossa felicidade!
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Capítulo 3
Comenta-se sobre a escrita de memórias.
Dá-se um exemplo bíblico
A
experiência do mundo, dos tribunais e da
família nos ensina dos benefícios e riscos
decorrentes do ofício de exercer a atividade de escritor. Um
memorialista. O escritor memorialista olha o passado de terceiros
às vezes com chamas ainda vivas. Podem ser as de uma Família,
um Bazar, uma Cidade... Na história há registros de punição
severa. Uma delas a da esposa de Ló, sobrinho de Abraão.
Em Gênesis 19, versículo 26, ela andou olhando as cidades de
Sodoma e Gomorra que ardiam em brasas. Coisa passada.
Mas sempre atual. O profeta Moisés não explicou bem, mas
provavelmente a moça virou a cabeça por curiosidade de mulher.
Como diria minha mãe, o castigo veio a galope: a moça transformou-se, num piscar de olhos, em uma delicada estátua de sal
(respiciensque uxor eis post se versa est in statuam salis).
Uma metáfora. A palavra de Deus nos ensina muitas coisas
por meio de metáforas! Uma delas, a do fiat lux. Um simples estalar de dedos, ou o riscar de um fósforo, não pode ter os efeitos do
big-bang. Momento único em que, alguns físicos famosos dizem,
as coisas aconteceram mais rápido do que a própria velocidade
da luz. Uma singularidade. Nele, no fiat-lux, as quatro grandes
forças da natureza se divorciaram!
Alguns dizem que quem gosta de se esconder, ou tornar difícil, ou fácil o entendimento da verdade, conta histórias por meio
de parábolas. Faz rodeios. Usa metáforas! O político faz assim.
Deus criou o mundo, sabemos ser verdade, mas poderia ter nos
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Jairo Martins de Souza
explicado com mais detalhes. Sem o uso de tantas delas.
Não estamos introduzindo memórias do criador, do Pai e do
Filho, mas é fácil aproveitar, e prosseguir o texto fazendo reclamações (a arte do filho!). Basta lembrar do Éden, e de Adão. Ah, os
homens criam e continuando desenvolvendo histórias para afastar os medos e os perigos das coisas que não compreendem.
Fica melhor assim! Fiat Lux. O céu. O ar. A água. A terra. O
Éden. Adão e, finalmente, o pecado. Eva. Missão cumprida. Pois
o resto deixou por conta da evolução das espécies, conforme nos
ensinou o inglês Darwin. Darwin disse-nos que o tal milagre do Pai
não era de fato milagre. Na verdade somos resultados de incríveis
mutações randômicas, por séculos e séculos. Com resíduo incompreensível, pois o toque divino fica por conta da consciência. A
realidade pensante.
Longe de tudo isso, a pequena, parcial, e fantasiosa história dos meus pais é simples como a de Ló. Não diz nada sobre
cálculo diferencial, criptografia, mecânica quântica... É acessível
a todos. Dela faz parte uma pequena genealogia, muitos filhos,
herança, poesia, amor, pecado e redenção.
Disse sobre isso porque o leitor encontrará nesses escritos
muitas referências a textos bíblicos, e às palavras de Jesus. Ele fez
parte do cotidiano da minha infância. Com vantagens. A despeito
de alguns xingos e críticas de falsos religiosos inconformados, não
há direitos autorais a pagar, nem inoportunos oficiais de justiça.
A escola ensina que todo mundo sempre escreve algo que ouviu
falar de alguém importante, e que escutou a história de um outro.
Foi assim que os chineses copiaram a lanterna dos japoneses,
modificando-a. Na ciência, Einstein ampliou a visão de Newton
que por sua vez copiou muitas coisas de Galileu, que copiou muitas coisas de Aristóteles e, por aí, caminha a humanidade e a
literatura.
Mas, voltando ao caso da mulher que a bíblia diz, entendi
facilmente o recado divino. A sua metáfora. Olharei para trás, não
da forma que ela fez. Não voltarei os olhos a um pecado que se
expira por punição de um anjo.
Ao mesmo tempo, tendo vivos na cabeça os versos de um
Bazar Monlevade
23
homem que, já muito velho, dizia saber que em breve iria morrer.
Desconsolado, conclui que deveria ter comido mais doce, chocolate, viajado mais, perdoado mais…
Por fim, o risco que corro é de simplesmente levar sal no rabo,
coisa de criança... De espingardinha de sal. Enfim, estão lembrados, era modo de falar da terra de todos os membros da família
da qual o Bazar Monlevade, um dia, fez parte.
Bazar Monlevade
25
Capítulo 4
Há melhor forma de se escrever memórias. Nestes escritos
pode ser que um dia não suceda ao outro
A
lém da busca de cartão de visita por meio de pessoa credenciada, aprendi também que o bom senso e a prudência devem guiar a vida de iniciante na escrita. Não
obtive o primeiro recurso. Conto com os demais. Além deles, para
ajudar e melhor qualificar parte desses escritos, teria sido indispensável que tivesse entrevistado meus pais em vida, tal como se
faz com biografias autorizadas. Isso poderia trazer maior autenticidade ao texto. Com relativa tristeza, constato que deixei perder
essa oportunidade que, certamente, far-me-ia evitar um ou outro
claro erro de descrição, de tempo e de lugar.
Ou mesmo ter feito como o jovem Adso que escreveu, já velho, na pena de Umberto Eco, sobre fatos que, como aprendiz,
anotara com precisão de investigador. Foi quando de suas andanças com Guilherme de Baskerville, e o assunto era, recorde-se
quem o leu, os crimes ocorridos em uma misteriosa Abadia.
Nada anotava quando criança. Na falta de mais essa ajuda,
consola-me pensar que há também alguma imprecisão quanto
ao fato e quanto ao tempo nos escritos de pessoas de biografias
reconhecidas.
Por exemplo, o próprio Freud, em alguns momentos, se confundiu ao informar sobre o século em que tratou a jovem de um
dos seus casos clínicos mais conhecidos. O caso Dora. Final dos
mil e oitocentos ou início dos novecentos?
Aqui as coisas deverão, às vezes, ser até mais vagas, arriscome a dizer, trata-se de biografia literária e parte de sua literatura
26
Jairo Martins de Souza
dispensa comprovações de documentos históricos. Não pretendo
alterar nem discutir a idéia do que foi o Bazar e suas coisas. E nem
abordar com detalhes temas polêmicos como o do adultério (que
foi tema agudo em nossa casa). Melhor deixá-lo restrito a Machado que, literariamente, com todo o seu estilo e elegância, fez tão
bem em Dom Casmurro ( ou para a ciência, ou a biologia, ou o
mal estar da sociedade que o próprio Freud comentou).
Quando descrito pelo menino Cusecco, o Bazar deixa de ser
do meu mundo, e muda para outro país. O de Alice... Que é
conforme já disse, de difícil qualificação literária. Antes assim. O
leitor pode enquadrá-la onde melhor lhe aprouver: garanto que
não incorrerá em erro, pois o próprio modo da escrita dá graus
de liberdade para ser encaixado de acordo com a avaliação de
cada um.
Nisso o Bazar não mudou, o freguês continua sempre tendo
razão.
No seu Quase Memória (Quase-Romance), Carlos Heitor
Cony chama seu pai, ao longo de todo o texto, de o pai. Aqui não
há tal linearidade, tudo aparece ora no singular ora no plural, ora
de uma outra forma qualquer. Direi nosso pai... Meu pai, nosso
pai, meu pai, Jaime Raimundo... E assim por diante. Melhor teria
sido se a ele tivesse perguntado na entrevista não feita que citei.
Pai, como é que você quer que eu o chame?
Alguns derradeiros avisos. Não deverei usar orações sem sujeito, nem dizer secamente, fulano era assim, sicrano era assado.
As fantasias são absolutamente necessárias, tanto para os sonhos
quanto para tudo, desde que eivadas com pingos de verdade.
Não direi a você que o nosso cachorro Benzinho tinha os mesmos
5 metros que Christian Jacq diz ter tido Matador, o leão que protegia o faraó Ramsés.
Uma colcha de retalhos. Nos moldes que a minha irmã mais
nova ainda faz, que minha mãe gostava de fazer, que minha avó a
ensinou, que a minha bisavó... Sem esquecer que aqui a cronologia não seguirá a linha do tempo. Ele é psicológico. Viajará dentro do
texto para frente e para trás. Como um elástico. Um iôiô. Não somos
Homo psycologicus?
Bazar Monlevade
27
Memórias... As pessoas estão cansadas de achar esse tipo de
narrativa em todas as bibliotecas de todo o mundo. Algumas inesquecíveis: Treblinka. Riga. Dachau. Auschwitz. Sobibor... Feitas pelos
judeus para que todos soubessem das atrocidades as quais os nazistas foram capazes. Não queriam deixar que ficasse rasgada essa triste
página da história do mundo.
Cá nesses escritos devo fazer o contrário. Pois, com as graças
dos céus, sigo envelhecendo e criando o juízo que, Osvaldo, o bobo
da corte de Rei Lear aconselhou. O velho deve ter esse predicado.
Vou abolir as folhas que não interessam ao meu mundo de escritor.
Aliás, procedendo assim não devo correr o risco de tomar o tal sal no
rabo que escrevi.
Com essa filosofia, tudo deve ficar fácil e relaxado. Basta começar com letra maiúscula no princípio, um ponto final no encerramento, e algumas idéias no meio (essa idéia é de Neruda).
Pronto. Está construída uma frase! As minhas idas e vindas (exceto algumas necessárias flutuações) terão o seu limite ao redor dos
anos 60 do século que passou.
Com o que programo e antecipo uma breve visita ao Bazar
dos anos 50. Casa de madeira localizada em rua de terra. Isolada. Caixote alto sem cor e desprovido de beleza arquitetônica.
Dava as costas para um barranco de tamanho médio. Na sua
frente, um garoto molha a poeira da rua com água e mangueira
de borracha vermelha das de parede grossa. Ao finalizar, deverá
ser premiado com um brinde da loja ou até mesmo alguns tostões. Lá em baixo, no pé do morro, o Rio Piracicaba caminha
vagaroso como quem levanta com preguiça. Mais acima, a Usina
da Belgo dá sinais de vida com o escape de poeira café-com-leite
de sua chaminé maior.
Considere que a loja do meu pai esteja, devagarzinho, abrindo
as portas para um dia normal de trabalho. A princípio, com a abertura de uma das suas quatro frontais, cada uma tem duas bandeiras.
Pequenas. Mas somente uma delas já propicia espaço suficiente para
a entrada de fregueses mais apressados, e supostamente urgentes de
atendimento, um a um.
No seu interior, um caixeiro da seção de tecidos já tira cortes
28
Jairo Martins de Souza
de vestidos para uma antiga cliente e suas filhas. É rapaz treinado
e escolhido a dedo, pois procede ser habilidoso, desses, poucos
ainda existem. Com uma tesoura bem afiada à mão, prossegue
o seu dever e corta, quase ao mesmo tempo, um metro e vinte
para rapaz que aguardava ansioso. O moço a ele havia solicitado
quantidade x de metros, o x é função de o experiente caixeiro determinar, enfim, metragem suficiente para a feitura de uma calça
em tecido de brim marrom.
Na faixa de 30 anos, o Osvaldo é antigo funcionário, traz o
lápis de fazer contas sempre preso à orelha direita. Dá gosto vê-lo
trabalhar. Hoje é caixeiro, há certas previsões que não falham,
amanhã deverá ser futuro empresário de um outro bazar.
Deixemo-lo sossegado continuar o seu trabalho. Voltaremos
mais tarde ao estabelecimento. Agora temos que dar andamento às nossas obrigações literárias, mesmo que persistam ainda
dúvidas… Comuns tanto na vida quanto na literatura, senão recordemos Raskólholnikov em Crime e Castigo: devo ou não me
entregar à polícia de São Petersburgo? Para evitar constrangimentos, nada posso prosseguir dizendo quanto ao rapaz russo, mas,
quanto a mim, tenho outras dificuldades.
Tal como a de ser porta-voz de toda uma família, a despeito
de ter razões consistentes para representar a todos. Por ter sido
engenheiro posso ser eu mesmo, e substituir a todos os outros
também engenheiros. Assim como a todos homens, e aos nossos
jovens e velhos. Aos primeiros, os homens, porque sou um deles.
Aos jovens, porque já fui também um moço. Aos velhos, porque
já estou a caminho e, em tempo, rezo aos céus que me poupe de
suas doenças.
Mais ainda, posso substituir todo mundo no quesito professor. Hoje, mesmo no ensino de jardim da infância, há professor
homem e mulher. As mulheres da família também podem ser representadas por mim, sem maiores restrições, pois, como homem
amadurecido, tenho muitas de suas características.
Os franceses chamam saudade com o peculiar nome de mal
du pays (mal do país): a mesma que me invade quando, aos poucos, retomo a escrita desse texto. É o que me faz movimentar,
Bazar Monlevade
29
lembrando que o faço como um relógio de parede que oscila, e
retorna sempre para o mesmo lugar. Para o Bazar Monlevade, e
tudo, e todas as terras que o cercaram.
Finalmente tivemos de volta as primeiras linhas dessas memórias, quando disse que muitos capítulos desse livro foram escritos por uma criança.
Foi o jeito que pensei angariar a confiança antecipada do
leitor!
Bazar Monlevade
31
Capítulo 5
Parte 1 - Onde, ainda com alguns resquícios das coisas do
autor, se diz algo do Brasil e de Monlevade a partir dos
anos trinta do século passado
U
m belo dia o poeta Bilac apareceu na minha vida
e aconselhou, ‘quem passou a vida em brancas
nuvens...’ . Demorou a fazer efeitos práticos. Já passado dos cinqüenta, mas ainda noviço no estudo da arte literária, graduei-me
em Letras. Língua Portuguesa.
É nesse estado da arte, e de espírito, que passo a divagar
sobre o que ocorreu em parte do tempo que meus pais viveram
suas vidas. Faz parte da minha cobiça de escritor. A qual justifico,
alegando que não posso seguir sem descrever a paisagem da civilização que os viu crescer. Com isso penso também estabelecer
uma linha do tempo. Para tanto, e tendo em conta que o homem
é um animal político, começo dizendo que um gaúcho teve bastante influência nos negócios do Bazar.
Pois Getúlio Vargas assumiu o poder quando nosso pai tinha
meros catorze anos. Em 1930. O diabo, nas vestes e na pele de
um político, às vezes não tem saída e faz coisas boas. Passa a ser
citado porque foi um dos incentivadores da formação da Belgo
Mineira, empresa fundamental na formação dos valores e acervos
das coisas de Monlevade.
Antes disso, ele tinha recebido de José Bonifácio, Presidente
do Estado das Minas Gerais, um conselho igual ao que o bisavô
do mesmo Bonifácio dera ao então rapaz Dom Pedro. O príncipe
hesitava em libertar o Brasil. Majestade (lembrar que era um súdito que se dirigia ao seu príncipe): declare a independência antes
32
Jairo Martins de Souza
que o povo a declare.
Faça a revolução antes do povo. O recado tinha funcionado para Pedro II, e funcionou para Getúlio. O caudilho gaúcho
entendeu a sutileza da mensagem e decidiu fazer a revolução de
30. Fez as contas com seus aliados e seguiu avante com a tropa
gaúcha montada em trem de ferro a vapor. Destino final: Rio de
Janeiro. A antiga capital federal. Deu tudo certo. Na revolução de
30, Getúlio comportou-se como deve se comportar um elemento
formado pelo exército do Duque de Caxias. Esse militar, mesmo
não chegando às alturas de um Napoleão, terá aqui algumas linhas a mais. Com isso revelo indiretamente parcela de importância psicológica da caserna na minha formação. Fora nomeado
por Pedro II e, para chegar ao título máximo de duque, passou
somente pelo inicial de barão e o intermediário de conde. Não foi
nem visconde nem marquês.
Acredite quem quiser, Monlevade já teve monarquia, rei e
rainha. O tal duque está aqui também porque aparecia com regularidade nos cadernos escolares dos anos 50. Vestia uniforme
dos Dragões da Independência e no seu peito não cabiam mais
medalhas, condecorações e brasões. Justificadamente. A história
diz que, certa oportunidade andou conclamando aos soldados
nacionais e mercenários: “brasileiros, sigam-me os que forem
brasileiros”. Foi na passagem do Itororó. Acabou sendo senador
vitalício nos tempos em que o império brasileiro massacrava o
esfarrapado exército paraguaio.
O hábito faz o monge. Com a mão direita à altura do coração,
visualizo mentalmente o que diz a bandeira da nossa terra natal:
‘Ordem e Progresso’. Fui soldado do 12 RI. O Doze. Lá aprendi
a dureza da vida de um militar sem patente: a lembrança do seu
feijão sulfuroso e rancho fedido fazem-me recordar a maçã preservada que o capitão Blackthorne, em Xogum, cuidadosamente
degustava para evitar o escorbuto nos mares do Japão.
Linda bandeira nacional, a do Brasil. Suas cores são cheias de
significados: céu, terra, mar... Compare-se com outras mais antigas,
onde as cores não mudam, mas dizem, de acordo com a poética
metrificada dos clássicos, que a guerra é o belo tecido dos homens,
Bazar Monlevade
33
e o sangue é a água que limpa a espada. Realmente nossos bosques
têm mais vida…
Com o que volto à vida de Vargas que, em fins do século
dezenove, andou estudando na Escola de Minas em Ouro Preto.
De lá saiu em oitocentos e noventa e quatro. A razão foi a morte
de um estudante paulista em confusão a que esteve presente não
somente ele, Getúlio, mas também dois dos seus irmãos.
Foi do jeito que foi. Nada o impediu de seguir adiante com
seus projetos. Nem os nossos. Pois sigo dizendo que nosso pai
nasceu em 16; e nossa mãe, em 23. Os pilares da família. E que,
de volta ao outro extremo, foi em 1954 que tudo terminou para
Getúlio em um austero quarto no palácio do Catete, sede do
poder executivo da antiga capital federal. Vi com meus próprios
olhos que os móveis eram escuros em estilo conservador; decoração adequada e condizente com os hábitos do privilegiado casal que dormia digerindo os segredos da nação naqueles antigos
aposentos presidenciais.
Próximo ao seu cadáver, repousava também a carta em que
comunicava à nação a decisão que tomara de se matar. A famosa carta-testamento. No quarto ao lado, dormia a filha Alzira
sonhando os sonhos de uma princesa de um Brasil republicano.
Já o filho Lutero, provavelmente encontrava-se fora do palácio,
talvez usufruindo as delícias das inocentes noites cariocas daqueles dias.
O mundo permanecia ainda sob os rescaldos da Segunda
Grande Guerra, e, enquanto isso, nossos pais criavam a estratégia
de possuir duas moradias: uma em João Monlevade e outra em
Belo Horizonte. Na primeira, já consolidada, e onde lhes nasceram todos os filhos, nosso pai se hospedaria como comerciante.
Também essa seria a habitação dos dois filhos mais velhos. Para
esses rapazes, o plano era que fossem apanhando prática que os
ajudaria a seguir em frente com os negócios do Bazar. Na segunda residência, nossa mãe ficaria atendendo totalmente os filhos
mais jovens para que obtivessem educação e estudos de melhor
qualidade. Tinha como braço direito a nossa Maria. Por sua vez,
Jaime Raimundo, cumprindo seu papel de comerciante, marido
34
Jairo Martins de Souza
e pai, faria visitas constantes ao comércio de Belo Horizonte, à
mulher e aos filhos menores.
Dando um pequeno salto no tempo, escrevo que João Goulart foi empossado em 61. Um populista. Era outro gaúcho apreciado por nosso pai. Não sei bem as razões, quem sabe fosse por
comprar muitos calçados para o Bazar nas indústrias calçadistas
do Rio Grande do Sul, ou talvez por gostar dos churrascos que
faziam os gaúchos.
Correto. Nosso pai sempre foi um bom comensal e Goulart
foi substituído por Jânio Quadros. Tudo acima acontecia quando
me iniciava nas trapalhadas de fazer composições escolares. Na
mesma ocasião, e dentro da mesma disciplina, na alta esfera política da república, dava-se continuidade ao hábito de escrever cartas para a nação. Ah, os homens e seus eternos espelhos! Alguns
poucos anos após sua morte, Getúlio teve como seguidor o homem da vassoura, Jânio Quadros. Um tipo de Sá Luzia, moradora de Monlevade, que o leitor conhecerá em capítulo posterior.
Em 1960, esse senhor andou bradando alto na praça de estação ferroviária localizada em zona central de Belo Horizonte.
Junto com ele nosso pai gritava: vamos varrer a corrupção desse
país! Impressionou-me pelo poder de sua retórica. Recordo que,
no tal comício, todos nós carregávamos vassouras. O candidato a presidente teve êxito, pelo menos nos propósitos de chegar
até a recém inaugurada Brasília onde, com as facilidades de ser
também um professor de português, copiou a idéia de escrever
cartas. Em 1961. Não as com textos que davam pistas de sumiço
da vida, mas da idéia de exercício da presidência sob regime de
plenos poderes: uma frustrada tentativa de golpe de estado.
Foi o que disseram os historiadores poucos anos depois. Mais
uma decepção para o povo brasileiro!
Bazar Monlevade
35
Capítulo 5
Parte 2 - Onde o autor prossegue com mais algumas
contextualizações e diz superficialmente sobre Vargas,
imigrantes, emigrantes e, estranhamente, sobre a depressão
de algumas pessoas
M
uitos homens fogem de alguma forma da vida
comum por cair em depressão. Por causas variadas. Por cair na política, como Getúlio, que via o seu prestígio
desmoronar. Por fracasso de cartas mal feitas, como J. Quadros.
Por ver brasileiros paulistas matarem e serem mortos por brasileiros usando aviões que tinha ajudado a desenvolver. Foi o caso de
Santos Dumont que, frustrado, em 1932, matou-se com um tiro
na sua casa da bela praia de Guarujá.
A depressão também mostrou suas faces em nossa família.
Em década recente, e por circunstância da vida, andei perdendo
contato com a rotina de dois dos meus filhos que cresciam distraídos dentro de suas inocências. Caso leve.
O de Vargas foi grave. Já disse ser aqui figura política de interesse, pois deu grande impulso à vida de Monlevade. Quando de
sua depressão e morte, todo o Brasil operário chorou muito. As
fotos da época não deixam nenhuma margem de dúvida. Anos
antes o jornalista David Nasser, em O Cruzeiro, dizia ter sido ele
o grande ausente no julgamento de Nuremberg. Getúlio era simpatizante do nazismo.
Em Monlevade, nosso pai também ficou sabendo da morte
do presidente por meio de transmissão da rádio Mayrink Veiga do
Rio de Janeiro. Nessa ocasião o Cusecco que vos escreve tinha 6
anos, e já freqüentava jardim de infância. Nosso pai, 38. Não vi
36
Jairo Martins de Souza
ninguém chorar, nem mesmo meu pai. Falo do que ouvi no futuro. Como todos os seus patrícios, deve ter ficado muito triste, e
pode ser que também tenha chorado. Quem sabe por ter visto ao
seu lado outras pessoas chorarem caminhando sem rumo pelas
ruas da Vila Tanque. Foram dias em que seus filhos mais velhos
já faziam traquinagens no sítio conhecido como “do Onça”: o
mesmo em que, por milagre de águas, disseram-me ter aprendido
a caminhar. O tal córrego foi meu pequeno Jordão!
Isso posto, sigo viajando diretamente para a casa do nosso
tio Ninico. Não faz mal reforçar que estamos digerindo algumas
situações. O tio Ninico, do lado paterno, exercia a profissão de
sapateiro e era estabelecido comercialmente em sua própria residência. Circunstância comum naqueles dias. Comparecerá algumas vezes nesses escritos por meio de interessantes diálogos que
travava com nosso pai. Morava também em Monlevade, próximo
de onde foi construído o gigante do Jacuí: o estádio local. Meio
alourado, tinha estatura mediana, vestia roupas baratas e era um
magro de boa aparência. Levava a sério os mínimos detalhes da
vida dos filhos, colocando sempre quando necessário as suas tiras de couro em ação. Aliás, lembro que essa é atitude de pai
de família que se preocupa com os seus e volta os olhos para o
futuro. Pois ação é palavra prática e traz no seu bojo o conceito
de mudança, enfim, por baixo dessa frase simples fica embutida
a derrota, através dos séculos, das ilusões da escola do grego Parmênides.
Mais ainda, posta no plural, ações, faz-me lembrar outras
disciplinadoras, não da casa do meu tio, mas da economia mundial do pós-guerra. Aqui cabe anotar que, na ocasião, os Estados
Unidos andaram dando as cartas sobre as coisas de Monlevade.
Lá John Kenneth Galbraith já era homem influente e, décadas
depois, enriqueceria a minha vida com a edição do seu belíssimo
livro, a Era da Incerteza. Nele fui apresentado ao primeiro economista, o escocês Adam Smith.
A Coca-cola, a Texaco, a Esso, a PanAm, a GE, a Colgatepalmolive, Hollywood, o Pall Mall, a GM... consolidavam a força
do Império do século vinte. Com ele, ninguém da minha família
Bazar Monlevade
37
sabia, o Brasil e o Bazar se moviam nos anos 50, como também,
por São Paulo afora, os japoneses mostravam-se exímios plantadores de tomate. Tais colonos, outrora convocados por Pedro II,
saíam dos miseráveis anos de emigração passados nos cafezais
paulistas. Gente como essa andou empurrando o Brasil!
Inclusive no nordeste, onde o Sol antecipa calor e fogo do dia
do juízo final, a cultura e o trabalho da nação prosseguiam dando
o ar de sua graça em tempos modernos. Tudo tinha começado
com a rebeldia de Oswald de Andrade, e seus amigos, na famosa
Semana da Arte de 1922. Tupi or not Tupi. Na caatinga, terra
sem nuvens, cerca de três décadas depois, um retirante chamado
Severino, filho de Zacarias e Maria, estava sendo belissimamente distinguido por João Cabral de Melo Neto. Primo de Manoel
Bandeira, e com nome de família burguesa, Cabral era um poeta diplomata muito apreciado pela clara engenharia aplicada na
feitura dos seus versos. Tinha como base de sua poética certa
psicologia da composição. Muito apreciada.
No entanto, qual seria o retirante de quem dizíamos? Lembrar
que, segundo os versos do poema “ mais cinco havia com o nome
de Severino, filhos de tantas Marias”... Não se trata de resposta
fácil! Pode-se vê-la cuidadosamente preparada no andamento da
mesma obra: Morte e Vida Severina.
Por outro lado, não somente nós, como também todos os
demais brasileiros, tínhamos melhores entendimentos do mundo.
Com a tradução do latim tornada obrigatória nos ritos católicos,
agora sabíamos o que o padre queria efetivamente dizer quando
falava dominus obiscus.
Em tempo, esse sacerdote, que rezava no palanque armado
na praça da nossa vila, será melhor conhecido no capítulo 31,
mais adiante, onde faz uma caminhada pela saúde, saindo do
Bairro Tieté até o Bazar Monlevade...
Bazar Monlevade
39
Capítulo 5
Parte 3 - Diz-se que Ouro Preto influenciou muito a família de Monlevade
N
osso pai veio ao mundo um ano antes dos vermelhos assassinarem o Czar nas terras geladas da
Rússia. Para os russos nascia o Comunismo. Em 1917. Ah, Hegel
e a força de suas contradições dialéticas! O socialismo soviético
não demorou 80 anos para desabar, obedecendo ao que dissera
o alemão em seus escritos famosos.
Também em 17 surgia algo novo para os monlevadenses. A
palavra esperança. Uma das poucas coisas que escapam da maldição do filósofo germânico.
A Companhia Siderúrgica Mineira nasceu nas repúblicas estudantis da Escola de Minas. O estudo da engenharia já funcionava a pleno vapor na, desde então, belíssima Ouro Preto. Hoje
eleita patrimônio mundial, seus tesouros são compartilhados com
toda a sociedade do planeta.
Desde o ponto alto de sua entrada, encanta pelo visual estonteante. Obra de arte colonial encravada entre montanhas nuas
de árvores e repleta de minérios. Com um detalhe. Pertence mais
a seus estudantes do que ao resto da cidade e ao mundo. Por ela
nutro um carinho especial, pois abrigou e tem abrigado muito
bem dois dos meus filhos. Quando menino, quantas vezes pensei que o seu Tiradentes fosse Jesus Cristo! Estão lembrados que
Vila Rica teve também o seu esquartejado pelos portugueses? Os
escritos dizem que foi decepado em cabeça, corpo e membros,
e com suas tripas e partes menores espalhadas naqueles antigos
postes com luz a óleos vegetais.
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Jairo Martins de Souza
Repousa hoje com especial deferência no Museu da Inconfidência na praça famosa para a qual empresta o nome. Mal sabe
que, mais tarde, veio ajudar a proclamar várias outras repúblicas
de estudantes moldadas da forma como Montesquieu idealizou
com seu Espírito das Leis.
Mas voltemos à Monlevade de 1917. A empresa que lá acabava de nascer, tornar-se-ia, quando adulta, a mamãe belgo para
o povo da região. Já na Rússia, no outro lado do mundo, e conforme já dissemos de outra forma, os comunistas iniciavam ações
para o nascimento da futura cortina de ferro.
Tudo aconteceu nos 30 anos que Stalin esteve por lá dando
as cartas. Vi o início dos capítulos finais nas décadas de 50 e 60, o
seu canto do cisne, que quase chegou a ponto extremo durante o
apocalíptico episódio Kruschev, Kennedy e a ilha de Cuba. Extenuados, a tal cortina e o muro acabaram de cair em 91.
Agora é o menino Cusecco quem volta à cena, e é quem diz,
achava assustador o nome do Premier soviético, o Kruschev. Mas
Nikita é nome de menino ou de menina? Em 53, tinha sucedido
a Stalin que morrera.
Já rapazinho, gostava também da capa dos livros vermelhos
do Das Capital. Certa oportunidade fui advertido por nosso pai.
Menino! Não ande com livros de cor vermelha, pois sei, podem
chamar a atenção das autoridades militares. Sim, pai. Na verdade, não os li, e não se preocupe com o Dops: tenho medo dos
McCarthy. Não vou fazer como o Chaplin fez, pai...
Anos depois, já adulto, voltei ao assunto, e consegui convencê-lo que nem tudo que lá estava escrito era ruim. Marx foi mal
interpretado. Acabamos por chegar a um acordo: não são somente
os comunistas que comem criancinhas por aí!
É aqui que lembro a mim mesmo estar fazendo certas contextualizações selecionadas. Assim reescrevo, conforme a história
da cidade diz, que tudo teve origem em 1818 com a edificação
do solar Monlevade.
O proprietário chegara ao Brasil com 28 anos. Tinha nome
comprido: Jean Antoine Felix Dissendes Monlevade, e era geólogo a serviço do governo francês. Aportara no Rio de Janeiro
Bazar Monlevade
41
dez anos depois da chegada de Dom João VI que fugira, com
sua corte, de Bonaparte e seus canhões. Após algumas andanças,
apaixonou-se pela região do Arraial de São Miguel do Rio Piracicaba. Fez fortuna.
A futura João Monlevade nasceu no terreno de sua fazenda.
Estivéssemos no Brasil Colônia, ou caso fôssemos portugueses
dos dias de hoje, diríamos Freguesia de João Monlevade, enfim,
bem mais ao gosto e ao jeito do nosso pai e do Bazar.
O Arraial, desde 1911, tinha Rio Piracicaba como distritosede. Ligação que durou 37 anos, pois, coincidentemente, em
1948, o mesmo ano em que nasci, o governo estadual autorizou
a sua desanexação.
Tinha passado para a categoria administrativa de Distrito.
Com direito até mesmo a Cartório de Registro Civil. Mais tarde,
em 1964, tornou-se município autônomo.
Cá entre nós, confesso que a tentativa de prosseguir escrevendo sobre tal assunto faz-me sentir o pulso fraco e, por falta de
estudo e conhecimento sobre a matéria, temo que o texto saia do
razoável e se torne autista... Faltam-me tempo para pesquisa e
recursos práticos, nessa altura do texto, não adianta contar farofa
e dizer como Rimbaud, que as vogais e as palavras têm cores, ou
como Chomsky, que, no fundo, tudo na escrita tem significação
fixa transformada, e que se pode escrever uma coisa ou outra, e
que…
Por tudo isso, abruptamente, dou por encerrado o breve resumo da religião, da política e da escola do início dos anos 20
até o fim dos anos 60. Puro reducionismo. Pois foi somente para
contextualizar e indicar, em alguns aspectos, o clima mundial e as
ideologias em que o homem de Monlevade foi criado.
Mais tarde alguém poderá pensar, como foi influenciado esse
sujeito que escreve pelos fatores externos de suas relações! Ao
que respondo: bem observado, e continuo aceitando, calado, a
nota a que se referiu o leitor com a precisão de quem está atento
ao que aqui foi posto. No entanto, para não descartar a oportunidade, acrescento que tudo isso deverá estar por trás do que
passaremos a descrever.
42
Jairo Martins de Souza
Muito mais se espera do que poderemos vir a dizer sobre as
vidas passadas no Bazar…
Bazar Monlevade
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Capítulo 6
Retrato do artista quando jovem. Onde se diz como era
Jaime Raimundo, o futuro fundador do Bazar
M
onlevade veio ao mundo como cidade em 1964.
Retrocedamos algumas décadas. Quantas? Não
muitas. Pelas bandas de Viçosa, à beira de uma trilha de estrada,
estava o adolescente nosso pai. É um capiau inconformado com
as deficientes condições de vida na roça daquele interior, sempre
foi.
Revisemos a data com mais vagar: 1928. Coincidentemente
o ano em que o poeta Pessoa iludiu-se por amor com a enganosa
aparência que tinha o país dos lusos. Fez uma poética brilhante,
mas não teve a lucidez de perceber que andaram montados num
verdadeiro gigante, o Brasil. Deixemo-lo de lado. Essas são águas
passadas que não movem moinho e, há pouco, dizíamos que estávamos observando o rapaz Jaime Raimundo...
Ele é magro e franzino. Corre rápido. Coloque-se uma muxiba
de laranja com resto de caldo a sua frente e poder-se-á observar
todo o seu potencial de movimentação. Sou magrelo e arranco
forte, dizia. Ou que se peça a ele para apanhar uma galinha para
abate no terreiro. Não demora podemos vê-la sendo depenada, e
com o sangue ainda rolando pelas penas que saem desentocadas
do corpo que se contorce em seus últimos estertores. Como deverão ser muitos os comensais, não demora já aparece com outra,
somente uma das mãos é suficiente para carregá-la pelas asas.
Não temos dúvidas que é veloz, no futuro andou nos dizendo,
foram estas suas palavras: corro mais rápido que um raio!
Mesmo com as abas do chapéu colocadas para baixo, podemos vê-lo e dizer, esse rapaz é ainda um menino. Mantém os
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olhos timidamente dirigidos para o chão: atitude típica de criança
criada na roça. O que não faz diferente de todos os seus irmãos.
Aliás, não custa muito dizer onde estão. Ao seu lado encontravase o Ninico, já rapaz feito. O Zeca largou mais cedo o serviço da
capina. Já estava em casa, havia poucas nuvens no céu e fazia
muito calor. Há pouco tinha ido saborear o café e a broa da mãe,
a nossa avó Dica. Tudo adoçado na rapadura.
O Oscar, mais velho, já estava na venda buscando satisfações
e alegrias em uma canequinha de cachaça. Foi-se embora desse
mundo mais cedo que todos: morreu de barriga d’água. Do João
Luiz, que é gago como o Zeca, não sei dizer bem, parece-me que
hoje nem veio nesses matos. O outro irmão, que não está aqui, é
o nosso tio Hernundes. Foi trabalhar a meia em troca de uns réis
noutro roçado de milho e deverá pernoitar em ranchos de terceiros. Nesses instantes não temos mais informações sobre os demais
integrantes da extensa família, a menor parte deles, mulheres.
Observe o leitor que não somente a partir de agora, como também em outros momentos desses escritos, Jaime Raimundo está
sempre ocupado com as questões do tempo que, dizem, começou a
ser contado com a grande explosão. Por exemplo, dentro do seu espírito observador, poderia ter pequenas rugas de preocupação quanto à perenidade dessa obra.
Que talvez possa ser encontrada daqui a certos três mil anos
em lugar remoto como o Mar Morto. Ocasião em que, algum pesquisador poderia dizer, trata-se de fragmentos da história de um
próspero comerciante que morava em um distante país chamado
Brasil, e que, ainda nos dias de hoje, encontra-se em vias de desenvolvimento…
Mas enquanto não são esses os tempos, Jaime Raimundo
dizia. É, Ninico, aqui o tempo é diferente. Mais que isso, ele é parado. Os relógios aqui perderam a corda, a mim parecem carecer
de fuso e balancim. Ficar aqui é andar para trás como caranguejo.
Um pasto aqui, outro acolá, mas tudo é monturo de formiga. Formiga é família danada. Pisa-se em três, nascem três mil. A casa renasce, família é assim! (repare o leitor que suas palavras montam
frases curtas, entrecortadas, próprias de um habitante das roças
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antigas de Minas Gerais). Parece mesmo ser a oitava praga que
nos castiga. A que faltou no Egito. Haja formicida Tatu...
E será sempre assim, até mesmo no sítio que vier a ter daqui a uns trinta e cinco anos em São José do Rio Piracicaba. E
veja Ninico, o que se come é o arroz, o feijão, ovo de galinha e
de pato, angu, couve, banana, chuchu, taioba e criação. Quero
variar, mesmo que seja um apreciador contumaz de bananas caturra, ouro, prata e da terra. Ir até São Paulo, que, dizem, é a terra
da garoa.
Comer um filé alto ao alho e óleo; muito mais alho do que
óleo: receita que repasso a todos os meus filhos e netos. A sugestão, repare você, pode ser degustada no restaurante do Morais,
quase na esquina da São João com Ipiranga. Quero também ir
ao Ibirapuera conhecer o parque que fica próximo à Vila Mariana onde, nos anos 2000, minha neta, filha do meu filho Jairo, a
quem a mãe chamará de Cusecco, deverá ir morar. Sabe-se lá,
como não sou de perder esse tipo de oportunidade, aproveito e
faço com ela uma consulta no Hospital do Servidor.
Sim, pai, agora sou eu, narrador onisciente desse texto, é quem
digo. Deves realmente pensar sobre um domingo naquele parque
da paulicéia. É bonito. E, enquanto pensas, permita-me interromper por instantes a revelação de seus sonhos de jovem roceiro.
E aproveitando, já que falaste na minha menina, a primogênita,
adianto-lhe notícia que, de outra forma, o senhor nunca poderia
saber. O senhor já tinha morrido quando o fato aconteceu. Abreviando tudo, o que aconteceu na faculdade de medicina foi mais
ou menos assim.
Lá estavam Sato, Zerbini, Yoshinari e Costallat em sala reservada. Faixa de cinqüenta anos. A nossa Ninha, 30. Professores e a
aluna. Artilharia pesada. Não, madrastinha, agora não. Levemente
nervosa diz que as fotos devem ficar para depois. Sem flash.
Estamos cá, diz a banca, passemos à exposição por parte da
aluna. Quarenta e cinco minutos. Logo após, o ritual deve seguir
como de praxe…
Não me ficou o dia, o mês era dezembro de 2006. Antes do
findar a manhã, pai, sua neta já era a mais nova doutora pela
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singular Universidade de São Paulo. Após alguns minutos, feliz,
chora suavemente. Corre em suas veias, meio a meio, o sangue
da emotiva gente dos Souza de Monlevade.
Com o que volto à conversa de dois irmãos que, abruptamente, tinha atrapalhado para passar informação que não conhecem. Retorno ao nosso arroz com feijão literário…
Com o rosto tranqüilo, é Ninico quem agora vai se dispor a
soltar a voz e o sentimento que tinha dentro de si - com ar preocupado, via que o assunto anterior, que estava gostando, podia
ser deixado de lado e empacar. E está ruim, Jaime Raimundo?
Eu também gosto de filé. Não precisa ser alto e, por mim, estou
satisfeito. Não somente com isso, mas com tudo. Só espero uma
moça boa para juntar os panos, e uma profissão. Não ambiciono
muitas coisas mais. Quero casar, ter família, ser um pai normal,
enfim, fazer nascer alguns filhos, vê-los crescer e corrigir.
O que realmente teve anos mais tarde, não era de falar muito.
Todos os seus desejos foram confirmados ao lado da mulher com
quem casou, e a quem chamava de Sinhá, que tem o mesmo
peso de querida. Todos sabem que Sinhá é redução carinhosa de
senhora, pois dela se considerava escravo. Quando namorados
provavelmente dissesse que era a sua sinhazinha. Sinhazinha era
também como, durante toda a sua vida, tio Ninico chamava a
irmã Elvira. Com o passar dos anos, no caso da esposa, transformou-se em Sinhá, e foi assim por toda a vida do marido, visto
que a ele sobreviveu. Foi sua primeira-dama dos mingaus das
couves rasgadas e fubás grossos: alguns dos quais fui testemunha
e apreciador.
Mas em Ponte Nova eu vi um doce gelado que é gostoso, é
nosso pai quem diz. Vem num pauzinho comprido no meio de um
cilindro de gelo e se chama picolé. Desconsolado, Ninico franze a
testa. Nunca soube como é um gelo, nunca viu e nem sabe o que
significa um cilindro. Quero comer trem mais gostoso com temperos
de cidade, andar calçado com sapato de cor diferente, marrom.
Eu, de minha parte, vou ser sapateiro que é profissão garantida, e fazer tamancos para vender. E depois aqui é só muita
enxada e foice, é o Jaime quem diz e continuará dizendo que vai
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ajudar o outro no futuro, e que por aqui tem poucos réis, mas
sobra queijo e, por final, falta moça bonita e etc. e etc. e tal...
E continua sonhando alto, trocando a idéia com o irmão, pois
já hoje, dizem, em Monlevade, deverá ser produzido muito gusa,
que é matéria prima para fazer panela de ferro, e para fabricação
de um outro tipo novo de ferro mais forte, que chamam de aço, e
que esse material traz a tiracolo muitas notas de mil…
Ah, castigue-me Deus se estou a dizer bobagens, que um raio
caia na minha cabeça. Pula fora, Jaime, parece que está a trovejar, Ninico diz, e ri. Deixa de ser bocó, Ninico, e permita-me
continuar... Lá deve ter também moça bonita, que é o que mais
gosto... Gosto até mais que queijo.
É Ninico, sou um cabra bonito, mas não tenho os cobres... É
o que me falta... E o hotel cheio de vidro que deverá ser construído em Araxá... É… Se ficar aqui, estou fuzilado!
Essas conversas funcionam como o pensar alto, rapazes quando estão sozinhos e indecisos falam coisas desorganizadas como
essas, sem muitos sentidos de ordem sintática e de significados.
As coisas e raciocínios vão e vem e, por falar nisso, já passam das
oito horas. A cabeça dos dois jovens passa a ser o almoço que
passa da hora, estavam de jejum desde as quatro e meia. Que se
cate algum graveto para fazer fogo rápido, temos que esquentar
logo essas marmitas. Comida fria espanta a fome, quem disse
tudo isso e sepultou o assunto foi nosso pai.
Na entrada de casa, o pedregulho que servia de degrau único
na entrada da cozinha da nossa avó Dica mexeu de um lado para
o outro, desequilibrado. O molho de lenha que estava na cacunda
do nosso pai raspou de leve na tramela deixada na horizontal: talvez pelo Zeca, que era meio distraído. Não demora todos voltam
para casa, todo dia fazem tudo igual.
Mãe! A lenha está seca, bota ali no canto, meu filho, se couber, se não couber, bota do lado de lá, se de todo não der, bota
lá fora. Mas, antes olhe se há alguma bichada ou podre, pois não
dão boa queima, só fumaça. Mas esse não era o caso, era só forma de fazer grande a conversa. Bota um pouco dentro do forno
de fora, continuou, ou então debaixo, ali, próximo daquele saco
de milho, ou então em qualquer lugar.
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Na vida, recebe-se o que se dá. Colhe-se o que se planta... A
mãe já grita para uma das filhas, a Elvira, a quem todos chamavam Sinhazinha. Sinhazinha!, atiça de novo o fogão. Frita um ovo
e esquenta o que temos de comida para o Jaime. Anda! Depressa!
Ele acabou de chegar! Nosso pai se alimentou rápido, tinha pressa
de voltar a fazer a gaiola de taquara que começara no dia anterior
e, como, de hábito, não escovou os dentes. Esses privilégios pertenciam a poucos e a moradores das capitais. Prova é que, cem
por cento dos nossos tios e avós ficaram desdentados muito cedo.
A Kolynos? A pasta dental? Levou tempo para entrar aqui!
João Monlevade. Em torno de 15 anos depois. Manhã fria.
Os termômetros marcavam 14 graus celsius. Os galos já tinham
cantado, e nada ocorria diferente do cotidiano. As coisas funcionavam, nesse ano, do mesmo jeito que em todos os outros que o
antecederam, e os que o sucederam, e assim vai, enfim, vinha ao
mundo, ora mais cedo, ora para o mais tardar do ano, mais um
nosso irmão.
Nesse ano, especificamente, o Géa Raimundo, o quarto dos
mais velhos de cima para baixo. No ano seguinte viria quem vos
escreve. Mas certo é também que, conquanto ainda não fosse
erguida em madeira barata a primeira loja do Bazar Monlevade,
duas pessoas ansiosas conversavam sobre assuntos comerciais na
Rua Araguaia. Ficava às margens do Rio Piracicaba.
Eram nossos pais as pessoas que dissemos conversar. Uma
criança estava no colo de nossa mãe. Nos seus entornos, uma
outra brincava engatinhando no piso de vermelhão; um terceiro
saíra de casa faz pouco para brincar no terreiro próximo a uma
pequena pocilga e, por final, uma quarta, de quem não se sabia
se menino, se mulher; já mostrava sinais de inquietação e intenções de saída do amor materno. O que não deverá passar de mês,
já nos antecipamos ao fato; foi em época aprazada chamado de
Jeha ou Géa, que é como ficou em última instância, e como pronunciado pelos libaneses da capital.
Lembro que estávamos por descrever um rápido diálogo dos
nossos pais: Jaime, posso ficar com aquele pedaço de casimira
que você trouxe de Belo Horizonte para vender? – Não, não dá,
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Alice, essas partes de panos nobres, mesmo que pequenas, são
mercadorias caras e saem muito. O almoço está pronto? Tenho
que voltar para junto da mala de mercadorias. Hoje estou na
portaria da usina da Belgo. Mas penso ser chegada a hora de
não mais ser mascate! Já estou acumulando estoque. A minha
idéia é fazer logo uma loja, mesmo que levantada com ripas de
madeira.
Construção sem luxos, pode ser feita com peças de segunda mão. Nos seus primeiros anos vou chamá-la Bazar. Só Bazar,
Jaime? Não, Lilice. Nosso pai chamou-a assim, Lilice. O seu casamento era novo como o era de Ninico e Sinhazinha, as rodas
gastam somente com o muito andar da carruagem. A seguir vai
dizer o sobrenome do Bazar, que há pouco tinha vindo à cabeça. Por final diz, Lilice, vais ser proprietária mulher de um Bazar
muito especial e que, por ter esse predicado, vai ser chamado de
Monlevade.
Por final, repetiram, agora, juntos, Bazar Monlevade! Trata-se
de homenagem a essa gente trabalhadora que me acolheu, nosso
pai, orgulhoso, encerrou.
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Capítulo 7
Onde se diz dos pais de nossa mãe, vô Clemente e vó Rosinha. O negro e a índia que tinha sangue do país da bota.
N
ão sei se aqui é foro adequado para escrever parte
do que se segue. Fosse eu católico apostólico romano, o guardaria restrito a parede de confessionário. Não sou!
Na literatura também se fazem coisas para cobrir, ou descobrir
pecados.
É por isso que escrevo!
A partir da definição da própria arte literária. Cabe explicar
que nessa página tudo é engendrado pela percepção de uma negligência com alguém, a qual antecipo ser falta antiga que tenho
com um dos meus avôs. Passa a ser aí uma premissa. Talvez porque fosse preto: tomei consciência desse fato já velho.
Com isso inicio a por as coisas em pratos limpos. Não obstante, aquele desleixo pode ser também relativo a um fato qualquer,
com o qual tive participação íntima e especial. Talvez inconsciente. A intenção aqui é matar parte da angústia originada pelo tal
ato recalcado.
Por fim, chego ao ponto de interesse, meu primeiro fio de
Ariadne, pois do que estou dizendo, de cabo a rabo, é o eterno
recurso humano da sublimação. Expediente citado pelo próprio
Freud, inclusive esclarecendo que, como é o caso, com o uso da
palavra, buscamos sempre o que nos falta, por exemplo, o aconchego materno. Ou o carinho feminino.
É também por isso que escrevo!
Se bem que não fosse das letras, um escritor, nosso avô Clemente no geral não era exceção. Tinha lá seus recursos. Teve ao
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Jairo Martins de Souza
lado, uma indiazinha com os cabelos infalivelmente em coque,
a esposa Rosa Amância Petriz. A dona Rosinha. Que ainda não
muito velha andou viúva por esse mundo, como normalmente
acontecia, sobreviveu à morte do marido por muitos anos.
Minha avó tinha cara de brava. Não é à toa que a ciência
exata não dá crédito aos cinco sentidos, por trás de sua expressão
sisuda morava uma pessoa calma que inspirava segurança aos
seus netos.
Fisicamente, a parte que nela era bonita repousa descansando na face da nossa irmã Leni, a Nina, e seus descendentes. E é
com essa verdade que finalizo esse parágrafo, acrescentando que
a arte da nossa escrita não somente se aproveita dos esquecimentos, como também das qualidades de pessoas queridas para a
criação do seu caminho.
Como as de dois avós que foram deixados de lado por um
neto. Entenda-se, caso específico de quem aqui vos fala, e que vai
aqui colocá-los, por meio de uma carta de amor que se estenderá
por capítulos.
Antes tarde do que nunca. Expô-los é obrigação da qual disse
ser devedor. Motivo pelo qual estou, de novo, encarando essa
folha de papel em branco - ah, fosse capaz de escrever poemas
Cabralinos -, agora com contornos já delineados por arquivo recuperado pela consciência. Não relutarei na tentativa de cumprir
o meu papel.
Braços dados com nossa avó Rosinha, aqui aparece sorridente a figura fácil de vô Clemente. Ela, como sempre de cara fechada, ilusoriamente aborrecida com todo o trabalho de uma vida.
Tela bonita!
Só Picasso com seus crayons poderia desenhá-los tão luminosos e com tais nuances pardas de cor. Para quem não os conhece, ponho a mão no fogo sobre o que vou dizer, tinham tipos
físicos peculiares e próprios. O negro sorridente e a índia, sua
mulher. Simbolizam o fechamento de um ciclo histórico nas terras
do Brasil. Dupla atípica.
Enigmática. Poderia figurar ao lado dos gorduchos do colombiano Otero. Quadros famosos. Ou enfeitar com seus contrastes a
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cena doméstica de As meninas de Velásquez...
Já que mortos, e postos nesse caminho, representar-nos-iam
muito bem pelos museus mundiais em exposição itinerante. Paradigmas da raça brasileira.
Fariam bonito na arte!
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Capítulo 8
Diz-se das raras oportunidades em que nosso avô brincava
com alguns dos filhos da filha Alice, seus netos
O
leitor conhece a atitude assumida por mim no último
capítulo. O débito que anunciei. Então ponho-me a
caminho, relatando que meu avô, Clemente Martins da Cunha,
sempre entrava furtivamente pela porta dos fundos da nossa casa.
Homem humilde. Ocasião em que, caso fosse flagrado (assoma
novamente em mim o desejo de vê-lo fotografado), poderia se
tornar, como já disse, em um ícone do cotidiano do povo simples
brasileiro. Faz falta na famosa Trabalhadores do homem de Aimorés, Sebastião Salgado.
Como também faz falta não ter sido clicado por uma de suas
futuras netas, estamos dizendo das de vô Clemente, mulher apaixonada pela arte. Em preto-e-branco para melhor registrar os
seus predicados.
Aqui não tenho foto do meu avô. De fato só possuo uma
copiada recentemente. O que não me impede de descrevê-lo brevemente para os que não o conheceram. Antes justifico a falta
do registro que disse, recordando que os filmes fotográficos eram
caríssimos e ele, como já disse, era um homem pobre. As oficiais
de família que temos disponíveis, quando crianças, foram quase
todas tiradas no pequeno estúdio do Foto Diló, em João Monlevade. Alguns de nós as têm ao lado de cavalinhos de pau - perdoa
a tolice que escrevi, pois obviamente em nenhuma dessas poderia
ele figurar. Só para entender, o retratista Diló atendia basicamente a todas as famílias da região e, para nossa felicidade, ficava
com seu fundo de comércio localizado em área nobre na antiga e
desejada Praça do Cine Monlevade.
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Em fotografia tudo significava problema. Desde o dilema dos
números ASA, os ajustes dos diafragmas, as fugas e movimentos
dos fotografados e, principalmente, as suas poses. Nossa mãe,
por exemplo, fazia uma a que chamávamos de sério-bonito, o que
era uma das suas características. Sua timidez era grande, o erguer
a cabeça e posicionar-se no sério-bonito era, creio, a sua forma
de lidar com a nervosia do clic que deveria ser alguns segundos
após o olha o passarinho. Às vezes, antecipava-se muito na sua
postura de preparação, ansiosa para ter tais momentos de alegria
fixados em fotos que gostava muito de ver quando revelados.
No futuro a sua ansiedade provocaria risadas gostosas no restante da família.
Mas as pessoas reagem de forma diferente às dificuldades
apresentadas pela vida. Pensam-nas como desafios. Para alguns,
como o profissional de Monlevade que dissemos, todos os obstáculos acima descritos poderiam significar prazer, e desafio. Contudo, numa análise fria de uma situação típica, devemos concluir
que enfrentar e sossegar a movimentação de sete crianças de uma
família monlevadense, durante uma sessão de fotos em estúdio
fechado, não poderia ter sido nenhuma atividade de recreação. O
que nos faz lembrar outro, podemos dizer, herói da profissão. A
quem admiro muito, sem ter tido o prazer de conhecê-lo. Morou
na capital da paulicéia durante determinado período em parte do
século dezenove e parte do vinte. Militão é responsável por muito
da memória fotográfica que temos da vida nacional urbana nos
anos em que profissionalmente viveu. Há uma que gosto muito
porque poderia ter sido feita com todo o nosso núcleo familiar.
Consta discretamente em uma página sem maior importância
de um livro que vi em um sebo. No pé da mesma aparece uma
pequena anotação feita pelo retratista. Não mais me lembro do
nome, nem da loja nem do livro.
Na foto aparecem o pai, a esposa e um punhado de crianças
brancas bem vestidas. Os meninos com calças de pernas curtas e
as meninas com vestidinhos bem à moda da época. Tudo muito
bem feito. Mas no canto pode-se ver a imagem borrada de um
pretinho: ao que tudo indica, um agregado familiar.
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O moleque não teve a adequada paciência para aguardar,
paralisado, como se fosse uma estátua, os 8 a 10 minutos necessários para a sensibilização correta dos sais e nitratos de prata. Era
assim que funcionavam as lentas placas de negativos, próprios da
tecnologia primária da época. Dele diria nossa mãe: ‘Deus dos
céus, esse menino está com formiga no rabo’. Isso era a foto e as
nossas impressões.
Vejamos o que aproximadamente escreveu o fotógrafo, ‘esse escurinho deve ter levado um cascudo do seu senhor...’.
Fiz esse registro somente para afirmar que o sério-bonito da
minha mãe se ajustaria muito bem às condições fotográficas que
eram impostas a fotógrafos como Militão.
Feitas essas notas da história de outro vovô, lembro que o
foco deve imediatamente retornar ao meu. Ao vivo, provavelmente teria algo parecido com 67 quilos de massa corporal ou,
670 Newtons de peso, se tomadas em conta as acelerações gravitacionais. Seus traços eram bem feitos e acompanhados por braços fortes que fechavam honestamente as suas molduras laterais.
O esquerdo e o direito pareciam tocos de aço com percentual de
gorduras quase nulo. Com eles guardava condição ideal para os
fins de um atleta da construção e de reparo ferroviário.
Função que desenvolvia com tranqüilidade, graças aos préstimos adicionais de muques salientes que exibia, dizendo, subam,
crianças, um por um, nessas minhas batatas. Por sinal duras e
secas como as pernas de um galo de briga, daqueles que dizíamos
índio.
O homem com agá maiúsculo faz-se à custa da forma original
do seu ovo. No caso, ácido desoxirribonucléico de africano misturado com pinceladas portuguesas e nacionais. Reparar que, de
acordo com a genética, somos partes iguais do pai e da mãe. E
por outro lado, alguns da psicanálise e a sociologia dizem, como
um pedaço de ferro doce que é facilmente magnetizável pelos
ímãs da cultura. Vô Clemente nasceu com um cabo de enxada na
mão. Com essa conversa atravessada, estou dizendo os motivos
do marido de dona Rosinha ser forte do jeito que era. Um deles é
que o homem é produto do meio.
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Aqui, resultado de anos e anos de vigorosas malhadas em
muitas pedras, cravos, trilhos e dormentes das linhas da Rede Ferroviária Federal em nosso estado das Minas Gerais. Prosperou no
final de carreira. Tornou-se encarregado de serviços de burros,
carroças e pessoas.
Alguns mais chegados, a ele chamavam Kelé. Essas palavras
foram coletadas, ao vivo, da boca de Jaime Raimundo, seu genro,
nosso pai. Via com admiração aquele homem diferente que tinha
sempre um sorriso curto no rosto de avô.
Era inconfundível. Esse é o adjetivo que resume tudo, caso
devesse ser usado como aposto de uma frase longa onde se tentasse dizer da atitude e postura do nosso avô. Olhava-o com olhos
de quem, embevecido, admira uma bem elaborada estátua preta.
Estejam seguros que me lembro mal, mas costumava usar calças
amarradas com velhos cintos ou grossos barbantes.
Mas pelo contrário, lembro-me bem como sustentava ricamente os seus netos. Com alegria, orgulho, sabe-se lá! Conversava comigo mesmo, meu avô é muito forte. Sua estrutura, em
correta posição ergométrica, mantinha natural a sua disciplina de
corpo, os antebraços estarão paralelos ao solo fazendo um perfeito ângulo reto com os amistosos braços.
Posso relembrá-lo na posição de quem se prepara para carregar uma caixa de madeira retangular feita à base de pregos mal
batidos, e que era utilizada fartamente para transporte de tomates
ou bananas de todas as espécies: caturra, prata, ouro... Alto lá,
ao trabalho deve seguir-se o lazer. São outras as circunstâncias,
assim como outra é a carga do momento, pois está em instantes
de lazer com os netos.
Nas horas de descanso eu carrego pedra-pomes. Sobem pela
ordem de idade; superior para inferior, os três netos filhos mais
jovens da menina sua filha que, quando pequena, era chamada
de Lilice. Deles, os dois mais novos servem apenas como contrapeso: o Jarbas Martins e o Cusecco. Vô Clemente ri, está feliz
com tão leves e irrequietos fardos.
E não ri sozinho, pois todo mundo está feliz com a brincadeira de fazer de barras de aço os tais braços que, receptivos, nos
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atraíam como o açúcar atrai pequenas abelhinhas. Da porta do
barracão, com olhar benevolente, sorriso aberto, está a observar a
cena o nosso tio Lino. Pardo quase mulato. Um pingo de café na
caneca de leite, já faz que seja considerada uma perfeita caneca
de café com leite. A essa combinação alguns mineiros chamam
pingado. Nunca soube por que não chamávamos o tio Lino de tio.
Talvez o considerássemos um irmão mais velho que aparecia de
vez em quando. Assim como também não chamávamos de tio a
todos os outros tios. Foram alguns estropícios da nossa criação.
Quanto a isso não tem mais jeito. Melhor é voltar ao lazer
com meu avô. Víssemos com mais detalhes por meio das janelas
do tempo, verificaríamos que os seus braços não oscilam com
os momentos físicos aplicados nos mais variados fulcros de sua
musculatura, perto de ti não temerei mal algum. Por último, sobe
a Lucinha, nossa irmã mais nova.
Vô Clemente sorri novamente. Diz haver novas cosquinhas
nos seus braços. O conjunto dos músculos antebraço-braço não
curva um milímetro do seu ângulo original, por nem um átimo, e
a boca aberta mostra a falta de cobertura de suas gengivas. Uma
dentadura bem feita lhe cairia bem. O pouco cabelo pixaim é
cortado bem rente à cabeça e pouco solidário com as entradas de
tamanho regular.
Ainda assim foi um negro muito bonito, esse fato é fácil de
perceber. A filha Lilice também orgulhosa diz sem falar, pois na
expressão do rosto tem ar de aprovação. Como se estivesse dizendo: meu Deus! Com toda essa idade, como papai agüenta todo o
peso dos meus filhos?
Na cabeça dos seus netos ficava também a interrogação intrigante, como vô nos agüenta ao mesmo tempo? A barba dele
está pequena, mas por fazer. Por alguma razão não a fez nesse dia
de folguedos. Rotina que cumpre pelas manhãs com seu canivete
que tem cabo de osso: a lâmina é afiada por ele mesmo na pedra
que serve de soleira da porta da casa. Foi só falar, as faisquinhas
aparecem, lá está ele a afiá-la na quina da pedra. Nosso avô ri
mais uma vez, com isso nos confirma que mantém um bom humor constante.
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No bairro Sagrada Família, em uma casinha de fundos, morava com a esposa e o filho que restou solteiro. Cercas de arame
telado e moirões fracos separavam-na dos vizinhos laterais. Na
pequena sala, ficava pendurada em lugar de destaque, uma folhinha do Bazar. Nela uma criança brinca com seu avô. É tão bonita
que parece européia. Na cozinha, uma Santa Ceia. Em algumas
outras casas, outras fotos marcavam também o tempo. De fato,
um enfeite comum. Uma jarra com frutas; um retrato do Salvador
com o coração exposto, dentro dele, uma luz de vela; um animal
que pasta em um relvado tranqüilo…
Nos anos 50, Belo Horizonte era uma cidade calma e aprazível. Lá nosso avô recebia seus netos. No mesmo endereço, na
casa maior localizada na parte da frente, já viúva, morava a nossa
Vó Dica, mãe do nosso pai. Talvez para consolidar o esquema
casa grande e senzala, ela era branca de olhos azuis. O marido,
avô que não conhecemos, já era morto. Em sua companhia, que
se afastem as ambigüidades, da avó Dica, para espantar a solidão
das de sua classe, morou por alguns tempos o neto Géa.
Poucas vezes conversei com vô Clemente. Nossos contatos
não seguiam aos códigos usuais da linguagem falada, pois comunicava-se conosco mais pela expressão. Não teve o privilégio
de conversar sozinho fazendo literatura em papel, como faço. Por
fim, nunca o vi escrever, nem mesmo sei se aprendera a ler para
tanto. O que a infância me ensinou é que meninos pouco conversavam com seus superiores, os adultos. Nosso avô não era de
diálogos longos.
Com isso, e como praticado naqueles anos, os vizinhos à sua
esquerda, poderiam dizer, seu Clemente é homem de poucas palavras. Os da direita, diriam, o marido da dona Rosinha é um
sujeito sistemático. Respeito é bom e eu gosto, é como ele mesmo
retrucaria.
Foi na antiga chácara que fora propriedade do senhor Raimundo Piriquito, que vô Clemente Martins disse-me algumas frases mais longas que as usuais. Caso único! Lembro-me delas muito bem por razão marcante: foi em um dia de finados. Com uma
espingarda de pressão a tiracolo, preparava-me para a atividade
Bazar Monlevade
61
que planejara fazer na tal manhã que iniciava nebulosa.
O objetivo era a matança de passarinhos que se deliciavam
com os frutos da chácara pródiga em laranjas, bananas, abacates...
Tudo muito doce. Ela já era também conhecida como chácara do
Jaime. O Periquito já tinha alçado vôo para outras buscas. Entretanto, antes de iniciar o diálogo combinado, peço aos leitores não
se escandalizar, ou fazer mau juízo de forma precipitada. Naqueles
dias, senhores, matar passarinhos era atividade normal atribuída
a meninos de bem.
Menino! Vô Clemente chamou-me de forma genérica. Nunca
me chamou Cusecco. Como também já era tempo passado, minha mãe não mais me chamava desse jeito.
Todas as crianças de sexo masculino eram chamadas de ‘menino’. De minha parte, poderia ter dito: Vô, sim, eu sou o que
dizes, mas prefiro ter um nome. Às vezes penso não ser ninguém.
Não se esqueça, vô, na verdade, chamo-me Jario!
Isso não mudaria nada. Menino não tinha voz e, tal como
dizia o mau comerciante, aqui não se aceita reclamação posterior.
Assim, sigamos com o que nosso avô disse, após o chamado que
fizera. No fundo poderia ter sido com qualquer um dos seus netos.
Quando eu já era homem feito, emendou após alguns segundos
(tempo suficiente para sentir que o menino, que era eu mesmo,
estava a postos para lhe dar toda a atenção), em um dia dois de
novembro... Você sabe, menino? Finados… dia em que inclusive
sua avó Rosinha nasceu… Por que falas isso, vô? São divagações
amorosas de um velho, menino, tal como um dia você poderá vir
a ser quando, quem sabe, estiver a digitar memórias da minha
filha Lilice.
Com atitude respeitosa, olhava curioso o meu avô, a espingardinha de chumbinho já estava ajustada nos meus ombros. O
pequeno cano mostrava-se cautelosamente virado para os céus,
talvez antecipando a visão de um retrato de corpo inteiro das suas
vítimas futuras que se deslocavam em bandos pelo céu claro.
Pois é, menino, dizia que foi em Finados, dia em que normalmente chove chuva fina, um rapaz que conhecia saiu para caçar
com uma chumbeira. Parecia uma das antigas. Do tipo bacamar-
62
Jairo Martins de Souza
te. Não estava vestido a rigor como fazem os monlevadenses. O
céu parecia ter um pano de fundo como em quadro antigo do
Gólgota no dia da crucificação. Estava como você está aí, com
toda essa sua ansiedade. Mas bem equipado de pólvora, chumbinho, palha de milho seco e espoleta. Foi-lhe avisado, e ele sabia
bem. Finados é dia de calmaria, muita lubrina e reverência. O
choro deve ser silencioso e a respiração curta e entrecortada, alguns dizem de velório, enfim, tudo isso pela tristeza da falta dos
queridos que se foram daqui.
Não obedeceu o moço aos pais, e nem pensou em seguir as
nossas tradições. Foi caçar! Logo de saída, viu um gavião que voava bonito. Parecia um avião teco-teco. Procurava pintinhos que
se escondiam nos fundos do quintal. O rebelde imediatamente
apontou a arma na direção do usurpador. Deu no que deu, valhanos Jesus! Ficou paralisado!
Como, vô? Perguntei com os olhos que, de tão assustados,
deveriam estar parecendo emergir das órbitas oculares. Ah, menino, ele já estava com a espingarda no ombro, e ao tentar arrastar
para trás o cão da arma, sentiu todo o lado direito do corpo petrificar. Sobraram somente as pernas!
Preste atenção, menino, ao que vou lhe dizer. O moço ficou o
dia inteiro caminhando para lá e para cá, para cima e para baixo,
para um e outro lado, sempre mirando na direção dos céus. Com
isso, obrigado a contar a todos o desrespeito que tinha cometido. Ficou assim, horas e horas, como se tivesse sido engessado.
Desorientado. Um bonequinho andante ou um soldadinho de
chumbo. Escolha você, menino, a imagem do brinquedinho que
mais gostar.
Enfim, no final da noite foi liberado da danação e saiu daquele derrame forçado com a sua parte direita acordada pelo badalar
dos sinos da igreja da cidade. Foram seis tocadas: bem-belém,
que multiplicadas pelos ruídos unitários, dão doze. Sim, menino,
o moleque só moveu os braços após a meia-noite. Já não era
mais Finados.
Vô concluiu assim. Então, menino, guarde a espingarda que
trazes, assim como qualquer bodoque que tens no bolso, pois,
Bazar Monlevade
63
não se esqueça, hoje é Finados... Aliás, tudo isso vale também
para a Sexta-feira Santa.
Sim, vô. O senhor disse. Agora digo eu o que ouvi de alguém
que, por sua vez pode ter ouvido de um outro vovô: o diabo se
esconde em pequenos detalhes. Coisas, vô, como ouvir rádio em
Finados, comer carne na Sexta-feira Santa, falar alto, cantar rock
e ficar brincando de bambolê!
Finados já foi o Dia dos Mortos.
Bazar Monlevade
65
Capítulo 9
Vô Clemente usa algumas linhas para
falar da esposa Rosinha
J
á dissemos, com outras palavras, que o homem que
delas faz pouco uso pode ser considerado um amigo
da prudência. Aliás, mais do que isso, torna-se querido no meio
social que o rodeia. Se não dá valor à riqueza, melhor ainda.
Além de Diógenes, que dizem ter morado dentro de um barril,
temos vários exemplos ao longo dos séculos que, por não serem
muitos, foram rotulados como sábios. Alguns outros, mesmo que
normalmente assim procedam, fazem diferente e não economizam
a língua quando falam dos seus queridos.
Se é assim, não faz mal ouvir o que nos diz o nosso avô Clemente. Menino! Deixe-me meter a colher-de-pau no seu texto. De
fato, se intentas falar da minha senhora, sua avó, passe-me o cabresto e vá descansar no seu canto. Isso faço com prazer. Sim, vô.
Caso veja qualquer erro de português você pode corrigir, menino. Sim, vô. Então começo pelo começo, pois o nome que a ela
botaram alguns dias depois de nascida foi o de Rosinda Petrizzi.
Não sei se o correto, mas em um dia que creditaram ser o de
dois de novembro. Finados. Dia em que, aproveito para recordar,
homem nenhum, pequeno ou grande, menino ou rapaz, moço
ou velho, casado ou solteiro, por fim, ninguém mesmo deve fazer
atividades barulhentas ou comer carne de caça. Lembras de que
lhe contei o que aconteceu com o rapaz?
Mas, retomando o fio da meada, a minha sogra era a dona
Maria Amância Petrizzi. Você mesmo, menino, verá no futuro, o
que está escrito no registro de nascimento da minha Rosa. Em
66
Jairo Martins de Souza
letras bordadas de calígrafo, bonitas mesmo que com o papel já
bem gasto e amarelado.
Já o pai veio de um país distante chamado Itália, onde soube
que, por informações de terceiros lá de Monlevade, as pessoas falam alto e conversam com os braços. Alguns mais letrados dizem
ser o país que tem o formato de uma bota. Como a do Gato de
Botas, entendeu?
Nunca os conheci, nem ao país, nem a bota. E nem mesmo
a meu sogro, visto que sumiu, sabe-se lá Deus para onde! Seu
nome era Petrizzi. Que repassou para sua avó não porque quisesse, mas porque lhe foi imposto por juiz de paz de Ouro Preto. É lá
que foi registrada.
Aliás, complementando o que já disse um pedaço, o que relato foi dito a você mesmo, menino, quando de sua incursão futura
ao cartório civil de uma viela empinada da antiga Vila Rica. Interessante essa fuga do pai dela. Parece ser uma constante nessa
nossa família, pois quem padeceu de mal semelhante foi a Dica,
sogra da minha filha Alice. Deixou-a, o pai, antes de nascer.
Concordo, vô. Aliás, esses dois sumidos trouxeram hiatos
nesses meus escritos com os quais eu não soube como lidar. Mas
entendo que no princípio do século vinte essas circunstâncias não
eram incomuns.
Menino, a Rosinha, sua avó, nunca foi chegada a ficar prestando satisfações, é vô Clemente quem diz um pouco a contragosto. Já que o pai desapareceu da sua vida, decidiu à sua maneira
tomar algumas providências. Enfim, podia também desaparecer
com parte da única coisa que ele, a ela, deixou: o seu nome.
Resolveu tirar fora um dos zês do Petrizzi. Afinal de contas não
temos nenhuma palavra nacional com dois deles seguidos de um
‘i’. Mais ainda. Retirou um ‘i’ e tornou-se Petriz, que é mais fácil
de escrever, e mais sonoro de falar.
Não custa lembrar que decidiu não passar esse nome para
nenhum dos seus descendentes. Creio também, vô Clemente asseverou, por respeito a mim e à tradição da ascendência masculina nas nossas famílias. Caso contrário, Jairo, sua mãe seria Alice
Martins Petrizzi de Souza.
Bazar Monlevade
67
Mas não foi somente isso. Ela fez outras mudanças ao longo
dos anos. Simplesmente por razões de gosto. Do Rosinda tirou
fora o ‘ind’. Pronto! Passou a chamar-se Rosa. Tudo porque o
nome rosa é o de uma flor, então, o seu nome completo de solteira ficou sendo Rosa Amância Petriz.
Qual o porquê do Amância, vô? Ah, é porque ela gostava
muito do segundo nome da própria mãe, estão recordados, era
Amância. Dizem que ela foi pega no laço, creio, nas matas do Espírito Santo. Da tribo Puri… Mas dela não sei muito...
Sim, vô! Agora sou quem digo, não vejo nada demais no
que dizes! Parece até que vó Rosinha, antes de fazer todas essas
alterações, andou estudando com o meu professor, o Freud. Ele,
antes dela, andou fazendo o mesmo. Chamava-se Sigismund,
passou para Sigmund; não gostava do sobrenome Schlomo, fez
desaparecer… Ah, vô, depois de tudo isso, tenho que finalizar
com o que todo mundo sabe que quem disse foi Romeu em, Romeu e Julieta, tivesse a rosa outro nome nunca deixaria de ter o
cheiro de uma rosa (what’s in a name?...).
Sua avó era mais corajosa, é o que Vô Clemente prossegue
dizendo, como se não tivesse ouvido o que tinha dito sobre o personagem de Shakeaspeare. Ao contrário de outros que, por medo
da vida e das mudanças, hesitam em largar um casamento já sabidamente destroçado, um serviço no qual nunca irá aprumar, a
perda de um grupo social que supostamente lhe dá amparo amoroso, um carregar de filho que não sai do colo, um caminho onde
vai continuar dando com burros n’água, e por aí segue.
Já eu nunca pensei em mudar de nome, continua Vô Clemente com um meio sorriso nos lábios. Sempre gostei do Martins
da Cunha. Tanto, menino, que o transferi todo para sua mãe, a Lilice. Quando ela casou com o Jaime a coisa mudou. Ele assumiu
os seus direitos, e o Cunha ficou mais ou menos abandonado.
Somente seus dois irmãos mais velhos, menino, o têm. Foram
os que mais ajudaram ao pai no Bazar. Menino, esse meu nome
deve morrer com a sua geração.
Desde pequeno desconfiava dos porquês da nossa avó Rosinha ser diferente. Não tinha muita consciência de suas raízes
68
Jairo Martins de Souza
originais, por exemplo, que era índia. Sabia e não sabia. Não
que tivesse outras características que a diferenciassem de outras
senhoras do seu tempo. Não tão baixa quanto algumas índias
bolivianas que vi há pouco tempo. Lembro que na vida civil não
se tem oficialmente restrições à altura. Vamos para frente, família,
é o que, sem perceber, provocava. Tinha postura positiva diante
da vida.
Ficava atraído pelo seu jeito de ser, pelos seus traços bem
marcados no rosto e as cavas fundas verticais de sua face, quase
mais marrom do que preta. Tinha outras mais rasas e paralelas
aos olhos. Os cabelos iam abaixo da linha dos quadris: não imagino que os tenha cortado um único dia. O que tinha de sobra,
faltava ao marido.
Gostava de compará-la com as velhas índias mães dos pelesvermelhas dos filmes de faroeste. Quem sabe tivesse sido a mãe
do cacique Touro Sentado, ou a do chefe Urso Branco. Pode ser
que meus olhos de criança tenham visto seu nome rolar rapidamente em uma lista de créditos do final de alguma película. Pode
ser. Mensagem subliminar que marcou presença.
Esteve sempre, como o próprio marido, nos cantos de todas
as nossas casas. Eterno pilar para a família!
Bazar Monlevade
69
Capítulo 10
Os últimos dias de vô Clemente. Onde se terminam
também os seus registros, por falta absoluta de informações.
C
aros meninos, é triste dizer, mas os homens crescidos morrem. Para nós, crianças, tal infelicidade
demorará milênios para acontecer. Deveremos ser muito velhos,
talvez pela casa dos trinta e cinco anos...
A última visão que tive do meu avô, já se passaram algumas
décadas, foi quando morreu. Significou o primeiro velório caseiro
que assisti: foi tudo um tanto quanto surreal. Aqui o substantivo
caseiro tem duplo sentido, porque aconteceu velado dentro da
nossa casa da Vila Tanque, e porque foi o primeiro familiar que vi
morrer. Percorria o ambiente com os olhos espavoridos de uma
criança que suspeitava que algo diferente estivesse ocorrendo.
Anos mais tarde, revivi-o parcialmente por meio da observação do Enterro do conde Arnaz de El Greco. Repleto de expressões espirituais clássicas, com figuras alongadas que casam bem
com a visão adulterada de mundo de um menino assustado. Bela
obra que está em Toledo, a aproximadamente 80 km da cidade
de Madrid.
Nele também a família e vizinhos se movimentam confusamente entre choros e atitudes estranhas. Foi a impressão que, na
ocasião, me passou! Sim. São conexões absurdas, sem maiores
explicações, a bondade de Deus aparece nesses pequenos detalhes: o de ligar às vezes a arte com a tristeza e o amor. Já dissemos
que o diabo se esconde em outros.
Não é que não estivesse acostumado a ver a morte. Aliás, já
mais um pouco crescido, soube que para os adultos foi produto
70
Jairo Martins de Souza
criado por ex-morador de um jardim. A ela via repousar escondida dentro dos corpos dos operários velados nas saletas das outras casas da Vila Tanque. Algumas vezes, por ter pressa, passava
transportada por caminhões caçamba apinhados de gente, e se
dirigia para descarga final no cemitério do Baú.
Desfilava também carregada nos caixões pequenos e alvos
das crianças que morriam precocemente. Raios de luz que riscavam a terra de forma breve, e que rumavam enclausurados e
cercados por pessoas que choravam em cortejos a pé. Não os vi,
mas três deles eram meus irmãos.
Certa vez, já no ato derradeiro, enquanto uma dessas miúdas
recebia a pá de cal, outra ao lado, um pouquinho mais velha,
pulava amarelinha… Que contraste!
Mas o assunto agora é a morte de um adulto. A de um parente próximo. Nosso avô morreu bem antes da patética revolução
dos militares, da Igreja, dos políticos, dos empresários… Hoje,
passadas algumas décadas, nem mais sei quais foram os verdadeiros diabos dos detalhes de 64!
A causa mortis do seu Clemente veio a ser muito antes de
morrer. Saiu da vida com boa saúde do corpo, mas com os miolos moles. A razão foi atribuída a um acidente do qual, se alguém
soube algo, não me contou. Ouvi somente presunções. A princípio
ocorreu quando de uma cirurgia de menor importância, suponho
que tenha sido a primeira vez que tenha entrado nos recintos de
um hospital. O médico que o atendeu disse evasivamente, para
terceiros, ter sido problemas com a anestesia durante os procedimentos. Nosso avô devia ter entre os setenta e oitenta anos.
Passemos a palavra ao anestesista responsável que provavelmente é o próprio cirurgião. Foi embaraço comum aos procedimentos cirúrgicos dos finais dos anos 50. Ao avô de vocês
faltou oxigênio em parte do cérebro durante um tempo superior
ao que estabelecem as leis das respirações celulares. E que provavelmente, permita-me usar palavras que estarão em voga em
um futuro próximo, provocou uma quebra no seu disco rígido. É
triste confirmar, mas, o avô que aqui entrou para coisa pequena
virou criança forte.
Bazar Monlevade
71
A agonia começou no Hospital São Francisco, em Belo Horizonte, tendo sido concluída com o seu atropelamento por uma
composição de carros ferroviários. Não se sabe se de vagões de
passageiros ou de carga, não temos depoimentos nem de maquinistas nem de passageiros. O corpo foi encontrado pelas bandas
do Jacuí, onde morava o tio Ninico, próximo ao ponto de cerco
das águas do Piracicaba na conhecida barragem do Jacuí.
Talvez tenha ido passear na ferrovia onde sempre esteve nos
momentos de trabalho. Quem sabe pensasse que o maquinista daquele ferrorama gigante brecaria a máquina e todos os seus vagões
a um aceno de saudação amigável. Lembro ao leitor que tinha
renascido como um menino após a cirurgia que nele fizeram.
Enquanto isso, na nossa casa da Vila Tanque, onde nosso
avô passava uns dias, iniciaram-se movimentos e preocupações
generalizadas.
Pai sumiu, diz nossa mãe. Vô sumiu, dizíamos nós, seus netos. Seu Clemente desapareceu, diziam preocupados todos os
vizinhos. Um senhor mais moreno e idoso sumiu, diziam moradores de ruas distantes que tinham tomado conhecimento de que
alguém sumira. Acho que o vi próximo ao palanque, estava descendo a rua do bar do Alonso, diz um homem que passava apressado. E agora, Vô? O senhor vai sumir logo na hora da pelada de
antes do almoço?
Ao lado da linha férrea em que fora abatido, nosso avô já estava deitado. Imóvel, no seu último e eterno sono. A composição
que o liquidara já estava longe, em estação distante, talvez no
termo final, Vitória do Espírito Santo. Mais tarde, não demora, já
repousa em cama de solteiro no quarto da casa da Vila Tanque
que dava vistas para rua.
A fé remove montanhas... Levanta daí, vô! Quem sabe a
minha fosse fraca, foi o que pensei, pois não o vi levantar. Nossa
mãe chora e diz desesperada com embargos na voz, Pai! Pai!
Pai! … Nunca a tinha visto assim, chorando e soluçando alto. A
minha resistência demorou pouco, minou rapidamente. À minha
mãe perguntava mentalmente, mãe, mãe, é a isso que chamam
sofrimento?
72
Jairo Martins de Souza
Foi enterrado no cemitério de Monlevade que tem o estranho
nome de Baú. Por falta de conhecimento não explico o porquê
desse nome, não poderia assumir que baús são tanques secos
com tampa. Não cairemos, o menino e eu, nas mesmas tentações
que tive ao falar sobre as origens do nome Tanque. O da Vila Tanque. Isso deverá ser visto em parte posterior dessas memórias.
Nervoso, um parente antecipou-se aos funcionários municipais e, acidentalmente escorregou e quase caiu em desnível próximo da cova em que o caixão com o corpo do nosso avô estava
por ser colocado.
Enquanto isso, para afastar os pensamentos e evitar assumir
papel de antigas carpideiras, distraía-me a fazer como sempre fiz,
contabilizando mentalmente nas lápides os anos vividos por pessoas que já passaram por esse mundo. Nasceu quando? Morreu
há quantos anos? Números sumidos e nomes apagados são os
que mais intrigam. Qual terá sido a média de vida dos que habitam esse quarteirão de ossos? Pode ser que me puxem os pés, se
estou aqui fazendo estatística barata.
Quantos anos viveu esse? Quantos mais viveu aquele instalado nessa sepultura mais enfeitada? Quantos anjinhos estão
enterrados juntos nesse grande baú? As letras daquela sepultura
que por agora passamos, mesmo que sujas e escuras, mostram o
mesmo sobrenome da nossa família. Será que se trata de algum
parente desconhecido?
Restou um consolo final naquele dia sombrio. E que nos faz
antecipar outra comunicação de óbitos familiares. Nossos irmãos
Paulo, Eunice e Jaiminho ficaram pouquíssimo tempo aqui em
casa. Que não se preocupem, meus queridos, vô Clemente já deverá estar logo pendurando vocês.
Estão recordados? Seus braços mais pareciam desgastados
trilhos de ferro, por onde se sustentaram martelos, marretas, máquinas, e netos.
Bazar Monlevade
73
Capítulo 11
Onde se diz dos que precederam a Jaime Raimundo e Alice
Martins
M
uito do que dissemos há capítulos atrás foi somente para reforçar e contextualizar os tempos.
Fizemos anotações que julgamos pertinentes, tornando públicas
algumas dúvidas do nosso pai e, ao mesmo tempo, fazendo registros, alguns sem importância, sabe-se lá o que mais! Foi esforço
feito para localizar quem nos lê. No entanto, ficaram, e deverão
continuar ficando, sempre espaços em branco ou palavras a serem corrigidas. O leitor sinta-se à vontade para acrescentar, não
dar importância, classificar como tolice do autor, ou passar a borracha onde julgar procedente.
Mas são nas décadas compreendidas entre os anos 20 e 30
que foram identificados os primeiros sinais de vida ativa do então
adolescente nosso pai. A propósito, enquanto iniciamos a falar
dele, a sua vida seguia conforme rotina. Vamos segui-la por algumas linhas. A busca é rápida e deverá ser bem sucedida logo na
primeira tentativa. Em uma estradinha, nela nem mesmo cavalos
e charretes passam com freqüência, é onde o encontraremos novamente. Basta dobrar a curva, o terreno agora volta a ser plano,
há uma casinha do lado esquerdo. Pode-se ouvir a cachorrada
que de longe nos farejou, e já começa a latir. Movido por ecos
que se avizinham, ouve-se distante rangido de rodas de carro de
bois.
Mais abaixo há um morro e árvores, onde o solo mais frio e a
movimentação do ar acima, ligeiramente mais quente, dá guarida
para densa neblina que rasteja pelo chão do matagal. Nas folhi-
74
Jairo Martins de Souza
nhas verdes de saúde pode-se ver que há gotas de orvalho: das
que as crianças gostam de bulir e fazer molhar de frio os amigos e
irmãos. Com troco imediato, mas trata-se de brincadeira que gera
somente sorrisos.
O que não impede de ver nosso futuro pai que, por costume,
tem o chapéu a postos. Gosta de sol no corpo, não nos olhos. No
futuro manterá a mesma postura, olhos fechados, agora ficando
estendido nas areias de praias capixabas, absorvendo calor à
moda dos lagartos que, como ele, apreciam a energia emanada
pelo Sol.
Contudo, enquanto esses tempos de velhice não vêm, as abas
de sua cobertura estão dobradas à moda panamá, disso tomará
conhecimento somente alguns anos depois. Segue rápido, pés
descalços, e a calça segura por uma cordinha fina amarrada com
um laço em forma de um oito deitado. Um infinito. Seu modo de
caminhar é inconfundível. Pessoas como ele não sofrem, como eu
mesmo, o desconforto de, ao longo da vida, ser confundidas com
terceiros. Sabe-se lá Deus, quem está a nos inquirir nas ruas: você
não é o fulano de tal...?
Algumas das noras que virá a ter dirão que os maridos
caminham como o pai. Talvez porque, todos nós, seus filhos
homens, tenhamos, quando de pé e parados, uma postura
atávica que projeta toda a metade da nossa estrutura corporal do
lado esquerdo um pouco mais para frente, se comparado com o
direito.
Mas voltemos a ele, pois não tinha encerrado a caminhada
que descrevíamos. Lá está. Para evitar o molhado do capim
baixo, as barras da calça, sem bainhas, estão arregaçadas até
abaixo dos joelhos. Com a enxada pendurada nas costas, assobia
uma cantigazinha qualquer; enquanto encaminha-se rápido para
roçado próximo, há muito terreno para se capinar.
Não obstante que o rapaz fique esperando um pouco
para chegar ao seu lote de trabalho. Tempo o necessário para
estabelecermos procedimento mais confiável para seguir
descrevendo os rumos de suas andanças, assim como esclarecer
o leitor sobre nossa onisciência.
Bazar Monlevade
75
Nesse sentido, suponha implantada uma micro-câmera na
extremidade superior da enxada que carrega às costas. O objetivo
é captar seus movimentos e palavras, e de tudo e de todos que o
cercam. De fato, cópia, e nos moldes, que certo coronel da USAF
ousou instalar no cajado de Jesus para ver o que nunca ninguém
tinha visto ao vivo. Está certo quem se lembra, tal como Benitez
descreveu na fabulosa Operação Cavalo de Tróia.
É com esse novo recurso que iremos em frente, captando
imagens do seu dia-a-dia. Por exemplo, nesse exato momento, o
moço Jaime pára duas vezes, de assobiar e de caminhar. Escondese atrás de uma mangueira de tronco grosso, parece que vertendo
urina. Como não se trata ainda do tempo dos reality shows, ele
procede e faz tudo discretamente, enfim, vira cautelosamente a
cabeça, não sabe estar sendo observado por uma câmera escondida. Com o olhar que permanece cabreiro, verifica com detalhes
a estrada para assegurar-se de que não passará breve vergonha.
Feito isso, cruza apressadamente para dentro do milharal.
Sim. Não há nem mesmo necessidade de repassar a cena
gravada! Confirmamos pela maneira característica de caminhar
que ele é o próprio nosso pai, filho legítimo da dona Maria Luiza
de Jesus e do senhor Antônio Luiz de Souza. Esse, descendente
de portugueses, foi fruto gerado pelo casamento de Manoel Luiz
e Tomásia Umbelina de Jesus. Adianto que nem por fotos nem
por descrição tive conhecimento dos senhores Antônio e Manoel.
Aliás, nem mesmo da dona Tomásia. Avós ocultos. Paira somente
uma vaga idéia por meio da aparência do nosso pai e seus familiares… Todos magrinhos: abaixo de 55 quilos.
Não me foi dado o orgulho de ouvir, sou o senhor Manoel
Luiz, seu bisavô. Nem dizer, muito prazer. Eu sou o Jario, vô, minha mãe me chamava de Cusecco!
Jaime Luiz de Souza era o nome completo do meu pai.
Quando jovem. Depois mudou por conta própria, conforme deverá
explicar ao irmão João Luiz em capítulo que está por vir. Luiz com
zê. Não com o s e o adequado acento agudo, que deveria ser a
grafia correta: sabe-se que o nome próprio deve ser grafado da
mesma forma que um substantivo qualquer. É o que talvez tenha
76
Jairo Martins de Souza
dito ao notário o pai do meu pai. Ouçamo-lo complementar sua
argumentação, feita com autoridade e eliminando qualquer tipo
de oposição do homem que registrava os nascimentos! Sim, o
nome dos meus filhos, inclusive do menino Jaime, pai do futuro
Cusecco, deve ser com z porque o nosso sangue descende
diretamente das raças da antiga Lusitânia!
É… Agora quem vos escreve é quem diz, o amor é mesmo a saudade de casa! Por lá passei faz poucos anos atrás... Foi muito bom.
É agradável também sentir que, dentro de mim, as razões
do bisavô Manoel pedem licença para ficar às claras, a elas dou
seguimento. Antes lembrando que não temos conhecimento de
ter algum tio que com ele fizesse a parceria, um Joaquim. O que
não pode ser, é nosso bisavô quem reforça. Seríamos motivo
de chacota por parte dos meus bisnetos que gostarão no futuro
de contar piadas. Vinham dois irmãos japoneses, o Manoel e o
Joaquim... Certo, meu vô, mas devo passar ao que nos interessa,
pois, quanto ao Souza dos finais de nomes de todos nós, vivemos
de suposições. Uma delas é a de que fôssemos parentes de algum
donatário do antigo regime de capitanias hereditárias. Não sei se
o senhor tem meios de confirmar…
Menino, a história do Brasil mostra que alguns dos nossos,
importantes, estiveram pelas bandas das Minas Gerais. O que me
faz concluir por simples lógica: Souza é nome que tem chance de
aparecer em brasão de família imperial dos que vieram fugidos
do assédio do corso Napoleão. Inclusive no latim que falavam os
clássicos e ao lado de sinais dos Habsburgos de Portugal. Como
Leopoldina. A Paladina da Independência.
Há quem pense o contrário. Em obra recente o escritor José
Saramago disse ser família comum também entre as massas
lusas. Deixo aqui essa nota, lembrando que a casa dos Souza é
democrática e admite sempre o contraditório: o espectro familiar
determina a atitude. Tudo aqui tem que seguir como as águas
límpidas de um riacho, o que segue obscuro fica por culpa do
hiato criado por meus avós desconhecidos. Buraco sem tampo!
Com tempo e recurso a obturar sem trauma. Ah, fosse-me
possível acesso a certidões selecionadas em igrejas e cartórios an-
Bazar Monlevade
77
tigos! Mesmo que papéis ressequidos com letras góticas borradas
de tinta. Ou talvez buscar amparo na rede da língua portuguesa,
a favor de Cusecco@bazar...
Se nada disso disponho o recurso é jogar para os céus, finalizando com imitação prosaica do texto do profeta, do lombo de
homem nasceu a mulher, seguiram-se séculos e gerações… de
Jaime e Alice vieram ao mundo Eunice, Paulo, Izaias, Hélio, Leni,
Géa, Jairo, Jarbas, Lúcia, Jaiminho…
Fico no aguardo de informação mais completa. Na espera,
relato o que sei. Por exemplo, que muitos dos filhotes da minha
avó Maria Luíza morreram com o cheiro forte do seu ventre. Ainda anjinhos. Como muitas mães daquelas primeiras décadas dos
novecentos, ela passava os dias de resguardo imaginando que
seus nenéns estivessem hibernando em sala de espera que Pio
XII tinha confirmado o endereço. O limbo. A opção para os adultos chamava-se purgatório. Aqui lentamente os pecados seriam
purgados para fora da alma dos pecadores (recentemente Bento
andou desmentindo o que dissera o seu antecessor. Então não se
purga mais?). Bem, talvez seja questão de agenda para próximo
concílio… Pode demorar séculos, mas, para tanto, o céu pode
esperar!
O que não podia esperar era a minha ansiedade de menino.
Por que essa medida provisória? Perguntei certa ocasião. Os bebês mortos, não batizados, deverão aguardar julgamento lá no tal
limbo. Já os adultos encaminhados para o céu ou o inferno, após
julgamento a ser feito no distante ano dois mil. Os primeiros, hóspedes de São Pedro; os outros, do diabo. A propósito, algumas
pessoas melhor informadas dizem que as crianças são automaticamente salvas. Ai, graças a Deus!
Mesmo esperançosa com destino feliz para seus pequeninos
nossa avó deve ter ficado triste. Gente, não há consolo para perdas como essa! A coitada deve ter chorado muitas vezes pelos
cantos de casa de chão batido! Aí, cabe responsabilidade do nosso avô Antônio que foi um pai rigoroso e marido cumpridor dos
seus deveres. Assim, volto a ceder palavra ao próprio para que,
aqui, exponha o que pensava o homem da época, antecipando
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Jairo Martins de Souza
a séria decisão de casar... Filhos que morrem podem ser compensados com outros, a idéia é ter à disposição exército de amor
reserva! Afinal, até que chegue a menopausa da minha querida,
posso, como fez o Senhor, tirar algo mais da costela de Adão. Ou
de Eva. No entanto, durante o período de resguardo, vou guardar
respeito às penúrias da mulher…
Agora sou eu quem diz, na gravidez andariam de mãos dadas! Dedos abotoados, como certa ocasião Machado descreveu.
O que meu avô não poderia sonhar é que, no futuro, jovens pais
conversariam com filhotes escondidos na barriga das mulheres.
Uma evolução. Além do que a barriga grande pode emendar ansiedade por carência costumeira, um filho às vezes é remédio para
casos que já escrevemos como sublimação. Quem sabe não fosse
um par de gêmeos como o Zeca e o João?
Mas com a falta de rádio para ouvir, dormia mal o Sol apagava suas luzes no poente do morro da Estiva. Antes disso, já
deitado no colchão de capim, incomodaria todos os dias a esposa
com sua goma azeda.
Pois os filhos não nascem em fraldas trazidas pelos bicos das
cegonhas, conforme acreditava. Não obstante, - perdoa por escrever isso -, tudo tinha que ser feito através de aberturas nas
vestes e cobertores. Aqui, nessa frase, - afora o que exponho no
capítulo 31, intitulado o namorado ideal -, reconheço relatos de
familiares mais velhos e descrição da literatura da época. Por fim,
assunto de natureza íntima e ligeiramente inadequado para vir a
público.
Mas de fácil dedução. Avalie o leitor pelo número de Souzas
que ocupam espaços de álbuns de retratos três por quatro de nossa família. Ação corriqueira e sem maiores emoções. Em particular as do nosso avô, todo dia ele fazia tudo sempre igual, aí copio
o poeta Buarque que faz parte da nossa sensibilidade poética há
algumas gerações.
Assim louvado o seu talento, esqueço do rapaz que hoje é
um senhor, e sigo observando o meu avô, pois agora já toma o
seu café acompanhado de deliciosa broa feita pela esposa. Novamente, sirvo-me do equipamento digital instalado na vassoura
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que agora mesmo está encostada na parede da cozinha. É claro, o
que não pode faltar é farto pedaço de queijo servido enrolado em
folha de bananeira. Ainda não nascera o Sol e, com seus botões,
já antecipava o almoço a ser servido às nove e trinta, no mais tardar. Às dezesseis, com o jantar, estamos concluídos nas atividades
de sustentação dos corpos.
Alto lá, é nosso pai que interfere na última frase que pensei
conclusiva da idéia que estive transmitindo: filho, informe direito
ao seu leitor! Disseste em termos alimentícios, pois seu avô, como
eu mesmo, nunca deixaria de faltar à rodada de fornicação diária. Inadiável. Sim, pai. Não devo me esquecer que é também
essencial para o sono masculino: até mesmo hoje em que tudo
está misturado.
Quase concluindo, a despeito de tudo que relatei, não posso
deixar de dizer que se trata de missão quase impossível a de conhecer como fomos gerados. Mais sábio é recuperar o conhecido
argumento, aqui palavra de rei volta atrás, e dizer que, na nossa
casa, a mamãe cegonha entregava filhos de acordo com agenda
cuidadosamente preparada. Infalível. Marcada ano a ano.
Não dá. É conceito antigo. Infeliz. Com ele não chego a lugar
algum. Tal como se fosse novamente tirar sustento desse, e do
antigo Bazar.
Finalmente, se não há solução à vista, passo a fazer apelo
para a fantasia. Então fossem nossos pais um rei e uma rainha,
seriam grandes os preparativos para a concepção. Com algum risco, quem sabe nem nascêssemos. Tal como vimos em anotações
e quadros históricos em museus distantes, notemos que o dossel
da cama deveria ser bem alto. Já o leito é de tamanho king size,
e o cerimonial preparado por camareiros e camareiros. Enquanto
o noivo esperava e, com todo esse aparato, deverá esperar muito
tempo, enfim, a coisa podia não funcionar. E, mais ainda, haja
tempo e dinheiro para que se cruzem os mares desde corte de
Lisboa até o interior de Minas, nas proximidades de São Pedro
dos Ferros.
Nossos avós não passaram por isso. Eram pobres. O pobre
é prático. Nada de preliminares… Assim paro por aqui. O que
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escrevi deve bastar, por agora, sobre o ofício de dizer sobre o delicado assunto sexo e nascimento.
Em outro canto dessas memórias escrevo vastamente sobre
outras causas da nossa vinda ao mundo. Adianto que, na verdade, tudo começou mesmo foi com umas pedradas. Disso o leitor
poderá certificar-se quando bater os olhos no capítulo 13.
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Capítulo 12
Apoiados sobre cabos de enxada, dois irmãos conversam.
Duas cabeças... Duas sentenças...
J
á se passaram alguns anos desde que o cometa Halley
deu a luz na sua passagem pelos céus do Brasil nos anos
oitenta. Tive o privilégio de vê-lo solitário quando dava as caras em
horários privilegiados. Mas apareceu diferente na opinião dos que
o viram desde a sua aparição em 1912. Nossos avós disseram: ai,
meu Jesus, é o fim do mundo! À vista desarmada parecia ser do
tamanho de uma cama de casal toda estendida com lençol branco,
é o comentário correto e bem articulado de um digno senhor que
tinha o nome de Pedro Dias de Magalhães. Um perfeito cronista da
época. Ao que acrescento, das antigas, que cabia com folga o pai e a
mãe, assim como todo o grupo de filhos menores do casal. Mantida
a atual relojoaria celeste deverá voltar daqui a 72 anos.
Em 2054 meus descendentes provavelmente o verão. Não
deverá ser tão bonito como o de 12: lembrar que, do jeito que as
coisas andam, deverá faltar-lhe a belíssima moldura dos antigos
céus de Minas Gerais. Ainda próximo ao mesmo 1912, muitas
outras coisas apareceram sob os céus mineiros. Uma delas em
16, quando Maria Luiza deu à luz o menino Jaime Luiz. Iniciavase a primeira parte de sua vida. A do período da capina.
E é a que faz parte do conjunto de seus protestos já nos finais
dos anos 20. Queixava-se de poucos réis no bolso e pouco queijo na mesa. Aqui é tudo bosta rala, esbraveja baixo, e continua,
já demonstra estar um pouco mais calmo. A ira é a doença que
os bons argumentos curam. Estivera, pela manhã, conversando
entrecortadamente com a nossa avó Dica. Só não dissera que
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Jairo Martins de Souza
sentia falta também da presença de moças em quantidade. Boas
cozinheiras. Boas passadeiras. Pensava em casar-se jovem e logo
ter filho: como de fato teve no futuro.
Não faz mal lembrar que aqui sempre terei acionada a micro-câmera que mencionei em capítulo passado. Ah, reforçando
que a direção de cena corre absolutamente por minha livre vontade e arbítrio! No entanto se não disse antes por esquecimento,
digo agora, não se diz cá de uma ditadura do autor, visto que
escreverei apenas o que a máquina vê! Às vezes o senhor poderá
supô-la reinstalada em um cabo de vassoura em movimento, ou
novamente descansando vigilante em um dos cantos da casa de
nossos avós. Repara, ela é literalmente uma espiã. Enfim, agora
descrevo o que vê essa vassoura (ou enxada, ou algo que, de
perto dele, não saia) em cenas do cotidiano do meu pai... A cada
dia tinha novos planos!
Ouvira falar de festas como a do Bom Jesus, sabia haver
muitas e há muito tempo. Em especial a que já vinha ocorrendo
durante a semana no município de São José do Rio Piracicaba.
Tinha visto as marcas de destaque, os períodos festivos ficavam
marcados com círculos em vermelho no calendário do comércio
de Rio Piracicaba, e que diziam preferencialmente a respeito da
quermesse que dissemos.
Mas, Ninico, Jaime Raimundo diz para o irmão, que deverá ser o seu interlocutor preferido nessas memórias… Era com
quem mais conversava. Repare, é um canteiro diferente do que
conhecemos. Não é de couve nem de taioba, e muito menos de
alface, cebolinha e salsinha. É um canteiro de obras. Uma obrada
diferente. Não é igual às que deixamos atrás das bananeiras, ou
mesmo no pasto quando o aperto é grande e a sobra pede para
sair! O padre, que rezou a missa no domingo passado, disse que
é serviço onde todo mundo recebe carteira de trabalho. Por completo, sabe-se lá quem paga a conta!
Ninico ouvia, é uma coisa que o roceiro sabe fazer, e assim
ficava. Ouvindo.
Junto com o canto de um catatau, passarinho miúdo, a voz
do nosso pai quebrou novamente o silêncio. Só tem um detalhe,
Ninico, na siderúrgica faz um calor do cão, das “prefundas” dos
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infernos. Você sabe, sempre senti muito calor como também muito frio. Aliás sempre serei assim. Contra ambos terei minhas armas.
Por exemplo, no futuro entrarei no cinema Odeon com meus filhos.
Onde? Belo Horizonte. Abrirei todos os botões da camisa e coçarei
o peito. Faz calor.
Que façam ah, ah, ah os meus filhos. Pai, pára de dar manota, deixa de ser jacu, ah, ah, ah… Já para o frio usarei cobertor
e manta de tecido grosso para aquecer os pés, nas extremidades
do corpo esfriamos mais. Dizem que é assim porque temos que
manter a temperatura das partes mais importantes nas condições
que precisam. A dos bagos, por exemplo.
No sítio de Piracicaba, que será de minha propriedade, usarei
aquecedor elétrico. Daquele que parece um disco voador cortado
no meio, ou uma piorra cortada da mesma forma… Vou ser sapateiro, diz o irmão, parece que nem prestava atenção ao que nosso
pai dizia. E você, Jaime, vai usar sapatos resistentes e bonitos que
farei, mesmo que em toscos moldes feitos de madeira. E desse
assunto não se falou mais.
Nosso pai está recostado em sua enxada. Facilita o nosso trabalho de captação de imagens. Descansa da capina e dos comentários com o irmão. Que por sua vez também se mantém e deverá
continuar calado. Não é gago como alguns dos outros, mas fala
pouco. A palha já está preparada. Com canivete afiado corta o
fumo que mais parece chouriço empedrado. Duro de descascar,
mas que cede rápido ao manejo da lâmina feito com perícia pelos dedos mais duros ainda de calosidades. Passa a enrolá-lo na
palha. O cheiro é forte mesmo sem fogo, depois insiste em não
acender. Ao seu lado nosso pai começa a pitar sossegado.
Com interesse olha o encaixe da enxada do outro. A trava
de madeira está quase solta, diz para o Ninico, retomando a conversação. Cruza os olhos para os lados à procura de um pedaço
de pau e repara a ferramenta mentalmente, até na capina se descansa. O café já está frio, mas passe-me a caneca. Cá está. Ouvi
dizer que na cidade tem para vender um trem de vidro prateado,
isolado com partes de ar fraco que mantém o cafezinho sempre
quente, chamam de garrafa térmica.
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Quando teremos desses luxos? É o que nosso pai pergunta,
mais para si do que para o irmão. Será que os pedaços de rapadura podem ficar lá dentro? Rapadura boa é a de cana caiana, diz
Ninico. Sim. Nosso pai retruca sem compromisso e complementa,
é boa de descascar a facão, ou de se passar em rolos de engenhoca. De um jeito ou outro deverei plantar muitas delas para
consumo da minha futura família. Quero que a minha prole se
deleite com a sua doçura.
E foi mesmo assim. Mas agora o que faz é sair de si. Os
segundos passam enquanto os braços magros ainda descansam.
A alma que vaga pelos campos, olha Ninico, mas a ele não vê.
Sua atitude faz descansar a nossa câmera e poupar suas baterias.
Pensa nos rudes caminhos que trilhará, na sua casa a construir,
enfim, na vida que terá por vir. Não desanima. Rebusca automaticamente o embornal, ganha pouco. Os poucos cobres tilintam uns
contra os outros. Ao lado, enrolado em um paninho solto resta
um pedaço de broa de fubá já mordido. Seu farelo suja o restante
do pano, constata contrariado. Não gosta de desperdiçar a parte
que julga mais saborosa.
Sorrindo, pensa ternamente sobre nossa avó Dica e seus produtos de forno e fogão para os quais ele mesmo gosta de rachar a
lenha. Mãe faz muito bem tanto broa quanto biscoito de polvilho
frito. Quando casar quero mulher que saiba fazê-los também.
Ninico diz com os olhos, eu também… Como por um milagre, ambos cruzam pensamento igual: mãe alimenta muito bem
seus filhos, sobra leite próprio, dela e de suas vaquinhas, e a bóia
é feita com muito carinho. Não foi somente por graça divina que
deverão ser tão longevos!
Nosso pai tinha muita saúde. Não me lembro de tê-lo visto
desanimado. Também fazia inconscientemente a prática do reforço positivo sem nunca ter tido acesso a obras de auto-ajuda. Seu
modelo era o de movimento de Heráclito. Nada de paradeiras.
Sou grato a ele por muitas coisas além das graças normais que
um filho deve ter pelo pai. Dizia-me, mesmo sabendo dos meus
fracassos: ah, esse menino, o Jairo, é muito inteligente.
Não era do tipo que ficava melancólico nos finais de tardes.
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Para ele os lobos uivavam muito longe, na sombria Inglaterra,
onde os rouxinóis não cantam no crepúsculo vespertino. Hora
reflexiva. Em que se prenuncia o descanso do corpo e o que se
torna forte é o desvio integral da energia do homem para as atividades do pensamento.
Que traz de volta, na calada da noite, os monstros inconscientes que nos atacam vindos transformados de uma infância
distante, e que não foram suficientemente destruídos pela civilização. Donos exclusivos dos pedaços de um corpo que repousa, e
que não precisa mover enxada para sobreviver. Brotoejas e gritos
de protesto, que surgiram em resposta à falta de carinhos, hoje
podem ser pintinhas vermelhas que caminham por corpo de gente grande. Ou crise de nervosia incontrolável. Inconsciente. Marca
da cultura.
Sintomas. O aberto de uma escada a que falta um corrimão
de amparo. Posso cair em algo que já caí, não soube quando.
Preciso de amparo. Careço de amor. Um corpo que cai, como
no clássico de Hitchcock. Ou, como o leitor poderá perceber, se
já não o fez, em uma respiração arfante e entrecortada. Ou num
suspiro profundo que se traduz num ai sem dores. Que sai difícil,
prejudicando a expiração do ar que procura aflito sair de um pulmão que chora. Ou num intestino inseguro que trabalha retendo
amores e paixões muito antigas.
Ou em um choro sem motivo aparente do menino Diquinho,
que veremos, não demora. Ou a dor no peito recuperada de uma
tristeza, que despercebida, não passou.
No final, temos que culpar alguém. Nem que seja o nosso
próprio coração, o qual os antigos pensavam fosse sede dos sentimentos e que, momentaneamente, chora o amor perdido que o
cérebro atualiza no corpo sem saber. E, do qual, os médicos dizem sorrindo a uma cliente que sofre desses males mal assumidos,
a senhora está com problemas psicossomáticos.
Nosso pai não pensava que com o cair do Sol a vida não
mais retornará. Dormia esperançoso pensando que certamente
iria se seguir, pois se com as luzes do dia caminham juntos a vida
e o trabalho, que seja a noite somente dedicada para horas de
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Jairo Martins de Souza
amores sonhados e sensações melhores. Na braguilha, a força
expectorava e dava evidências de sobra, a lembrar premente
necessidade de aplicação em área que encaixasse bem. Enfim,
empurrava os botões e fazia envergonhar. Faz tempo a mandioca,
e os colhões, já o incomodavam na parte do baixo ventre. A
carne explodia na vontade de sair. Vontade de montar algo que
nunca montou, e a que o homem antigo chamava a barca do
demônio.
Com constância o homem que nele nascia prestava
homenagens ao vazio. Esse rapaz precisa logo se casar. Termina
o rápido intervalo. Automaticamente a micro-câmera volta a ser
ativada. Pode ser que se trate de mais uma espécie de sublimação,
mas as novas enxadadas são dadas com mais energia.
Com elas continuou alimentando o seu corpo e sua mente.
Seus braços continuaram fortes por toda sua vida, mesmo que,
nos seus últimos anos, trabalhando em ritmo de recreação, e
cada vez mais delgados, enfim, suportaram, durante a infância, e
adolescência, todos os filhos que veio a ter. Para alguns deles foi
quanto durou.
A vida é criada a partir dos pequeninos, sigamos declamando,
não esquecer da coreografia que fazíamos, e continuam fazendo
todas as crianças do mundo rural que se extingue... Minha
enxadinha trabalha bem, corta os matinhos, vai e vem…
Mas dizíamos do nosso pai... Que a sua enxada tinha cessado
o descanso para o café… Que a câmera tinha sido reativada…
Contudo, se não escrevi, escrevo agora, o tempo estava parado,
fazia um calor intenso naquele eito. Se olharmos para o longínquo
daquelas várzeas entre aquelas montanhas mineiras, não se vê
um tremular de árvores ou um bater de asas de passarinhos. Após
dezenas de roçadas, quem diz dezenas, diz centenas, nosso pai
e o irmão Ninico abriram as marmitas para o almoço composto
basicamente de arroz, feijão preto, farofa com toucinho e ovo. A
altas horas, já passavam das oito da manhã, quem viveu na roça
com certeza sabe, naqueles dias a primeira refeição forte do dia
era bem cedo. Exigência de braços e enxadas que trabalham sob
sol forte.
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Não é, a despeito do calor causticante, que se segue uma
reflexão. Mas rogo ao leitor mais preconceituoso que, nos próximos parágrafos, esteja desvestido de certos grilhões morais que
de uma ou de outra forma seja portador, para desfrutar junto com
nosso pai e o irmão Ninico algumas satisfações genuinamente
humanas. Na vida há ocasiões festivas que ferem os olhos sensíveis de homens da moral. Na realidade, fatos e memórias que
se atualizam no cotidiano, e que trouxeram, trazem e continuam
trazendo, justificadamente, um verdadeiro regozijo aos que delas
participam.
Perdoa os detalhes, mas quem pode negar que, tais instantes,
inseridos em pequenos atos impensados do dia-a-dia, e inerentes
aos organismos vivos de mulheres e homens, fazem ficar mais
leves os mais duros corações e almas. Por exemplo, não demora
o feijão preto do almoço que dissemos, e que todos os dias demonstra seus benefícios nos braços que capinam pesado, deverá
iniciar seus incansáveis efeitos no processo digestivo. Muitos não
percebem, mas homens e mulheres, estas, que se ressalte, discretamente, mesmo que se tornem ruborizadas por fora, por dentro,
por serem humanas, estão a cantar glórias. Não gosta o sexo feminino de usufruir de seus feitos solitários de forma coletiva, mas
em atos como os que citaremos, ambos os sexos adoram imitar a
natureza. Talvez sensações dos tempos transmitidos, de geração
a geração, em que éramos, de corpo e alma, ambos integrados
com os demais elementos primitivos, inclusive vulcões que explodem expulsando lavas, e que passam a escorrer preguiçosas, mas
trazendo a reboque gases sulfurosos aos quais muitos chamam de
enxofre.
Por sinal muito presentes em ovos de galinhas dos tipos que,
ao serem quebrados, se deterioram, exibindo projetos de pintinhos
que não vingaram abandonados pela mãe durante a choca. Mas
dizíamos do feijão preto que, a exemplo dos vulcões é também
rico em vapores, fruto de transformações que ocorrem nos tratos
humanos, enfim, torna-se gás puro, pela natureza normalmente
expulso por grandes pressões e que, sob tais condições, deve obedecer às leis da física, essencialmente a dos gases perfeitos.
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Já no meio ambiente, agora fora do corpo dos dois irmãos,
deverá difundir-se, saído, como dizíamos, da boca de um revólver, tiro mais errado, mirado para os pés, acerta o nariz. Alguns
cínicos quando o sentem na escrita de textos sérios como esse,
classificam-no, são palavras hediondas que não deveriam constar nos escritos de um livro supostamente cristão. O pecado de
escrevê-las as faz mais repugnantes que o cogumelo original de
Hiroshima, esse que, por sua vez, quando escrito parece-nos suportável, mesmo que indigno de se viver na realidade da vida.
Disso sou testemunha ocular, a ele vi ainda vivo nos restos e roupas puídas da triste cidade japonesa que mencionei.
Concluindo, por todas as linhas passadas, não seria polido
acusar nosso pai e nosso tio, por terem sido simples veículos de
fenômenos espontâneos e, mais ainda, inocentes, porque não
provocados.
Isso posto, num ato honesto, destaco que nada que disse a
eles interessa, pois são tempos, para ambos, ora sendo vividos
sem maiores cuidados. E, enquanto isso ocorre, lembro ao leitor
que tudo na vida deve significar ação. Sendo assim, no momento,
o que nosso pai quer mesmo é ficar sério, mas não poderia avaliar de imediato a intensidade da pronta resposta que, por certo,
virá do irmão. Passam-se segundos, não mais suporta, e ri sozinho, dizendo descontraído, Ninico, não posso deixar de dividir
essa alegria com você! Ah, não, Jaime, assim não vale! Nosso pai
já tem os olhos molhados, não da ação dos gases que dissemos,
mas do riso não contido que, exagerado, empurra lágrimas que
saltam satisfeitas quase diretamente dos seus olhos para o chão.
Passados os primeiros instantes, comenta reflexivo, não deve ser
saudável ao homem viver sozinho... É o que a bíblia diz, e com
razão, nem mesmo os macacos conseguem viver fora dos grupos.
Agora quem comenta é quem vos escreve: na realidade passa-me
pela cabeça um pensamento inusitado. Vivesse o homem solitário,
com quem partilharia momentos tão felizes como os que estão
vivendo os dois irmãos?
Satisfeito, nosso pai continua pensando. A moça com que
irei casar terá que ser alegre e feliz. Humana o suficiente para
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conviver com essas artes de nós mesmos, é o que diz, finalizando
a sua fala silenciosa. Por sinal, cheia de boas intenções, as quais
sozinhas não movem o mundo. A propósito, o que também continuava não se movendo eram as folhagens do milharal e bananeiras próximas: ventava pouco. Pouco egoísta, nosso pai inicia a
sacudir os panos da sua retaguarda, com isso esperava dar vazão
para que os gases corressem mais livres. Ninico, que falava pouco,
agora diz com um sorriso confiante: deixa estar, Jaime, daqui a
pouco, dou-lhe o troco!
Guerra é guerra, disso têm consciência os dois rapazes que,
nesses momentos, são ao mesmo tempo general e soldado, dando as ordens que eles mesmos executam. Essa cena se repete no
mundo inteiro, e pode ser bem protagonizada, independente de
qual seja o seu ator. Talvez Kennedy tenha estado furtivamente a
pelejar as suas com Kruschev, insultando-o e sendo insultado, ou
em casos extremos de intimidade e amor, até mesmo o príncipe
Charles com a esposa Parker. Não com Diana. Esta parecia não
ter cara de ser dada a essas práticas. Uma princesa não pratica brincadeira de aldeão. Com o que prosseguimos a cena em
que brincam os dois irmãos, assinale-se previamente que, nessas
contendas, não há vencedores nem vencidos, ambos respiram o
mesmo ar, só que, enquanto um ri, o outro chora.
Em um pequeno arbusto, às suas costas, estamos dizendo dos
jovens Jaime e Ninico, percebe-se um rápido movimento. São
dois tico-ticos que, alterados, levantam vôo de forma descontrolada. Parecem não saber qual rumo tomar. À direita, mais à frente,
saem espavoridas quatro pombas do tipo rolinha (parecem dois
casais, ah, mania de pensar sempre as coisas a dois). De canto
desconhecido, um canário chapinha cessa o seu repique musical que, como ele, saltitava. Há fração de segundos demonstrava
animado suas lições de canto solitário. O mesmo faz um tiziu que
também dá por encerrado o seu tiziu, tiziu, cuidadosamente intervalado. À esquerda, em um átimo, ficam murchos alguns coleirinhas… (hoje raros nos matos de Monlevade…).
Voarão mil à minha esquerda, voarão mil à minha direita, diz
nosso pai, que não cabe em si de felicidade, a ponto de se esque-
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cer e fazer troça com coisas da bíblia. Mas somente ele e o irmão
sabem a força do motivo porque são os únicos presentes no local
do crime. O rei é morto! Viva o rei! (le roi est mort, vif le roi). O
cheiro perde lentamente a força, mas outro mais forte certamente
virá. Coisas inocentes de rapazes irmãos, enfim, o mesmo no futuro faremos nós, seus filhos (ah, males e bens da repetição…).
Nosso pai era diferente dos seus irmãos. Não que fosse melhor que os outros, por assim dizer, uma estrela Sirius de uma
constelação menor. Mas tinha iniciativa e aprendia rápido, era autoconfiante, bom golpe de vista, vivaz... E por aí podia ir seguindo
com o rol… Muitas outras qualidades poderiam ser acrescentadas,
quase todas lembradas quando já idoso, e segundo seus próprios
relatos, que agora faço meus.
De sua infância tenho poucos fragmentos, é como se fossem
partes de uma história muito antiga, da idade da pedra. A mãe,
nossa avó Dica, amava o filho, mas guardava seus queijos no
quarto de dormir (ela dizia ‘drumi’).
Esconder queijos, e falar ‘drumi’, faziam parte, e eram exemplos do seu modo de ser. Cuidava bem do lar e era laboriosa, mas
tinha esses pecados: se é que seguir a economia da língua e preservar queijos nas montanhas de Minas podem ser assim considerados. Presumo que nosso pai notava o pecado do queijo, mas
amava a mãe, tal como deve fazer todo bom filho. Não via inconveniências nem se preocupava quanto ao local de armazenamento
do apreciado laticínio, talvez porque a mãe, de sua parte, lhe desse
um bom quinhão.
Também gostava de ficar agachado e não tinha problema de
tontura ao se levantar. Voltarei a dizer sobre isso, mas adianto
que tinha excelente retorno venoso, talvez resultado da prática
de defecar da forma original que nos ensinou a criação ou lembrança atávica dos matos nacionais. O que fazia não muito tranqüilamente, qualquer alarme falso poderia gerar corridas no mínimo desengonçadas. Como a de um pato que, apavorado, foge
e mantém as asas no alto. Mas isso não era freqüente.
Mais certo é que ficasse olhando as nuvens do céu, com o
que, além de outros benefícios, fazia evitar a visão das coisas feias
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que desciam precipitadas ao solo. Com o retorno dos silêncios da
natureza, tornava-se contemplativo e devaneava com as coisas
que gostaria de ter: sapato de cadarço, galocha, caneta tinteiro,
terno de linho, picolé, futebol, navalha nova, chuteira, estação de
águas, automóvel, queijo cabacinha, café embalado a vácuo...
Isso sim é que é vida que mereça ser vivida.
Precipitemos os fatos. Certo dia, Ninico perguntou-lhe: Jaime, o que você vai ser? Não sei, mas tem uma coisa que eu sei, e
você não me perguntou. Não fico aqui.
E não somente não quero ficar aqui, como também quero
trocar de sobrenome, é o que diz para um dos seus outros irmãos,
o João Luiz. Dos gêmeos, lembro ao leitor que o outro era o
Zeca, é com quem mais conversava. Mas Jaime, por que trocar
de nome? (A pergunta poderia ter sido feita pelo Zeca. Ambos
gaguejavam. O tio João ainda vive, e continua gaguejando…).
Para que botar chifre na cabeça de cavalo? Para que mudar?
Jaime Luiz sorri, sempre enxergou no irmão uma pessoa muito inocente. Você é muito bobinho, João. Mudar sempre é bom.
Você conhece aquele ditado de Monlevade (poderia ser árabe:
depende de quem conta) que diz, se você não mudar de caminho,
sabe sempre em qual mata-burro vai cair…
Nosso pai, nesses momentos, de novo parece sair de cena.
Pensa e escolhe o nome Raimundo. Sim, é esse o nome que sonha
adotar. Pode ser um capricho… Desses que só Deus sabe explicar.
Mas se depender de mim, devaneia, vai ser muito respeitado por
mera conseqüência do meu futuro procedimento comercial.
Sua alma prosseguia flutuando para dentro, mas, paradoxalmente, voava com olhos de quem vê mais longe. A tudo observava como se estivesse fora da conversação. Reparava o irmão, e
dizia para si mesmo, tenho que, no futuro, ajudar esse rapaz… e
ao outro, seu igual, o Zeca.
Passada a sensação de ausência, volta a dar andamento ao
diálogo que travava com o João. Não quero me chamar Luiz até
o fim dos meus dias, repare que meu filho Jairo já falou várias
vezes sobre isso no livro de memórias que escreverá no futuro. E
além do mais não é pecado, até na bíblia vi que pode funcionar
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assim. Não pediu Deus a Abraão para trocar o nome de sua mulher Sarai para Sara? Sim. Seria pecado eu trocar de cara, ou até
mesmo de caráter.
Eu de minha parte só tenho uma cara, agora quem retrucou
irritado foi o irmão. Bobagens, João. Mesmo as chacotas, que
sempre dizem a verdade, falam o contrário que dizes. Por exemplo, não sabes o chiste do doido (alguns dizem ser criação de Voltaire), que foi até o psiquiatra. Ambos gostavam, naqueles tempos
inocentes de roceiros, de piadas sobre mentecaptos. Podes contar.
Pois o doutor perguntou-lhe. Qual é a sua queixa? Doutor, o meu
problema é que tenho duas caras. Ah, é isso. Então, por favor,
se assente nesse banco mais comprido e vamos conversar nós
quatro.
Ambos riram. Embora nosso pai tenha percebido que o irmão não tinha entendido o porquê da graça que dissera. Estava
seguro que o outro preferiria ter visto alguém, ao longe, escorregar em uma casca de banana. Tinha concluído isso porque viu
que o irmão parou rapidamente de sorrir. Mas é nosso pai que
segue dizendo. O que não é problema. No dia-a-dia temos muito
mais que as duas caras que o fulano disse para o médico. Tudo
depende das conveniências do momento. É normal. Por exemplo,
quero ser pai de família, comerciante, trabalhar com a Belgo, ser
membro de uma igreja, jogador de futebol. Em cada atividade,
João Luiz, deve-se ter uma atitude, uma cara. O que não se pode
mudar é de caráter. Não se trata de pecado mortal, desde que não
seja doentio.
Você pode ver isso muito claro em um livro que o seu futuro
sobrinho, o Jarbas Martins gostará muito de ler. De publicação recente. 1927. O Lobo da Estepe, do Hermann Hesse. Saiba João,
temos muitos lobos dentro de nós. Com o que concordo, agora
quem diz é quem vos escreve.
Voltemos a Jaime Raimundo. O que acontece, é que as coisas
poderiam ter sido mais fáceis para mim. Pagamos pelos pecados
dos nossos antepassados. De quem? O Pero Vaz de Caminha,
por exemplo. O primeiro escriba, ele mesmo, a quem o meu futuro filho (ai, meu Deus! Como livrar-me do pecado de falar de
Bazar Monlevade
93
mim mesmo?) irá tentar imitar nas comemorações portuguesas
dos quinhentos anos após as descobertas dos tesouros tropicais.
Esse sujeito Caminha ficou descrevendo belezas, falando da natureza do nosso Brasil para gente interesseira da corte lusitana.
Isso aqui é muito belo, aquela floresta ali é a mais verde que meus
olhos já viram. Aquela lá, de Porto Seguro, eu batizo de Atlântica,
pois é nome bonito. Os passarinhos aqui cantam diferente, além
do que são mais alegres e coloridos do que os do nosso reino de
Além-mar.
Há provavelmente muito ouro, o qual os súditos de Vossa
Majestade poderão retirar sem maior trabalho. Parece-me, relatou
Caminha, que estão à flor do solo. Minhas mãos coçam de vontade de apanhar algumas pepitas. Com ele poderemos construir
muitos templos e igrejas que deverão ser cotejados com as mais
belas da Europa. Há indícios de não ter petróleo em terra, e sim
pau-brasil para tingir as vestes da corte e de El rey. O ouro negro
está debaixo da água azul da plataforma continental dessa terra
por explorar. Quando por lá nosso barco passou, senti uma forte
coceira no saco, sensação que sinto ainda nas mãos como escrito
há poucas linhas atrás. Por sinal, Majestade, passageiros da corte
e tripulantes perceberam de forma igual. Vejo de longe alguns
índios que gostam de plantar mandioca e banana. Tudo tem aqui
para a honra e a glória dos reis de Portugal, concluiu!
Ao que o soberano inconscientemente respondeu, quero todo
esse ouro e todas as suas riquezas. Dê aos índios Puri, os da tribo
da dona Rosinha, alguns espelhos e alguns pedaços de pano… E
que os futuros brasileiros se lasquem!
Praga milenar. Continuamos nos lascando!
Bazar Monlevade
95
Capítulo 13
Tudo começou com umas pedradas
D
izem os entendidos em coisa de homem, que a
guerra e o conflito são os pais de todas as coisas.
Diz uma entendida em coisa de mulher, que disso nem mesmo o
amor fica de fora. Diz o menino Cusecco que, para nós, filhos de
Alice Martins e Jaime Raimundo, tudo começou com a movimentação de pequenos bólidos rochosos pelos ares tranqüilos de uma
paisagem bucólica. E, por estranho que pareça, atirados por uma
menina lavadeira.
Onde? Perguntei, à minha irmã, Lúcia. No Jacuí! No Jacuí?
Perto da represa? Pode ser. Ali era tudo próximo dela. Aliás, nem
mesmo sei se já existia.
O que vou relatar aconteceu em ano que não sei definir bem.
Digamos... 1939. O mesmo em que os nazistas, comandados pelo
seu führer austríaco invadiam a indefesa Polônia. Mas, antes de
falar em guerras ou pedradas, é melhor esclarecer algumas coisas
sobre a paz do cotidiano.
Nosso pai trabalhava em uma construtora cujo nome de fantasia era Santo Elói. A rápida contração facial de um leitor, levemente contrariado, mostra a dúvida que ficou lançada. Elói? Que
santo é esse? Parece mais com nome de um brasileiro comum!
Certo. Eu mesmo conheci algum Elói ao longo da vida. Mas, no
caso desse santo, é o de um ferreiro francês que andou trabalhando no ramo de ferraduras de cavalos transportadores de cargas.
Um colega de profissão do burro do Geo que também trabalhava no segmento. Muito caridoso. Por herança, ficou sendo
protetor dos mecânicos de oficina e de gente que trabalha com
96
Jairo Martins de Souza
metalurgia. Com ferro-gusa, por exemplo, talvez por isso tenha
estado dando nome a coisas de Monlevade... Dizem que, certa
vez, para melhor ajustar uma ferradura arrancou a perna do cavalo que ia usá-la!
Um comentarista, observador daqueles dias, confidencia-nos
como se nos fizesse um ato de solidariedade. De fato, no nosso
estado de Minas Gerais tudo parece ter nome de santo. Morros, cidades, marcos históricos, igrejas, praias, associações civis, militares,
eclesiásticas, armazéns, sabe-se lá quantas coisas mais! Talvez, pela
certeza de que tenham sido, de uma ou de outra forma, grandes
benfeitores da humanidade.
Deixemo-lo de lado. Agradecidos. Pois, fez-me lembrar do
popularíssimo Santo Antônio que ajuda a mocinhas desejosas de
casar. Não sei ao certo se, a ele, a menina Lilice recorreu. Se o fez,
a ele damos nossos agradecimentos…
Com a escrita dessa frase corro certo risco. O do sal no rabo
que, por duas vezes, já comentei, pois minha mãe poderia admoestar-me: ah, diacho, seu Jario! Na casa de sua avó não se
permitia essas coisas de santo. Antes de você se meter a escrever
coisas erradas, pergunte a sua irmã, a Lucinha. Dessas coisas ela
sabe! Naqueles dias, sua avó Rosinha já era protestante. Até mesmo nossa casa serviu como primeira congregação metodista da
cidade e, nos cultos, lembro-me bem, eram oferecidos cafés e
broas de milho que ela mesma fazia para servir ao Senhor. E, aos
seus fiéis que, como de costume, compareciam varados de fome.
Aí mora a verdade, pois Antônio não deu, no caso, nenhuma contribuição. O remédio é voltar a trazer de volta ao texto a
construtora que tinha o nome do santo ferreiro. Na verdade, ela
operava e tinha alguns dos seus obreiros na pequena Monlevade.
Entre seus ajudantes e oficiais estava nosso pai, recentemente fichado no seu canteiro da nossa cidade natal. Após rápida busca
pelos pequenos bairros de Monlevade, não demoramos a achá-lo
em um pequeno remanso nas águas do Piracicaba.
Cá está. É o local onde, aos domingos, lava as suas roupas
sujas de barro, pó metalúrgico, areia e cimento. Esse último provavelmente importado da distante Inglaterra. Aliás, enquanto ele
Bazar Monlevade
97
lavava seus trapos no Piracicaba, não faz muito tempo, nos fins do
século dezenove, os cariocas, acreditem, mandavam lavar suas roupas de luxo na bela cidade de Paris.
Certo. Enquanto alguns têm muito, muitos têm pouco. Isso
nunca muda. Vejamos o caso de nosso pai que tem somente duas
calças e duas camisas. Tudo de pano de segunda. Um conjunto
fica sujeito ao suor do corpo, o outro não vai para descanso, e sim
para a limpeza batida nas pedras do rio. Ainda não tem mulher
que, para ele, se incumba dessa obrigação feminina. Não é casado… Às vezes, distraído, pensa na broa da mãe Dica, e nas roupas
bem passadinhas a ferro de carvão. Era acostumado a recebê-las,
muito brancas e engomadas, quando saía para o roçado.
Por sinal, a única peça xadrez que possuía já de tão puída
não dava mais para usar, tamanho era o desgaste. No entanto
continua com a sua lavação. Mal sabe que, próximo dali, está a
menina Alice Martins que, com outras moças brinca, enquanto
trabalha nas lides domésticas. É fácil deduzir pela trouxa de roupa, ainda não mexida, que a sua obrigação deverá ser o de lavar
a da família dos pais, Rosinda Petrizzi e Clemente Martins. Não
vai à escola, para quê menina-moça precisaria estudar? Não lhe
falta trabalho! Tem 14 ou 15 anos, pressuponho. Não demora,
chamam-lhe a atenção algumas batidas de roupa diferentes, mais
vigorosas, como se fossem de alguém acostumado a bater enxadão. Por meio de interstícios em alguns arbustos vê o forasteiro
Jaime Raimundo que lava os seus trapos, conforme dissemos.
Chama as amigas que aos poucos chegavam para prosseguir com
a rotina do dia e do trabalho. Algumas, ajuntadas com as suas
obrigações, vinham abraçadas a bonecas de pano. Naqueles dias
as moças, mesmo que adolescentes, gostavam, quando já não os
tinham em carne e osso, de estimular dotes maternos. Carregavam alegremente simulacros de filhos que, no futuro, viriam aos
montes.
Em algumas margens do Piracicaba existem partes tranqüilas,
lugares de praias rasas, tais como o que dissemos. Em outras, o
que é mais raro, podem ser encontradas até pequenas pedrinhas
que podem levar o nome de seixos. Também não é incomum a
98
Jairo Martins de Souza
visão de pedras menos arredondadas ainda não desgastadas pela
erosão, e que há séculos e séculos teimam incansavelmente em
não se deixar polir.
Outros rapazes faziam companhia a Jaime Raimundo, e
também trabalhavam em empresas que participavam do novo
projeto de vida do município. Mais alto que suas montanhas poderia estar circulando um dos aviões biplanos comandados pelos
olhômetros do tenente Montenegro que, lutando contra todas as
adversidades, tentava implantar um correio aéreo nacional. Mal
sabia ele que, passadas algumas décadas, um dos netos do nosso
futuro pai seria um seleto brasileiro a desenvolver a sua arte da
aviação na Boeing. Na gelada Seattle, onde já o aguardava um
ansioso irmão que por lá residia.
Foi por tempo breve, com o que volto a Montenegro, dizendo que veio a ser o fundador do ITA. Poderia estar sobrevoando
Monlevade. É uma outra hipótese aeronáutica. Talvez tenha sido
esse o motivo de existir a possibilidade de, já nesses anos, ter sido
inaugurado, próximo à Vila Tanque, o descampado que poderia
servir para o pouso de aviões pequenos como o dos Correios.
Sim. Fazia já alguns anos que o homem realizara o sonho de
Ícaro, e que Santos Dumont ajudara a dar o toque final. Isso já
era realidade no céu. No solo, e nos arredores da usina da BelgoMineira, o que se conversava era sobre plantações de mandioca,
cenouras e bananas. Os interlocutores eram rapazes que vieram
de práticas rurais com cabos de enxada, com os quais eram exímios manobristas. Procuravam melhores salários na indústria da
construção, o que nos dias de hoje ainda nos parece uma praga.
Já as moças, que os observavam sem que fossem reparadas, mal conseguiam controlar os risinhos que desesperadamente
tentavam abafar com as mãos. Podemos vê-las descendo o barranco, formadas, inconscientemente, como um esquadrão que
se protege do olhar do adversário: querem apanhá-los de surpresa. Quase que uma emboscada. Como se estivessem numa
linha Maginot móvel. Munidas de seixos e torrões de minérios,
começaram a atirá-los no local onde estava não somente Jaime
Raimundo, como também seus colegas de lavanderia rural. Que
Bazar Monlevade
99
não se deram como amolados, pois estavam acostumados com os
ruídos estranhos de uma pequena mata. Movimentos da natureza. Pequenos roedores que viajam rápido, bandos de insetos que
se deslocam, titica de passarinho que cai nas folhas, sapos que
coaxam... Coisas que provocam ruídos comuns e se assemelham
a situações outras, como pedrinhas que atravessam o ar atiradas
por meninas inocentes.
Razão porque o barulho de poucos decibéis gerado por um
seixo atirado por uma moça chamada Alice Martins, e que cai nas
proximidades de onde estava o rapaz chamado Jaime Raimundo, a princípio não o incomodou. Os jovens prosseguiam com
a lavação das indumentárias que precisam estar limpas e secas
para a faina de amanhã, segunda-feira. De sua parte, com as
bonecas abraçadas pelos braços esquerdos, as moças continuavam atirando algumas pedras de pequeno porte nos operários
que embaixo, ainda distraídos, somente trabalhavam, trabalhavam... Gente, se eles não se atinam com essas pedritas, que se
lhes atirem calhaus.
Ou torrões grandes de minério que é o que mais se tem aqui.
Alice Martins não perdeu por esperar, atirou logo uma próxima ao
magricelo Jaime. Foi o que, dentre todos, fez-lhe bater mais rápido o coração. O menino cupido nunca erra, mesmo sem o arco e
a flecha com os quais costumava trabalhar na Itália antiga.
Os raios de sol que iluminaram aquela manhã, - a exemplo
das desgastadas águas do rio de Heráclito -, nunca voltarão a banhar o corpo das pessoas que lá estiveram. Não há testemunhas
que presenciaram as cenas que dizíamos, e chamamos de pedradas do amor. Não há como retornar ao bairro do Jacuí, e observar nossa mãe a jogar pedras em nosso pai. Não há como...
Renato Descartes disse que o mundo da mente é o res cogitans, que não pode ser dividido em pedacinhos, pois não tem
fronteiras ou limites físicos. Em contraposição ao mundo do resto
do corpo, que pode ser despedaçado, e a que chamou de res
extensa.
Fiz uma tentativa por meio desse meu mundo indivisível, o
meu res cogitans, para traçar o início do caminho dos nossos pais.
100
Jairo Martins de Souza
Fantasia pura. Mas, finalmente, se nosso pai não se encontra com
nossa mãe, não teríamos como nascer…
Nota do autor: o capítulo que finalizo, o tudo começou com
umas pedradas resulta em uma seqüência contínua de um álbum
de figurinhas que agora passa pelos meus olhos. Do tipo que fazíamos, mas de tamanho maior que os retratos três por quatro, e
que não tinham animação. Fotos pequenas. Cansadas pelo tempo decorrido, pois guardadas em cômodas e gavetas esquecidas.
Premiadas de casas. Pequenas de fotos grandes de casais. Álbuns
da seleção mineira e torneio Rio-São Paulo. Móveis velhos. Poltronas de plástico. Rua Siderúrgica. Bairros, vilas, colégios, campos de várzea, animais, córregos, rios, automóveis. E cidade com
retrato de gente, em especial dos nossos pais. Tudo preto e branco. Que, com o passar dos anos, fica cinza, mistura das duas cores
que se perdem; de fato, ouvimos muitas vezes que os homens não
sonham colorido.
Uma delas tirada na Avenida Afonso Pena em Belo Horizonte. Jaime Raimundo, nosso pai, passeia com parte de sua prole.
Na extrema direita da foto, ah, como nos ajudam certas imagens
futebolísticas, ouve-se uma voz insistente: pai, por favor, compra
bala chita? Trata-se do Cusecco que aqui vos escreve, e que fazia
conversação rotineira de um filho com um pai daqueles dias.
O pedido de balas, as roupas de jérsei, os filhos que andavam
na calçada margeada por árvores... O Bazar... Por fim, tudo começou com umas pedradas...
Bazar Monlevade
101
Capítulo 14
Introduzido por antigo craque de futebol, o autor expõe o
documento oficial de liberação desses escritos (nihil obstat…)
S
into-me cada vez mais autorizado a cumprir a missão
que me propus. Confesso, comecei oscilante. Algumas boas almas têm me animado. Com o espírito mais leve, arrisco-me dizendo que gostaria de ter subscrito a responsabilidade
pelas folhas do Bazar simplesmente assinando as iniciais do meu
nome. Tal como teria gostado de fazer com o nome do meu pai:
com um J e três pontinhos. Kafka fez algo assim. Em O Processo
usou uma simples letra quando identificava parcialmente o seu
angustiado personagem autobiográfico. Agrada-me lembrar do
enigmático senhor Joseph K. Um enfeite similar dá a sensação de
a minha obra tornar-se bela também.
Sei que o autor deve manter reserva sobre o que escreve.
Não deve referir-se ao seu trabalho com palavras de adoração,
nem julgar que escreve uma obra-prima. Não há necessidade de
usá-las quando o tema é seu. Outros cumprem naturalmente esse
papel, pois faz parte da raça. Não obstante, eu mesmo andei escrevendo algo sobre a vista grossa que o leitor deve fazer quanto
a qualquer pecado de autobiografia que venha a surgir aqui. Foi
logo no início desse livro. Ainda rogo tal gentileza!
Pois agora conto algo que não é ficção. Para tanto, basta rápido bater de olhos no quadro resumo do meu boletim do curso
primário e o do ginásio. Notas sofríveis. Ou nas cadernetas de
anotações escolares: o aluno J foi mandado de volta para casa...
por ter esquecido o uniforme de ginástica... por não ter trazido a
madeira e a serrinha na aula de trabalhos manuais... por não...
102
Jairo Martins de Souza
No entanto teria dificuldade de responder qual a minha religião,
ou quantas vezes por ano vou à igreja. Na essência sou Cristão.
Como também sobre o porquê de ter usado barba e bigodinho ralo
por anos, ou a razão de cortar cabelo à moda príncipe Danilo.
Gosto não se discute... Mas dou uma pista. No cinema o
bandido usa barba e bigode para esconder algum traço nebuloso indesejável de sua personalidade. Pode ser que seja por isso.
Pode ser também algo inconsciente. Há alguns pobres coitados
que acreditam piamente na primeira hipótese. No próprio Direito
Criminal, o médico Lombroso, um legista do século dezenove,
escreveu um livro que, fisicamente, me caracterizaria como um
assassino em potencial!
Entretanto, (não há bem que perdure nem mal que sempre
dure), tudo isso pode ser levemente compensado, pois tenho também boas novas a dar ao leitor. Colhidas como grãos de arroz em
uma plantação, mas existentes. Do que falo, em primeira mão, é
a informação positiva que devo publicar quanto ao juízo sobre
esses escritos, e que reflete a sua aceitação social. Adianto estar
resumida no documento que tem o nome antigo de Nihil Obstat
(Nada Contra a Sua Publicação). Encontra-se aberto ao público
como visto no fechamento desse capítulo. Pressuponho que, com
sua divulgação, passo a melhorar um pouco o meu desgastado
currículo.
Se bem que poderia ter sido um homem pobre não fosse
todo o cuidado e todo o investimento posterior feito na minha
educação. Não sou. Não tornei-me um guia de cegos que conta
sua vida, como o da cidade de Tormes. Um lazarillo. O El lazarillo
de Tormes foi obra que alimentou por horas a minha alma, pois
foram muitas as peripécias e falhas vivenciadas pelo rapaz. Aliás,
aí jaz percepção que todo homem que escreve comete erros.
Por exemplo, faltou-me dizer na contracapa desses nossos escritos o mesmo que aparece nas entradas do prólogo do romance
espanhol que disse gostar. Em tempo, escrevo aqui que no hay
libro por malo que sea que no tenga una cosa buena. Foi o que,
no livro, o desconhecido autor do Lazarillo disse ter copiado de
Plínio, o Velho.
Bazar Monlevade
103
Feito esse reparo, - mesmo que ansiosamente aguardando a
mostra do tal nada consta (bebe-se sopa quente pelas beiradas)
-, relato que o nome do hotel poderia ser de la reina, mas era
Del-Rey e localizado na capital mineira. O zagueiro Djalma Dias,
lá chegando, disse o seguinte: estou aqui para iniciar negociações
com o clube de maior torcida dessas Minas Gerais. Espero que
cheguemos logo a um denominador comum. Ponto.
Impressionaram-me profundamente esses dois últimos termos
de sua concorrida entrevista coletiva no saguão do hotel Del-Rey.
Foi nos anos sessenta. Estivemos hospedados, eu e minha esposa,
não faz tanto tempo, nesse já desgastado edifício. Foi o que me fez
lembrar do jogador, na época, conhecido por professor Djalma.
Um craque. Tanto que, dele, tomei emprestadas algumas de suas
palavras. Pois além do que disse, há entre nós outro denominador comum. Ambos fomos alvinegros: eu continuo sendo. Um
dos meus calvários! Por fim, o que é muito diferente do que Dias
tentava inicialmente esclarecer com suas palavras. De fato o que
queria mesmo era chegar a um acordo com a diretoria do alvinegro de Belo Horizonte, o tal denominador comum que disse.
Com o que volto à receptividade dessa obra. Tema que me incomoda. Não seria incomum que fosse deixado explícito que esse
nosso livro foi analisado, nas suas formas internas, diagramação,
conteúdo… E não sendo encontrado em falta grave pelos familiares que compartilham conosco algumas de suas informações, foi
declarado bom para ir ao prelo, e ao público leitor. Concluindo,
teve direito ao seu Nihil Obstat (o seu Nada Consta...). No entanto, antes de exibi-lo, come-se um boi aos bifes, sigo procedendo a
outra argumentação.
Pois não somente um grande autor tem o direito de espalhar coisas boas. O menino Cusecco também pode fazê-lo. Não
obrigatoriamente de acordo com os arrimos elevados da arte da
prosa ou da poética, mas ajuntando, de forma corriqueira, letras,
vogais e consoantes, enfim, formando vocábulos que sabe fazer
concordar com artigos, pronomes, verbos…
Com tais esforços qualquer obra deveria ser considerada
como livre para publicação, e que se deixe levá-las ao distinto
104
Jairo Martins de Souza
público leitor. No entanto, em texto como esse nosso há outra
restrição. Não se pode esquecer que a missão aqui é a escrita de
memórias paternas e, sendo assim, não basta o preencher dos
requisitos acima. Pede mais. Falta-lhe o recurso de poder constar
a saída honrosa: essa é uma obra de ficção, qualquer semelhança
com personagens vivos ou… Buraco que tento cobrir, dizendo
que não é minha intenção que esse discreto livro de memórias
venha a constar em alguma lista negra familiar. Há recurso mais
consistente. Um acordo. O tal nada consta...
Finalmente aqui tenho o denominador comum preconizado
por D. Dias, e que talvez pudesse ter sido concedido, por meio do
documento que mostrarei. De forma resumida, mas bem à moda
corrente dos anos em que se iniciou Monlevade, e com a qual
deveria ter sido iniciado esse Bazar. Antes tarde do que nunca!
Certificado de Nada Consta Da Obra Bazar Monlevade:
Pode Ser Impressa!
(Certificado de Nihil Obstat : quominum imprimatur!)
OBRA REFERIDA ÀS EXCELÊNCIAS, PODERES E MARAVILHAS DE VIDAS HUMANAS COMPENDIADAS: SEU JAIME
DONA ALICE E FAMÍLIA INCLUSIVE AGREGADOS E OFERECIDAS À SOBERANA MAJESTADE DA FAMÍLIA DE JOÃO
MONLEVADE
Pelo cidadão Jairo Martins de Souza nascido em João Monlevade no Estado das Minas Gerais em cumprimento de um voto
feito no ano de dois mil e cinco e repetido várias vezes no de
2006, anos esses após o nascimento de Nosso Senhor e que, à
custa de grandes esforços, parcerias e intercessões vem sendo
cumprido.
SOB ANDAMENTO EM VÁRIAS OFICINAS E EM VÁRIOS
ENDEREÇOS SOB O PATROCÍNIO e auspícios DE MUITOS
EXEMPLOS E AUTORES e que segue com todas as licenças e
Privilégios Constitucionais da República Federativa do Brasil.
Sob Censura de Dom Jarbas Luiz Tomásio Martins, Pertencente a um certo grupo de Peregrinos de Monlevade, Clérigo Regular Benedictino, Qualificador do Santo Ofício (nessa egrégia
Bazar Monlevade
105
oportunidade são parte do corpo auxiliar; Lúcia Martins de Jesus
estenógrafa oficial; Olívia Fagundes filósofa natural; R. H. M. Umbelino Souza assessor das legalidades; S. C. de M. S. Fialho S. C.
Misericórdia; Lívia L. F. de Souza edificações eclesiásticas)
Relato do julgador.
ILUSTRÍSSIMO SENHOR, Por ordem de Vossa Ilustríssima li
algumas partes, tomos das excelências da família Souza e Rosário
de vidas, intitulados inicialmente “mi fili, non debes sic gradi; rects
perge, quaeso”; “verba Volant, Scripta Manment”, posteriormente
chamado de Bazar Monlevade, e composto pelo cidadão Jairo
Martins de Souza que, quando imberbe, respondia em família
pelo alcunha de Cusecco, nascido em Rio Piracicaba, Distrito de
João Monlevade no Estado das Minas Gerais. Informo que não
achando nele coisa alguma contra a nossa santa fé ou bons costumes e a nossa família e a cidade, esta obra é digníssima de se
imprimir. Com uma restrição. A censura que lhe dou é que todos
- em minha opinião - poderão se queixar deste livro porque os
leitores, para correto entendimento, terão tanto que perscrutar
os escritos que lhes faltará tempo para ler; e os escarnecedores,
porque terão tanto que observar, que não lhes ficará lugar para
criticar.
No frontispício deste livro, diz o autor que o compôs em
cumprimento de um voto feito do qual diz a razão: homenagear
seus pais, sua família, sua cidade e etc. e tal. Pouco receou as
sucumbências da mente, pois, com elas, preparava triunfos ao
seu engenho. As suas lacunas não deverão nos trazer uma maré
de rosas. Desmente, pois, esta obra as obras da natureza, porque,
sendo cada folha deste livro um prego, não há em todas estas
páginas um martelo. Bem pudera o autor ter escrúpulo de dar
aos entendimentos tanto gosto, mas quero supor que não ignora
que a piedade, com que se ensina, canoniza a elegância com que
se escreve. Porém, tão fora estou de o poder desculpar, que é
forçoso que o torne a argüir de dois crimes: do remorso por não
inclusão de um ou outro que assim o merecesse, ou, por dizer feio
da desesperação em que se metem todos a criticar o seu estilo. E
ainda assim entendo que é justo que, sem descanso e sem limite,
106
Jairo Martins de Souza
corra ao prelo aos desejos e vontades de quem são de direito.
Este é o meu sentir. E em testemunho da verdade dei esta
assinada com meu sinal, e selada com o selo de meu ofício. Dado
na cidade de São José, alguns dizem São Miguel, do Rio Piracicaba, do mesmo Estado de Minas Gerais no convento de Nossa
Senhora da Divina Providência, 4 de dezembro de 2005.
Dom Clemente Celeste Luiz Martins
LICENÇAS
Finalmente deve seguir livre para publicação caso haja disposição de algum editor ou sob as expensas do próprio autor.
Corram as petições. Da religião. (a) Do Santo Ofício. Do Paço da
Alvorada. (a) Hélio Luiz de Souza Petrizzi, Clemente Alício Rosindo, G. A. Brás e Albertino Cunha Leão, Geass Raimundo de
Jesus para João José Amâncio M. da Cunha. Pr. G. Mundico da
Cunha Barrios de Jequié, Pr. Guilherme Rosindo Oliveiros Umbelino Petriz. Do Paço do Tieté. Sóror Arlete Pontes Drumond de
Souza e do Cunha. Do Paço de Alvinópolis. Madre Maria Célia
do Couto e do Cunha, Do Paço Piracicabano Carmelita Cristina
Juliana C. Souza. Essa obra fica taxada em 12 tostões porque 12
foram os apóstolos de Jesus. Brasília, 01 de Abril de 2006.
Bazar Monlevade
107
Capítulo 15
Onde se faz um breve estudo sobre as causas finais do nosso
nascimento. As várias vidas que vivemos. O autor, de certa forma, admite ser como o escorpião que picou o sapo na
fábula de Esopo
A
nossa família, pai, mãe, irmãos tem o perfil característico dos anos 40. Funcionava mais ou menos
assim. De doze em doze meses, um pássaro estrangeiro, a cegonha, entregava em domicílio os produtos dos nossos pais. Isso foi
o que aprendi. Modelo herdado das avós, bisavós...
É claro, como parte dos desdobramentos do sim que todos
disseram diante do altar. Não adianta tapar o sol com uma peneira. No caso dos meus pais, esse sim, por forças da vida, transformou-se em um não, o caso de Jaime e Alice foi o único de uma
geração familiar. Na época quase um drama, lembrar que, quando falamos drama, estamos rememorando problemas.
É bem verdade que não tiveram chances de ler o relatório
Kinsey ou 101 maneiras de agradar o seu homem ou a sua mulher. Em particular, nosso pai nem mesmo teve acesso ao livro de
conselhos do padre João Mohana, que nos influenciou e que está
por aparecer nesses escritos. De acordo com os amantes antigos
que diziam: amor, você não precisa olhar dentro dos meus olhos,
basta que olhemos na mesma direção. Ou no mesmo caminho.
Herança de Platão. Pouco prático.
Nosso pai passou a olhar e a perceber para si mesmo uma
vida nova, em novo lugar e novas condições. Foi a causa que
teve como efeito, em fases distintas, a separação, o desquite, e o
divórcio. Era assim que as pessoas dissolviam casamentos no Bra-
108
Jairo Martins de Souza
sil. Aliás, cá estou de volta ao conhecido ponto que tudo e todas
as coisas têm relações entre causa e efeito. Por exemplo, quando
dizemos descontraídos, fazendo chacota, que o casamento é a
principal causa do divórcio.
Relacionemos outras interações, agora voltando à relativa seriedade do nosso texto. Nascemos porque dois jovens se casaram.
Ela, com 16; ele, com 23. Em 1939. A causa, o casamento. O
efeito, 10 partos bem sucedidos. Há incontáveis exemplos que
poderiam ser claros como esse, ou podem ser confusos como o
que passarei a dizer. Pois, analisando do cume da árvore para
arbusto mais baixo, poderia ter dito que vim ao mundo por que
o Brasil foi descoberto e colonizado por Portugal, e porque, em
época certa, os antepassados de Jaime Raimundo vieram da metrópole carreados por Dom João VI no início dos oitocentos. E
que, poucos anos depois, chegaria uma carga de negros procedente das costas africanas que, antes disso, tinha se perdido no
Cabo das Tormentas. Caso grave. Alguns marujos alegaram ter
visto o gigante Adamastor, o mesmo que fora visto por Vasco da
Gama, conforme contado por Camões em Os Lusíadas.
Mas o que vem ao caso é que um dos antepassados de Clemente Martins, o nosso Kelé, veio embarcado num canto de porão de negreiro português procedente do continente africano.
Com bolas de ferro nos pés e correntes nas mãos, seguia mudo
e calado.
Enquanto isso, algumas tribos indígenas do já agora Brasil,
deslocavam-se de uma região para outra nas terras da Capitania
de Minas Gerais. Conversavam alegremente, plantando mandioca e comendo banana. Para crescer e multiplicar. Para alimentar,
praticavam a pesca no Rio Doce como também divertiam-se com
a caça de tatus, capivaras e outros bichos da fauna nacional. A
antiga Mata Atlântica era pródiga em animais de caça: hoje é quase totalmente devastada.
Em particular, saíam da região de São Pedro dos Ferros para
a próspera região aurífera das terras de Vila Rica. Região histórica
onde iria nascer a nossa avó Rosinda, a filha de Maria Amância.
Pequenina. Diz o povo, menores frascos, melhores perfumes.
Bazar Monlevade
109
Prossigamos complicando um pouco mais. Afora o casamento de Clemente e Rosinda, o dos nossos pais também aconteceu
porque há cerca de 6 milhões de anos os peixes tinham saído
das águas, e já estavam retirando o oxigênio que existia de forma
abundante no ar atmosférico ambiente. Milagre. Alguém parecido
com os macacos deixou de engatinhar e adotou o perfil bípede
que temos hoje. Vertical. Foi o que veio, no futuro, a provocar
varizes nas nossas pernas. Com alguma vantagem, como menor
gasto de energia para caminhar, e aborrecer a vida do semelhante. Ganha-se de um lado, perde-se de outro.
Perdas e ganhos. Aprende-se mais na derrota, e com uma
delas volto à eterna questão de Vara de Família. Por que nosso pai
deixou o lar que dividia com nossa mãe quando se avizinhava o
sexagésimo ano de vida? Pela instabilidade e desdobramentos do
assunto, não esgotarei o fato por aqui, mas muitos anos são passados desde os momentos cruciais em que vi, a mim, e aos meus
espelhos, tristemente encontrados nos rostos da família.
Mesmo que não tenha sido nada que não possa ser descrito
por romance, tal como José de Alencar descreveu em bucólica
redondeza do centro do Rio de Janeiro do século passado. Questões de ser Lúcia ou Lucíola. Quem sabe diferença de nitratos
e outros minerais; ou diferença do modo de se cozinhar, ou de
falar. Um de Marte, a outra de Vênus, e que diz querer somente
amor por amor. Uma disse sim, o outro entendeu no. O não assim
mesmo escrito para evitar efeitos nocivos de cacofonia por parte
de quem sofreu.
Lembro-me bem da belíssima cesta de prata que, satisfeito,
nosso pai trouxe para casa embrulhada debaixo do braço. Embrulho para presente. Prenda normal durante ocasiões festivas como
aquela. Na mesa jazia um belíssimo jogo de jantar pincelado com
motivos chineses dourados. Fazia parte da celebração das bodas
de prata do casal. Estranho... Não me lembro de tê-la visto, estou
dizendo da cesta, em outras ocasiões, como também não atino o
porquê de fazer tal registro. Fica aqui sem resposta.
Por razões assim é que sigo escrevendo. Eu e o menino. Cá
entre nós, é também por elas que um autor credenciado gasta ho-
110
Jairo Martins de Souza
ras buscando frases para projetar imagens e, por meio delas expor
sentimentos. A vaca no pasto, a grama na terra, o sol na galáxia, o
milagre do leite, a cesta de prata, enfim, fatos corriqueiros da vida
são a expressão máxima da arte. Incompreensível. Que me faz
observar, vez por outra, um pequeno retrato dentro de um livro
gasto de filosofia. Encanta-me o enquadramento fotográfico de
dois encapuzados que se beijam, na obra famosa de Magritte, e
que causa a tal estranheza que disse há pouco. Nela, dois velhos,
dois jovens, não sei bem, que não se conhecem, tocam-se como
almas irmãs. Comum nos dias de hoje!
No passado, pior ainda. Lembram-se do capítulo “tudo começou com umas pedradas”? O homem de Monlevade buscava
uma cozinheira, uma lavadeira, uma mãe para os filhos, que alguém acrescente o que mais necessário fosse.
Bodas de prata. Arte. Vida. Enigma. Repara, caro leitor, tudo
dos dois últimos parágrafos esteve por conta da tal cesta de prata esquecida. Pois aqui se diz da vida com o mesmo sentimento
que invade alguém que observa as dores da Espanha atacada no
Guernica, de Picasso. Ou a Mona Lisa de Leonardo que, de tão
falada, dispensa comentários! Ou simples gravura da Santa Ceia
que traz perguntas que nunca irão se esgotar. Nela, dizem que
Maria de Magda aparece disfarçada em um dos apóstolos. Ao
lado de Jesus! No fundo é bonita reunião de família apostólica. É
o que lá se vê.
Cá pelos lados de Monlevade, nosso pai real também participava de mesas com amigos de outra família. A de um seu confrade e amigo, o José Brás. Tradicional comerciante e adepto das
histórias de Alan Kardec. Diferente do amigo Jaime, separou-se
da mulher somente quando essa morreu - finalmente, com isso
paro, por ora, assunto que rendeu rios de lágrimas à minha família.
Então, para não encerrar sem dizer de outro tema que anunciei, recordo que os Brás diziam, com outras palavras, que tínhamos muitas vidas vividas ao longo de séculos e séculos: um aldeão
de uma vila francesa, um nobre de uma antiga casta romana, um
menino que dizia adiós e corria pelas escarpas de Machu Picchu,
Bazar Monlevade
111
um frade beneditino torturado pelas tentações do mundo, um
pastor de Alpacas das ilhas do Titicaca, um negociante turco de
carnes de aves curtidas que negociava em vilas alemãs, um missionário espanhol que pregava pelo mundo as idéias e valores da
Companhia de Jesus, um acompanhante de Pizarro que primeiro
atacou Atahualpa...
Tinham lá suas razões. Eu mesmo já admoestei o burgo-mestre que assombrava Guilherme Tell, curei histéricas na Bergasse
19, cavalguei três dias e três noites ao lado de Alexandre, ajudei
Avicena e Averrois na difusão dos algarismos arábicos e da álgebra, lutei na Legião Estrangeira, venci corrida de biga contra
Ramsés, fui irmão de Jaime Jaimonovitch - um bebê que morreu
nas histórias de Doistoiévsk -, e por aí vai...
Aliás, não somente essas - sou eu, caro leitor, quem prossegue afirmando - vivemos outras vidas mais reais. Concretas. De
bebê, de menino, de solteiro, de noivo, de casado, de divorciado,
ou sozinha, como tristemente terminou os seus dias minha mãe.
O filho do amigo do nosso pai, o jovem Gilson Brás, foi nosso
especial companheiro de infância. Kardecista, como o pai. Que
Deus o tenha! e, não por ter visões e antecipar fatos futuros, mas
por motivos de verdadeira fraternidade é um dos signatários in
memoriam do tal Certificado de Nada Consta. Pode lá ser visto
como G.A. Brás.
Insisto em suas convicções, já pincelei algo sobre elas. Pois
dizia que, de fato, o número de vidas vividas que, arbitrariamente,
dissemos, era infinito até que atingíssemos o nirvana, estado de
paz sabidamente cobiçado pelo povo indiano. Outra cultura.
Assim não posso concordar com essa dança cósmica de vidas
e mortes que disseste, Gilson. Mesmo que saiba que não possas
mais escutar opiniões sobre assuntos que eventualmente chegamos a discutir. Mas sobrasse razão de sua parte, o número de encarnações seria seguramente diferente das vidas que, na Vila Tanque, supunha que tivessem outros seres, por exemplo, os gatos.
Assusta-me a idéia de voltar a ter sensações medievais como
as que tive, quando criança, o de apedrejar gatos e bruxas; no
caso, pobres borboletas em metamorfose. E, por extensão, pu-
112
Jairo Martins de Souza
desse ter como vítima a moça que se submeteu a Salvatore em O
Nome da Rosa. Que horror! Tinha fome e foi chamada de bruxa
por ter sido seduzida a troco de miúdos de galinha!
É... Não se deve desconhecer a realidade dos preconceitos
maléficos da escuridão medieval. Passado recente aqui pelo interior do nosso Brasil! Mas, por que, em especial, os gatos demoravam tanto a morrer quando açoitados?
Enfim, agora é o menino Cusecco que prossegue escrevendo
e pergunta sobre dúvida antiga. Tinham de fato sete vidas?
Certamente perderiam uma vida por vez. Se bem que, volto a
dizer do falecido Gilson Brás, não creio que se condoesse de bichanos sob o viés e o ponto de vista que dissemos. Como também soubesse que o grego Pitágoras, que iniciou essas histórias de novas
encarnações, não pudesse ser um crucificador de animais como
fomos. Dizem que andou repreendendo certa vez a um amigo em
Atenas. ‘Amigo, não deveis bater com a vara nesse cão. Reconheço
nos seus latidos a voz de um outro amigo. Era feliz e morreu há
muitos anos’.
Aí está. Quem sabe os gatos ainda sofram por não manifestar satisfação. Por não serem felizes! Não dizem obrigado com os
olhos, nem balançam o rabo como fazem os cães.
Pelo contrário, na Vila Tanque miavam tristes pela madrugada adentro, talvez porque conhecedores atávicos de perseguições
desde os primórdios do cristianismo. A arte da pintura bem mostra que lograram ser considerados parceiros de belzebu, satanás,
príncipe das trevas, o adversário, o tranca-ruas, o anjo caído...
Bazar Monlevade
113
Capítulo 16
Onde se diz das tosses da nossa Avó Dica. O rapaz de fala
fina!
A
ntes de seguir definitivamente para o cemitério de
Carneirinhos, nossa avó paterna Maria Luiza de
Jesus tossia muito. Tosse comprida. Pulmões fracos. Pensando
nisso, toquei no seu corpo frio quando ajudava a conduzi-la no
cortejo fúnebre. Feito a pé como era a prática. Fiquei triste quando distraidamente constatei que ela nunca mais voltaria a comer
uma lasca de queijo. Muitas décadas depois pensei, volto a dizer
de sua tosse, fosse igual às das crianças, como algumas minhas
próprias, que tiveram coqueluche. Com a velhice baixam-se as
defesas naturais: volta-se a ser menino em tudo.
Era magra como seus filhos foram, nos dias de hoje apenas
um deles continua sendo. Encurvada pelos anos, mas não que
chegasse aos excessos de ser chamada de corcunda. Nem os xaropes e emplastos mais fortes davam conta de sua doença infinita.
Na roça, dizem, há coisas que só terminam quando há uma
devastação geral, uma grande enchente, uma seca cruel, o roubo
de uma vaca quando se tem uma só... Seus olhos azuis morreram
velhinhos e gastos pela vida.
O tal incômodo parecia de fundo psicológico, aliás, o miolo
cerebral parece comandar tudo na vida das pessoas. Parece. Há
exceções que interessam ao nosso texto.
A respiração é uma delas. Não somente jogamos para fora da
alma sentimentos sinceros; como o dizer sobre pai, mãe, família,
cidade, etc., como também o ar tomado por empréstimo ao nosso
sistema respiratório (prova disso é que às vezes engasgamos).
114
Jairo Martins de Souza
Podem ocorrer acidentes. Como ocorria com minha avó.
Será que foi isso que, aos poucos, a matou? Ou de outra natureza. O nosso irmão Jarbas Martins teve, por exemplo, um pouco
de ar jogado para as costelas. Lugar errado. Um pneumatóforo
espontâneo.
Já as cordas vocais têm posições, fecha mais, fecha menos.
Cada pessoa tem as suas próprias: nenhuma é igual. Funcionam
como impressões digitais, mas há casos em que mesmo uma mulher fala com voz de tenor. Uma outra exceção.
Caso raro. Mais comuns são homens de fala fina. Nosso pai
dizia que os pequeninos, e de fala fina, são os que devem ser mais
temidos: talvez porque tenham atitude de mulher.
O primeiro que vi nesse contexto, chamava-se N e era muito
alto. Conforme combinado na abertura dessas memórias, sobre
certo tipo de assunto manteremos sombras. Morava em Monlevade e era filho de Y. Delicado como uma menina, caminhava rebolando faceiro pelos passeios que circundavam o retângulo de lojas
que formava a Praça do Mercado. Homens que cresciam como
mulheres tinham que parecer mulheres para namorar homens.
O tempo muda tudo. Como a união faz a força, homens com
cara de homens ficam amorosamente de mãos dadas dentro do
que foi chamada a serenidade gay. Não era assim. Olhava N de
forma curiosa, como se fosse um extraterrestre. Atualmente isso
traz pouco constrangimento.
Era um sujeito falante e, nos primeiros anos de uma década
do século vinte, foi para Paris. Foi desfilar na Bois de Boulogne.
O mato de Bolonha.
Há pessoas que falam menos. Mais sábios. Aplicam melhor o
recurso que nos deu o criador: duas orelhas e uma só boca. Tornam-se mais gostados na cidade, na família, e na sociedade. Não
dão bom dia a cavalo! Respeitam o que diz o povo alemão, Reden
ist Silber, Schweigen ist Gold. Falar é prata, calar é ouro!
Devem ter aprendido com os japoneses do Japão, que
aprenderam com os antigos samurais, que, por sua vez devem
ter aprendido com o cão Cerberus, que, segundo diziam e ainda
dizem, teve extirpadas as cordas vocais, e que impedia fuga dos
Bazar Monlevade
115
habitantes do Hades e que...
É… O homem que sabe ouvir é melhor aceito. Não é sem
razão que dizem que Deus não fala: comunica-se conosco por
meio de palavras escritas ou por intermediários. Alguns fiéis acreditam que no mundo católico esse último papel seja exercido pelo
Papa, muitas vezes já ouvi isso admitido pelo próprio. Mas o que
se confirma é que encomenda tudo por sinais que não vemos:
sonhos, língua de anjos, pombas brancas, e outros meios ainda
desconhecidos. Por essa deficiência de comunicação fez moradia
aqui na terra somente com os que nele crêem.
Talvez se esqueça que a vida toma cores e se movimenta pelas letras e pela palavra. Uma verdadeira rainha. Um totem que
se transforma a cada instante e que se torna sagrado por meio de
escritores que a consagram em uma praça de adoração pública.
Aqui acabei de lembrar um famoso conto de Borges. Nem mais
me lembro onde e quando o encontrei!
No fundo, agora sou eu quem diz, as palavras são estátuas
mortas, representações de cadáveres que renascem a cada convocação, tais como as feitas em portas de museus: isso na voz de
adultos escritores. Na de crianças significam o pedir doces, balas e
o declamar pequenas poesias. Por exemplo, a mamãezinha quando dorme…
Com tudo isso, Deus, o silêncio… sob forma de prosa, ou
de poesia, a palavra, por meio da literatura seguirá sendo nossa
companheira, e é como devo prosseguir tirando alguns dedos de
prosa a mais com você. A quatro mãos, as do escritor e as da
criança!
Pois escrever sobre o passado é, por assim dizer, remontar
vela que queimou faz anos. E com ela caminhar para trás, alumiando as nossas antigas tocas de mato ou de rio. Ou fazendo
buscas nas hoje lentas águas do Rio Piracicaba que, quando mais
límpidas, nos viram e fizeram crescer. Talvez em tempo olhemos
e oremos por aquele ainda majestoso caminho de águas (pode
simbolizar nossas vidas).
Finalmente, à moda de Guimarães Rosa, é osso que deixamos morrer mais magro, nem mais barcos nele se vê. E que se
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Jairo Martins de Souza
torna, a olhos vistos, em matéria fóssica, leito amarelo de terra
machucada por garrafa plástica, metais, mercúrio, ferro, restos de
passarinho morto, sabiá, sanhaço, caga-sebo...
Bazar Monlevade
117
Capítulo 17
Onde o memorialista, após algumas divagações,
retorna finalmente a Monlevade.
Ah, que falta faz um menino de recados!
A
aceitação de uma obra literária, mesmo que de
memórias ou crônicas ligeiras, depende de algumas condições. Barthes, o crítico, disse certa ocasião que fazer
literatura é trapacear com as palavras. Por tudo isso, é assunto tão
gasto que passo a atestá-lo por meio de outra palavra totalmente
divorciada da arte literária.
O Padre Vieira afirmou algo assim em um dos seus sermões:
a condição intrínseca para aceitação da palavra do Senhor é naturalmente perfeita. Nela não há qualquer tipo de deficiência. Se
isso não ocorre é por falta de luz, ou dele mesmo (ao proferir a
mensagem), ou do fiel que o escuta.
Na literatura, o texto escrito de forma clara também não dá
margem a idéia diferente por parte de um leitor ou de um ouvinte
atento. Decerto, há casos em que o escritor faz questão de complicar, alguns deles ficam altamente credenciados como cobaias
para estudos e análises da Academia. Se bem que, no frigir dos
ovos, com algum estudo sempre se pode chegar a um entendimento comum, enfim, não há necessidade de fé no autor.
Com o que volto ao Bazar dizendo que escrevo procurando
aceitação. Fé. Fé no que escrevo. Para tanto, buscando sem cessar
o que a literatura acredita e ensina, não usando, por exemplo,
uma língua feminina e pouco conhecida, como a do pê. Ou a que
os juristas usam justamente para que não sejam entendidos pelo
povo e pelo leitor comum.
118
Jairo Martins de Souza
Feito mais esse ajuste, prossigo escrevendo que nosso pai,
muito cedo, andou adquirindo veículos a carburantes. Não que
gostasse de demonstrar prosperidade, e sim de coisas que funcionassem bem. Deles já fazia uso, mesmo quando todas as estradas
eram esburacadas: por favor, nos próximos quilômetros há algum
posto de gasolina funcionando? Sim, o do quilômetro trinta. Mas,
seu Jaime, cuidado, choveu e o trator não passou ainda por aqui
para nivelar a terra. Há uma caminhonete 48 tombada na curva
que antecede à grande reta que sobe depois do posto; a cor é verde. É mesmo? Acho que conheço o dono. É a de um representante comercial que esteve ontem exibindo mala de mostruário em
Monlevade. Deus queira que não tenha morrido! Gente, quando
teremos asfalto aqui?
De Belo Horizonte a Monlevade gastava-se em torno de seis
horas: até hoje continuam sendo em torno de cem quilômetros.
Nas primeiras incluem-se alguns minutos mais para alimentar o
corpo da família à base de poções de frango com farofa. Já as
almas seguiam leves e dispensadas de maiores cuidados. Bastavanos a satisfação de viajar com um piu-piu pendurado ao lado do
retrovisor e o pano, que imitava pele de onça, e que protegia e enfeitava o painel, e, por fim, dirigido por mim, guiado por Deus.
Disse rápido da viagem que fazia com nossos pais vez por
outra. Já longe deles, andei também o suficiente por esse mundo
afora. Poucas vezes. Não é à toa que Deus não dá asa à cobra,
é o que minha mãe dizia. Dezenas de rolos de filmes. Américas,
Ásia, Brasil, Europa…
Continentes onde vi passar rios e mares, universidades e
mosteiros, quadros de reis e rainhas, povos que protestam, vilas
e metrópoles, aviões e navios, igrejas e museus, cenas bucólicas,
estádios e catedrais, tristezas milenares, restaurantes e hotéis, etc.
Longos anos até retornar à cidade e ao bairro em que vivi os
primeiros anos.
A vista de um rasgo em pedras entrecortadas de uma estrada
de terra que sobe sinuosa, dá-nos a pista que estamos chegando. Há instantes estivemos jogando poeira para os lados de São
Gonçalo do Rio Abaixo. Daqui também não tenho fotografias que
Bazar Monlevade
119
venham a puxar lembranças esquecidas. Não precisa, pois a geografia com a qual tenho intimidade por si só faz a tarefa. Então,
por favor, pulem os irmãos Géa Raimundo e Jarbas Martins! Sim.
Pulem agora, é o que peço, para a carroceria da caminhonete.
São passados já quarenta e cinco minutos da última troca. Chegou a minha vez de viajar sozinho na boléia com meu pai!
Repito que não tenho foto de nada disso. No entanto, aí está
a verdade do amor, nunca por lá passei sem miraculosamente
viajar de volta às férias que passávamos todos juntos na pequena
casa da Vila Tanque. Em compensação, passados muitos anos,
mesmo sem os negativos, andamos multiplicando umas outras
poucas que tínhamos. Foi o que disse a minha mãe poucos anos
antes de morrer. Como? Perguntou-me. Digitalizando! Não sei
nada disso, Jario. É fácil de entender, mãe…
E já que isso gasta muito espaço no computador, é feito a
partir de arquivos zip, Jpeg, Mpeg... O que fazem é cortar pontos
não importantes para desenhar a imagem ou a palavra… Como
na piada do Joãozinho… Joãozinho, por que você não fez o dever? É porque estava com pregui…
Tudo bolado por um tal de software. Se quero guardar ‘Jesus
é amor’, guardo na verdade ‘Jes am’. Colocado no contexto certo, a máquina entende…
As ‘plvrs’ ficam estocadas assim nas prateleiras digitais. Apertadinhas e fundidas uma nas outras. Como sardinhas coqueiro.
Na saída ainda continuam sardinhas. Pelo menos parecem! Então, quando solicitado por quem precisa, o software refaz a forma
original, e aparece no visor a frase que se desejava rever: ‘Jesus é
amor’. Ah, Jario, isso é que escrever bonito…
Sim, mãe, como também continua bonita a nossa Minas Gerais. Não me esqueço dela e da senhora. Sua majestosa e contínua elevação rochosa, desgastada pelos séculos permanece imponente. Quando passo por sua estrada vinda do Espírito Santo,
vejo que sua paisagem equivale a quadro de fundo pincelado
com sedimentações e erosões que constroem figuras interessantes. Nele, como de resto em todo o Brasil, a língua que se escreve
é prioritariamente o português.
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Jairo Martins de Souza
Língua com a qual continuaremos a fazer as trapaças que
Barthes avisou, enfim, antecipando a inevitável distorção das
memórias desse Bazar!
Bazar Monlevade
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Capítulo 18
Diz-se da Vila Tanque. Explica-se como um garoto fabrica
um bodoque. Comenta-se também a importância dos critérios cristãos, e por aí segue
A
claridade do domingo de Meaípe não alivia o sentimento obscuro que incomoda minha alma. Uma
longínqua nuvem escura no horizonte faz-me recordar suspeição
latente que trago comigo: a de que, ao longo dessas memórias,
tenho usado em excesso a conjunção adversativa ‘mas’. Um jogo
de contradição. Penso fundo e concluo resignado: faço isso por
não encontrar recurso melhor.
Não obstante, a partir dessa retomada de consciência, procurarei dar mais valor à luz do que à escuridão, ser mais lúcido do
que tolo, mais formiga e menos cigarra e buscar com insistência
uma melhor forma de vida e vocabulário. Pode ser a partir de
agora, aplicando um método simples que nunca falha, uma frase,
quase um mantra, que tem uma única significação: Deus é amor.
Idéia fixa. Congelada. Quanta diferença repousa aqui!
Ainda passeando às margens dessa mesma conversa, percebo
que minhas mãos também, automaticamente, têm anotado palavras de negação. Talvez postura inconsciente, pois nem sempre
fui assim. Por muitas décadas, após a morte do menino Cusecco,
eu continuava com dificuldades em dizer a palavra não. Buscava
aceitação. Com o seu reaparecimento, pois, como sabido, vem
colaborando conosco nesses escritos, tal fato não vem se repetindo. Voltou mais crescido.
O que não é fora de eixo, pois o homem, agora já sou um
deles, gasta muita energia dizendo não a tudo. Instinto de defesa.
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Jairo Martins de Souza
Em todas as muitas línguas que existem, por exemplo, no, non,
nein…
Isso merece um breve retorno ao início dos tempos, onde assoma alta no nosso caminho a antiga Torre de Babel. Metáfora de
relevo. Marcou riscos fundos no chão feitos com a vara de Deus:
seus construtores falavam línguas estranhas, talvez como o basco
e o mandarim! Ninguém se entendia…
Com o que passo a ouvir o outro lado, o secular. Dentro de
uma democracia literária nunca se pode deixar de permitir o conflitante (sei que estendo por demais o assunto, mas…). Tem que
ser assim. Mesmo que, como, no caso, esteja perdendo o controle
da situação!
Então, um aluno apressado, como eu mesmo fui, poderia ter
copiado, o que um homem com jeito de professor resumidamente
diz. Daí segue-se rascunho levantado em caderno de notas de
Curso de Letras…. Alguns estudiosos dizem que, na linguagem,
tudo começou com um grito humano que tentava imitar a queda
de um raio ou o ruído da boca de um macaco, e prosseguiu com
o indo-europeu, terminando modificado pelas viagens do homem
de 25 mil anos atrás. O resto correu por conta das trocas culturais
entre os povos.
Mas digamos que foi com a tal torre que o homem foi dividido em vários homens. A despeito de algum ponto em comum,
como o ‘não’ que disse em poucas delas.
Enquanto isso (finalmente falta pouco para chegar até onde o
menino Cusecco quer e ambiciona), e voltando a dizer de Babel,
recordo que poucos povos que, de lá partiram para o mundo, têm
tido comportamento cristão. Com isso Jesus tem chorado pelo
homem, esse choro começou com um dos seus discípulos que fez
acordo com o diabo, não digo maior detalhe, pois até um homem
Mudéjar sabe de cor a história das trinta moedas!
Seguiram-se outros casos. Passaram-se séculos. Na Alemanha, Fausto, por sua vez, acabou por fazer acordo nebuloso com
Mefistóteles no clássico de Goethe. Disso também qualquer ateu
já ouviu dizer.
O que a todos falta saber é que Deus, voltando para o nos-
Bazar Monlevade
123
so Brasil, deve ter também chorado pelos maus feitos dos seus
filhos na distante Vila Tanque. É o que passo a explicar por meio
de exposição que, a partir de agora, retorna às mãos do menino
escritor…
Os postes de luz iluminavam pouco na Vila Tanque. A luminária usada parecia uma sombrinha aberta. Pequena. A sua
lâmpada nos pareceria, se comparada com as de hoje, como uma
laranja campista bem madura. Um minúsculo sol. Como os que
Halley viu quando media, com artefato que fabricou, a luz das
estrelas no século dezenove. Nos banhos vespertinos, tornava-se
menor ainda, a usina de energia do Jacuí exibia a fraqueza de
suas águas. Talvez, por isso, quebrar lâmpadas fosse um dos nossos passatempos. Tínhamos muitos outros!
Uma forquilha é formada por três pauzinhos redondos em
forma de ípsilon. Na natureza é feita a partir de parte dura de
galho pequeno de goiabeira. Na sua extremidade superior era talhado um recorte em torno de sua circunferência. A largura e a
profundidade da parte trabalhada com dimensão suficiente para
acomodar a amarração de uma fina tira de borracha de câmara
de ar. Das usadas em pneu de bicicleta tipo balão. Uma em cada
perninha superior do Y. As outras duas pontas eram amarradas
em dois furinhos de um pedaço de couro retangular, com tamanho suficiente para assentar uma pedra por vez de, no máximo,
um centímetro cúbico.
O menino diz-se cansado, e quem prossegue escrevendo sou
eu mesmo, pois o peso da pedra devia superar o de uma esfera
de aço. Pequena. Das que normalmente achávamos em rolimãs
desmontadas de tamanho médio. Fosse feito assim o artefato funcionaria bem. Bom para incomodar caça pesada como gato, cachorro, e boi. Para pomba trocal, juriti e rolinha usávamos cargas
menores. Pedra menor. O objetivo passava a ser o de não mais
somente afugentar uma andorinha, um pardal, um tico-tico... Havia também mamonas. Mamona é vegetal com a aparência de
ouriço verde com espinhos moles; muito comum nos matos de
Monlevade. Seu fruto falso tinha o tamanho de uma birosca média, e era encontrado caído ao pé da planta. Em termos nacio-
124
Jairo Martins de Souza
nais, ficou popular há cerca de uma década por meio do nome de
conjunto musical. Triste fim. Morreram fulminados pela queda de
pássaro de metal. Um avião.
Lembro, com algum atraso, que o procedimento que o menino relatou foi o do fabrico de um bodoque que, parece-me, foi
projeto de uma outra criança, a partir da funda que o menino
Davi usou para matar o gigante Golias. Depois eu mesmo disse
das pelotas e pedras que eram por ele arremessadas. A sua munição. No frigir dos ovos, era minério que brilhava azul, pintado
pelas partezinhas de ferro que existiam em abundância.
Quando mais velho aprendi a chamar o bodoque de estilingue ou atiradeira. Não importa. Sendo um ou sendo o outro,
fez, faz e deverá continuar fazendo com que eu, a ele, associe
alguns dos meus atos a escritos de fundo moral. Tal como as do
conhecido ditado, ‘quem com o ferro fere com o ferro será ferido’.
Aconteceu por acaso.
Certa manhã uma andorinha solitária coçava preguiçosamente a cabeça. Nos céus azuis da Vila Tanque muitas outras faziam
exibições da arte de voar. A futura vítima, antecipo, descansava,
tranquilamente pousada, na fiação elétrica da Rua do Contorno
defronte à casa que morávamos. O exemplo de crianças melhores
de cidade grande poderia ter sido, por mim, previamente seguido. Eu poderia ter falado à minha mãe da mesma forma que
vi um deles, em anos recentes, dizer ao mesmo tempo em que
apontava, encantado, o dedo para o bichinho: olha, mãe! Olha o
passarinho!
Diferente dele, cada coisa a sua época, sobreveio-me um desejo primitivo de matar por matar, testar a pontaria, finalmente,
mostrar que era mais forte que o animalzinho. Ou, quem sabe, verificar a eficiência do bodoque que tinha grosseiramente construído. Mal reparava que, enquanto isso, uma lagartixa passava mais
abaixo na parte inferior de um caibro de cumeeira, não entendo
por que não cai. Parece ter grude cozido nas perninhas, que não
deixa marcas, lembre-se o leitor, o velcro só veio a aparecer com
a conquista espacial, enfim, alvo fácil!
Relembro que estava com a arma em posição de tiro. Assen-
Bazar Monlevade
125
tei com excitação a flecha no arco (ai, não me canso de metáforas!), ou, como de verdade, a pedra de minério no courinho. Com
a pressa rotineira de uma criança estabanada, não reparei que as
tiras de borracha do bodoque estavam retorcidas de acordo com
os contínuos matemáticos da moderna ciência da topologia. Aí
fica fácil deduzir, cheias de energia acumulada em segredo. Disso
somente fiquei conhecendo muitos anos mais tarde pela equação
de energia elástica ½ (K · x2).
E que, aplicada ao caso, fez com que a pedra fosse furiosa
e descontroladamente encaixada na parte frontal da minha perna esquerda. Passaram-se anos, a perna ainda psicologicamente
continuava doendo. Como testemunha, tenho a cicatriz que devo
guardar como lembrança até o final dos meus dias. Minha mãe,
vendo a perna do quinto filho sangrar, disse-me, ao mesmo tempo em que oferecia um trapo de pano para estancar o sangue que
jorrava. Êta, menino bobo! Sabia que não haveria nada além que
um buraco mais ou menos quadrado na perna de um Cusecco.
Um menino mal intencionado. Uma atiradeira mal construída. Uma pedra mal colocada no courinho. Uma goma de borracha mal alinhada. Uma andorinha inocente que descansa no fio.
Uma cicatriz marcada por toda uma vida: ‘quem com o ferro fere,
com o ferro será ferido’. Entenderam o valor do tal ditado?
As pessoas que transitam tranqüilamente pelas ruas e avenidas de uma grande metrópole muitas vezes têm sensações e
emoções milhares de vezes defasadas do entorno em que estão.
Viajam pelas estrelas frequentemente puxadas para os abismos
do passado por um ou outro motivo. Vá-se lá saber, noventa por
cento deles são inconscientes. Vêem carros, recordam-se de charretes; vêem jatos comerciais que cruzam os céus, imaginam gaviões aprisionando pequenos frangos ou dilacerando carapaça de
jaboti.
Sou uma daquelas pessoas, finalizando os cinqüenta, e concordo com um aceno próprio de cabeça condizente com a minha
idade.
E relembro que, quando criança, fazia coisas, aos olhos de
hoje, não muito bonitas de se ver. Liquidava sabiás, tizius, roli-
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Jairo Martins de Souza
nhas... Convivo com um antigo matador de passarinhos que, na
antiga Roma, poderia ser colocado num saco fechado com um
galo, um cachorro do mato, e uma serpente. Condenação horrível. Vítima de carrascos do reino animal. Privado do ar, da terra e
da água. Totalmente condenado.
Um assassino... A propósito, estão recordados da conversa
entre as amigas Hannah Arendt e Mary McCarthy? Recordam-se
os leitores do porquê de Mary não poder matar a sua avó? Ela
mesma disse não poder dormir com uma assassina!
Há muitas décadas deixei de dormir com um eliminador de
pássaros. Foi há mais de 45 anos. Quase todas as crianças também faziam o mesmo por legítima defesa de patrimônio familiar.
Zelavam como eu pelos frutos de chácaras paternas. Enfim, estamos no Brasil, e já se passaram mais de 30 anos...
Fui absolvido por decurso de prazo.
Bazar Monlevade
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Capítulo 19
A importância dos burros no cotidiano de Monlevade, em
particular, a do chamado burro do Geo
A
partir destas linhas, peço uma especial atenção e
mais vagar no revirar das folhas desses escritos. O
leitor sabe que não vai encontrar diante dos seus olhos nenhum
tipo de leitura que denuncie ser do gênero de fábula infantil. Não
é nosso objetivo literário. Em nenhum momento anterior foi dada
liberdade de voz a cavalo, passarinho, andorinha, pato, cabrito,
piaba, lambari…
No entanto quem pode se esquecer do esforçado burro do
Geo? Senhores, por poucos momentos, a palavra fica, e durante
todo o próximo parágrafo, a cargo do símbolo do trabalho físico
monlevadense de algumas décadas atrás.
O armazém do meu patrão ficava bem no meio da ladeira,
lado esquerdo de uma carroça que sobe. Às suas costas a popular
Praça do Mercado. Do lado direito via-se o imponente muro do
Grupo Escolar que servia como contenção de enorme barranco.
Lá se estuda para não ficar um burro como eu. Ambos, o armazém e o Grupo, ficavam na rua bem calçada que dava acesso
à praça do cine Monlevade, a ladeira que disse. Nela, fosse eu
seguindo até o ponto mais alto, entenda-se, onde ficava plana,
estaria praticamente na Praça do Cinema. Que ficava logo à direita. Caso tivesse picado a mula, e prosseguido em linha reta daria
com o cabresto na portaria principal da usina da Belgo-Mineira…
Onde algum chapa aliviaria o meu lombo... Mas... Isso fica para
depois, e para o memorialista que vos escreve… A ele, passo novamente o bastão.
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Jairo Martins de Souza
Sim. E retorno dizendo novo elogio a você, seu burro! Pois
não somente em Monlevade como também em todo mundo, Vossas Senhorias, segundo os portugueses, eram os melhores topógrafos e projetistas de estradas de rodagem. Manuel, solte aquele
animal… Permita que faça a marcação da trilha com seus cascos,
e que determine, com sua intuição, o melhor ângulo de esforço
para fazermos o traçado dessa lombada que fará parte da futura
Monlevade a Belo Horizonte.
Tempo distante em que o homem apreciava a inteligência
dos burros: já estiveram em alto patamar da vida nacional. Conduziam as delícias do século dezoito. O Brasil recorda com saudade da carne salgada, o charque, trazida do Sul no tempo de Vila
Rica. Não faz mal homenageá-los, e aos tropeiros, na figura do
animal monlevadense que há pouco esteve dando seu parecer
sobre morro tradicional. Animal símbolo. Nosso el condor!
Laborioso, o burro do Geo caminha por cada rua calçada, e
cada beco de sua cidade. Conhece o ofício. Para tanto, oscilando a cabeça para cima e para baixo, busca força complementar
para tração das cargas encomendadas ao patrão. Está de saída
encarando o morro que, forçosamente, terá que subir. Preocupado vê que ultimamente vem perdendo espaço para a força do
progresso, cresce o número de caminhonetes postas a carreto em
Monlevade. O pensamento não o aborrece por completo, pois
conclui que tem vantagens para quem o emprega. Encara suas
obrigações como se fosse uma missão. Faço tudo que me pedem
a troco do pão e estou satisfeito, diz o burro. Confirmando a sua
fala, faz um balanço de rabo. Como um cachorro.
Ou como um padre que se alimenta das cortesias e oferendas alimentares dos seus fiéis: uma trança de lingüiça aqui, uma
goiabada ali. Para o trabalho, e a vida, ambos carecem de alimento. O seu combustível. O burro, tal como o homem, é movido a
combustão da sua máquina que arfa, e sua, e diz como o carroceiro que o conduz, p. que o pariu, essa carroça não anda! Com
tamanho esforço, logo encontra o final do morro que o conduzirá
à Praça do Cinema.
A do cine Monlevade. Posto de lado pela natureza e pela evo-
Bazar Monlevade
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lução, o animal não teve a experiência com a sétima arte como
ainda por ser descrita nesses escritos. Como também o refletir
sobre a geometria das pedras do calçamento, ou imaginar novas equações para explicar o enigma das relações do número de
ouro; enfim, coisas ligadas às proporções de Fibonacci. Andou,
assanhado, falando nessas memórias...
Mas é um simples burro... Que puxava na canga os mantimentos que o patrão tinha para fornecer aos moradores da cidade siderúrgica de João Monlevade. Entregamos em domicílio,
não pode ficar de fora a Vila Tanque, ou a Rua da Favela, que
é o foco das vossas atenções; é o que diz cerimoniosamente o
seu proprietário. O meu empregado faz seu trabalho de forma
exemplar. Como se fosse um carteiro que nunca desanima na
entrega de uma carta de amor. Orgulhoso, complementa, é um
funcionário padrão!
Nem sempre foi assim, sou eu agora quem se pronuncia, em
séculos passados não tinham tantas funções, embaraços e cangas.
Desde criança podia vê-los em alguns presépios ou mesmo em
quadros pintados durante a idade média, e que mostram, com
graça e singela beleza, o nascimento do salvador. Das que vi, lá
está o burrico observando, sossegado, o menino Jesus que dorme
na rudimentar manjedoura.
Mas pode ser que, depois disso, mais exatamente 33 anos,
tenha ele, já mais velho, ou mesmo alguns dos seus descendentes
mais burros que ele, sabe-se lá, filhos ou netos, tenham atirado
pedras na cruz. Daí todos esses sofrimentos e cargas a conduzir
nos dias de hoje. Não nos diz o Velho Testamento que a família
paga por nossos pecados durante gerações e gerações?
Fazia ainda dia escuro e já trabalhava. Vai devagar e, como é
próprio da raça, empurrado pelos xingos do homem contratado:
‘vai burro, filho de uma égua!’. Mas tinha pai, não fora achado em
lata de lixo. Pai que talvez tenha sido ajudado por mãos humanas
na guia certa do seu bem dotado membro: não sei ao certo, o pai
é um jumento de pasto vizinho ao que a mãe comia capim (ai,
que coisas temos que aqui escrever!). Apesar disso, nada mais
adequado que os xingos acima para trazer esse obreiro às lides do
130
Jairo Martins de Souza
labor com entusiasmo. Faz mexer brios.
Lembro que é proibido citar o nome da mãe de terceiros aqui
na Vila Tanque: mesmo que seja de um burro. O condutor, consciente disso, tenta fazer outro tipo de incentivo ao trabalho e, assobiando, diz coisas que o animal entende. Com uma das mãos
chicoteia o ar repetidas vezes e com os pés empurra o traseiro do
bicho que sobressai entre couros e cordas de amarração. Os clássicos efeitos sonoros viajam pelos caminhos da cidade, tornando-se mais intensos na subida em curva do morro do tradicional
armazém: as laterais muradas propiciam a formação de canal de
eco e de som que vão longe.
Por final, recordo que a missão do tal burro não é novidade
para nenhum dos nossos conterrâneos antigos. Todos o conhecem! Basta-nos recordar ser o protagonista de um ditado que ficou na história da cidade: “fulano trabalha muito, trabalha que
nem o burro do Geo”.
Foi uma verdadeira instituição local. Um monlevadense, há
pouco saído dos solos da terra, disse-me: temos mesmo um jornal
que se publica na cidade, chama-se Morro do Geo. Pensei comigo
mesmo: bonito!
Mas faltou fazer justiça ao burro...
Bazar Monlevade
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Capítulo 20
Onde se sugere possíveis origens para o nome Tanque.
Da Vila Tanque
O
leitor deve ter reparado que há muitas paixões nessa longuíssima composição. Disfarçadas! Encobertas
com o nome do Bazar Monlevade. Como Dom Diego, que se
disfarçava de Zorro e, no anonimato, zombava do tolo sargento
Garcia. Perceberam?
Não é próprio confundi-la com as que fazíamos em todo o
retorno às aulas. Minhas férias na Fazenda. Minhas férias no Interior. Um Piquenique no Parque Municipal...
Tinham outros propósitos e dificuldades. O prejuízo ficava
por conta da anotação vermelha da perda de média. Cor chamativa. Do diploma inconsciente de burro, e do inevitável puxão
de orelhas patrocinado por minha mãe. No fundo a culpa ficava
por conta do lápis mal apontado, da professora, e dos colegas
que não me deixavam estudar. Sobre tudo isso, para que a terra
sobre mim não seja pesada, lembro que errar é humano, e que
botar a culpa em outro também o é. Aliás, não gostaria de ouvir
alguém dizer: Jario, vou por uma cruzinha vermelha ao lado do
seu nome!
Isso nunca me agradou. Mas certa ocasião, um personagem
de Machado, de quem, mal da idade, não me lembro o nome,
disse: “não tenhas medo, fulano, a minha inimizade não mata!”.
Faço minhas as suas palavras.
Passamos boa parte da nossa infância no vale do aço que
tem clima agradável. Faz calor de dia e frio à noite. Frio de altitude. Estamos localizados a mais de 800 metros acima do nível do
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Jairo Martins de Souza
mar. Lembro que a superfície terrestre na região é formada por
diversos compostos de minérios metálicos que afloram às vistas,
o que ajuda também tornar as nossas noites mais frias. Reflete rapidamente o calor solar. Muito abaixo o núcleo da Terra queimava, como continua queimando, com violentas impulsões de força
centrífuga. Não sabia. Bolas de fogo com magma incandescente.
5000 graus, talvez. Em alguns locais encontram espaço para escapulir. Um vulcão. Mas aqui na Vila Tanque não existe vulcão.
O leitor pergunta, assim como eu mesmo, por que o nome
Tanque? Assunto de realce. No entanto, nunca soube nem nunca
perguntei a nenhum adulto. Mas tive minhas próprias teorias: resultados de estudos infantis. Eis algumas explicações que podem
possivelmente justificá-lo.
Uma das meninas que também lá habitavam, por exemplo,
nossa irmã Lucinha, poderia perguntar a uma mocinha que passava. Coisinha, o que chamamos de tanque? É um depósito de água
como os que eram usados para lavagem de anáguas, ceroulas,
calças curtas, fraldas, cuecas a botões etc.
Certo. Mas vamos pensar um pouco. Falaste somente a respeito do ponto de vista de menina que um dia vai ser mulher,
dona de casa, e mãe de família. Tanque também pode identificar
um vaso para contenção de água corrente, uma represa de pequenas dimensões. Tal como as de verdade, com escoamentos
laterais ou desaguadouros. Muito próximo à casa do tio Ninico,
podíamos ver o grande tanque da represa do Jacuí, barranco de
concreto que segurava, e segura, parcialmente, a energia potencial acumulada pela correnteza, e águas muitas vezes barrentas
do Piracicaba.
Nesse caso com bons resultados para nós. Por meio de sua
queda d’água, fazem girar as turbinas da usina de mesmo nome.
Usina de quê? Pergunta um outro leitor que, sonolento, boceja
sem levantar a mão do livro que lê, e que, da mesma, está prestes
a cair. De energia elétrica que entrega luz com freqüência de 60
ciclos às nossas casas da Vila Tanque. Como escrito pelo profeta
do livro de Gênesis: do Tanque és, à Vila Tanque retornarás.
Vamos simplificar. Pensemos que a Vila Tanque em outras
Bazar Monlevade
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eras, quem sabe a jurássica, tivesse tido um formato de tanque,
mas um tanque inclinado e com a barriga cheia de terra e virada
para cima. É uma hipótese. Que poderia ser comprovada se as
suas terras fossem olhadas de cima com as câmeras de um satélite, ou de um helicóptero, que é mais próximo: equipamentos e
tecnologia moderna sempre ajudam. Nesse caminho, a ela vejamos sendo inspecionada por um político em campanha, pode
ser um prefeito ou governador que parece observá-la por simples
curiosidade.
Antes passara por cima da Rua da Favela e dissera para si
mesmo, aquela rua de chão batido tem mais costeletas que um
casco de tartaruga. Parece-me, toda aquela movimentação de
pessoas diz respeito à inauguração das novas instalações do Bazar Monlevade. O homem, que passeia com alguns assessores, e
que a ele ouvem calados, tem mais de 30 anos e não parece ser
confiável.
Agora já passa sobre a nossa vila, não nos esqueçamos que
é conduzido por um veículo aéreo, e admira-se com a sua beleza.
Que faz lá em baixo esse povo que caminha naquela procissão,
e que será citada nessas memórias, não demora. Terá o caminho
que circulam um formato de tanque? Se não como um todo, pelo
menos as suas beiradas? Ou terá sido a sua geometria projetada
e posta em marcha pela gerência da Belgo?
São possibilidades que o homem público poderia aventar, mas, como um monlevadense nato, sigo tomando recursos
e alternativas mais técnicas. Para tanto imagino fazer um corte
transversal e longitudinal nas diversas camadas do seu terreno.
Digamos, até 30 metros. Afora a descoberta de alguns lençóis freáticos, nada, por ora, resulta esclarecedor. Repare o leitor, mesmo
que tenhamos pesquisado, olhando de frente, de perfil, e por sua
lateral (como o exemplo clássico da caixa de fósforos), enfim, não
se constata nenhum vestígio arqueológico na superfície.
Tentativa realmente frustrada. Rapidamente, insisto com a
busca: o nosso chicotinho queimado, estão lembrados? Estava ficando morno, e esfriou… Fazendo um risco profundo e maior na
horizontal, por exemplo, no sentido do sudoeste. Se muito longo,
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Jairo Martins de Souza
encontraremos Ouro Preto com suas minas de ouro e um pouco
de prata e cobres associados. O que não nos interessa no momento. Quem sabe em seus subterrâneos ainda se encontrem grandes
preciosidades e muitos escravos mortos. Ai, meu Deus!
Isso me faz recuar com os recursos voltados para outra direção. O Oeste. Na direção de Nova Lima. Nessa cidade foi gerada
agremiação conhecida como Leão do Bonfim, alguns dizem Vila
Nova. Aqui a vez é de antigos ingleses. Já ouvi dizer que a Mina
de Morro Velho chega até por baixo do cemitério da Saudade, em
Belo Horizonte. Dos pobres. Os ricos terminavam no Bonfim.
Foram meras especulações. Se não nos ajuda muito a geometria e seus cortes, vamos dar ouvidos à imaginação que, nas
crianças, é profícua. Senão vejamos, por meio das idéias de mundo de um menino que lá morou.
Cerca de 8 anos depois da segunda grande guerra nadávamos
em tanques. Alguns relativamente grandes, com lateral e piso recheados de cimento velho. Cheio de falhas. Pareciam vazar água:
eram as nossas piscinas, onde gostava de observar rolhas e barquinhos de papel que subiam e desciam no mesmo ponto, enfim,
soube mais tarde, governadas por uma força chamada empuxo.
Arquimedes foi quem primeiro explicou isso aos adultos.
Algumas tinham piso mais lodoso e escorregadio. A água corria solta, exibindo barro, pedaços de paus, plantas aquáticas e argila em todas as paredes de contenção. Por exemplo, as barragens
que fazíamos, com nossas próprias mãos, mato e terra às águas
finas do córrego São Benedito. Pequeninas represas.
E segue dizendo o menino que, prestativo, não pára de falar.
Já o Rio Piracicaba é tanque muito comprido que tem somente
duas paredes laterais. No final integrava e se integra à fluidez das
águas iguais do rio Doce. Fácil de nadar. Bastava deixar-se levar,
como fazem normalmente os cães pela correnteza, em dias de
chuva forte. Ah, gente, muito menino morreu nessa brincadeira
de criança tola.
Já passados outros poucos anos, o menino, agora um rapazinho, continua falando. Conhecemos grandes tanques de fluidos
salgados, sem eiras nem beiras, nas águas e chãos traiçoeiros dos
Bazar Monlevade
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oceanos. Sim, são salgadas as suas águas, conforme constatei há
décadas atrás em Nova Almeida da Serra do Espírito Santo.
Para encerrar, diz o rapaz que, por final, conclui sua fala: nessas águas, toda água, salgada ou doce, a minha especialidade de
flutuação chamava-se cachorrinho.
Agora quem diz é o homem que vos escreve: nadei, de verdade, muitas décadas haviam se passado, em um tanque chique forrado por azulejos brancos e águas fundas. Daí para os aqualungs
e os desafios de Fernando de Noronha foi um pulo de tartaruga.
Nosso pai ficava surpreso com os simples exercícios que eram
de minha prática, tinha orgulho. Esse meu filho sempre foi medroso, mas com licença poética da palavra, posso dizer: não foge do
pau. Quem sabe pudesse mudar de nome como mudei: virar um
Jairo Cousteau e ser um famoso mergulhador que busca galeões
antigos afundados em mares distantes. Um caçador de tesouros...
Desses, nunca poderia ser, pai!
Ora, você me perguntou e eu respondo, estou a dizer a um
colega de molecagens, o Diquinho. Dizíamos novamente sobre
o porquê do nome Tanque. Éramos crianças e brincávamos de
pique na Rua do Sapo. Entre algum intervalo eu disse: Diquinho,
a nossa vila chamou-se Tanque em homenagem aos tanques dos
aliados da Segunda Grande Guerra. Com eles conseguiram invadir os países vermelhos, onde circulam carros de papelão que os
alemães chamam Trabant.
Estávamos jogando birosca, conversando sobre coisas de nenhum interesse, como agora. É mentira, diz o Diquinho, tivesse eu
o comando de um dos tanques, daqueles grandões, eu passaria
em cima de você, seu tolo!
Disse ele assim, e eu acato a reprimenda… É mais fácil pegar
um mentiroso do que um perneta. Melhor tivesse eu falado como
de hábito falávamos: ‘não sei, não quero saber, e tenho raiva de
quem sabe!’
Bazar Monlevade
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Capítulo 21
Onde se diz a verdade sobre o nome Tanque
U
m repórter moderno iria mais fundo sobre a questão
do nome Tanque. Por meio de estudos consistentes
junto ao cartório de São José do Piracicaba, à Igreja do Tieté,
às instituições privadas e a órgãos públicos em geral. Pesquisaria
também anotações antigas do rapaz Monlevade e saberia mais
após estudos esparsos sobre a vida dos primeiros tropeiros que
por aqui passaram. Fechando a matéria, informaria que a verdade diz que tudo teve origem em um pequenino tanque localizado
em algum ponto da vila. É a sua versão. O local correto não foi
por ele informado, apenas andou indicando alguma pista ou sugestão. O público critica dizendo que foi culpa de reportagem mal
editada. Então, com o segredo mantido em aberto, penso que
pode ser que fosse o próprio do nosso terreiro: o que pensávamos
ser de uso exclusivo de alguns patinhos!
Vamos dar tempo ao tempo. Novas idéias virão...
À parte disso, a nossa vila era e continua sendo um lugar no
mínimo aprazível. Permanece circunvizinha a uma grande mata,
e ainda tem muita área verde onde persiste o cultivo do eucalipto
e vegetação natural não muito rasteira.
Compare-se com a cidade que foi construída na Serra do
Curral, e de onde alguém, agachado, disse pela primeira vez, é
um Belo Horizonte!
Ela, voltamos a dizer da nossa vila, foi desenhada com os
postulados da geometria ginasiana do velho Euclides. Mesmo que
formada por ruas curtas e estreitas: estreitas até mesmo para a
passagem de um só carro. Que, caso sejam mais largos, não passam, nem mesmo com dificuldade, naquelas mãos únicas. ‘Dê
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Jairo Martins de Souza
uma ré na sua ximbica que quero passar com meu carrinho de
mão! Não sabes que, segundo a física comum, dois corpos não
podem ocupar o mesmo espaço?’ ‘Quem deve sair é vossa senhoria, já que nessa Rua 16 moro eu!’
Falta espaço até mesmo para caber um cruzamento de charretes, mas os burros que as conduzem não travarão guerras de
xingos. Em alguns aspectos são mais evoluídos que os homens.
Nunca os vi, aos burros, em posição de brigar. Mas, no passeio,
na lateral das ruas calçadas, há espaço para a passagem dos barulhentos carrinhos de rolimã e patinetes. Saia da minha calçada
seu moleque dos diabos! Vá brincar na frente da casa de sua mãe!
São justificadas as reclamações dos vizinhos de outras ruas que,
em protesto, lançam pragas sobre a criançada que, agitada, corre
com sorrisos largos.
O transporte de carga não era feito somente por caminhonetes velhas a explosão. Fargo. Ford. GM. Dodge. Chevrolet... Com
alguma complicação logística: carecíamos de estábulo ou pau
para amarração de semoventes em quantidade, a saber, cavalos,
e burros do trabalho. As pontas das cordas dos cabrestos eram
enroladas em pau roliço de tronco de eucalipto, e que era fixado
por grandes pregos batidos por funcionários da companhia.
Um pau comprido. Na Vila Tanque, ficava costeado na horizontal e sustentado nas extremidades por moirões de madeira de
lei fincados na Rua do Contorno. Localizando melhor, vamos encontrá-lo abaixo do velho e pequeno centro comercial que tinha
passeio alto e largo. Logo em frente à casa em que morávamos.
Era composto de uma pequena fila de lojas: o açougue, a padaria e a Casa Sampaio, propriedade dos próprios Sampaio, e com
gerência exercida por um deles, que era o mais velho da família.
Segundo se dizia, os Sampaio eram estrangeiros de Nova Era.
Um dos seus caixeiros andou passeando pelas bandas da
nossa casa: bem distante. Por acaso seu nome era também Raimundo, assanhado, buscava os olhares da nossa irmã Leni. Moreninha bonita. Não conseguiu nada! Nem com ela nem com Jaime
Raimundo. Nem mesmo foi chamado a responder ao que rezava
a tradição: seus pais são de...?
Bazar Monlevade
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Pouquíssimos anos depois o seu único namorado, e futuro
marido, respondeu a tudo com galhardia e vontade de casar. Sim,
seu Jaime. Era um moço chamado Mica. Topetudo. Mas honesto
e de bom coração. Para abreviar a conversa, ele disse ao sogro,
complementando o que seu coração queria dizer. A partir de hoje,
vou chamá-la Nina. Se necessário, morrerei por ela…
Fui testemunha ocular. Por meio de gretas existentes na porta
de nossa velha cozinha. O que é combinado não é caro, o rapaz
no futuro realmente cumpriu o que prometeu, assim como deu
seguimento à idéia. Pediu a mesma atitude aos pretendentes às
mãos das suas futuras filhas... Quem hesitava era imediatamente
descartado… Pelo sogro!
Mas deixemos nosso cunhado prosseguir ajustando seus ponteiros com os costumes que a vida, porca miséria, já mudou.
Com o que retrocedo, apreciando o passeio que ficava do outro lado de nossa casa. Lá estão de novo dois burros e um cavalo.
Parecem primos. Lembro que fora interrompido por um moço
que observava com olhar de interesse em direção à nossa janela.
Naquele momento, estava prestes a dizer que o piso cimentado
inferior do Centro Comercial ficava cheio de estrume que fedia
saúde. Verde-escuro. Já nos lombos dos quadrúpedes, nos cestos
laterais, as mercadorias e suprimentos andavam sobrando pelas
beiradas. Na traseira os rabos seguiam o cotidiano de espantar
insetos que nunca cessam de pousar e levantar vôo. Sina de mosca. Grandes e azuladas as varejeiras proliferavam nas pocilgas de
casas vizinhas.
Ao lado, no sentido de quem sobe a Contorno, passa uma
família extensa de cabritos. No último lugar da fila, um cabritinho
nanico chora pela falta das tetas da mãe... Pequenas cenas do
dia-a-dia como essas, fazem-me lembrar que Darwin tinha razão
quanto à sua história da lei do mais forte: à frente segue um bode
velho com chifre que impõe respeito. Quando irritado, dá marradas a torto e a direito, mas pouco contribui para a economia local,
pois suas fêmeas dão pouco leite. Caminham deixando rastros
com suas bolinhas de excremento e parecem marcar terreno: tal
como na história de Joãozinho e Maria, e seus feijões. Entre um
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Jairo Martins de Souza
tempo e outro, naturalmente soltam seu grito de guerra: bé é é
é é é...
O leitor deve ter se apercebido da minha estratégia de ficar
escrevendo, escrevendo... Dando tempo ao tempo, para ir tentando desvendar o caso tanque. A verdade pode tardar, mas não
falha. Parece-nos honesto deixar o assunto prometido de molho.
Essa é a verdade final! Deixemo-la para pesquisa de historiadores de competência renomada, ou para monlevadenses de
melhor talento e aptidão para esse tipo de estudo.
Bazar Monlevade
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Capítulo 22
Onde se volta a dar mais informações sobre a Vila Tanque,
mas incidentalmente diz-se do Bar Central da Praça do
Mercado
C
aro leitor, sozinho no cair da noite de mais um dia em
que se inicia o horário anual de verão, pressinto que a
vida tem passado mais rápido. Aqui anos tornam-se minutos! Tal
como quando encontro por alguns segundos um amigo que há tempo não vejo. Meu Deus, como fulano envelheceu! A escrita também
é assim! Horas de batente são reduzidas a uma frase curtíssima.
Por exemplo, ao concluir esse pequeno parágrafo, quantas
vezes a cachorra Baby aqui de casa já não latiu, ouvindo o ruído
de uma cigarra distante, ou um elevador que se movimenta de
forma imperceptível para mim?
Com a chegada da velhice, meu pai também tinha essa percepção. Se bem que um pouco diferente, pois noto que, de ontem
para hoje, exceto algum papel jogado no chão, nada se alterou
nesse pequeno escritório familiar. Pessoas como eu não vêem o
tempo passar. Dou um outro exemplo, reparando que aqui nada
mudou, desde quando andei conversando com o Diquinho sobre
o episódio do nome Tanque.
Na verdade, falava por gosto de falar da nossa vila. O que,
para não perder o costume, dou andamento, mas agora por meio
de um outro sujeito que, não por acaso, tem o costume de falar
muito como nós. Por ser de boa vizinhança, a tudo observava,
enquanto fazíamos anotações. Moro aqui há poucos meses, antes
trabalhava na fazenda do Cajuca que fica em Rio Piracicaba. Essa
gleba de terra tem sede localizada na beira da estrada, e muitas
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Jairo Martins de Souza
vacas cuidadas por certo senhor Antonio Arlindo. Localizo-a melhor dizendo que é pouco acima do sítio do Jaime que é também
proprietário do Bazar Monlevade, grande empório de tecidos,
calçados, blusas, armarinhos, louças, geladeiras, armas, e balas
de todos os calibres. Inclusive as da macaca Chita que eram brancas: a mais barata chamava-se preta. Esse magazine está sempre
pronto a bem atender os seus fregueses, aliás observo que os filhos do proprietário ficam sempre próximos do caixa, onde ficam
expostas barras de chocolate e etc.
Ora, prossegue o morador que recentemente chegara à nossa
vila, é um novato, recapitulemos que estava dizendo que, antes
de vir até à vizinhança, trabalhava em Piracicaba, na fazenda do
Cajuca. Chega-se lá fácil, basta que saiamos da ponte que atravessa o Piracicaba, é a que fica junto à praça comercial da cidade:
mais próxima ainda é do Bar Primavera que tem pequena sacada
virada para o lado do rio. Não a temos ainda em ferro e concreto
armado, a obra está por ser incluída no orçamento municipal. O
dinheiro arrecadado por ora mal dá para pagamento das viúvas
e pensionistas, é o que o prefeito diz. O mesmo acontece com o
pontilhão de madeira que passa próximo à sede do clube de baile
e de futebol.
Das ruas aqui dessa Vila Tanque, o que tenho a dizer (esse
senhor que relata tem a postura de um líder comunitário), é que
pela largura pequena dos passeios, temos dificuldade até mesmo
para deixar o lixo caseiro. Todas, à exceção da do Contorno, são
oficialmente chamadas por números. Interessante... Nessa história de números, mesmo que diga que alguém chupou cinqüenta
laranjas, o cinqüenta não é doce nem azedo, enfim, não contém
nada das laranjas que contou. Durma-se com um barulho desses!
Mas colocar números em uma rua é melhor que chamá-las pelo
nome de políticos, aqui tudo é bem de acordo com a austeridade
de siderúrgica que dá moradia aos seus colaboradores.
E prosseguirá falando e caminhando simultaneamente o quase forasteiro. Vamos deixá-lo seguir em paz.
No caso das latas de lixo, é outro circunstante quem diz, ficamos com a situação agravada, pois os meninos nunca se cansam
Bazar Monlevade
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de dar bicudas com suas botinas fabricadas pelo sapateiro Ninico
do Jacuí. Feitas com couro de boi. Resistentes! Os capetinhas não
respeitam o esforço que fazem os pais na Usina para conquistar
o pão de cada dia.
O homem disse isso e vai se afastando, e falando pelos lados,
indicando irritação, mas abaixando o tom de voz. E assim reclamando, segue em frente encerrando sua participação. O que conversa já não se ouve, não quer também que os pais dos garotos o
ouçam. Mesmo indignado, não gosta de confusão.
Ah, agora sou eu quem diz: só espero que nem metade disso
venha a chegar aos ouvidos de minha mãe!
A despeito desses tipos de mal feitos, constato feliz, com olhar
de menino, que na Vila Tanque o Sol nasce mais bonito. Não
importa que assim esteja fazendo em toda a metade do restante
da Terra, lembro que a ressalva fica por conta dos pólos. Nos
extremos do mundo ele nunca se deita, nunca se levanta, nunca
descansa… Enfim, melhor para as crianças que moram com a
família em casa de gelo, lá também as horas do dia foram feitas
para brincar.
Com o crepúsculo do final da tarde vem a sua queda, antes disso fora um pavão com cores estonteantes que rapidamente
morre no final da linha que encerra o horizonte. Faz assim, obedecendo lei da natureza que Newton explicou, e dá espaço à Lua
que faz prosseguir o ciclo diário de sua vida de satélite. É por causa disso que segue sua sina, tomando emprestado parte da luz
do nosso rei, e assim corre o tempo e a noite, e, por final, pouco
ilumina as nossas ruas e matas. Sua obrigação, ao fim e ao cabo,
é sinalizar que é próxima a hora de criança ir dormir. Enquanto
isso. o operário da Belgo segue o seu eterno turno de trabalho.
Com tudo isso, vendo a Lua e o Sol, é que entendi a insignificância dos adultos que, com ela dormem e, com ele, pobres
coitados, levantam-se todos os dias para trabalhar na Usina. À
tarde, voltam todos sujos.
Aliás, não somente eles, como também muitos gringos que
vieram a Monlevade para prestar serviços à companhia. Cá estando buscavam no trabalho, e na bebida, esquecer um pouco das
144
Jairo Martins de Souza
terras frias do continente europeu.
Alguns deles costumavam passar horas e horas no Bar Central, ponto de encontro do operariado monlevadense que largava
o serviço na usina. Afogavam tristezas e levantavam risadas nos
mesmos copos de cerveja. Suas lembranças diziam respeito aos
filhos vermelhos de saúde e aos apetitosos salsichões e chucrutes
que comiam desde crianças. Naquelas terras cada região tem os
seus de forma muito particular. Com certeza, em cada gole, recordando-se dos molhos, dos repolhos em conserva, e dos cheiros
intensos que, regados a cerveja ou vinho seco, são delícias que
aguçam o apetite de qualquer sacristão ou viajante.
Mesmo que tenham como subproduto o famoso flato alemão,
todo efeito tem sua causa. Aliás, desse assunto já temos conversado, inclusive lembrando as conseqüências na vida dos passarinhos quando, ao ar livre, dois rapazes fizeram uso abusivo dos
alhos e do gostoso feijão preto. Relembro que foi em um dedo de
prosa do Tio Ninico com nosso pai.
Agora resta somente um no bar que dissemos, e que procura
espantar as tais recordações. Entra mais freguês, sai outro e o
homem não se retira com o avançar da noite que se afigura fria. É
movimentada a casa de bebidas e salgados do nosso irmão Hélio.
Observar, diz o Bilico (é como é chamado aqui em casa), para um
funcionário que saíra do turno das 3, aquele veado só deverá se
retirar no apagar das luzes. E olha, fulano, quem levanta amanhã
cedo, para abrir o bar, sou eu. Tenho que atender ao café da turma da Belgo que entra para trabalhar no turno das sete.
Muitos anos depois, em Potsdam, na Alemanha Oriental, vi
aquele mesmo alemão triste, só que comunista e mais magro. Já
em Meissen, os olhos azuis eram de uma mulher desejosa de mostrar as belezas raras da milenar louçaria local. Coisas tristes… O
comunismo caracteriza aos poucos uma ausência de alma. Com
ele se matam desejos inconscientes de evolução: os seres humanos não podem ser tratados como iguais.
Mas tais como a boa cerveja alemã, o comunismo, as ruas,
os números e fatos retidos na minha memória são coisas sem muito sentido. São apenas imagens, cheiros, e algumas vezes, sons.
Bazar Monlevade
145
Capítulo 23
Onde se faz um passeio de Jardineira da Praça do cinema
até a Vila Tanque. Nossa cidade é toda cheia de morros.
Segue o modelo estadual. Minas é muito conhecida como
Mar de Montanhas.
O
ônibus Chevrolet, uma jardineira verde, das que
ainda rodam pelas ruas de La Paz, saía dos portões
da usina da Belgo que se situava aproximadamente no segundo
terço de um morro de berço largo. Deve ter sido feito um corte
pesado na mata silvestre para se obter tão grande platô. No seu
pé, bem mais embaixo, o Rio Piracicaba continua passando ligeiramente sinuoso pelo vale. Do outro lado, bem de frente, o
simpático bairro do Tieté.
É proibido conversar com o motorista. No retrovisor vêem-se
amarrados um rosário e uma flâmula de Cristóvão, a quem todo
membro do Sindicato pede proteção. A condução parte em movimento vagaroso, enquanto o motorista faz um apressado sinal
da cruz. Após rodar um pouco em linha reta, inicia conhecida
descida em curva. A do morro do Geo. Condutor, desça com a
mesma marcha que usar para subir. A caixa seca de mudanças faz
acionar o freio motor, o ônibus dá um tranco e trafega lentamente
afastando-se da Praça do Cinema.
O passageiro observa a fachada do armazém que dava nome
ao morro. Lá estão estacionados o burro, a charrete e o carroceiro
que aguardam o final de mais um carregamento. O veículo mantém velocidade, e estamos quase por encerrar a passagem pelo
morro, por fim distanciando-se dos fregueses do tal comércio que
nos viram passando com olhar curioso.
146
Jairo Martins de Souza
Feita a perigosa travessia férrea da Vitória-a-Minas, o lotação tomava direção à esquerda, a caminho pelo lado da Leiteria
(fosse pelo lado contrário seguiria erroneamente até a estação de
trens). E continuava na rua que era aproximadamente paralela à
da Favela situada mais abaixo. Nessa, os negócios cresciam em
progressão geométrica no Bazar de Jaime Raimundo.
Após apeada para compra de alguns botões e aviamentos,
um passageiro que conosco viajava, volta a subir na mesma jardineira que retornava fazendo o mesmo percurso anterior. Seu modelo era anterior ao Brasil, lembrava uma Apache, não sei bem.
O que sei é que, enquanto penso, já passa próximo à sede da
antiga fazenda de Jean Monlevade, o fundador. Dentro de um ou
dois minutos evoluirá para as laterais da usina da sinterização de
minério fino. Daqui saía uma poeira dos infernos!
Ao mesmo tempo, por solicitação de um senhor grisalho,
acompanhado por um rapazinho vestido de escoteiro, o nosso
ônibus encontra-se parado. Coletava também mais uns poucos
em um ponto conhecido. Senhor passageiro, não pise na caixa de
proteção do motor!
Caso seguisse em frente, sem desvios, trafegaria em estrada
de chão para o distante Bairro de Carneirinhos. O que não é o
caso, chegando ao único trevo do caminho, dos comuns de três
folhas, pega a esquerda e prossegue em elevação, e com necessárias reduções de marcha, agora em subida, estamos na parte
baixa da Vila Tanque.
A seguir, passando por muitas casas nessa vizinhança, alcança a Avenida do Aeroporto onde, daqui a alguns anos, a minha
irmã Lucinha fará crescer seus filhos. Belas casas. Bela rua. A
mais bonita de Monlevade. Aqui moravam os chefes e o gerente
da Usina. Inclusive o gringo que deixamos, esquecido, bebendo
cerveja no bar do nosso irmão… Antes de efetivamente chegar à
parte principal da Vila Tanque, deverá parar nas vizinhanças do
Hospital Margarida. Onde sempre algum passageiro desce, tem necessidade de fazer uma consulta, ou mesmo de pegar um atestado
médico.
Passada mata fechada, por fim alcançará a Rua do Contorno
Bazar Monlevade
147
que, como o próprio nome diz, margeia grande parte do perímetro
do bairro. Finalmente, temos a condução circulando pelo alto da
Vila Tanque propriamente dito. Já no ponto final, próximo a nossa
casa, o motorista conversa com o trocador. Ambos estão animados.
Um trabalhador já pagou passagem e espera, pacientemente, quase dormindo em um banco intermediário. Um outro, contrariado,
espanta uma mosca que agora o incomoda. Já de há muito a observava, enquanto o inseto desesperado tentava sair pela abertura
da janela. Está atrasado para o seu turno de trabalho. Sorridentes,
tanto o chofer quanto o trocador, seguem para a padaria do Seu
Geraldo. Ambos estão secos para tomar um cafezinho e, se com
sorte, acompanhado de brevidade fresca.
O motorista volta a fechar a porta por meio de acionamento
manual. Sofre de tendinite no cotovelo direito por uso e abuso de
tal movimento. Após alguns poucos minutos retorna novamente
para o local de origem, conduzindo operários para a portaria central da Belgo. Caso fosse domingo o rumo final da maior parte
dos passageiros seria a porta do Cine Monlevade.
Na volta derradeira, as paisagens noturnas, vistas do lotação, sucedem-se rápidas. Mas não tanto quanto as cenas do filme;
onde o leão da Metro, rugindo, andou marcando o início da aventura de hoje de Ivanhoé. Robert e Liz Taylor. O que é bom, pouco
dura. Muitos dormem no retorno da condução.
De volta à casa paterna, o silêncio da Rua do Contorno ressaltava os ruídos noturnos das pessoas que dormem o sono dos
justos.
Depois das 20 horas, nossos pais rotineiramente já faziam
meia-noite.
Bazar Monlevade
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Capítulo 24
A Rua dos Cabritos e o espetáculo aéreo das andorinhas da
Vila Tanque
N
a infância era guiado por comportamento de reis
de países distantes. Nunca tinha visto um rei. A
não ser Jesus, que diziam ser o rei dos reis. Eu e meus irmãos
éramos filhos de um rei que não se chamava Jaime Raimundo. A
coisa se tornava meio confusa, afinal de contas, Jesus era pai de
todo mundo e, por sua vez, filho de Deus, e Deus era mais que
qualquer rei. Na verdade sabia que filho de rei tinha pônei, tinha
gente que dava laço no calçado e amarrava seu calção, tinha preceptor e se divertia sozinho jogando xadrez. Pensava gostar mais
da vida de aldeão, pois podia jogar bola, ter muitos amigos e
brincar em rua que tinha muito barro quando chovia.
É por aqui que reinicio, pois na Vila Tanque havia uma rua
mais conhecida por seu apelido do que por seu número. A Cabritos era uma exceção. Tinha formato de arco longo que emergia
e desembocava na principal da Vila Tanque, a Contorno. No extremo mais próximo do Centro Comercial, em um dos seus lados
tínhamos casas; do outro, morro íngreme e mato baixo. Um retângulo magro, onde jogávamos futebol com as crianças das ruas
vizinhas. Piso confortável de terra batida. Das beiradas de um dos
lados vê-se lá embaixo, bem longe, o bairro da Areia Preta. Lugar
bom para menino atirar pedra. Como a jogada raspando a água
parada de um lago tranqüilo. A troco de nada, puro lazer.
É o porquê de lá estar nesse momento o menino Jarbas Martins. É também magro e tem muitos apelidos. Qualquer um pega,
pois protesta xingando, vai para a p... que o pariu.
150
Jairo Martins de Souza
Normalmente tem lá suas razões. Mas, nesse exato momento,
verifica e analisa a birosca que está prestes a arremessar, encontra-se em momentos de decisão de uma partida de bolinha de
gude. Observemo-lo, enquanto com os dedos da mão direita faz
carinhos na bolinha que traz prensada entre o fura-bolo e o polegar. Subitamente faz a jogada de forma não tão direta, quis distorcer a linearidade do movimento. A pelotinha de vidro branca e
preta fez uma ligeira parábola, empurrando uma azul e branca, e
cedendo ao efeito que quisera a ela dar o menino jogador...
Belíssima cocada. Duas juritis mortas com um só tiro! Fim de
jogo. Bastava ser coletada a bolinha que repousava no buraco do
papão. De bicho papão.
Enquanto isso, um mal não sabido assoma dentro da minha
alma de menino… Diferente da bolinha que não sumiu nos terrenos da Vila Tanque, qualquer dia desses, talvez por essas mesmas
horas, as pessoas já tenham iniciado a procura por Vô Clemente...
Cerca de 300 anos antes daquela partida de papão, Sir Isaac
Newton, por meio de cálculo diferencial, forças inerciais, precessão e quantidade de movimento, explicara ao mundo como funcionavam os movimentos de um pião. Então alheios às fórmulas
criadas pelo inglês, estávamos nós lá, a lançá-los no piso firme de
uma rua sem calçamento. Não tinha a mínima idéia das complexidades do soltar rápido dos barbantes, enrolados na estrutura de
madeira do brinquedo que rodava ligeiro.
Como o pião, a Terra roda também, e faz outros balanços diferentes. Alguns oscilam. Tal como o da precessão dos equinócios
que Hiparco, quase um profeta, disse existir 100 anos antes de
Cristo nascer. Êta, ferro! Bom é jogar gol a gol, aplaudir Tom Mix,
matar roedores…
Com isso voltamos rapidamente à Cabritos. Antes de colocar
as bolinhas de gude de volta ao bolso, meu irmão pensa com seus
botões. São raros os seus momentos de reflexão. Não sei se estou
combinado com o Jairo de bolso esquerdo ou de estátua... Por
via de dúvidas... Ah, vou colocar essas preciosidades no bolso
direito!
Bazar Monlevade
151
O céu estava muito claro. À noite deverá se transformar em
um belíssimo e verdadeiro planetário ao ar livre, faltavam-nos somente as explicações que ouvimos no futuro e das quais farei uso
nesses escritos. Aliás, foi no Alto da Samambaia que tivemos a
primeira casa na Vila Tanque. Por sinal de madeira. Lá assomavam, grandes e muito brilhantes, Vênus e Marte. Uma branca e
a outra vermelha, peças celestiais facilmente observáveis a olho
nu. Mais longe, pelos lados do Sul, o Cruzeiro estava sempre a
postos junto às suas Três Marias. Lá, junto delas, deve estar também brilhando a nossa Maria, da qual disse estar observando a
cena quando Joaquim Justo receitou-me o tal leite de égua. Uma
zelosa estrela menor.
Parte dessa parca idéia do céu brasileiro foi ouvida de um
outro menino, que ouviu de parentes que moravam em Belo Horizonte e, que, por sua vez, estiveram visitando um senhor que
tinha um grande telescópio com teto solar em uma casa abobadada. Teto de Mesquita. Ficava na Rua Pouso Alegre. Esse homem gostava de abrir os céus para jovens estudantes. Lá tudo se
tornava fácil.
Já no chão do Alto da Samambaia as samambaias não são
fáceis de se arrancar. É o que diz um vovô que por nós está passando. É bem velhinho e de cor preta. Podia ser o nosso vô Clemente. É ele quem, por acaso, faz o depoimento que se segue.
Com a sua chegada os nossos escritos saem dos céus e voltam
para a Terra. De Platão para Aristóteles. Entenderam?
Trabalho no ramo do fabrico caseiro de vassouras com pedaços de paus de goiabeira alisada. Em cada um dos seus extremos
amarro alguns tufos de samambaia, é o que diz. Fala isso, e ao
levantar as mãos mostra que estão cheias de calos. Faz-me lembrar novamente do nosso vô. E de outra história. Uma coisa puxa
a outra.
No caso, uma história triste de um vovô pobre de quem, um
dia, um de seus netinhos relatou em um livro de textos didáticos,
pode até ter sido mesmo escrito por Umberto Eco. O pretinho disse mais ou menos assim. Meu vô trabalhava. Trabalhava muito.
De sol a sol. Mas ganhava pouquinho. Era orgulhoso do seu tra-
152
Jairo Martins de Souza
balho. Um dia levou-me até a fábrica, e disse: Trabalho aqui, menino! Desde menino! Far-me-ia feliz se você iniciasse, a partir de
hoje, o seu trabalho nessa mesma indústria. Era uma fábrica de
tijolos assados. Uma olaria. Vovô disse isso, e levantando os olhos
e os braços na direção dos céus, fechou os olhos e morreu...
Agora quem fala é quem vos escreve, estás lembrado do caso
de vô Clemente? Ele também foi morto pela mesma locomotiva
que ajudou a por nos trilhos…
Não demora ainda na rua de lazer... Próximo a uma das pedras que serviam para marcar um dos gols... Vou matar aquela
formiga cabeçuda, diz um outro garoto que estava ensimesmado pensando bobagens. Por quê? Por nada. Talvez porque tenha
aquele torrãozinho de terra na cabeça. O que você sabe da vida
dela? Nada. Só sei que, como nós, ela só tem uma. É sua parenta? Não, respondo indignado.
Com a filosofia posta de lado, as brincadeiras prosseguem e
deverão prosseguir até a hora do almoço naquela manhã de sol
ameno e ar fresco. Com algumas interrupções…
Sim, caro leitor, não era sem razão que todo menino era chamado de recados. ‘Seu Antônio, o senhor poderia entregar lá em
casa dois quilos de alcatra para o almoço? Meu pai disse que é
para cortar os bifes bem fininhos’.
‘Menino, aproveite e leve a seu pai as contas dos vales dessa
semana. Mas podes levar a alcatra! E cuidado com a cachorrada que
vai acompanhar o cheiro da carne que é de boi novo. Ah, estás com
a caixa de engraxate às mãos. Vai engraxar agora? Não. Vou para a
minha casa almoçar, mãe chamou!’
Alguns anos se passaram, nossa avó Dica dizia às vezes queixosa, ai que falta faz um menino. De recados! Fui num pé, volto
no outro…
Veja o bando de andorinhas que passam de um lado para o
outro nessa Vila Tanque. Não fazem como os urubus que giram
em círculo quando espreitam carniça. No entanto como os deles,
seus vôos são rasantes e econômicos, pois também tiram partido
das correntes térmicas do ar, parecem grupos de peregrinos que
não sabem onde ir. Voam para cima e, embicam para baixo: um
Bazar Monlevade
153
milagre muito maior do que fez Dumont quando voou com aquele caixote quadrado chamado 14 Bis.
Agora descansam nos fios nus de cobre que conduzem eletricidade ao longo dos postes da Rua do Contorno. Parecem praticar alongamento. Demorei a entender o porquê de não morrerem
eletrocutadas. Os dois pezinhos apóiam-se no mesmo fio, aí está
a explicação. Decerto o fascínio de observar tais seres privilegiados nunca me abandonou. Sem ousadia. Que essa fique somente
por conta de Ícaro, metaforicamente, meu vôo literário não será
derretido pelo sol.
Por exemplo, cá em baixo, com a observação de um simples
mosquito que protesta. Passava minutos a fio admirando a asinha
de algum deles que batia desesperada sem efeito prático. Não era
o único menino do mundo que fazia isso, mas o pequeno inseto
tinha a perna presa por linha fina atrelada a um carretel usado
em máquina de costura. Poucos anos se passaram e continuava
praticando o desporto de fly watcher na mesa de refeições em internato masculino de Alto Jequitibá. A despeito de tudo que disse,
a natureza é pródiga, esses insetos sempre voaram bem. Como as
próprias andorinhas!
Que agora coçam os corpinhos. Parecem dormir de tempos
em tempos. De repente ocorre um bater de asa geral, um alvoroço. Uma pedra de tamanho pequeno foi arremessada na direção
de um grupo mais ajuntado por algum petiz morador da Vila Tanque. Fica fácil perceber, nenhum dos pássaros foi agredido, e nem
deverão ser até que, de dentro deles, evapore-se o susto a que
foram submetidos. Passarinho não tem história. Tudo para eles
acontece sempre como se fosse a primeira vez, e única.
Mas para nós… Corram vocês desse local onde estão a conversar, melhor observar a trajetória da pedra que sobe. Quando
começar a descer de volta, imediatamente vai fazê-lo crescendo
a sua velocidade. Se no final do primeiro segundo está a 36 km/
hora, no segundo seguinte deverá estar a 72 e assim vai...
Mas, enquanto a pedra que subia, e que fora atirada pelo
garoto, retorna para o chão, façamos advertência rápida. Talvez
fosse melhor chamá-la de conselho, a ser dado aos meninos que
154
Jairo Martins de Souza
estão observando a pedra que cai próxima a eles. Não deveis ter
as dúvidas que teve um soldado francês, dos anos 500, quando
atirou para o alto uma bola de ferro com um canhão. O canhão
tinha a boca bem virada para os céus, e o soldado perguntou.
Será que vai cair de volta no mesmo lugar (retomberat-il?). O
coitado acreditava que, se a terra girasse, como andavam dizendo
na época, a bola de ferro não cairia de volta na boca do canhão,
ou na sua cabeça.
Pode ter sido um caso fortuito, mas lembrar que estamos de
novo na Cabritos, e uma pedra está descendo rapidamente. Ei,
menino, cuidado! A pedra que o garoto jogou para o céu vai cair
em cima do seu coco!
Sem danos. O garoto safou-se em tempo, assim como os passarinhos já estão novamente tranqüilos.
Um estilhaço de vidros de uma das casas da vizinhança ecoa
nos ares. Uma cambada de cachorros corre atrás de Deus sabe o
quê. Outro vira-lata, parado, rosna porque longe está passando
um gato distraído. Outros três menores estão latindo atrás de um
sedan chevrolet 48, cor preta, que passa lentamente. É um carro
de praça. O motorista e o passageiro acham graça.
Dois rapazes com camisas floridas abertas no peito e golas
altas coçam saco conversando na porta da padaria da dona Anita. Indecentes. Na Rua Catorze emerge um outro táxi, um Buick
preto e velho. Gasta muita gasolina. Na praça do palanque ouvem-se ruídos de martelo e pregos como preparação para a missa
dominical. Ao longe, vindo do alto da Rua do Contorno, vê-se a
jardineira verde. Alguns meninos descem a mesma rua, estão em
desatinada correria, têm como destino uma providencial mata de
eucalipto.
Devem ser os causadores do barulho de vidro quebrado que
acima dissemos.
A vida é movimento também na nossa vila. O que não faz
diferente de todos os minúsculos pontos desse globo abaulado,
que tem aproximadamente 32 km a mais de cintura do que de
altura. Não conhecedores dessas minúcias, os meninos ficarão
seguramente amoitados até que se abaixe a poeira, ou qualquer
Bazar Monlevade
155
outro sinal indicador de que a moradora prejudicada tenha desistido de descobrir qual o autor, ou autores, da destruição da parte
envidraçada de sua janela.
O marido, que está trabalhando na usina da Belgo, deverá
fazer, mais tarde, investigação posterior que provavelmente será
mais bem sucedida. Alguém tem que segurar esse prejuízo! Já
estamos com a freqüência cardíaca em nível tolerável e inocentemente caminhamos em direção ao bar onde os adultos jogam
partidas de sinuca. O proprietário tinha o estranho nome de Rolla,
o prenome era Alonso. Quem sabe fosse parente dos milionários
da Casa Rolla de Belo Horizonte: tecidos, calçados, armarinho…
Próximo à loja de uma senhora chamada de Santa, uma
malta de cachorros passa correndo. Um deles, que imoral… O
fedazunha está tentando enrabar aquela cadela jovem que saiu
do portão de uma casa próxima. A sua caiação é nova e o portão
de ferro estava aberto. Bons tempos. Cachorro era cachorro. Todos eram tratados com lavagem que também serviam de sustento
para a porcaiada da casa.
Outros roxos de raiva, e da mesma laia, aguardavam ansiosos o desfrute de fazer sexo sem culpa. Absortos esqueciam que
alguns garotos curiosos observavam a cena pública de amor carnal. Do tipo que o romancista Júlio Ribeiro, com seu naturalismo,
nos chamava a atenção no seu A Carne, pasmem, de 1888. Coisa
antiga. Com isso, sigamos apedrejando os vira-latas. Temos muitas meninas na nossa vila, e é grande o zelo por nossas irmãs. Não
se pode deixar barato a demonstração de sexo explícito desses
indecentes.
As notícias escritas demoravam a chegar à Vila Tanque. Procediam da capital mineira. Os jornais e revistas traziam as que já
haviam caducado, pois edições de dias e semanas passadas. Li,
outro dia, que o Joel deve ser o extrema-direita da seleção na
copa do ano que vem, estamos em 57. É o que diz um garoto que
gostava de ler a Revista do Esporte. Do Rio de Janeiro. Passados
alguns segundos, complementa aborrecido: malgrado a sombra
de um cambota nascido em Pau Grande. O rapaz cachaceiro, que
parecia ter o corpo sustentado por um tripé, respondia pelo nome
156
Jairo Martins de Souza
de Garrincha. Dizia ter muitos passarinhos em casa.
Não é Garricha? Indaga um outro que chega mais próximo
prestando atenção ao andamento da conversa. Não, de que falas
é o passarinho pequeno que tem bico comprido.
A temperatura média da Vila Tanque gira em torno de 23
graus. Fôssemos tentados a levá-la até o extremo de zero grau
kelvin, dramaticamente despencaria para dentro de si mesmo. É o
que diz uma dileta especialista de física que conheço bem. Calor é
energia em trânsito, complementa sorrindo. Certo. Mas tínhamos
objetos com os quais podemos alterar a temperatura sem teoria complicada. Bastava-nos um pouco de perspicácia e atenção.
Com o chicotinho queimado, estão lembrados, está muito quente,
está morno, está muitíssimo frio.
‘Você está quase a zero grau kelvin, seu Cusecco escritor de
memórias.’ É o que justificadamente diz um irritado cidadão, que
complementa mais calmo…
‘Que se diga mais especificamente das coisas práticas da nossa terra.’
Bazar Monlevade
157
Capítulo 25
Os galos que despertavam a Vila Tanque. Onde se fala do
Dilsinho e da Sá Luzia
M
eu pai nunca me levou pelas mãos para mostrar onde nasce, ou onde morre o Sol. Aprendi
com a natureza. De fato, algumas décadas antes dele ter aqui se
levantado, os galos já anunciavam para os operários da Belgo que
estava próxima a hora de chegada do ônibus para o turno das 6.
Não sei qual galo começou a primeira cantoria, e nem mesmo a
qual galinheiro pertence. Fosse o nosso Carijó, escutaríamos os
có... có... cócó..., matinais das galinhas do seu terreiro. Pode ser.
Mas pela altura do primeiro canto pareceu ter vindo de uma casa
da Rua dos Cabritos, onde vários galos disputam o poder e as
galinhas.
Dizem que na verdade lá existe uma rinha. Um ilícito penal.
A briga de galo foi atividade nebulosa confirmada como fora da
lei. O presidente do Brasil tinha mais uma vez errado feio a pontaria: não lhe bastava ter criticado o uso dos recém-lançados biquínis pela mulher brasileira. Um deles foi usado pela Ursula Andress
quando saiu do mar em direção ao agente 007.
Cena famosa. Jânio mexeu em ninho de marimbondos e,
ainda presidente, continuou usando a caneta para escrever bobagens. A última vez foi quando renunciou, por meio da tal carta
que denunciava forças ocultas que travavam a nação. Foi em 61.
Com o galo ainda cantando, e as chaminés das casas sinalizando que já se aquecia a água do café, olho pelas frestas da
janela e vejo que as folhinhas fortes e espessas do pé de goiaba
do nosso terreiro não se curvam ao peso do orvalho que caiu.
158
Jairo Martins de Souza
Mesmo que esse pareça estar mais denso e gotoso do que os de
ontem. Com último olhar em direção ao galinheiro, vaticino que
esse galo deverá perseguir-me por toda a vida. Dizem que a altura
do seu grito determina a vontade de ser campeão.
Hoje, já quase um velho, enfim, levanto-me e sigo para o terreiro, intencionado em catar uma goiaba que, todos sabem, é boa
para sarar intestino solto. O fruto dá sinal de noviço, resistindo
bravamente ao arrancamento. Ah, esses jovens! Sempre geram
problemas até que amadureçam. Certifico-me ser de cor vermelha que tem menor número de bichos. Na branca aparecem no
atacado e no varejo.
Mas enquanto como uma verde sem maiores cuidados, lembro-me de algo… No mínimo uma curiosidade lingüística, pois
caso o nosso galo fosse francês seria escutado como côcôrricô.
Não é. É um brasileiro que simplesmente canta bem e que, pensando na arte, parece um cantor de ópera que se esforça nas
cenas finais de uma apresentação, principalmente, quando com o
bico e o gogó eriçado, abre e bate as asas ao mesmo tempo.
Com força. Tal como o Fantasma da Ópera que, amargurado,
se despede de Cristine, quando a moça sai a bordo do pequeno
barco tocado por Raoul, a quem deveras ama. Como é triste ser
feio desde criança, um menino magro, um galo raquítico ou um
fantasma afetado por ácido que lhe destruiu o rosto.
Hoje, mais maduro, entendo melhor essas indignidades.
Quem ama ao feio, bonito lhe parece. Tudo pode ser compensado com a beleza da alma que permanece inocente. Afinal, o
homem já foi menino, não é feio como o fantasma que protesta,
fala mal de Deus, e chora pelo grande amor que vê perder.
Por final encerra-se esse ato e o nosso galo finaliza o seu canto.
Voltará a repeti-lo, ainda muitas vezes, nessa mesma manhã.
Pessoalmente defendo a idéia de que o homem é essencialmente bom, tal como o selvagem que Rousseau a nós apresentou,
ou o menino que tenho apresentado. Por alguns instantes esqueçamo-nos das ofensas à natureza e aos passarinhos. Muito da nossa alegria impõe retorno à infância, à custa de um galo índio que
cantava no cenário neblinoso das manhãs da Vila Tanque.
Vejamo-lo, magro e esguio, a caminhar pela terra procuran-
Bazar Monlevade
159
do minhoca, milho jogado, por lazer ou obrigação de menino, e
outras iguarias. Um carijó. Tinha esporas de aço. Compridas. Na
contenda com seus pares eram arremessadas, como fez o chino-americano Bruce Lee que vimos atuar no futuro. O orgulho
do nosso galinheiro vigiava, com zelo, as galinhas poedeiras que
compunham o harém selecionado por nosso pai.
Cantava como se exaltasse a terra em que nasceu, mas não sabe
que mora na Vila Tanque, João Monlevade, Brasil. Quando declama
o amanhecer, poderia ser comparado com suas penas secas a um
pequeno Camões que, escrevendo suas penas e lutas, como nós,
sentiu-se perdido na multidão. Ele, em sonetos de amor; eu, por escrever esparsas memórias.
No entanto não somente os galos eram arautos do início e do
fim do dia. Os curiangos têm a tarefa estranha de ficar voando de
árvore para árvore. Notívagos. Quando fazem isso, avisam o entardecer. Voam baixo como sonâmbulos. Da figura a para a figura
b, conforme dizem os treinadores de futebol. O rápido ruflar de
suas asas assustavam-me porque saíam de surpresa de um ponto
de pouso para outro.
Mas não tanto quanto histórias de gente de verdade que era
sonâmbula. Dizia-se que ficam com a força de um urso.
Aprendi anos depois que, no sonambulismo, parte do cérebro
fica dormindo e a outra comanda o corpo. O que não seria nada.
O perigoso é que as pessoas sonâmbulas são comandadas pela
parte do cérebro que sonha, e que, como Freud tinha explicado
em outro livro, não tem limites. Aí, gente, podem até matar alguém e depois não se lembrar de mais nada das atrocidades que
por acaso fizeram.
Contei aos meus pais que tínhamos um colega sonâmbulo.
Foi no internato do Colégio Evangélico de Alto Jequitibá. Rapazinho franzino. Disse-lhes assim. Pai, tenho medo. Não se deixe
levar por esse sentimento, um menino fracote como o que descreveste não pode ter a força de um urso. Foi o que me respondeu.
Chamava-o Zé Cueca. Assustador. Alice Martins também
emitiu a sua opinião sincera: Jario, Jario, cuidado com esse endemoniado!
160
Jairo Martins de Souza
Pobre garoto, quantos temores suscitava! Fizemos relações
amistosas. A amizade afasta o medo. Tem gente que, com esse
recurso, lida bem até mesmo com animais ferozes. Quem não se
lembra de Tarzan? Além de tudo, conforme aprendizados no
Bazar, mantinha boas relações comerciais com ele por meio de
alguns escambos, como a troca de doces de leite caseiros enviados por nossa mãe, por cuecas feitas com ilhoses. Daí o nome Zé
Cueca. As minhas próprias eram feitas em casa, e fechadas com
botões. Por fim, nunca me incomodou, pois, acima de todos os
incômodos do vagar perdido pela madrugada, era bom rapaz.
O Sol brilha fraco, espreguiçando-se na ponta do morro que
nos costeia a Leste, boa parte de suas luzes já dá bom dia ao povo
da Vila Tanque. Belíssimo quadro. Cores extraordinárias. Trazem
a vida e o movimento a cada ciclo de 12 horas. Ao longo do dia,
com elas também não é raro a presença bonita de um arco-íris.
Na mesma rotina, traz também, pode-se vê-lo, é alguém que está
iniciando a descida que termina no Centro Comercial no alto da
Rua do Contorno. Cá está! Veio de um ponto em curva, de lá
ainda se vê a arborizada Avenida do Aeroporto.
Mas dizia que alguém... Se fosse perguntado, Jario, como
você se lembra do Dilsinho? Não hesitaria em responder! Com
uma pedra na mão, um mosquito que se rebela na teia de uma
caranguejeira. Na mão livre trazia um troço de galho rapado, parece ter sido arrancado de um pé de goiaba.
O rapaz sofre dos nervos, chamam-no doido! O Dilsinho doido. Caso fosse contratado um profissional da área para análise
do caso e da comunidade, concluindo seu relatório, poderia dizer
em algum tópico:... a psicologia de massas bem explica que, levado pelo sentimento de manada, até mesmo o menino Cusecco,
que morria de pena do prejudicado, andou arriscando algum deboche.
Não sei se bom ou se ruim, mas miséria adora companhia (é
por isso que existem tantos pobres no mundo?), o garoto mentecapto não estava sozinho. Na Rua do Contorno aparecia mais
velho e preto na figura da uma mulher, a Sá Luzia. Com alguma
diferença atribuída a sua condição feminina, era louca, mas não
Bazar Monlevade
161
deixava de ser uma mulher. Caminhava como se viesse em zigzag, passando pelas ruas na sua procissão particular diária. Bruxa
preta com uma vassoura na mão. Seu trabuco feminino.
O povo fica a observá-la quando passa pela porta do açougue do seu Geraldo. Alguns engraxam sapatos, outros estão de
folga, outros animadamente conversam fiado: devem ser os que
trabalham no turno da noite na usina da Belgo. As golas de suas
camisas são grandes e altas, alguns usam roulê, observo que por
ali ninguém tem o caro hábito de usar banlon. Ah, ah, ah, a risaiada é geral, pois, sem cerimônia, vêem que a mulher se agacha
e algo aquoso e amarelo escorre pelos paralelepípedos do seu
caminho.
Sá Luzia se levanta. Não se descuidou de proteger as pontas
da saia comprida de tecido colorido e barato. Olha para os escarnecedores que, animados, zombam e fazem troça, e diz, cambada
de filhos da p...
Diz o palavrão alçando alto a vassoura, faz-me lembrar Jânio
Quadros em campanha futura. Volta a ameaçar a tudo e a todos,
pretos e brancos, mulatos e operários...
O burro do Geo, a Sá Luzia e o Dilsinho eram figuras comuns
na paisagem de Monlevade. Tempo em que nossos loucos ficavam
nas ruas, vivendo com o povo, hoje nem em cidades pequenas
funciona desse jeito. Sinto ser mais ético escrever sobre animais
do que sobre gente que foi prejudicada e, para melhor dar ponto final ao assunto, prefiro aconselhar a leitura antiga de Simão
Bacamarte, outro personagem de Machado (aprecio-o muito!).
Lembro que a sua solução seria internar todos os moradores da
Vila na sua Casa Verde. Lá o realismo é mais real do que no Pestalozzi da capital, estão lembrados, a todos causava pavor.
Por essa e outras razões, tinha avisado que nessas memórias
algumas folhas seriam rasgadas. E por ser assim é que pouco escrevo sobre nossos doidos.
Decerto não se levar tudo a ferro e a fogo, a mulher e o menino devem sair daqui ilesos desse nosso texto, ela varrendo as ruas
com seu toco de samambaia e dando sentido à vida de alguns,
enfim, tudo pode servir como referência. Ele a proclamar a ino-
162
Jairo Martins de Souza
cência de quem é moleque crescido, mas não entrou na cultura
dos homens. Ambos dizem da pestilência da nossa sociedade.
Passaram-se muitos anos até que voltei a vê-lo. Estava de
passagem por Carneirinhos, eu, a olhos vistos, caminhando rápido para a velhice; ele, continuando menino crescido. Encontreio quando observava, estou dizendo do Dilsinho, uma vitrine de
loja. De costas para mim, reparei que vestia uniforme completo
de um time do futebol carioca. Nas suas costas mostrava-se escrito ‘vote em fulano’.
Fiquei com vontade de gritar, ô, Dilsinho doido! Não o fiz.
Confesso que a razão foi porque, já disse e continuo repetindo,
estou ficando velho; e velhos que se dizem maduros não mais
podem cometer brincadeiras que lembrem tal tipo de maldade.
Mas no fundo da minha alma, que tem parte que não envelhece e continua sorrindo, ouvi alegre que ele retrucava: Jario,
lembro-me de você na Vila Tanque, vai pra p... que o pariu!
Bazar Monlevade
163
Capítulo 26
Onde se fala principalmente de uma procissão
O
entardecer traz linhas com faixas avermelhadas que
fulguram esplendorosas nas montanhas próximas ao
céu de Monlevade. Começa a hora limite que, para certas pessoas, traz a tristeza: nascem com parte emprestada do espírito dos
lobos. Para outras é a hora do Ângelus. Hora de fé. Com ela, a da
procissão comunitária que exibe claramente o liame do espírito
de corpo a que todo homem está sujeito. Cá na Vila Tanque, à
exceção de alguma extra, por força de desagravo especial, todas
obedeciam a calendário pré-estabelecido. Além de sua natureza
gregária, o homem é um ser que organiza. Do alto do púlpito improvisado, um rústico palanque de madeira, pensa o eclesiástico
que veio da Matriz para a celebração dominical: daqui de cima,
vê-se bem, parece uma cobra essa procissão. Uma jibóia grande.
É boa essa metáfora, pensou, pois até mesmo outros artistas
da palavra que o precederam disseram igual. Assim como do futuro, como o cantor e ministro Gilberto Gil. Tudo muito parecido
com o que fora feito por um escritor barroco do século dezesseis:
todos nós escrevemos as mesmas coisas, fazemo-las ficar diferentes com o uso de uma ou outra palavra. Para que mudar o que
vem dando certo?
Parece ser uma regra geral, tanto essa procissão, quantas outras
inúmeras que já vi. Dá a idéia de caminhar em ondas quando as
pessoas que a compõem circulam a Rua do Contorno. Mas, interessante, observa o celebrante principal, que aguarda a chegada total
da massa humana, não estão nesse cortejo, nem o Dilsinho doido, e
nem a Sá Luzia. Talvez por isso sejam esquecidos pelos santos que
164
Jairo Martins de Souza
prezamos, mesmo que, disso ele tem certeza, nunca tenham feito
coisas feias como dar chutes em estátuas ou submetê-las a raivosos
afogamentos.
O padre respira aliviado. Essas são coisas de um passado distante. Mas é boa idéia utilizá-las para trazer comiseração e benignidade para os seus ouvintes fiéis do domingo. Ato contínuo,
rascunha mentalmente o sermão que dirá de improviso, utilizando parte da retórica do fabuloso Vieira que admira muito. Hoje,
e como sempre, precisa caprichar. A Igreja sempre anseia pela
conversão de novos fiéis.
Por exemplo, trazer, quem sabe, uma família de crentes como
a de Jaime Raimundo e Alice Martins para os rebanhos romanos.
Para tanto, de acordo com o aprendizado episcopal, sumariza o
que quer dizer segundo a técnica que gosta. Terá que suar muito
e colocar bastante emoção no seu discurso. O fato a ser explorado, pensa com seus botões, é que alguns pescadores portugueses
costumavam afogar imagens de santos no Rio Tejo quando as
redes voltavam vazias. Os malvados com os músculos doídos, a
troco de nada, deduziam que os protetores da pesca não estavam
cumprindo com suas obrigações.
Sob as vistas calmas do celebrante, vestido com batina de
festa, e com as cabeças e ombros baixos curvados pelo peso dos
pecados cometidos ao longo da semana, os vilatanquenses que
vejo mentalmente nessa procissão prosseguem caminhando e
cantando os seus rosários. Rosários que, indiferentes a tudo, dão
a eles promessas inconscientes de perdão. Cientes da insignificância humana perante as coisas dos céus, dizem Ave Maria.
Quem sabe o homem de Roma também se sinta assim, piedoso, é o que a multidão lhe pedirá, reclamando por sua intercessão. Não por acaso molha a garganta com um pouco de água
de bia, e prepara-se. Como um professor. Faltam poucos minutos
para dar início aos primeiros andamentos da celebração.
Após lenta genuflexão, prossegue pensativo, quase que inebriado, perante a manifestação de fé coletiva dos fiéis da Igreja
Católica Apostólica Romana. Todos somos iguais perante Deus,
é o pensamento que rumina… Alguns em especial, como o mo-
Bazar Monlevade
165
rador da Vila Tanque que peca sempre do mesmo modo. É o que
confirmarei na semana que vem, no confessionário da igreja do
Tieté, durante a missa especial da celebração do dia do Trabalho. Na Semana Santa, com cuidados especiais, durante o ofício
de trevas, acenderei o tenebrário com suas quinze velas, espero
apagá-las com sucesso até o final dos trabalhos que o superior de
Nova Era irá consagrar.
Mas essa procissão refere-se a quem? É o que pergunta o padre
celebrante a si mesmo. São tantas as Nossas Senhoras que nem
mesmo sei eu, hoje, qual está sendo homenageada. Não importa,
conclui aliviado, qualquer que seja, trata-se de uma muito distinta.
A verdade é que estão acesas muitas centenas de velas, e os seus
pavios, com graxa e sebo no meio, acuados por brisa leve teimam
em não apagar. Rendem homenagens tal como se estivessem também unidas em uma confissão comunitária, só que, nesse sentido,
calada.
Faz isso, enquanto eleva o pensamento aos céus, lembrando
que gosta de ler livros de astronomia como eu mesmo. Esses fogos de velas e lamparinas são silenciosos, porque fracos, diferente
dos do Sol, que têm o estrondo de uma legítima bomba de fusão.
Por acaso outra noite, alguém disse, ouvimos pela primeira vez
a sua voz. De tão longe parece ser um som atípico. Ralo. Mas
profundo.
Tudo verdade. Mas voltemos ao padre que raciocina o que
fazer. Para tirar proveito e ter bom uso da idéia que teve, faz-se
necessário pensar a fala que se avizinha. Comparação de luz de
vela e de Sol, em termos finais, não dá bom sermão. Bons mesmo
são os temas morais. Recorda envergonhado o episódio do peão
da Belgo, do qual falaremos mais tarde, e de seus problemas com
mulher que gosta de usar saia justa nas celebrações. O Vaticano
lida bem com essas questões desde os tempos do Vieira e de Gregório de Matos… Dão discursos inflamados… Talvez o considere
já mesmo no dia de hoje.
Tem andado ultimamente intrigado com a antiga lógica dos
gregos que andara estudando. Principalmente a milenar frase de
Sócrates que, por várias vezes, tentara estudar para aplicar em
166
Jairo Martins de Souza
suas dissertações. Todo homem é mortal, Sócrates é homem. Sócrates é mortal. Pensava. Todo homem é pecador. O papa é um
homem. O papa é um pecador. Ora, bolas, isso nunca vai funcionar da forma que quero.
Ou talvez falar sobre a velhice e o tempo: sabia que o crente
Jaime Raimundo pensava muito sobre esse último tema. Podia
tentar convencê-lo, por meio da força da palavra e bons argumentos. De longe de sua casa, o comerciante seu amigo, poderia
ouvir o alto-falante que espalha alto a sua fala. Não é nada demais aproveitar e vender a idéia de um outro grego antigo que
dizia que o tempo, na verdade, é a procissão da alma que passa.
Remexe no bolso da batina, na busca de alguma dica, e encontra
papel que faz lembrá-lo que é convidado para tomar um café
na inauguração festiva da nova loja do Bazar em capítulo futuro.
Não reluta e prossegue pensando no assunto anterior, não devo
me esquecer de mencionar a palavra procissão, pois uma delas
está em pleno andamento. Faz exercício de memorização repetindo para si mesmo. Sim, o tempo é uma procissão que passa, e ao
mesmo tempo se afasta da inteligência e do corpo. Ele também
some e desaparece como o Sol e a Lua, o dia e a noite e assim
sucedem-se as estações…
Ainda um dia consigo trazer aquela alma evangélica para o
palanque dessa praça da dona Santa.
Dentro de casa nosso pai também pensa sobre a vida e o
mundo. Um dos seus ofícios. Temos poucos padres em Monlevade. Todos os homens pecam. Por exemplo, o próprio padre que
está agora no palanque, e que conduz passo a passo essa milenar
manifestação de fé que cruza agora na frente do meu alpendre.
Procissão grande.
Dizem que a primeira foi a que comemorou a prisão de Jesus
no jardim das Oliveiras, onde proliferou a maldade das chicotadas até culminar com o absurdo dos pregos na carne imprensada
na madeira da cruz. Sim, martelados por pecadores como os que
vê e que, muito antes de ser romeiros, eram romanos. Sorriu timidamente gostando do próprio trocadilho.
O mesmo faz o frade, pois peca por todo o tempo, em pen-
Bazar Monlevade
167
samentos e em atos. Ambos controvertidos. Por seguro não sabe
o que quer. Agora, por exemplo, está a pensar, que bobagem é
essa de rodear toda a Rua do Contorno, passando nas portas das
casas, em especial a do casal Jaime Raimundo e Alice Martins
que não são das nossas graças. A troco de nada. Posso vencê-los
pela palavra, nunca por exibição de imagem de Santa. A bíblia de
crente quanto a isso é rigorosa. Quanto aos meus fiéis, lá sei eu, os
pecados vencidos dessa gente, e que estão por ser sempre perdoados pela graça do Senhor, serão os mesmos daqui a um mês. É
nesse prazo que aqui estarei de novo em uma nova procissão.
Continuamos na paz do Senhor, mas estamos quase no final,
é o que diz um já cansado paroquiano. Todos estão aliviados pelos suaves cânticos e passos da celestial caminhada. Foi uma bela
e participativa procissão a desse domingo, pensa finalmente com
seus botões o padre encaminhador.
Os fiéis que compõem a linha de frente já estão quase chegando ao ponto de início. Em uma procissão, parte-se de um local
e volta-se a ele mesmo. As pessoas que avançam na direção do
palanque improvisado estão felizes. Lá no seu cimo, o sacerdote
os observa e a eles julga antecipadamente por atacado.
Ele, que do alto do madeirame deverá falar daqui a pouco
seu sermão dominical. Talvez o faça por simples recreação. Entrementes aguarda o desmanche da procissão, ainda é longa a
coluna que organizadamente avança; o seu final já aparece na
esquina próxima ao açougue. Permanece grande a comoção.
A essa demonstração de fé não pode comparecer dona Miranda que é nossa vizinha. Do seu lado está a mãe, que é velhinha
e usa uma rede preta na cabeça, bem a caráter para a ocasião.
Com os rostos constritos, do alpendre de sua casa de esquina,
observam as pessoas que estão no rabo da cobra que avança
para o palanque, e onde se realizará, também, o sacramento da
eucaristia. Reparam que as velas estão por se extinguir, efeito da
exaustão final dos barbantes e da cera. A moça que chamavam
Fia, a filha mais velha, observa a avó que, arqueada e com frio,
puxa para junto de si o xale preto que traz aos ombros, e prossegue rezando o terço. Ela que, de súbito e com a voz embolada,
168
Jairo Martins de Souza
tira forças de não se sabe onde e, animada, engrossa a parte final
do cortejo, dizendo, Aaavê! Aaavê! Aaaavê Maria!...
Foi uma bela procissão. Com final apoteótico e recebida com
um afeto que não se encerra. No andamento deverão ser belas as
lições a serem proferidas na Missa Campal prometida.
Amanhã, segunda-feira, com o primeiro canto do galo na
madrugada fria, o trabalhador da família Belgo-Mineira ressuscitará leve como pluma.
Não demora ouviríamos o ruído do motor de dois tempos da
Vemaguet do nosso pai que iniciava seu turno de poluição diária.
Era assim que se anunciava mais um dia de trabalho para o Bazar
Monlevade. Conforme profecia do sacerdote, toda a Vila Tanque
está pronta para cometer os mesmos pecados da semana que passou, de forma diferente.
Reincidência comum. A cada dia o homem martela mais pregos na cruz de Nosso Senhor.
Bazar Monlevade
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Capítulo 27
Pode-se escrever sem pensar
G
raças aos céus não escrevo como os antigos. Lembrome de vê-los escrevendo, conforme exaustivamente
mostrado em quadros pintados a óleo sobre telas em canvas. As
molduras pinceladas de finíssima camada de ouro, gastas pelo
tempo, mostram que as reparações, mesmo que bem feitas, não
dão jeito nas aparências que, pouco a pouco, se deterioram. Por
simples dedução, posso imaginá-los trabalhando noite adentro,
faces cansadas e velas fracas a alumiar os papéis de escrita onde
grandes obras foram engendradas. Ao lado dos braços cansados
do escritor, o pintor mostra na tela que pintara o vidro de tinta e
o indispensável mata-borrão. Um fazia, o outro secava, dando o
acabamento. A nossa geração é de privilegiados. Há escritores
que escrevem somente quando já trajados de terno e gravata:
como se fossem a um baile de formatura.
Mas nunca as pessoas se sentem satisfeitas com o que têm.
Não sou exceção e, por exemplo, nesse preciso momento, a minha alma sente-se estranha e solitária e vaga pelas sombras de
um escritório de negócios industriais onde, em discreta baia de
trabalho, aproveito momento favorável, e encaminho parte desses escritos.
A maior parte deles faço no avanço da noite com luz de boa
qualidade e baixo consumo. Com efeito, se me comparo com os
que me antecederam na arte, ganho nas ferramentas, mas perco
na criatividade e no silêncio.
Senão vejamos, escrevo nos fins de semana e na madrugada
barulhenta da vizinhança de Santa Lúcia aqui de Vitória e, como
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Jairo Martins de Souza
agora, tendo os sentimentos misturados entre memórias e cronogramas de investimentos industriais à procura de soluções de
compromissos. Ah, santo privilégio esse das janelas do Windows:
não fossem tão escassos meus expedientes literários!
Com tudo isso, o cérebro mal pensa. O consolo que me sobra
é que posso repensar meu estudo superficial sobre Cortázar e,
modificando o que ele disse, afirmar ao leitor que ‘pode-se escrever sem pensar…’
Meus dedos no teclado sofrem interrupções constantes. Justas.
Afora os erros de digitação apressada, e suas idas e vindas, a toda
remuneração deve corresponder uma adequada contrapartida de
trabalho. É o que faço. Alguns ao lado comentam em voz alta sobre
solicitações de serviços de engenharia, enquanto telefones tocam
veiculando perguntas e respostas técnicas, e, por assim dizer, palavras sem serventia para a escrita sobre meus pais.
Nem tanto assim. Meu pai andou pela vida sempre ligado à
Companhia Siderúrgica Belgo Mineira. A Belgo de Monlevade que,
faz pouco tempo, foi incorporada ao poderoso grupo Arcelor, e
mais recentemente ainda ao indiano Mittal. Com seus altos fornos,
carvões cozidos, sucatas, minérios, linhas férreas, lingotamentos,
sinterização, energia, carros torpedos, convertedores, briquetagem,
estações de tratamento de água e de lama, oficinas, escritórios,
centros de dados, comunicações, guindastes, riggers, agentes da
segurança patrimonial, laminações, empregados próprios e contratados, bobinas a frio e a quente, portos, parques ecológicos; ‘tome
uma atitude’, belas avenidas e muitas árvores...
Tudo isso é resumidamente uma moderna usina siderúrgica
integrada como a de Tubarão, com seus insumos, fábricas, produtos e necessidades de infra-estrutura. Alguns dos seus homens são
perdidamente apaixonados pelo trabalho. Os Steel men. Pertencem ao aço, pois com ele dormem vinte e quatro horas por dia. À
parte dessas relações comprometedoras ao equilíbrio das famílias
dos seus gerentes, aqui se gera muita energia e vapor, fazendo
ligeiramente mais quente a água do leito do Atlântico de Vitória.
Algumas tartarugas que a visitam gostam do conforto e do calor
industrial.
Bazar Monlevade
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Quando aqui, mato dois coelhos com uma só cajadada. Tarefa difícil essa de ganhar o pão de cada dia e, ao mesmo tempo, recuperar lembranças. Pouco mudou para mim o passar dos anos,
acontece como acontecia na minha infância. A revista do Cavaleiro Negro, ou a do Mandrake ou a do Zorro… esteve sempre me
observando, oculta entre as páginas dos livros de uma disciplina
qualquer. No caso, dentro de uma especificação técnica de uma
ponte que rola, cá entre nós, muitas outras coisas poderia ser.
Tudo é relativo. Estão lembrados que Albert, em seu escritório de patentes suíças, teve tempo para desenvolver sua relatividade geral, e deixar mais amenas as suas horas de trabalho?
Finalmente, o recurso usado por gigante pode também ser usado
por um anão; o mesmo caminho de um elefante pode ser trilhado por uma formiga; o que se fura com uma punção, pode ser
perfurado mais lentamente com uma pinça, e, concluindo, se foi
recurso usado por um, pode ser usado por todos.
O que não é conselho adequado para os mais jovens, mas,
tal como o homem Einstein, sou muito antigo para mudar a prática de fazer coisas em lugar inadequado. Mesmo que, trata-se da
minha intenção, justificado pela poesia, à qual nos leva a alma
de qualquer escrita que se faz. Aliás, segundo o mesmo Fernando
Pessoa que disse o que acabei de escrever, a escrita é a respiração do pensamento. É mais uma razão pela qual sigo escrevendo. Lembro que ficou também famoso por firmar obras literárias
como se fosse outra pessoa.
Às vezes, era o médico Ricardo Reis, às vezes Álvaro de
Campos (um engenheiro. Um ex-colega de profissão…). Por final,
podia ser também o camponês Alberto Caieiro (melhor ainda
para figurar em memórias dos meus pais).
Cada um deles sabia de si, não obstante o franzino Fernando,
o arquiteto de todos, não se pensar assim. Senão vejamos, recuperando fragmentos de um dos seus mais belíssimos versos... ‘O
poeta é um fingidor…’. Que siga com suas palavras o próprio leitor,
pois são versos que deverão perdurar por gerações e gerações.
Por final, não sendo mal agradecido, digo um muito obrigado, assim como a outros que abriram caminhos que conduziram
172
Jairo Martins de Souza
a mim, e a outros, aos estudos literários da literatura portuguesa.
Fizeram-nos conhecer e apreciar essas belezas.
Também nossos pais e familiares agradeceriam a gentileza
de nos ceder essas linhas sucintas que informam mais conteúdo
com muito menos palavras. Causa-nos admiração e aliviam as
nossas angústias. O nosso dolor de existir: a angústia. Que, agora
quem diz é qualquer iniciante de estudo psicológico, é o único
sentimento essencialmente verdadeiro. Não engana a ninguém,
nem mesmo a nosso pai, que, às vezes, sonhava alto dizendo ter
manha de detetive.
Na verdade, um detetive de procedência rural, pode ser que
algum dia venha a descoberto algumas de suas aventuras. Quando
me dizia de suas pequenas investidas no ramo, lembrava-me o detetive Matos do escritor Rubem Fonseca. Não nos procedimentos,
mas sim nos fármacos que ingeria, pois esse personagem, frequentemente angustiado, mastigava sem tréguas as suas pastilhas de
pepsamar. Tratava um sintoma. Nosso pai, sem conhecê-lo, também fazia assim. Talvez para abrandar sua angústia de sempre
querer mais e mais.
Lembro também que a angústia é sentimento absolutamente
binário. Sente-se ou não. Com a conhecida característica de não
se conhecer o porquê. Voltando à literatura, um exemplo típico
é o protagonista de Camus no premiado O Estrangeiro. Mersault
não entendeu o porquê de ter sido condenado a cumprir pena
por ter bebido café-com-leite no dia em que, triste, velava a própria mãe em seu sanatório de morte. O resultado é a sua angústia
indecifrável. É a impressão dramática que nos dá o texto.
A angústia humana é assim, faz-nos sofrer pelo que não sabemos. Por ela, talvez Mersault tenha sido condenado. O que fica
patente é que ela, a angústia, morre quando identificada: não
demora teremos uma forma simples de explorar mais seus desdobramentos, por meio de uma senhora chamada dona Miranda, e
que residia ao lado de nossa casa na Vila Tanque.
Pois das angústias dos filhos entendem melhor os seus pais,
nunca se deve desprezar o profundo alcance do seu sentimento de
intuição, principalmente das mães. Aliás, antes de serem mães,
Bazar Monlevade
173
elas já tinham sido mulheres e, em sendo assim, com profundos
dotes investigativos. Portanto, e por não mais que necessário, diremos somente um caso.
Foi há muitos anos atrás. Eu era menino que andava preferencialmente descalço e de calças curtas e, junto com meus irmãos
de idade mais próxima, perambulava ociosamente pelas ruas da
Vila Tanque. Eventualmente praticava os feitos de engraxar sapatos. Com o que me iniciava nas primeiras atividades práticas
nessa terra de deus, mas de usufruto da Belgo. Já relatamos, em
outra parte desse texto, que a ela pertencia, inclusive, a casa em
que morávamos, e o imóvel onde funcionava o fundo de comércio do nosso pai. O Bazar. Portanto era de suas posses também
a casa da nossa vizinha, dona Zenora, mãe de dona Miranda, de
quem falaremos no capítulo próximo. A nossa estrela. A reflexão
sobre a riqueza do enunciado de seu comportamento só ocorreume recentemente. Antecipo que, por meio de sua figura negra e
alta, vi precocemente uma grande psicanalista em ação. Muitos
anos depois, alguém, em classe seleta, disse-me que é arte que
vem sendo confirmada como possível de ser encetada por não
médicos. Com sucesso.
Mas Miranda era uma mulher sem estudo e não recebia em
contrapartida nenhuma remuneração em espécie. Muito antes
disso, tinha como missão dar adequada educação aos que dela se
acercavam, e dependiam. Não somente dava a luz aos seus filhos.
Fazia melhor, na criação e na instrução disciplinar.
Bazar Monlevade
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Capítulo 28
Psicanálise caseira. Um caso de cura momentânea na Vila
Tanque
L
embremos que Dona Miranda também participou
timidamente da procissão religiosa que estivemos
descrevendo por alto. Cortejo que vimos sair da Praça do Palanque
e, após circular por toda a Rua do Contorno, retornou para a
mesma praça que saíra. Negra e simpática, entre 25 a 30 anos,
já era mãe de vários filhos. Os estudos que fiz alguns anos mais
tarde, autorizam-me chamá-la psicanalista, pois o próprio Herr
Freud de há muito dizia sobre licenças ocasionais para exercício
leigo da ciência que criara.
No social a vizinha mantinha distância das idéias do médico alemão. Como vimos, com seu canto de Salve Maria, não tinha dúvidas
quanto ao futuro de sua ilusão. A fé cristã. Tema ainda não esgotado
na Sociedade. Nem nunca deverá ser.
Polêmico. Aqui não se discute futebol e religião. Com isso passo a dizer que, enquanto o francês Jacques Lacan fazia belas exposições teóricas em sua conferência Por Uma carta de Amor, nossa
vizinha dava expressiva lição de psicanálise infantil aplicada.
Algumas informações devem preceder ao relato sobre o trabalho dessa senhora. A princípio afirmando que, conforme a biografia de Freud, tão real quanto dizer que os Estudos sobre a histeria foram prensados em pleno desfalecer do período vitoriano
(final do Século 19), é informar que a competente vizinha não
possuía nem livros nem nada sobre o assunto. Afora a de gibis,
a prática da leitura era pouco estimulada na nossa, e nas outras
casas da vizinhança da bem arejada Vila Tanque.
176
Jairo Martins de Souza
Portanto, para que a atitude da vizinha torne-se bem compreendida, passo a fazer pequena nota relativa à angústia infantil.
Antecipo que foi o tema trabalhado por Miranda no seu pequeno
caso clínico. Por exemplo, se uma criança (diremos genericamente criança, pois se trata de caso raro em que meninos e meninas
tornam-se iguais), quer uma bala, ou um toffee, e não pode tê-las,
sonha. Sim. Sonha: tenho uma fábrica dessas iguarias. Ou até
mesmo devaneia: choveram balas na noite passada. Suponhamos que nada disso esteja acontecendo.
Suponhamos que está com a cabeça vazia de desejos. Seu
pequeno cérebro, desonerado da função do pensar, está mergulhado na escuridão do nada. Esse é o momento propício para que
venha à tona um mal… o de sentir um estranho desejo por nada.
Começa a choramingar não sabe o porquê.
Sigamos para o fulcro do problema, o seu xis, sem abandonar, de vez, o lado teórico da questão. Nada serve a quem
não sabe o que quer, esse é o ponto de referência no caso a ser
debulhado. Um menino, o Diquinho, está sem pensamentos, sem
desejos de posse que precisa. Sem ambição de nada. Isso pode
suceder a qualquer pessoa, os adultos e idosos também sofrem
desses males.
Arbitrariamente consideremos que fosse uma tarde. O Sol sumia nas orlas das árvores das montanhas altas (das que se vêem
ainda, mesmo que em menor número, nas montanhas de Monlevade). O menino, digamos, de 5 anos de idade, choramingava
escondendo-se pelos cantos da casa. Nem a mãe, nem ninguém
podia vê-lo. Chorava baixinho.
Ignorava os outros de sua idade que brincavam na Rua dos
Cabritos, onde brincávamos também. Com ouvidos descompromissados, dona Miranda passou a ouvir o ruído ora sendo feito
por um dos seus muitos filhos, o tal Diquinho. Choramingar característico… Êta menino enjoado!
Pensou, olhando para o filho, que a observou com olhar cabreiro por detrás de uma das portas. Por que esse menino está
resmungando?... Lembrou-se dos trabalhos dolorosos de parto a
que foi submetida e dos primeiros dias sofridos do garoto, sem-
Bazar Monlevade
177
pre reclamando de dores estomacais. Naqueles dias chorava por
razão concreta, seu pequeno estômago estava por completar a
formação…
Pode ser que esse meu tiçãozinho esteja chorando por que
é portador de uma grande perda. Inconsciente. A do das ding
(a coisa) impossível de ser alcançada. Esses sentimentos, reflete
Miranda, não têm forma material, não sofrem o processo de se
transformar em imagens. Por isso meu filhinho sofre. A isso posso
chamar angústia.
Tem saudades do jardim do Éden, que era o aconchego da
minha bolsa de mãe. Não posso me esquecer que dava a ele
tudo: as proteínas, os sais, os doces, e inclusive algumas pitadas
de amor, por meio dos afagos e carícias na pele da barriga. Ah!
Mesmo nós, adultos, temos esses tipos de sentimentos... Vou fazer
nele um acting out, trazê-lo de volta para o mundo. Esse menino
tem que manter a compreensão dos signos e da linguagem.
Com respeito especial vejamos a cena. Aproxima-se lentamente do filhote que, ao vê-la, choraminga agora em ritmo acelerado. Mãe, choro por existir! Ao chegar dentro do perímetro dos
seus braços e mãos, sem que o garoto perceba, ou que tenha
mínimo tempo para fugir, dá-lhe um enérgico cascudo.
Simultaneamente, levanta-o. As duas mãos magicamente já
estavam grudadas como visgo às orelhas de abano que, por segundos, mantiveram-se esticadas como as de um bacuri. Pára de
aporrinhar, menino! O filho imediatamente cessa o choramingar e
inicia violento e desesperado choro, mas que pouco persiste.
Agora só lhe restam breves soluços que lembram, com o molhado nariz e a vermelho dos olhos, eu chorei forte há pouco.
Reconhecendo o algo indefinido, transformado em dor física material, ouve a mãe dizer em alta voz, agora você sabe e tem razões sólidas para murrinhar. E vá agora para a cama, que é lugar
quente, e bom para acabar com esse restico de choro!
Por dentro a mãe diz para si mesma: pronto, estão abortadas,
por enquanto, as ações do superego que incomodavam o meu
querido. Agora basta deixar a passagem do tempo.
Tem razão. Não demora o pequerrucho está em longo e pro-
178
Jairo Martins de Souza
fundo sono. De novo feliz. Sonha colorido com bolas, balas e
mais murrinhas que, de outra forma, deverá fazer amanhã.
Lembro que, nós mesmos, mesmo já crescidos, sonhávamos
gols impossíveis nas partidas de gramados imaginários… Mas voltemos ao Diquinho. Está tranqüilo e sossegado, já brincando no
terreiro com tampinhas de garrafa enxertadas de barro seco.
Agora é sua mãe que começou a fazer planos e prosseguia
pensativa. Tenho ainda muito trabalho, ruminava. Aqui em casa
todos os meus filhos mijam na cama, inclusive a minha mais velha, que já é bem grandona. Não agüento mais esse cheiro, inclusive o que vem da casa da Dona Alice.
Vou até lá. Não posso me esquecer da minha mestra…
O Sol está sumindo no horizonte. A tarde já está por findar, e
o Diquinho continua dormindo tranqüilo.
Encerradas as brincadeiras do dia, na Rua dos Cabritos, o
menino que aqui vos escreve está se aproximando mais uma vez
da casa paterna da Vila Tanque… Da qual dissemos bastante,
mas não o suficiente…
Bazar Monlevade
179
Capítulo 29
Onde, lembrando o poeta, se descreve uma das casas paternas
A
Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira foi um
dos primeiros frutos dos grandes projetos industriais de Vargas. Relembro que foi gerada a partir de esforços
de três jovens engenheiros formados em Ouro Preto e que, para
tanto, até mesmo um monarca Belga esteve nas nossas terras nos
anos 20. Trouxera dinheiro e mercado.
Fortaleza de ferro e de aço onde, por algumas vezes, eu mesmo, ainda criança, levava marmita para um dos meus primos
mais velhos. Dias de pouca precaução, caminhávamos inocentemente ao lado de quentíssimas barras de metal, ferro em brasa,
que, como ouro vivo, saía da antiga laminação. A Belgo não tinha
ponte elevadiça a exemplo de castelo medieval, e nem de longe
se pensava em procedimentos rígidos como a indispensável APR.
A análise preliminar de riscos. Utilíssima. Sem ela não se faz sequer uma tarefa na siderurgia: todo mundo devia proceder assim.
Nas estradas, ruas e rodovias também nem se sonhava com o uso
de cinto e outros zelos. As pessoas morriam como gado.
Com o que volto os olhos para o interior da Usina, onde,
junto com o primo Lili, estava entregando a marmita para um
outro, o Ecy, que, ato contínuo, já iniciava o seu repasto. Comia
como um abade o seu arroz com feijão e ovo. Ambos morreram
precocemente abatidos pelo vício da cachaça. Que tristeza!
Não tive o privilégio de fazer o mesmo para nosso pai que,
antes de ter tido a saúde comprometida pela medicina, esteve por
lá trabalhando.
Gostaria de tê-lo visto, ligeiro como era, lançando pás reple-
180
Jairo Martins de Souza
tas de carvão dentro do forno quente que cozinhava o ferro gusa,
e daí partia para se transformar em aço. O mundo prosseguia
sendo movido a minério de ferro do qual, no solo, tínhamos e
continuamos tendo de sobra. Madeira de mata nativa também
não faltava para torrar o carvão combustível. E, para transportálo, a companhia contava com comprido teleférico que encantava
pequenos monlevadenses como eu. Vindo das bandas do Bairro
do Tieté, os bondinhos passavam, e continuam passando alto,
sobre as águas barrentas do Piracicaba. Para sustentar tal movimento, milhares e milhares de funcionários deverão trabalhar
em grandes plantações de eucaliptos, por conta da Companhia
Agrícola Florestal, a CAF.
Desde então a Belgo já fabricava arames, pregos, trilhos, parafusos… Seus operários, no ato da assinatura do contrato de
trabalho, recebiam promessa de concessão de moradia. Nosso pai
também. A princípio tinha boa saúde, logo enfraquecida, conforme disse, por médico açougueiro que prestou serviços durante
algum tempo na cidade. Foi operador de lançamento de carvão
por pouco tempo. Resignado, desligou-se da empresa a qual valorizava tanto, mas não da ajuda corporativa que a Belgo concedia.
Por pura liberalidade, foi-nos permitido ficar na mesma residência
da Vila Tanque.
Com isso passemos a reconhecê-la. De fato era nossa terceira
moradia em Monlevade. A segunda, localizada no Alto da Samambaia, lembro-me mal até mesmo da sua fachada de madeira.
Da primeira, pela boca de terceiros, soube pouquíssima coisa.
Lembro que em Minas é de praxe mostrar a casa a quem nos
visita. No caso, também lugar de repouso da gerência do Bazar.
Sigamos com esses bons modos. Para tanto começo dizendo da
sua localização.
As suas coordenadas geográficas eram 19º 50’ e 48º 38’. A
primeira, a latitude; a segunda, a longitude. As de Monlevade.
Complicado? Então simplifico, dizendo que ficava defronte ao pequeno centro comercial que abrigava a padaria, o açougue, e a
loja comercial dos Sampaio. Um Bazar comprido e fino.
Faça o favor de entrar… Pelo alpendre, que era o caminho
Bazar Monlevade
181
natural. Muito pequeno. Com um pé nele se entrava, com dois
ou três passos já estávamos ultrapassando a porta que permitia
a chegada até a sala de visitas. Com tacos bem encerados com
parquetina, e lustrados com o suor do escovão, essa saleta era, às
vezes, a de almoços especiais.
Fique à vontade nesse recinto que hoje está vazio de gente.
Atmosfera parada. Repare que, aqui e ali, os móveis estão cobertos de pedaços de lençol branco atravessados por teias de aranha.
Pode levantar o pano, se quiser observar o detalhe de alguma
estampa ou pesquisar o que resta dentro de alguma gaveta. O
ambiente pode ser qualificado com o mesmo adjetivo usado para
o alpendre: pequeno. Tudo aqui é assim, sem chegar a ser nanico. Cá no centro, tínhamos uma mesa circular expansível. De lá,
vêem-se as três portas dos três quartos de dormir como também
abertura na parede que, se vista de frente, mostrava ao mesmo
tempo a entrada, sem porta, da cozinha; e a porta, fechada, do
banheiro.
Ainda na sala, em ponto a dois terços de altura da parede
contrária a da sua única janela, e que dava para a rua, como era
comum naqueles dias, ficava pendurado um retrato em forma
ovalada dos nossos pais. Os donos da casa. Ele de terno. Ela de
vestido preto com gola rendada branca. Próxima, uma outra moldura mostrava a nossa avó Dica. De vô Clemente e vó Rosinha
já relatei não ter retratos caseiros. Na parede ainda cabia uma
tradicional cristaleira. Do lado oposto, um sofá pequeno de dois
lugares que era normalmente reservado para as visitas adultas.
Visitava-se aos casais. Acima dele, a janela que abria os nossos
olhos infantis para o mundo da Vila Tanque: a Rua do Contorno.
Alguns jatos de sol penetram por suas venezianas, dando corpo
a minúsculos grãos de pó. Pode abri-la, se for do seu gosto arejar
melhor o ambiente.
Um dos dormitórios era exclusivo para o sono e conveniências do casal: tinha cama grande e guarda-roupa de três portas. A
ventilação restringia-se à janela que dava para o quintal. Abaixo
dela, já no terreiro, um quarador de tela deitada, e ancorada por
paus baixos, mantinha-se sempre cheio de lençóis e cobertores
182
Jairo Martins de Souza
para secagem. No criado-mudo, ao lado de onde dormia o marido, repousava sua majestade, o rádio que, durante o dia era
deslocado com cuidados especiais para ambientes comuns, por
exemplo, a sala de visitas. Nele ouvíamos as transmissões da Rádio Tupi, do Rio de Janeiro. Em toda a casa sobrava pouquíssimo
espaço para circulação. Os outros dois dormitórios eram reservados para os filhos e agregados.
Neles chegaram a morar mais de 15 almas. Havia muita vida
aqui! Além disso, tínhamos visitas locais e de parentes de outras
cidades. Constantes. Custa-me acreditar que lá coubéssemos em
condições confortáveis. O quarto que ficava à esquerda de quem
entra na sala, foi o que vô Clemente descansou antes de ir definitivamente para o cemitério do Baú. Alguns poucos anos antes,
na mesma cama, podíamos ouvir as tosses da nossa avó Dica. Ai,
mal que nunca se acabava! Após ela ter se mudado para Carneirinhos, nele dormiam os dois irmãos mais velhos. Tinha também
uma janela, a segunda a acordar naquela casa. O despertador
era o rapaz do leite. As primeiras que acordavam, eram as que se
encontravam viradas para o lado do galinheiro. Nelas, mais cedo,
iniciavam-se os tranqüilizadores ruídos do dia. A vida volta, e com
ela os sonhos de crianças que querem prosseguir dormindo.
No terceiro quarto ficavam embolados todos os demais. Dava
também vistas para o terreiro com seus pés de goiaba, galinheiro,
parreira de uvas verdes, abacate e, por final, a cerca de arame
que fazia divisa com o vizinho de fundos, e que tinha casa com
frente para outra rua. Reforço que da sala de visitas adentrava-se
diretamente nos quartos. A casa não tinha, esquecido que fora
pelos pedreiros que a ergueram, o hoje indispensável corredor. Já
o acesso da sala para a privada e a cozinha era livre. Ficava apenas resguardado por uma cortina de pano barato. De chita. Mas
privilegiado com uma área de circulação bem pequenina, em “L”,
de, talvez, um metro quadrado.
Um passo a frente e pode-se abrir a porta do banheiro. Aqui
são moldadas algumas obras de arte: das que Freud insistiu existir
na famosa fase anal dos filhos dessa casa. Bem à vista uma bacia
sanitária fabricada em cimento. Tosco. Tinha ferro gusa na alma e
Bazar Monlevade
183
era de concreto pintado de vermelhão na sua parte exterior.
A descarga é das de puxar a corda, ou o arame. Pinicos?
Somente para situações de emergência noturna. Ficavam debaixo das camas. Aliás, isso era praticado em todo o Brasil desde
os tempos do Império. Lembrar que não tínhamos os tigres, que
serviam os ricos no período colonial. Tigres eram escravos que
carregavam o acúmulo de todas privadas e pinicos, levando-os,
em tonéis, para despejo na Baía da Guanabara. Circulavam pelas
ruas cariocas com os corpos marcados pelas listras asquerosas de
excrementos que transbordavam. Listras de tigres africanos. De
Bengala.
Por outro lado, para aplicação óbvia, os jornais ou papéis
de embrulho já estavam cortados em quadrados de aproximadamente 20 x 20 centímetros. Ficavam pendurados em lugar de
fácil acesso por meio de um arame improvisado e dobrado em
formato de ‘s’. Recordo que, na falta deles, tínhamos também o
tradicional papel de toalete da marca tico-tico que era polvilhado
de furinhos indesejáveis.
À esquerda, vê-se uma pequena pia. A torneira de cor amarelada tinha que ter a carrapeta freqüentemente trocada. O barbante enrolado nunca funcionou bem. À direita, bem no canto,
um chuveiro elétrico que está quase em cima do vaso. Os crivos,
agora oxidados e bloqueados por partículas de barro seco, eram
limpos com ponta de agulha grossa para que os banhos fossem
copiosos.
O leitor está cansado? Não? Então sigo dizendo que terminado o banho, passava-se automaticamente o rodo no piso de
vermelhão, que penso ser amarelo. A cortina de plástico grosso
pendurada em um pau roliço fazia precariamente o papel de um
box. Limpos, o destino passa a ser a cozinha que tinha aproximadamente 3 metros de comprimento. Cômodo importante. Nele
muita gente filava a bóia. Do lado de fora, um rolo contínuo de
fumaça imaginária sobe da pequena chaminé que emerge do telhado. Uma manilha de barro com chapéu de chinês. Funcionava
sem parar…
Não demora um passo e meio, à esquerda, víamos o fogão
184
Jairo Martins de Souza
de lenha sempre aceso, lembro que suas brasas vivas insistiam
em não apagar. Ficava bem na diagonal no outro canto do ambiente e posso ouvir os ruídos secos de nós de algumas achas que
reclamam pela queima. À nossa esquerda andaremos ao largo de
uma parede cega, uma folhinha antiga do Bazar ainda está aqui
pendurada num prego vermelho de ferrugem. Na parede oposta,
uma janela retangular envidraçada, de tamanho médio. Olhando
de perto, pelos seus poucos vidros planos e quadriculados (um
está quebrado), aparece a garagem de chão batido que comportava duas kombis em linha.
Algumas telas aramadas dividiam a casa com a do vizinho,
que, além de trabalhar na Belgo, fazia consertos em rádios e ferros elétricos. Poucos. A maioria usava ferro a carvão. Talvez esse
senhor tenha forjado em mim, no futuro, os desejos de ser um
eletricista (mesmo que poucas vezes tenha estado em sua oficina).
Foi lá que a eletricidade e as ondas radiofônicas começaram a me
intrigar.
Finalmente, vê-se um pequeno fogão elétrico. As panelas de
ferro, escumadeiras, conchas, e os demais utensílios de cozinha
estão pendurados por meio de ganchos fixados por pregos na parede. Com satisfação recordo que não passaram por aqui a troca
da panela de ferro pelo alumínio, do fogo da lenha pelo do gás,
a gordura de porco pela de coco. Foram os três grandes golpes
culinários que assombraram nossa geração.
Os pratos esmaltados verdes e brancos com bordas finas escuras assim como as canecas de mesmo material encontram-se
em outro lugar. Mas pode-se ver também uma mesa pequena e
tamboretes. Malgrado algum esquecimento, é tudo que temos de
essencial para os repastos nesse lar.
Anos depois a tudo vi muito parecido no castelo de Neuschwanstein, só que maior. Inclusive o fogão a paus de lenha.
Lugar de menino é no terreiro. No final da cozinha, um degrau baixinho nos dá caminho para a parte externa, onde a terra
chama para brincadeiras variadas. Antes disso, caso virássemos
à esquerda, nossas cabeças bateriam em um tanque alto de cimento, o de lavação de roupas. Ao seu lado ficava uma pequena
Bazar Monlevade
185
saída alternativa para a garagem. Já o terreiro tinha cerca de 80
metros quadrados. De galinhas, formigas cabeçudas, lavapés, um
tanquinho raso de pequenos peixes, patos, a goiabeira, o pé de
abacate, e o canteiro de alface, couve e cebolinhas. Lá morava
também a nossa felicidade. Junto com esses pequenos bichos e
frutas os filhos de Alice Martins passaram boa parte da primeira
infância.
Com pés descalços. O que nos tornava presa fácil para qualquer bicho microscópico, trazendo doenças conforme nos disse o
Monteiro Lobato no almanaque do Jeca Tatu. Inclusive o amarelão.
Mas voltemos ao interior da casa , o almoço está pronto. Entra. Mãe está chamando!
Recordo que iniciamos nosso passeio começando pela entrada da sala de visitas, mas seria também normal que entrássemos pela porta da cozinha. Por aqui também pode entrar nosso
convidado. Ambas, ela, e a da sala, são as serventias da casa.
Lembro também ao leitor que tínhamos sido convocados para o
almoço. Há tempo para finalizar a mostra da nossa casa a quem
nos visita.
Só nos falta percorrer melhor o alpendre. Foi rápida a passada inicial. Era o nosso mirante da movimentação do centro comercial que ficava bem em frente, em um passeio alto em relação
ao nível da rua. Repito, por mero exercício de saudade: a casa
Sampaio, a padaria, o açougue, e o pau alinhado em paralelo ao
altíssimo passeio que servia como ponto de amarração de cavalos, cabritos, bodes, burros, carroças…
Olhando a sua fachada, e vendo as sombras fugidias dos que
lá entravam pelo seu portão, surpreendo-me dizendo baixinho
para mim mesmo. É. Essa casa é como o coração das mães de
antigamente. Sempre cabia mais um filho que carecia de algo. No
telhado continua assomando a fumaça do almoço que chega ao
seu final e que, por ser hora ligeiramente passada, os bifes finos
de alcatra já estão sendo fritos. Nossa mãe não mais convoca os
filhos, todos já estamos a postos, mas não se pode dar ainda a
largada para o início da nossa refeição...
186
Jairo Martins de Souza
Finalmente, volto à vida, e vejo que a figura do meu pai aparece nesse meu sonho. Tem jeito de quem está com pressa, parece
ansioso para voltar ao Bazar. Chegou atrasado, mas não gosta
que a família inicie o almoço sem estar presente. E, mal chegando, diz, gente, tenho que voltar logo, os negócios hoje estão indo
de vento em popa! É friorento. Veste camisa de lã xadrez de manga comprida.
Passa ao largo de um pequeno jardim onde tínhamos uma
roseira, um pequeno pé de romã, grama rala, e isso é tudo. Faltou
lembrar a nova cerca frontal de tubos siderúrgicos e arame. Faz
alguns dias que a de velhos moirões foi derrubada. Por sinal, não
demora, estarei a postos para pulá-la. Já passa da hora de fugir
para a Cabritos!
Há muitos anos essa casa paterna, tal como o Bazar, foi demolida.
Bazar Monlevade
187
Capítulo 30
Um clássico no gigante do Jacuí. Menino gosta mesmo é de
ser assistido pelo pai
N
ão é propósito do menino que vos escreve molhar com lágrimas as páginas desse texto. Mas,
pela manhã, nesse dia do Trabalho, faz mais de 70 anos que alguns operários de Chicago foram assassinados quando lutavam
pela famosa batalha dos três oitos. Sim, a proposta dos trabalhadores do mundo era dividir as 24 horas diárias em três turnos
de oito. Um deles seria reservado para o trabalho. Outro para
repouso. As horas restantes seriam para o lazer de quem ganhava
o leite das crianças em chão de fábrica tocado por gente, burros
e caldeiras a lenha.
Tudo muito racional, e de acordo com o novo rumo das relações entre o feitor e o escravo que já se antegozava naqueles
anos. Nunca fui, nem nunca vou ser simpatizante do trabalhismo
sindical, mas sei da data daquele morticínio de cor porque aconteceu no mesmo ano, 1886, em que Freud casou-se com Martha
Bernays. Concluindo, foi nos primeiros dias do mês de Maio de
1886 que tiveram lugar as conhecidas badernas de Haymarket
(Haymarket riots), e que desgraçadamente culminaram com a
morte de trabalhadores que protestavam.
Foi o que gerou o feriado do primeiro de maio no Brasil. Por
isso demos todas essas voltas no texto!
Finalmente, estamos em 1955. Confirmo que, graças aos
mortos americanos, hoje é o dia dedicado ao trabalhador, não
ao trabalho. Data importante. Nela não se há mais protestos: empresários e sindicalistas, mãos unidas, fazem andar as festas com
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Jairo Martins de Souza
shows e celebrações. Como velhos amigos! Diferente de tempo
ainda recente, corteja-se o trabalho, o trabalhador, o político e o
empresário. Pode ser que também, para alegria geral, seja divulgado o novo valor do salário mínimo.
O operário da Belgo acorda, toma o seu café e come o seu
pão com manteiga ao lado da esposa que lhe serve a iguaria. O
cheiro do café passado fresco, caído na caneca diretamente do
pano coador, sai da cozinha e avança pela rua afora. Dia festivo.
A mulher, em sua homenagem, assou uma broa de fubá que também cheira gostoso.
O marido, ainda relaxado, ouve o que não costuma ouvir,
ouve os xingos da mulher que insiste em tirar da cama alguns
filhos que resistem em permanecer deitados. Mas tudo para ele
deverá começar mesmo pela missa solene na matriz do Tieté,
momentos em que a Igreja Católica comparece com parcela de
contribuição. O padre que, em capítulo passado, celebrou a missa
no palanque improvisado na Vila Tanque deverá ajudar o Bispo,
que vem de fora, a proceder aos ritos religiosos e ao sermão – em
tempo, aviso ao leitor que estamos dizendo do mesmo homem de
Deus que, em breve, deverá ser acompanhado em passeio saindo
da Matriz… Mais exatamente no capítulo que a esse segue.
O fecho de ouro das comemorações ficou reservado para a
parte da tarde. Não dá para ninguém deixar de ir à grande festa
do futebol local.
Segue-se milagre do tempo psicológico: a hora passa mais
rápida do que o giro de um ômega ferradura. De bolso. Lembro
que Einstein fez-nos entender que em velocidade próxima da luz
o efeito é contrário: o tempo demora mais a passar. Importante.
No entanto, como repórter esportivo que sonhei um dia ser, o
que tenho realmente a relatar diz respeito às ações que se desenrolam próximas ao campo do Jacuí. Há gente de sobra do lado
de fora.
Torcedores de última hora. Transitam alvoroçados para lá e
para cá, e procuram, e interrogam rapidamente à bilheteria que
é um buraco no muro; a saber, senhor bilheteiro que nos atende,
ainda temos ingresso? O alto-falante do estádio, com voz confusa,
Bazar Monlevade
189
parece falar em grego, e sobrepondo-se a estalos e interferências,
anuncia ofertas e promoções do comércio monlevadense. O Bazar Monlevade promove grande torra de estoque, tecidos, calçados…
Tudo entre chamadas sobre o clássico Metalúrgico x Belgominas. Ah, isso todos os circunstantes escutam e entendem! Mais
ainda quando torna público que os ingressos se esgotaram, parte
do povo que lá está, deverá ficar realmente de fora das dependências do estádio. Não diz a bíblia que muitos serão chamados,
poucos serão escolhidos?
Alguns inconformados deverão tentar pular o muro de tijolos maciços fabricados em olarias próximas a Monlevade. Com
algum risco. Afora o policiamento, cacos de vidro verde no seu
cimo evitam a entrada de bisbilhoteiros.
Com o que volto ao futebol, lembrando que é esporte melhor
definido como bola na rede, e que, faz pouco tempo, o Galo Mineiro havia triunfado gloriosamente nos campos gelados do continente europeu. Batalhas, diziam, mais difíceis que as travadas
por Napoleão no frio intenso do inverno soviético. Kafunga. Lero.
Murilo. Ramos...
Como dizia o poeta, Meninos, eu vi… Tudo contado teatralmente pelos aficionados. Grandes vitórias, grandes adversários.
Já na América, perseguem-nos ainda os fantasmas dos Sosa,
Martinez, Lopéz, Da Silva, Parodi, Brindisi, Rattim, Corbata e etc.
Ah, como fazem falta os antigos para anotar craques que aqui
faltam!
Mais ainda sobre todas as nossas selecções. Sim, selecções
com dois cês, pois era como velhos cronistas escreviam a palavra
seleção. Como parte de sua história, no Centenário de Montevidéo, vi bolas cascudas balançarem as redes de suas velhas balizas.
Nele se respira saudade dos primeiros anos do sonho de Jules
Rimet.
Tal como lá, o menino que vos escreve continua respirando,
pois, no Jacuí, as charangas estão mais barulhentas e animadas.
Não há túnel de entrada nem vestiários para as duas delegações e
o alambrado é uma cerca de arame. Das mesmas que separavam
190
Jairo Martins de Souza
as casas dos operários na Vila Tanque.
O nervosismo que antecede à partida é justificado. A caminho, dentro da jardineira, alguns jogadores, esquecidos de suas
obrigações na usina, entoam palavras de ordem. Um, mais atabalhoado, diz palavras desconexas. Promete dedicar gol a mais
um filho que acabava de nascer. Outros beijam o escudo do time
costurado pela mãe. Um outro pensa no par de chuteiras que
ganhara do pai. Dizem que na Europa já fabricam sem pregos. O
centro-avante antecipa com um colega como deverá comemorar
o seu goal que certamente virá. Há tensão no ar… somente onze
entram em campo…
Na cozinha da condução vê-se uma pequena estátua de uma
santa. Um jogador ajoelhado reza pedindo inspiração. Noutro
canto alguns poucos fazem orações. São os evangélicos, futuros
atletas de Cristo. No banco da frente, o técnico segue calado. Muito próximo a ele, o massagista e o ponta de lança, descontraídos,
ensaiam um samba acompanhado por pandeiro. Cantam baixo,
respeitando os demais.
No ônibus do outro time acontece igual. Inclusive a preleção
que precede aos derradeiros minutos antes da chegada ao estádio. O treinador pede silêncio geral aos atletas, e esses de um para
o outro, e assim vai até finalmente chegar ao fundo do coletivo.
Falou-se duas vezes no nome de um jogador chamado Gigante.
Explore o seu chute forte de fora da área, diz, a ele, o seu treinador. Quero bloqueio cerrado sobre os avanços daquele centromédio grandão, o Gigante, diz o do time adversário.
No final, todos, de mãos dadas, recitam declaração de amor
verdadeiro ao time de coração. Antigamente era assim.
Entretanto o jogo se realiza dentro das quatro linhas. Os times já com as escalações definidas, pelo menos nas cabeças dos
treinadores que viajam de cenho cerrado. Preocupados. Um deles
tem dúvidas se deve armar a sua esquadra no esquema 4, 2,
4. Continuará calado até que distribua as camisas. Finalmente,
poucos minutos antes do início da partida, dirá como um juiz a
declinar uma sentença de morte para os que ficam de fora. Você
começa no gol, você fica com a dois… Você inicia de centro-mé-
Bazar Monlevade
191
dio… você fica com a onze, peço jogar bem aberto... Não demora, ambos deverão iniciar série interminável de xingos à progenitora do juiz.
Os capitães já estão recebendo as recomendações finais da
arbitragem. No centro do gramado repousa quase brilhando uma
novíssima bola de couro oficial. Marrom. Após análises e estudos
dos capitães, por meio de pressões com as pontas dos dedos na
bola da partida, solicita-se a dois homens vestidos com macacão
de auxiliar. Por favor, peço dar mais algumas bombadas nesse esférico para que adquira a sua dureza ideal. Pobres guarda-metas!
Caso haja qualquer tipo de defeito de fabricação nascerá um
ovo entre a costura do barbante e a couraça, é o que diz o funcionário arfante que bombeia ar para o esférico.
É chegado o momento do toss. O alçar a moeda ao alto.
Ganhou cara. Um dos goleiros sorri. Consultado pelo capitão ganhador, hesita em fazer a escolha do lado em que vai inicialmente
ficar. Quer começar no gol que está com sombra. Para tanto prossegue consultando a posição de incidência dos raios solares. Vê
também debaixo de qual trave tem mais grama…
Por fim, define mentalmente e diz, quero ficar do lado de cá.
Do lado contrário ao da barragem do Jacuí.
Os times trocam de lado, já estavam organizados em suas
posições. As flâmulas já trocadas. Um dos goleiros põe o boné.
O árbitro consulta cuidadosamente o relógio, não antes de ter o
assentimento formal dos bandeirinhas. A torcida confere relógios
de pulso, ou de bolso. Um torcedor diz algo ao outro que está ao
seu lado. Está inseguro. O primeiro tempo, fora as ceras de praxe,
deverá terminar daqui a 45 minutos. O vizinho confirma dizendo,
o senhor está certo. Não há furos na rede. O homem de preto faz
o sinal da cruz. Tem costurado na camisa um pequeno distintivo
triangular onde se lia FMF.
Nas arquibancadas, prosseguem conversas vazias de conteúdo. Os segundos, agora, duram séculos e confirmam falsamente
parte do que Einstein disse. Um falante deixa uma frase pela metade, pois são ouvidos dois silvos consecutivos que cruzaram os
ares. Começou…
192
Jairo Martins de Souza
Tentando aparentar tranqüilidade, a bola é levemente adiantada do centroavante para o meia-direita, do 9 para o 8. Do
meia-direita, o 8, é recuada, agora com mais força, para centromédio, o 5. O centro-médio, o 5, recua mais ainda para o 2, o
lateral direito e assim vai... Por final a bola deverá terminar, isso
nunca muda, embolsada pelo goleiro…
O torcedor, que deixara a frase em aberto, acende um cigarro
e reforça o que já pensava o vizinho. É. Essa lenga-lenga deverá
demorar em torno de 15 minutos. Período de estudos…
Da casa do nosso tio Ninico, ouvíamos a grande algazarra
cuja fonte nascia do meio dos eucaliptos que cercavam três quartos dos contornos do gramado. Já nos anos 50 fazia sapatos, recortando, desde as formas de madeira dos pés dos senhores, senhoras e senhoritas até as grossas tiras de pneu que compunham
as solas dos sapatos e tamancos masculinos.
Além disso, era também reconhecido educador à moda antiga, conforme prometera nos tempos de rapazinho. Para cumprir
seus ideais, as tiras de couro que pendiam secando no terreiro
eram exaustivamente usadas na correção disciplinar dos filhos,
nossos primos. Não hoje. Hoje é dia de festa!
Nosso pai ficou em casa. Não era daqueles persistentes freqüentadores de estádios, mas, à distância, sempre foi um apreciador do esporte. A partir disso, o futebol será sempre, dos esportes,
uma das nossas estrelas do Norte. Por ser a principal, romanticamente, a Polar. Lembro-me quando levou-nos ao estádio Independência em Belo Horizonte. Foi também nos anos 50. A goleada alvinegra sobre o Sete de Setembro, de Raimundo Sampaio,
consolidou a preferência que tinha sido delineada em Monlevade.
Naqueles dias dizíamos, e ainda hoje alguns patrícios portugueses
continuam dizendo, foul, penalty, corner, goalkeeper, halfs direito
e esquerdo, center half e center forward...
A regra base do futebol, por sua vez, nunca mudou, e é a
que nos diz, em entrevista coletiva, o técnico da seleção nacional
alemã: ‘a bola é redonda e o jogo dura noventa minutos’. Foi em
cena de ‘O Milagre de Berna’. Nele viu-se como Puskas, e seus
amigos magiares, foram derrotados, em 54, pelos discretos joga-
Bazar Monlevade
193
dores alemães.
Em Monlevade, tínhamos as nossas próprias regras, apesar
da lei do futebol obedecer a poderosas organizações nacional e
internacional (a CBD e a FIFA). Cá entre nós, três escanteios equivaliam a um penalty.
Três bolas tocadas nos tocos de pau, as traves, seriam iguais
a um goal. Por final, não medíamos o jogo por tempo, conforme
nos orientou acima o treinador alemão, e sim por quedas ou número de gols. Por exemplo, uma das preferidas era a de seis. Seis
gols.
Pouco sei do meu pai em termos futebolísticos. Nunca o vi
jogar com outras pessoas. Dizia ser, nos seus tempos de rapaz,
um excelente driblador e aclamado futebolista amador da área
rural de Viçosa. O que devo tomar por certo, pois, com o resto do
corpo, tinha modos leves e ligeiros, compatíveis com a sua magra
constituição. Gostaria de tê-lo visto jogar. Em contrapartida, poucas vezes ele me viu. Lembro-me muito bem de uma delas...
Foi em 1961. Era extrema direita de qualidade técnica discutível. Nunca poderia ser chamado de craque. Uma semana antes
da partida, ansioso, já desenhava jogadas junto aos garranchos
de um caderno especial. Tinha as linhas com a cor de um azul
fraquinho.
Local: Colégio Batista. Estava lá desde o aprendizado da cartilha. Luta já passada. Mas hoje é tarde de clássico: o colégio tinha
campo que lembrava o do Jacuí. Fazia calor causticante, e lutava
muito pelo extremo do gramado, tentando também negar minha
reconhecida limitação física. Lá, sob a sombra amiga das árvores
que margeavam o gramado, poderia render melhor. Concentrado, não me esquecia do técnico Yustrich, que recomendava ao
player atleticano: ‘quem pede recebe, quem desloca tem a preferência… ’.
Do campo, parcialmente bloqueado pelas árvores que dissemos existir, podia-se apreciar o promontório do Bairro da Graça.
Nele destacava-se, bem no seu alto, a vista então majestosa do
hospital São Francisco. Foi de lá que vô Clemente saiu transformado em menino…
194
Jairo Martins de Souza
Na torcida, por uma única vez, meu pai observava a partida.
Vestia terno e gravata. De linho. Não cantava como os demais
expectadores, ‘é canja, é canja de galinha, arranja outro…’.
Nunca o vi gritar. Nem ali, nem em outra ocasião. A altura de
sua voz era, no máximo, moderada. Nem mesmo para chamar
os filhos distantes. Finalmente, reparei, talvez seja por isso que
eu tenha, no futuro, acompanhado tão proximamente os passos
do meu próprio filho. Com um meio sorriso nos lábios, ele batia
discretamente as palmas das mãos e dizia, vai J!
Com o que faço uma atualização. Só para fazer ao nosso pai
um elogio, dar um troco… Copio o seu exemplo, estão recordados do Cancer dicebat filis “mi fili...”. Com ar tranqüilo sempre
nos dizia, ‘esses meus meninos são muito inteligentes’.
A ele sempre pedia ajuda, e aqui finalizo: Pai, dá para você
desfazer esse nó para mim? Sim, filho, desde que não seja um dos
dessa escrita. Não é não, pai. É do meu par de chuteiras. Dê-me
cá, filho... Está pronto. Pode usar, estava cheio de nós cegos... Os
pregos estão todos batidos?...
Em tempo: não demorou muitos anos o gigante do Jacuí foi
demolido para também dar vazão às mercadorias e minérios da
Vale do Rio Doce.
Nunca o futebol de Monlevade voltou a ser o mesmo!
Bazar Monlevade
195
Capítulo 31
Parte 1 - Onde se diz de um passeio imaginário, talvez
um sonho. Um padre, a Matriz, o Bairro Tieté, e o Bazar
Monlevade
R
ecapitulemos os nossos três últimos caminhos. Resumidamente. Passeamos pela Vila Tanque. Transitamos até a Praça do Cinema. Passamos algumas horas no bairro
do Jacuí. Durante o roteiro, fizemos várias interrupções que a cabeça do escritor recomendou, inclusive um desvio, não previsto, até o
campo de esportes do Colégio Batista Mineiro.
Retomemos nosso passeio. Começando, porque gosto de
coisas novas, a partir de risco traçado no desenho que se segue,
não demora!
Lembro que ainda não usamos recursos gráficos nessa obra.
Para mim, mesmo sendo engenheiro já aposentado, faz falta. Para
tanto, conto com a ajuda do menino Cusecco que aqui faz uma
importante contribuição. Nela vê-se o ponto A, que identifica a
igreja matriz de Monlevade: a do bairro Tieté. Essa edificação
se encontra de fato escondida atrás do morro que também lá se
apresenta rusticamente recortado.
196
Jairo Martins de Souza
O trajeto do padre. A pinguela não pode ser vista. Fica depois da curva do rio…
Do outro lado do rio, com alguma dificuldade, o leitor pode
situar o ponto B. O ponto B se refere, economicamente, ao B de
Bazar. Também por parcimônia não se faz o uso do M de Monlevade. Mais ainda, tal como ocorre com a matriz, não mais estamos vendo a sua antiga construção em madeira. Já cedeu lugar…
Mas isso fica para mais tarde! A nossa missão, agora, é fazer, a pé,
todo o traçado entre a referida Matriz e o Bazar. Entre A e B.
Na metade do percurso encontraremos a pinguela do Tieté,
que o povo chama de Ponte de Arame. De aço. Na minha verdade de menino ela é feita de cordas a base de fibras do sisal...
Mais acima, lá está a usina Louis Ensch da Belgo Mineira. Sempre
imponente a meio caminho das margens do Piracicaba.
Esclarecido o conjunto de indagações que persegue o ho-
Bazar Monlevade
197
mem desde o início dos tempos, aonde vamos, de onde viemos,
por onde iremos passar, sigamos em frente, e rápido… O nosso
guia, um religioso local, há minutos nos aguarda. Ansioso, anda
rastreando o nosso texto, e pronto para nele entrar.
Faz dia claro. Alguns poucos fiapos de nuvens passeiam preguiçosamente pelo céu. Manhã bonita que anuncia e antecipa o
início do verão de 1954. Há pouca fuligem saindo das chaminés
da usina da Belgo Mineira. Acidentalmente. Talvez a produção
não esteja a todo vapor, mas todo o conjunto da paisagem de
João Monlevade dá a entender aos forasteiros que é lugar onde,
a partir de minérios do nosso chão e os trabalhos de nossa gente,
é forjado ferro gusa e aço metalúrgico.
Apesar de tudo isso, e das belas formações de nuvens claras que, agora, começam a enfeitar o céu, o vigário da cidade
prossegue resmungando. Tem estado irritadiço desde o momento
em que fora despertado pela serviçal que limpava a sacristia. Encontramo-lo nos instantes que antecipam o embalo de cruzar a
pinguela de cordas que acima uma criança mencionou.
Nem mesmo o seu curió predileto, que dizia solfejar a primeira estrofe do hino nacional, conseguira apaziguar o mau humor
que perdura. Pode ser que se ressinta da falta da sombra amiga
do abacateiro que habita o adro, o terreiro da casa paroquial.
A tal pinguela, estão lembrados, ficava ancorada nas margens
do Piracicaba. À sua esquerda, para quem olha as suas águas que
vêm da represa do Jacuí, pode-se apreciar o bairro Tieté. À direita
quase entra na parte baixa de uma das casas da Rua Araguaia.
Passa um pouco e as cordas da travessia oscilam para um
lado e para o outro, reagindo à passagem do corpo episcopal.
O homem de Deus é gordo. O mesmo ocorre com as amarras e
travessões também levadas ao léu pelo caminhar do único passante. Abaixo, as águas do Piracicaba rolam tranquilamente para
a sua pequena foz, onde se encontram com um rio maior, o Doce.
O passadiço é estreito e as grossas cordas estão fragilizadas pelo
tempo, mas com atenuante que o padre considera com um meiosorriso. Passou por aqui sempre incólume. Graças a Deus, essa
pinguela nunca teve a tendência de quebra que levou ao afoga-
198
Jairo Martins de Souza
mento a famosa ponte do Rio Tacoma. Também pênsil. Lembra,
tranqüilo, que isso é facilmente explicável pela ciência da física
que estudara. O capítulo era o das freqüências ressonantes.
No entanto a travessia é radical. O sacerdote sorri nervosamente, sentimento contraditório, pois torna-se feliz. Pondera que
um pouco de adrenalina é sempre bom, o que explica o gosto de
andar em corda bamba. Por alguns segundos mais continuará a
ser criança.
A ausência de equilíbrio, a agradável tontura, é similar a que tem
quando, ainda de olhos praticamente fechados e com os músculos
bucais sob tensão, dá puxada forte no seu fumo preferido, o Negritos. Lembra a fumaça bem espessa que aparece nos meandros de
seu cérebro. Gosta de enfeitá-las.
Para tanto, normalmente arredonda a boca. Automaticamente, nos seus extremos, aparecem marcas de expressão que,
usualmente surgem devido a exageradas contrações faciais. Imita
alguns atores. De Niro faz assim. Nesses momentos de nirvana,
modula contornos de anéis que começam espessos na saída da
boca, e que aos poucos vão tornando-se finos, até que, já próximos do teto, com diâmetros mais largos, ficam vazios de forma
até extinção total. Imita o que faz a chaminé da Belgo. Junto ao
rosto termina o efeito da brasa que esconde nicotina e produtos
químicos. Os antitabagistas dizem, nos dias de hoje, ser mais de
2400.
Quando o fumo queimado alcança-lhe os dedos deverá arremessar a bagana no chão, qualquer chão. Com isso, ao jogá-la
nas águas do Piracicaba, não pisou em casca de banana, mas
quase caiu… De novo no conforto do equilíbrio, riu ao lembrar
do carnaval que gostava quando ainda estava na vida secular.
Está quase na metade da ponte de cordas. De longe parece com
a vista chapada do homem vitruviano, o de Da Vinci. Para tanto
não se faz necessário um grande esforço mental. Basta imaginá-lo
movimentando-se deitado, enfim, abrindo e fechando os braços
que buscam, inconscientemente, o centro de gravidade do corpo
que muda a cada passo. A pinguela prossegue oscilando. Com a
chegada ao outro lado do rio encerram-se os exercícios para os
Bazar Monlevade
199
músculos e a safena. O padre sente-se vivo e com saúde. O adulto
torna-se adulto novamente…
Insisto que não tem andado de bom humor. Sem motivos
palpáveis. Desde rapazinho esse incômodo o persegue, a bem da
verdade, até mesmo no tempo de seminário. Nos trabalhos dominicais a Matriz esteve cheia de fiéis e visitantes, não tem motivo
que justifique reclamação. Talvez deva fazer uma consulta na Vila
Tanque, lá dizem ter uma psicoterapeuta que soube andar fazendo
milagres... Se tratou com correção do menino Diquinho, como soubera por meio de alguns fiéis, talvez tenha a mesma sorte. Enfim, as
coletas têm sido boas, diz com seus próprios botões. Roma não tem
reclamado do povo amigo de Monlevade, e isso foi logo ontem.
Nada o impedirá de iniciar a subida do morro que o desafia
mais a frente, nem mesmo o mau humor que quase passava com
o esforço que fizera. Começa atravessando ao largo de algumas
casas construídas na Rua Araguaia. Como ocorre em todas essas
ocasiões, vai continuar falando para si mesmo, contudo com a
boca fechada. Por exemplo, como é íngreme essa subida. Preciso
alterar meus hábitos, é o que o suor prematuro e o arfar antecipado lhe aconselham.
Com esse fardo deve seguir em sua missão. Nesse instante
não busca aumento de ovelhas no seu rebanho, e, erguendo a
cabeça, calcula os esforços que ainda está por fazer. Relembra somente para se orientar, tem por direção o prédio do Bazar Monlevade. O ponto B que acima dissemos.
Do local onde está ainda não consegue vê-lo na Rua da Favela. Contra vocês tenho a sombra do meu abacateiro é o que
diz ao Sol inclemente e ao ar quente que o cerca, agora abrindo
a boca para auxiliar a respiração que clama por oxigênio. Um fiel
católico cruza com ele, e, a ele, olha de lado, caminha em sentido
contrário e pensa: padre fulano está ficando doido, está falando
sozinho!
Certo. Não consegue ver o Bazar, mas o Bazar a ele vê (ah!
Vieira, de quem pouco sei! Por que não vos afastais de mim?).
Uma de suas balconistas, que saíra a uma encomenda, volta rápido e segue mais rápido ainda a avisar ao nosso pai: seu Jaime!
200
Jairo Martins de Souza
Daqui a pouco, deve chegar aqui o vigário da Matriz!
Faz alguns dias eram de madeira as paredes de nosso Bazar.
Após rápidos estudos do mercado monlevadense, foi imponentemente reerguido em novas e modernas instalações, é o que informam os folhetos de propaganda. Papel de primeira, talvez couché. Tinham sido distribuídos nos últimos dias, mão a mão; casa
a casa. Nosso pai, enquanto descansa, carrega pedras. Grande
torra de inauguração: sabonetes, bombons, tecidos, brinquedos,
bicicletas, cigarros, utilidades domésticas, armas e munições.
Tu és Petrus, sobre ti erguerei a minha igreja, os pensamentos do padre mudam como fazem as nuvens. Vai caminhando, e
pensando, e seguindo o caminho que planejara. Era convidado
de luxo para a ansiada reinauguração do nosso comércio. Lá está,
segue em lento andar, ademais limitado pela dificuldade natural
do trajeto. Pode ser até mesmo que necessite de alguma ajuda na
subida do barranco final, já praticamente na Rua da Favela.
Enquanto não chega ao Bazar, alguém sugere que seja feito
um resumo do percurso que fez, a partir do ponto A. Alguma coisa pode não ter sido citada por esquecimento. Descera a saída da
rua ainda na região da matriz. Entrara na casa de uma beata para
tomar um gole de café coado de fresco. À frente, pequeno morro
em declive onde, no final, ganhara alguns bolinhos de uma outra
fiel. Não quis passar pela ponte de madeira que aflorava no Café
Rex. Desviara o caminho em direção à pinguela de arame. Fora
cumprimentado por um leigo que lhe prometera uma aguardente
de qualidade. Ouvira o som de um canário belga, cuja gaiola vira
pendurada ao lado de um alçapão. Próximo a ele um chapinha
comia canjiquinha, estava prestes a cair na armadilha. Perdera
alguns segundos para tirar um dedo de prosa com um coroinha
que encontrara. Comprara um pedaço de fumo de rolo. Passara
pela oscilante pinguela que já passou. Subira parte do morro já
sito no outro lado do rio.
Finalmente, estava em fase de preparação psicológica para
reiniciar a jornada.
O gerente da Belgo era autoridade máxima em Monlevade.
Há poucos dias atrás, andara confirmando algumas palavras que
Bazar Monlevade
201
dissemos nesses escritos. Sim. Ratificou que na década de 50 o
Brasil consolida definitivamente a sua pequena participação no
comércio internacional. Mesmo que, do conflito mundial que há
poucos anos se encerrara, tenha tomado parte em mínima escala. Afora as tomadas do Monte Castelo e da cidade de Pistóia…
enfim, até hoje os nossos militares relembram, saudosos, o ‘senta
a pua’: palavra de ordem escrita na fuselagem de seus velhos
aviões.
Tudo isso dissera em recente reunião com líderes sindicais,
mas peço ao leitor aguardar melhor justificativa para que o gerente por aqui apareça. Em capítulo a seguir. Que essa informação
fique de molho!
Pois a nossa meta continua sendo acompanhar o homem de
Deus até o Bazar Monlevade. Na sua nova loja. Nela se espelhava
o progresso que chega à capital regional do aço, o que de certa
forma confirmava as palavras do gerente. Coisa do futuro. Não há
como negar, o sistema self service (‘serve serve’ no dizer de Jaime
Raimundo) fazia presença em Monlevade com a nova sede do
Bazar. Nas suas gôndolas e bancas, não se vê frases ameaçadoras
à displicência de algum filho de freguês: leve para o seu braço,
mas pesado para o seu bolso. Fica decretado o fim da ditadura
do balcão.
Nem tanto assim. Alguns poucos andaram não somente se
esquecendo do caixeiro da seção responsável pela emissão da
nota fiscal como também de embalar a mercadoria na seção de
embrulhos. Aqui estamos dizendo de pequenos furtos. Raros.
Nosso pai não gostava, para resolver esses casos, da convocação
de autoridade policial. Um soldado. Não gosto dessa atitude, dizia. Melhor era chamar o freguês e dizer de forma discreta. Devolva, por favor, a mercadoria, você não deve levá-la sem a devida
contrapartida do pagamento. Tenho fornecedores, balconistas,
caixeiros e compromissos a saldar; minhas promissórias, gosto de
pagá-las adiantado. O elogio deve ser feito em voz alta, é o que
diz, e quanto à crítica, sempre em voz baixa.
Mesmo com o erro de algum pai desinformado das penas
da lei, os filhos saíam premiados com brinquedos apenas com
202
Jairo Martins de Souza
pagamento parcial, ou simplesmente nada. Fogões, carrinhos de
madeira, bonecas… Coisas do empreendedor Jaime Raimundo
que estava aplicando o verdadeiro objetivo das relações entre o
empresário, o meio-ambiente, a sociedade, o balconista e o freguês.
Conceito que o escritor Monteiro Lobato estivera ensinando
aos brasileiros. Sim. O mesmo que criou o Sítio do Picapau Amarelo e o Jeca Tatu. Nosso pai fazia por intuição.
Com o que, após esse longo desvio do texto, volto a acompanhar o delegado do bispo, que representa aqui em Monlevade
a esperança da infabilidade papal. E que volta a caminhar, depois de merecida pausa para descanso. Aguardava novamente
a nossa companhia um pouco ansioso para chegar ao destino.
Gostava de trocar idéias com nosso pai, Jaime Raimundo, pois
apreciava aconselhar ou ouvir opiniões alheias fora do ambiente
eclesiástico. O dono do Bazar era um bom papo. Com outros que
lá encontrava, tinha gosto em saber dos fuxicos da cidade, como
também falar sobre coisas sérias, mostrar sabedoria, ou divagar
sobre o celibato sacerdotal. Com o caixeiro Zezinho, nosso primo,
procurava saber de alguma novidade comercial. Dizia a terceiros,
como é esperto esse rapaz! Não o perde de vista e observa que o
moço está sempre de olho na moça loura que trabalha no caixa!
Bom tema para sermão… o amor no ambiente de trabalho…
Por fim, de pensar morreu um burro, enquanto penso, a vida
passa. A chegada ao Bazar está próxima. Falta a subida de um
pequeno barranco. A vibração do trilho de ferro avisa que vem
composição procedente das bandas de Nova Era. Faz mexer as
britas e os dormentes. Num minuto o maquinista deverá puxar o
apito!
Não se pode ficar rascunhando textos quando se ultrapassa a
Vitória-a-Minas…
Bazar Monlevade
203
Capítulo 31
Parte 2 - O segredo suposto indevassável do confessionário.
O caso do roubo da lingoteira da Belgo
A
antiga ferrrovia da Vale do Rio Doce ficava em
plataforma alguns metros abaixo da Rua da Favela. O padre acaba de ultrapassá-la. Pensativo. Enquanto isso uma
locomotiva apita ao longe, e se aproxima do local do qual ele se
afasta. Em um dos últimos dias tinha cometido um grande pecado; não que tivesse sido mortal. Mas grave. Os segredos do confessionário devem ser inquebrantáveis: quebrara um deles. Um
oficial de sacramento autorizado a ministrar a extrema-unção, o
casamento, o batismo, a eucaristia, o elogio, o castigo etc., jamais
deve abrir a boca sobre o que fica conhecendo em oitiva.
Mas o que fez ele de tão grave assim? Afinal, tinha ouvido
frase comum de um operário recém-contratado pela Belgo. Padre, pequei! (como, filho? Respondera por obrigação, respondera ex-officio…). Pratiquei um atentado contra o patrimônio da
companhia! O quê, filho? Roubei, padre! O confessor, agora sou
eu quem diz, invadindo sigilo próprio desse ato, em casos como
esse, normalmente ficava com as orelhas relaxadas. Como as de
um burro! Dava pouca atenção aos pecados praticados por vozes
masculinas: os homens são inconseqüentes e pecam muito. Dez
Ave-Marias seria a punição padrão. E vá-se embora em paz, meu
filho! Com as servas o procedimento era outro. Tinham atenção
especial. Mas, deixe-se isso para lá!
Entretanto, mesmo que não conhecesse nada de equipamento siderúrgico, reparou que o roubo do obreiro tinha sido grande.
Quem sabe tivesse algum lucro com o acontecido que ouvira a
204
Jairo Martins de Souza
quatro paredes? Propósito para o qual foi convocado o gerente
da Belgo. O assunto, deixado em suspense, somente solicitava
uma reunião a dois na sacristia. O clérigo delator pôs as cartas na
mesa, pois exibiu, além do bom vinho, a informação que sabia ser
seu dever manter confidencial. Segredo de estado católico. Pode
ser que conseguisse alguma dotação para melhorar a qualidade da
sua adega; é o que pensou o cura d’almas que contava segredos.
Uma mão lava a outra, as duas lavam a cara, é o que se diz.
Não funcionou. Quem ficou vexado foi o, agora, diácono de
Monlevade. Como? Perguntou o gerente. Como um trabalhador
poderia retirar sozinho um lingote de aço de 3500 quilos das instalações da companhia? Nem que fosse puxado rua afora pelo
burro do Geo!
E prosseguiu falando e lembrando das dificuldades que teve
o Jaime do Bazar para trazer um minúsculo cofre de aço lá das
bandas de Piracicaba. Para os que não se recordam, finalizou,
basta dar um salto até o capítulo 40.
Com o que, dando como concluído seu protesto, levantou-se
abruptamente e saiu batendo a pesada porta de madeira trabalhada. Não lhe agradou nada ter sido tomado por trouxa pelo
religioso! Era outra a relação que andara estudando existir entre o
Monge e o Executivo.
O sacerdote fora enganado pelo peão. Com um agravante,
onde arranjaria o suposto larápio área de estocagem suficiente
para esconder tão grande e pesado furto? É o que escutara o
suposto pastor de almas do graduado funcionário, é quase um
diretor. Não sou como uma deusa menor, uma Valquíria, dissera
ao prelado, que fica recolhendo corpo de herói em campo de
batalha siderúrgico. O que ficou claro é que tinha sido um teste
que o novato, auxiliar de ferramentaria, estivera aplicando no padre-confessor. Disseram-no. Zé, cuidado. És novo na cidade, e és
religioso, deves ter cuidado com o que vais dizer ao padre da matriz do Tieté. É linguarudo e dizem ser um grande pelego. Melhor
vigiar a boca com aquele senhor. Ou fazer um teste preliminar...
Para fazer ambiente, o peão dissera inicialmente ao confessor
uma informação de caráter íntimo: Padre, tenho dificuldade de
Bazar Monlevade
205
concentração. Sim, quando vejo mulher de saia justa que desfila
pelo corredor da igreja. Isso é normal, meu filho. Tenho queixas
até mesmo de um senhor de idade, tem mais de 80 anos. Vou
advertir nossas ovelhas… E por aí seguiu o sacramento que fora
planejado pelo rapaz.… Deu o que deu.
Ainda bem que a memória do meu rebanho é curta. Defendera-se perante a Igreja com veemência, recordando-se dos próprios dogmas que ela, a Igreja, a ele, ensinou.
Se ofender a um padre, se ofende ao bispo; se ofender ao
bispo, se ofende ao papa; se ofender ao papa, se ofende a Pedro;
se ofender a Pedro, se ofende ao próprio Jesus…
Além dessas palavras, pensou, basta que se faça realçar uma
história mais plausível e palatável ao gosto paroquial, por exemplo, uma santa com olhos que deixam escorrer lâminas finas de
água ou minúsculas gotas de sangue. Sim, sangue. Fôssemos
franceses, diríamos sang; se alemães, blut; se espanhóis, sangre,
fôssemos religiosos convertidos, diríamos da força do sangue de
Jesus. Enfim, não vos preocupeis com o dia de amanhã, nem
com as línguas com as quais, para praticar, dissemos sangue, basta a cada dia o seu próprio mal.
É o que, por final, pensará, e que disso não se fale mais.
É muito lido esse sacerdote, encontra sempre uma palavra de
consolo na palavra santa para esquecer sua iniqüidade, e sair da
roda dos escarnecedores. Mais ainda despreocupadamente racionaliza: gosto de lembrar-me do caso do bom ladrão...
Bazar Monlevade
207
Capítulo 31
Parte 3 - O final do passeio. A chegada triunfal ao Bazar
O
que não alivia totalmente o seu sentimento. É definitivo. Não tinha gostado do que lhe disse o esperto
gerente, pois persistia pensando no assunto como última reflexão
dessa subida de morro que se encerra. Ficara magoado. Poderia
tentar influenciar vereadores para que a ele não fosse dado o título de cidadão honorário. Quase alcançando o cimo do último
barranco, os derradeiros degraus de terra estão por ser vencidos,
já pode ver a fachada superior do bazar com seu letreiro pintado
novinho em folha:
Bazar Monlevade, tem tudo que você precisa pelo preço que lhe convém.
De pé, próximo à porta, está o caixeiro Osvaldo de quem já
dissemos. É um dos que o aguardam. Morreu no primeiro decênio dos anos 2000, próspero, conforme previmos. Mas agora o
que faz é anunciar a um freguês que tem para vender panos os
mais diversos, cretone, linho, algodão, morim, chita, brim, tergal,
tropical inglês... Juntos vão conferir o estoque e o real interesse
do cliente. Não. Calça jeans, do tipo Lee, não. Essa o senhor só
consegue comprar junto a contrabandista de Belo Horizonte.
Próximo a ele, está sendo lançada no balcão uma peça de
seda por uma moça que sorri e conversa ao mesmo tempo. É
outra excelente balconista de Jaime Raimundo. É muito boa e
trabalhadeira essa Cormaria, é o que diz sempre a elogiá-la. Trabalha como o meu próprio filho, o Piquitito. Trabalha como se
fosse dona do negócio.
Minha intenção é retornar urgente a São Paulo. Preciso reno-
208
Jairo Martins de Souza
var a seção de calçados, e levo comigo esse meu filho, que é rapaz
esperto, para ajudar na seleção de mercadorias. Dos outros filhos
poderei levar um ou outro para absorver experiência comercial na
Rua 25 de Março, na José Paulino e adjacências. Ainda que não
sigam a profissão, a viagem não deixará de lhes ser proveitosa
para a vida.
Entrementes, afasta suas intenções temporariamente, visto
que se dispõe a atender um cliente que espera atendimento. Não
consigo pensar mais de três coisas ao mesmo tempo, é o que reflete enquanto se encaminha na direção de prezado freguês que o
cumprimenta de longe. Repara que o homem está animado pela
distinção de ser atendido pelo próprio dono do negócio.
O Rio Piracicaba tem andado lerdo nesses últimos dias, talvez por preguiça, já que é grande o calor que faz à medida que
avança a hora. Anda meio pardacento, meio amarelo... Talvez por
imitação também assim se sinta o nosso padre que, tomado de
alívio súbito, sente que está por chegar...
Já chegou! O seu corpo assoma na parte do morro em que
passa a Rua da Favela. Respira fundo e diz. Droga! Comecei a
suar! A sua batina é confeccionada com tecido de trama fechada, o
cretone. É o porquê de aqui transpirar tanto.
Ao seu lado passa, rapidamente, uma caminhonete verde
Chevrolet 51, seus pneus levantam e jogam poeira para os lados.
O motorista é o Bilico, nosso irmão, que volta de uma entrega
comercial. Distraído, pensa na namorada de olhos de esmeralda
que por ele aguarda na Vila Tanque. Deus te dê em dobro tudo
que me desejares, retruca o padre com cara de tacho.
Mas tudo isso faz parte dos ossos do ofício de viver. Tenta
pensar em coisa melhor. Por exemplo, o de reforçar o seu estoque
de charutos e de maços de cigarro forte. O que é, em essência,
o porquê, e parte de tamanho esforço. Quando os compra aprecia os cigarros baratos, considera a economia um dom de Deus
quando se trata de gerir recursos próprios. Preocupa-se com a
saúde. Lembra, com alívio, que já ficou provado, como se vê nas
revistas americanas, que o Chesterfield e o Marlboro não provocam nem mesmo pequenos males à garganta de criança peque-
Bazar Monlevade
209
na. Ademais o cirurgião geral (general surgeon) norte-americano
ainda não recomenda que fumar faz mal à saúde. Com isso, o
dia fica mais bonito, e o nosso caminhante pensa alto a frase que
dizem ser do argentino Che Guevara, ‘caminante no hay camino,
se hace camino ao andar’.
Finalmente, basta-lhe agora somente chegar à nova loja do
Bazar Monlevade, ponto final de nosso passeio. Como escrevente,
falta-me encerrar escrevendo a saudação de praxe que, normalmente, faz em alta voz, já dentro da loja: Paz do Senhor! Quem
o aguarda na porta do estabelecimento é o proprietário Jaime
Raimundo com toda a sua equipe de trabalho. Conforme escrito,
nosso pai já tinha sido antecipadamente avisado da chegada da
autoridade.
O suposto missionário do apóstolo Paulo é cumprimentado,
e complementando sua cortesia, cumprimenta, efusivamente, ao
dono que conhece. Ao mesmo tempo é recebido com um largo
sorriso por parte do nosso pai. Bom dia, Jaime Raimundo. Bom
dia, padre fulano. Que boas novas o trazem?
Bazar Monlevade
211
Capítulo 32
Onde se diz da antiga chácara do Raimundo Piriquito. Uma
mercearia e o mercado municipal. O autor arrisca-se a imitar a arte
dos japoneses
B
em próximo à cidade de Rio Piracicaba, pés de
laranja, limão galego, mexerica, goiaba, abacate
e etc. prosperavam e atraíam muitos sanhaços, sabiás. Paro aqui,
pois a lista é grande! Essa chácara veio a ser adquirida por nosso
pai no apagar das luzes do ano 50.
Foi um marco na vida da minha família. Um ponto de referência. Permanece sendo!
Mas antes que ela entre por definitivo nesses escritos, lembro
algo inerente ao habitante do planeta: quase um seu ritual. Se
bem que somente confirmando o que outros já disseram, pois,
inquestionavelmente, tudo que permanece no espírito do homem
é diretamente ligado às percepções de sua história e captado pelos cinco sentidos colocados à disposição pelo criador: a audição,
o olfato... O resultado é fazer com que sensações infantis como
cheiros, sons, gostos, seios rugosos e imagens atuem espetacularmente na vida adulta das pessoas.
Um exemplo gasto na literatura é o da influência das ondas
de sabor que os bolinhos assados de trigo, as madeleines, tiveram
na obra literária de Marcel Proust. Com eles sonhou e escreveu
um clássico da literatura mundial. Tais tipos de percepção, muito
estudados a partir do século dezenove, habitualmente resumemse materializadas em emoções que deixam registros indeléveis:
verdadeiras marcas d’água.
E que mesmo não se tratando do eixo do nosso assunto tem
212
Jairo Martins de Souza
lá com ele algumas relações. Então, não me afastando totalmente
dessas ações da psiché, passo a dizer sobre uma nossa, pois é a
que fez engendrar o início desse capítulo. Por estranho que pareça, trata-se de ruído produzido por um carneirinho!
O fio condutor foi compra feita por nosso pai da chácara que
dissemos. A reboque, muitos passarinhos. O proprietário era um
senhor chamado Raimundo. O sobrenome era Piriquito, não sei
bem se à custa do formato do seu nariz. De piriquito. Era comum,
em cidades pequenas, as pessoas se tratarem por apelidos. Na
ocasião, após o fechamento do negócio, nosso pai trouxe para a
sua nova propriedade um pequeno carneirinho. Hidráulico. Uma
bomba de água muito usada naquele tempo.
Máquina de baixo rendimento. Mas a sua característica, mais
do que desperdiçar grande parte da água que a ele chegava, era
de produzir um ruído: tec, tec, tec… Gerado por golpe de água.
O golpe de aríete. Teoria que aprendi mais tarde quando cumpria
a disciplina de máquinas hidráulicas. O carneiro hidráulico, tal
como a água que tocava dentro do cano de saída, trabalhava os
1440 minutos das completas horas de um dia. Aqui sua missão é
acordar amor antigo.
Com alguma ajuda, pois com rápida pesquisa a consultório
de sentimentos, deparei-me com outros carneirinhos repetindo
algum tipo diferente de tec-tec... Sensações antigas.
Passo a relatá-las. Um Pica-pau que bate o bico no toco de
uma árvore seca. Parece de ferro. Um grupo de seriemas que gritam no pasto antigo que mora ao lado do morro que darei mais
detalhes. Um carro de bois que passa na estrada. As rodas de
madeira gemem, lembrando tempo passado. Um vira-lata que
comparece com seu latido de cão que tem fome. Maritacas e periquitos que voam alvissareiros para o lado onde nasce o Sol. Daí
a pouco voltam no mesmo estilo, tagarelando entre si, de volta
para o Oeste de onde partiram. No final da tarde passam de novo
tomando rumo definitivo de onde tinham iniciado a sua rotina do
cotidiano. Nunca soube, por fim, que lugar é esse.
O que disse significa mais do que meus outros fios de Ariadne. São recordações bucólicas que me fazem tecer algumas con-
Bazar Monlevade
213
siderações sobre a história e os primeiros anos da propriedade.
Práticas. A começar que não tínhamos luz elétrica na zona rural
de Rio Piracicaba. Foram tempos de lamparina para uso comum
e vela à base de parafina para casos emergenciais. Daí decorria
também a necessidade do tal carneiro hidráulico, que dispensava
o uso de energia elétrica, pois seu mecanismo usa a própria energia da água que vinha de ponto mais alto. Tudo se resumia na lei
e na força da gravidade.
Alguns dos sobrinhos do nosso pai, filhos do irmão Hernundes, estiveram trabalhando e morando conosco. Os primos eram
Pedro e Marino. No entanto, com um inesperado respeito à história e à cronologia nesses escritos, cabe observar que o primeiro
homem com o qual nos deparamos zelando pela propriedade foi
um senhor de quem não me recordo o nome. Era negro velho e
cansado. Mais tarde esteve também sediado no nosso sítio um
outro sobrinho, agora torto, do nosso pai, o Astolfo.
Não posso deixar de registrar o sentimento de fidelidade que
esse homem tinha por nossa família. Sua marca registrada. Fisicamente tinha características peculiares. Caminhava com os pés
virados para fora. Um Mazzaropi. A cara redonda mais parecia
uma lua cheia, mais cheia ainda de bondade e disposição. Um
Luís Gonzaga. Tinha a boca enorme. Uma bocarra. Bebia mais
de litro de água durante as refeições e a cada meia hora de trabalho na capina. Por fim, era um Jeca Tatu às avessas, pois para ele
não existia a palavra preguiça.
Apareceu nas nossas vidas, no final da década de 50, com
a esposa tuberculosa e sem recurso para tratamento. Helena era
mulher de pernas finas e muito conversadeira. Chegou até o tio
Jaime muito adoentada: diziam que também sofria dos nervos.
Aliás, naqueles anos essa última perturbação era comum. Acolhido em nossa casa de Belo Horizonte, o casal foi tratado com zelo
e, rapidamente, a mulher ganhou força para voltar à vida normal.
Lembro-me que os utensílios domésticos que usava eram lavados
à parte. Recomendava-se cuidado e afastamento adequado para
quem padecia daquele mal, a tuberculose matava como um câncer descoberto em sua metástase final.
214
Jairo Martins de Souza
Na chácara, agora chamada de sítio, permaneceram morando
por longos anos e mantendo a saúde e filhos que vieram. Ficaram
relativamente prósperos e saíram para o mundo. Depois deles, um
sujeito chamado Oliveira esteve por lá pernoitando. Sucedeu-lhe o
senhor idoso conhecido simplesmente por Tião, não era muito de
entender as coisas.
Entre um e outro, nosso pai promoveu a construção de uma
casa definitiva com parede mais larga que o usual. Tijolo duplo do
tipo maciço. Tudo a partir de desmanche de material de uma casa
de gringos que adquirira em Monlevade. O pedreiro, ajudante,
mestre de obras, eletricista, e por aí vai, foi um homem que não
parava de falar. Chamava-se Batatinha. Fez tudo, desde o baldrame até a pintura final.
Antes do Astolfo, o carneirinho fora substituído com vantagem por uma bomba d’água com dois pistões. Um deles puxava
a água, o outro empurrava. Interessante. Tinha uma roda d’água
que parecia, em escala reduzida, com as gigantes de parque de diversões. Nela podia ocorrer pequeno arco-íris, a partir dos filetes e
respingos da água que caía dos cadinhos da roda que girava. Era
acionada por um fio grosso de água. Cena bonita.
Essa água mais grossa vinha de um outro córrego que ficava
em lugar mais alto que o próprio São Benedito. A partir disso, o
movimento da roda, que era circular, passa a ser transformado
em um de vai-e-vem dos cilindros da bomba. Com eles as águas
limpas provenientes de um outro olho d’água, que aflora na propriedade, seguiam para a saída da bomba em um único sentido.
Era a parte útil da coisa. No fundo o milagre de um eixo excêntrico é que ajuda a provocar tudo isso.
O tal olho ficava protegido do Sol e das pessoas por mariazinhas, pequenas plantas aquáticas, e bananeiras. O seu destino derradeiro era a parte mais alta da propriedade, numa caixa
d’água tampada com folha de zinco, e que funcionava como o
pulmão de água potável para toda a propriedade. Ainda hoje funciona assim.
Quando se tem Lua aqui na roça, pode-se ver a enorme fogueira que sai pela boca do dragão que mora em sua face branca.
Bazar Monlevade
215
A outra é a do seu lado negro. O que nunca vemos. Sabe-se lá o
porquê de Deus mandar que um dos lados da Lua sempre fique
se escondendo de nós. O dia da Lua dura um mês. A Lua também demora um mês para dar uma volta completa em torno da
Terra.
Entenderam o porquê de não vermos o lado oculto da Lua?
Sobre isso tinha dúvida milenar. Cá, na face brilhante, sabia que
o dragão nunca deixava de vomitar fogo, pois era o recurso que
usava para enfrentar São Jorge. Um milagre normal seria a vitória
de Jorge que, na realidade, lutou mesmo foi na época das cruzadas cristãs contra os dragões, infiéis islâmicos, que tomaram posse
das terras santas de Jerusalém. Não sei bem por que sempre o
confundia com São Sebastião, que tem o corpo ferido por múltiplas flechadas. Quem sabe por razões inconscientes, pois Sebastião também não mostra sinais de queimaduras provocadas pelo
fogo dos cinco infernos que Dante descreveu na Divina Comédia
e, das quais, para encerrar a conversa, diziam ser as mesmas que
alimentavam a bocarra do tal dragão.
Com tudo isso, um homem religioso, um homem que crê, diz
que um milagre dá sempre sinal antes de aparecer. No nosso sítio,
por exemplo, as luzes que nascem detrás do morro indicavam, e
continuam indicando, a chegada dos raios filtrados da Lua ou do
Sol que descem elegantes em leques bem abertos pela montanha
e por suas árvores. Um milagre divino. Pincéis retos de luz tais
como ensina a Física. Milhões deles! Toda essa maravilha da criação originava-se do céu do pasto, que nos é adjacente, e que, nos
anos que correm, permanece no estado em que sempre esteve. É
morro que Deus fincou paralelo ao córrego de São Benedito.
O sítio de Rio Piracicaba sempre foi o meu, o da família, o
de algumas pessoas, o preferido. Mas a nossa base era sitiada na
Vila Tanque. Conforme já disse, a partir de 53, nossos pais tinham
Belo Horizonte como morada principal para tentativa de educação melhor para seus rebentos. Quem de nós pode se esquecer da
Rua Jacuí, número 881? Na sua fachada frontal havia uma quitanda que nosso pai montara para reforçar os negócios e treinar
os filhos mais velhos nas lides comerciais à parte do Bazar.
216
Jairo Martins de Souza
A seu lado era estabelecida a reforma de móveis do seu Jandir que, além de locatário da nossa família, era proprietário de um
Austin ou Ford Perfect, não sei bem... O que sei é que tinha somente dois reloginhos no painel. Num deles, as palavras fuel, full
e empty, era o marcador de combustível. No outro mph (milhas
por hora), o velocímetro. Chamava-me mais a atenção do que
um Ford 28, com banco de viúva, que viemos a ter no futuro.
Ainda na faixa dos oito anos já me iniciava no comércio de
balcão, fazia também algumas fracas contribuições em serviço de
campo. Para transporte de mercadorias, nosso pai usava serviços
de um furgão pintado de verde, talvez 1932. Posso vê-lo pronto
e carregado para trazer as mercadorias adquiridas pelos irmãos
mais velhos no antigo Mercado Municipal de Belo Horizonte. Ao
seu volante um homem louro e grande, para mim um perigoso
alemão que frequentemente era contratado para fazer carretos.
Olhava-o desconfiado. Talvez fosse um nazista fugido do tribunal
dos Aliados e que, atento, ficava aguardando as ordens do meu
irmão que, da boléia, seguia coordenando as ações.
Na parte de trás acumulavam-se caixotes de banana, alface,
couve, tomate, chuchu... Eu, um dos mais novos, e obedecendo
a certa escala de revezamento, ficava aboletado na parte traseira sufocado pelas mercadorias. Antes disso, tinha passado horas
na madrugada fria da capital mineira vigiando os mantimentos.
Uma sentinela! Anos mais tarde fiz o mesmo papel no 12 RI, só
que sem ficar assentado em caixotes e sacos de grãos, frutas e
hortaliças.
Enquanto o tempo corria devagar, via feirantes tomando café
que exalava cheiro antigo. A maior parte comia sonho e pão borrado com manteiga nos bares que iniciavam as atividades diárias.
Às vezes era triste ser uma solitária criança dos anos 50, esperando irmãos que fazem compras em um mercado municipal!
Mas para não perder o foco do assunto, que é a chácara que
dizia, passo a detalhar onde fica. Em termos práticos. A partir
de um compasso centrado no mapa da região, e cravado bem
em cima da nossa casa da Vila Tanque. A partir disso, com uma
escala 1/100, ou mesmo uma simples régua, fica fácil dizer que a
Bazar Monlevade
217
Monlevade dista 2,33 léguas de Rio Piracicaba (légua é e faz parte
de linguajar antigo, equivale a 6 quilômetros). Completando o
passeio, basta adiantar em torno de 800 metros e já estamos em
uma estradinha quase no topo de uma ponta de um morro tantas
vezes visitado.
Para dar idéia a quem não o conhece, com sua visão, acerco-me de sentimento que creio invadir os cariocas quando, após
longo tempo de ausência, voltam a contemplar o Cristo Redentor.
Têm o diferencial de chegar cantando o samba do avião.
À nossa esquerda no centro do vale está o sítio onde, há anos
atrás, o laranjal com o destaque dos frutos amarelos denunciava
a existência de uma chácara. Do tal Piriquito. Não existe mais.
Velha, após um longo período de seca, incendiou-se talvez por
queda de raio em dia de tempestade ocasional. Também mais à
esquerda, e mais ao alto, vê-se o grande pasto do chamado Seu
Tão. Sempre verde até quase o topo da montanha. Vemo-lo com
alegrias renovadas, pois é a nossa mais tranqüila imagem da infância. O mesmo sucede com a da própria cidade a qual pertence. Rio
Piracicaba manteve-se parecida com o antigo Arraial de São Miguel
do Piracicaba, extinto em 1918. Uma fotografia parada no tempo.
Voltando ao sítio, lá está, num canto, a ossada da cachorra
Bolinha que morreu há décadas. Posso vê-la sempre a nos cumprimentar, juntamente com o pasto e seu morro bonito. Que alguém me explique o porquê do mineiro chamar todo cachorro
de til.
Tudo aqui deverá permanecer assim até o fim dos tempos,
dando boas-vindas a todos. Como se estivesse a dizer, demoraste
desta vez, há quantos meses não vens aqui.
Também é com a sua visão que nos despedimos. Em tempos
anteriores, deve ter dado quo vadis domine a outros donos, e
continuará dando a outros futuros, esperamos que sejam nossos
filhos e netos.
Até a próxima, é o que ele, por final, nos diz, que não tardes
de novo, sinto falta! Não se angustieis, agora sou eu quem digo.
Voltaremos no mínimo, como no passado, a cada julho e a cada
dezembro!
218
Jairo Martins de Souza
No cimo desse morro poucas árvores restam, fazendo lembrar o alto da cabeça raspada de um índio Sioux e, que, deitada,
repousa voltando-se para o lado contrário às belas estrelas do Cruzeiro do Sul. Abaixo do seu topo o seu verde permanece dormindo
até acordar, quase no seu centro, em um pedaço de pedra que parece uma verruga preta. Como um carcinoma basal que aflora em pele
gasta de gente adulta.
Nesse velho e carcomido sítio resta, do formato original que
conheci, somente o moinho à base de queda d’água. No grosso
pilão foram trituradas toneladas de milho transformadas em fubá,
produto de subsistência da vizinhança de sua comunidade. Pequena construção. Fica num canto escondido. Esquecido numa
pequena curva de barranco, onde toma proveito e dá curso às
forças das águas que faz uso. Talvez seja por isso, por ser oculto, é
que tenha se mantido de pé.
Na pena de mãos talentosas valeria um grande poema. Pequenino como ele mesmo e do jeito que os japoneses gostam de
fazer sua arte. Cheia de coisas bonitas e delicadas. Tudo sucinto.
Resumido. Como o haikai, que é poema de duas frases. Numa
poeticamente se introduz o assunto, na outra se conclui sem mudar o rumo: não demora direi o porquê de aqui aparecer tão de
repente. Alguns chamam haiku, não sei bem a diferença entre um
e outro. Pode ser que sejam a mesma coisa; ou talvez o japonês
funcione como o latim e suas declinações…
Faz tempo, aprendi um deles de cor. É tão fácil quanto aprender que Deus é amor. O tema é paisagístico. Bucólico. Mostra o
amor que o japonês tem por Matsushima. Matsushima é um arquipélago do Norte japonês. Em particular o poema denuncia o
amor do poeta especializado que o escreveu. Diz assim,
“Ah, Matsushima! Ah,
Ah Matsuhima Ah!
Matsushima, Ah!”
Não sei o título, nem mesmo se o haikai é assim identificado,
fosse meu chamaria de Matsushima. De um jeito ou de outro, é
obra respeitadíssima de Matsuo Basho. Basho era um famoso poeta do século XVII do país de onde sabemos nascer o Sol.
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219
Esse povo tem uma outra criação própria na arte da escrita
poética. Também é diminuta. Enigmática. O koan. Após consultar
os escritos de um certo senhor Shiki, ele me fez entendê-lo, como
se fosse algo que devesse ao mesmo tempo entender e, ao mesmo
tempo, ter dúvidas. Por exemplo:
“O barquinho de papel passa pelo São Benedito
O Caga-sebo voou”.
Toda arte contemplativa, como a desse povo milenar do Leste do mundo, estimula a paciência e busca a necessidade de ficar calado. Sentimento que nos é passado pelos versos curtos do
haikai, pelas longas cerimônias do chá, e pelos origamis onde o
grande fica pequeno. Maravilhado vi o resultado de sua cultura na
feira mundial de Tsukuba, em 85, onde, silenciosamente, agradeci a Jaime Raimundo e Alice Martins pela oportunidade original
de melhor conhecê-los, por meio da cultura que me facultaram
estudar.
Ao mesmo tempo presto homenagem aos japoneses por tal
legado. Pois me fez apreciar mais minhas raízes, e com isso sigo
escrevendo sobre a nossa terra, calada e reflexivamente, tal como
fazem quando dirigem os olhos para o vulcão do monte Fuji, ou
passeiam no portal sagrado da ilha de Myagima. O bom exemplo,
o zelo, e o respeito à história devem ser evidentemente seguidos.
O Bazar foi feito nesse sentido.
O que me faz voltar aos versos com que iniciei. Alguns brasileiros costumam também produzir alguns haikai, copiando o que
um homem como Basho fez.
Torno-me um deles, enfim, dizendo algo que penso resumir
meus sentimentos pelas terras das quais disse ter conhecido criança:
“Ah, chacarah! Ah,
Ah chacarah, Ah!
chacarah Ah!”.
Bazar Monlevade
221
Capítulo 33
Ainda que eu ande no vale das sombras da morte
V
ocê se recorda quando dei a você uma bíblia sagrada? Foi o que nosso pai perguntou-me um dia
qualquer. Nessa oportunidade estava menos falante, mais calado,
absorto em pensamentos. Dia sem sol. Como o da madrugada
em que prenderam Jesus nas Oliveiras. Fazia o que normalmente
os velhos fazem em momentos que passam a limpo algumas coisas que fizeram ao longo da vida. Tinha passado dos oitenta.
Lembro! Edição inglesa em papel delicado, impressa com letra pequenina e evangelhos separados com marcação de tinta.
Finíssima. E pincelada de ouro. Você sabe, complementei, o ouro
é o metal que mais se estica, com poucos gramas faz-se muita
coisa bonita. Decora-se muita gravura de livro, moldura de quadro, e altar de igreja, de igreja antiga. Ah, lembro-me mais. Tinha
também furinhos pretos em semicírculo na lateral das folhas, marcadores que facilitavam a busca e o manuseio dos capítulos.
Mas não dei somente a você, como também a todos os outros
seus irmãos. Não sei se todas iguais. Sim, disse-lhe, eu guardo a
minha até hoje. Pois é, é para ser lida. Há muitos versículos que
ensinam a aceitar com resignação as nossas culpas. Mas, por precaução, deixe-a sempre aberta no salmo 23.
Sim, pai. Gosto de deixá-la assim onde dizes. Mesmo que um
tanto assustador para menino como eu… Ainda que eu ande no
vale da sombra da morte... Aliás, vou dizer-lhe algo que o senhor
se surpreenderá! O quê? Sempre gostei de ver imagens de santos.
Como? Filho, não lembras do ensinamento? Não devereis adorar
imagens e esculturas… Ora, pai! Não é que adore os santos. Gos-
222
Jairo Martins de Souza
to deles, por assim dizer, no sentido artístico. Não já conversamos
que arte é o que nos dá a impressão de algo ser enigmático?...
Elas são enigmáticas. Além do que, há, atrás delas, sempre um
livro de memórias que foi escrito. Não como esse nosso, é claro!
Ademais não tenho dúvida que é gente de se admirar, afinal
de contas, são pessoas reais de biografias conhecidas: papas, reis,
fidalgos, religiosos dedicados, camponeses, guerreiros como São
Jorge, mártires como Joana D’Arc… Lembrar, pai, temos até santo preto, como a Nossa Senhora, que apareceu em um riacho perto de Aparecida do Norte. Uma estátua pequenina… Mas fiquei
de queixo caído quando estive no seu templo e admirei a cúpula
central do santuário. E o tamanho do adro?
Santo e estátuas não deveriam nem mesmo fazer parte das memórias da minha mãe. Era evangélica. De sua parte, entram aqui
simplesmente porque fosse ela que estivesse relatando diria: Jario,
escreva aí estauta (era como pronunciava a palavra estátua!).
Não sou evangélico, nem católico. Sou cristão. Em essência.
Interessa-me continuar com outros encantamentos ligados ao espírito da coisa. Por exemplo, sou fascinado pela descrição do funcionamento do mundo físico escrito por um outro santo. Um cientista. O Tomás de Aquino. Mas não se trata de nenhum milagre
que tenha feito. Na verdade tudo que disse foi baseado no que lhe
ensinou o velho Aristote. Aristote é como sobre ele se expressariam meus pais, mas o nome é Aristóteles. Voltando a Tomás, ele
disse certa ocasião ‘o ser humano é um homem montado em cima
de um porco’. O que por ora me basta, principalmente porque me
faz lembrar o jeito humilde que meus pais se expressavam.
Certamente agradaria a ele, estamos dizendo de Tomás, saber dos pombais que proliferavam nas cercanias de onde habitamos. Tanto na Vila Tanque quanto na Rua Jacuí. Na estética da
tradição católica, sempre aparece cercado de belíssimas pombas.
Com o que me despeço dessas gravuras, dizendo que não é por
acaso que o ‘Aquinate’, o Tomás de Aquino, é o anjo protetor dos
nossos amados estudantes.
O seu método de estudo e dedução das idéias é excelente e
fácil de entender. Funciona como pequenos degraus de escada
Bazar Monlevade
223
bem construídos. A lógica clássica é enganosa, mas linda de se ler.
É por etapas que conseguimos chegar ao conhecimento terreno e
ao celestial, é o que deduziu certa ocasião. Gostei dele, mais ainda, quando soube do arranjo de sua principal argumentação e do
seu arremate final. Senão vejamos: o mundo é movimento. Para
que algo se mova, precisa de algo que o empurre. Algo tem que
ficar parado, para que mova todas as outras coisas: Deus é o Algo
que Tomás buscava. O motor imóvel do universo. Disse ele, por
final, por isso graças te dou, Senhor! Fecho de ouro, não acham?
Isso me leva de volta à bíblia que meu pai me presenteou.
Lembro-me bem de dois versículos, os únicos que sabia de cor:
um é Jesus chorou! O outro é Deus é amoR! O que me faz lembrar
Roma. Roma que andou escravizando a terra de Jesus. Roma,
amoR, repararam?
Na sétima arte, no cinema, muito já se escreveu sobre o filme Matrix, onde os irmãos Wachowski destruíram o mundo dos
homens. Escreveram, copiando Platão, que há um mundo fictício
mais importante que o nosso próprio Real.
Os Wachowski usaram Platão. O número 1 da filosofia. Platão é uma de nossas referências. Foi também para Agostinho que,
baseado nele, no quarto século, viu longe e montou o arcabouço
da Igreja cristã. A filosofia da Patrística. Muito do que escreveu
perdura até os dias de hoje!
Passei minutos de uma tarde conversando sobre esse filme,
o Matrix, e sobre Platão, com nosso pai. Quando chegamos ao
ponto em que o mundo verdadeiro estava de fato destruído, disse
simplesmente de volta. É. Só Deus mesmo para salvar essa terra
onde tudo acaba! Assisto todos os dias essa miséria nos programas do Datena e do Leão. E pediu. Está bem, gosto de ouvir sobre cinema, mas volte, Jairo, ao Platão, pois como você disse, um
outro dia, ele criou um mundo a mais. Que mundo é esse?
O das Idéias, pai. Para esse grego, antes de uma coisa existir
ela tem que ser pensada… Para ele tudo é cópia de alguma idéia
já feita e desenhada no tal mundo. Antes de existir um cachorro
na Terra, no mundo de Platão já tinha aparecido uma idéia desse
bicho guardada como se fosse uma miniatura. Se aqui no nosso
224
Jairo Martins de Souza
mundo é preto, se é malhado etc., é por conta das diferenças que
tanto apreciamos. O mesmo acontece com a idéia de árvore… No
geral, tudo que cá existe foi antes pensado pelo Criador. Com um
detalhe sutil: se é cópia, é pior que a criação original…
Sabe, filho, gostei desse mundo. O das idéias. Aliás, sempre
gostei de ficar pensando antes de fazer as coisas. De como montar
uma loja, de como convencer os meus filhos a estudar... Com os
mais velhos, fracassei. Bolei muitas coisas com Izaias e o Hélio. Sua
mãe chamava-os Piquitito e Bilico, mas não consegui fazê-los gostar de livros. Falha minha, creio. Nisso, não pude dar exemplo!
Sim, pai, mas o passado não nos pertence, são somente idéias
que temos do que passou. Memórias como essas. Já Platão relatou que o seu Mundo das Idéias é mais importante que o mundo
físico. O nosso é enganador. O céu, por exemplo, é tudo, menos
azul. Mostra-se assim porque a atmosfera, poeiras e gases escondem todas as demais cores. Como filtros solares. Esse mundo em
que vivemos é de segunda categoria.
Isso é que é falar, Jairo! É, pai, mas o que falei é tão por alto e
imperfeito que a sua escrita pode ser até considerada uma atitude
leviana, mas, de certa forma, não é errado dizer que tudo aqui
na Terra é mesmo cópia mal feita do tal Mundo das Idéias. O dos
céus. O de Deus.
Tanto que, a partir disso, Santo Agostinho (ah! Volto a falar de santos!...), escreveu obras importantes como a Cidade de
Deus e as suas Confissões. Misturadas com algumas bobagens,
dizia que os demônios é que mandavam os homens escreverem
peças de teatro.
Ainda bem que não comentou nada sobre escritos de memórias! Mas a ‘Cidade de Deus’, segundo ele, era possuída pela
sociedade dos cristãos eleitos, e que, por final, nada tem a ver
com a que foi construída para atender gente carente transferida
de morros cariocas.
Ah ah ah, você gosta desse Agostinho, não é Jairo? Sim, pai.
Mas a bíblia que me deste tem sempre a intenção de continuar
permanecendo aberta no salmo 23!
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Capítulo 34
Onde se fala do Colégio Batista e a educação. Também se
fala das meninas da época e dos bons modos de se proceder...
C
aros meninos, juventude alegre de um país ensolarado e fecundo. As maravilhas, objetos de seus estudos,
são obras de muitas gerações. Nas mãos de vocês, torna-se uma
herança. (Albert Einstein; parte de Discurso Breve a Meninos 1953)
Discurso magnífico! Somente um gênio como Albert
escreveria com tamanha simplicidade sobre o legado incomum
que sabia deixar para o futuro. O testemunho aqui dado mostra a
tranqüilidade que sua alma tinha quanto ao homem e ao mundo.
A sua herança. Agradecia ao passado, repassando-o, atualizado
e com fé aos jovens que o ouviam. Que o leitor coloque essas
últimas frases de molho!
Por outro lado, pode parecer que a informação que se segue
é totalmente divorciada dos negócios do Bazar. E é. Anoto aqui
porque a julgo curiosa. Diz que Einstein esteve no Brasil por uma
única vez em 1925. Segundo depoimentos da época, foi olhado
com curiosidade pelos cariocas. Talvez como o fantasma de um
Aristóteles ou de um Newton... Tinham lá suas razões, lembro
aqui que ele provara que massa e energia compartilham o mesmo
segredo!
Com o que volto a 1953. Na ocasião a favela era apenas
um aspecto romântico a mais na paisagem carioca. Também não
havia sido ainda criada a Cidade de Deus, obra por fazer sob
ordens do futuro governador Carlos Lacerda.
Finalmente, usando Einstein com sua fé no futuro da
226
Jairo Martins de Souza
Relatividade Geral (aí recupero uma das frases que pedi ser
armazenada), e o Rio com sua beleza natural ainda quase
virgem, acabo por situar novamente o Bazar em rápido contexto
estrangeiro e nacional da época. Concordo com o leitor, foi forma
inusitada!
Mas justa. Pois enquanto tudo isso acontecia, Jaime Raimundo
também já acreditava na boa fé dos seus caros clientes. Relação
de confiança que persiste por meio desse livro.
Aqui, em minhas mãos, o conhecido bordão “o segredo
comercial não esconde a consciência cristã” explica bem a nossa
herança! Com esse entendimento é que nosso pai formou sua
família e os seus meninos.
Decerto o Bazar não tinha as ferramentas que hoje as
instituições têm: as que poderiam dizer e informar as nossas
metas, nossas preocupações sociais, nossos ideais e a nossa luta.
Não precisava. Ficava bem explícito. Seu objetivo era a satisfação
do cliente: aqui substituído por você!
Caminho que nos iniciou na infância! Não quero que vocês
se tornem ignorantes como eu. Não pude passar das primeiras
letras do alfabeto, nosso pai dizia, mal aprendi a cartilha. Nem
mesmo tive diploma de pedreiro!
Chegando a Belo Horizonte, logo tratou de matricular a todos
no Batista Mineiro. Junto com o Arnaldo, e o Colégio Militar, um
dos expoentes da educação mineira. Nos estudos e na disciplina,
havia outros poucos de tal padrão e, mesmo com os descontos
de praxe, éramos sete filhos na ocasião, imagino que gastava
mensalmente conosco uma pequena fortuna.
Nossa missão agora é revisitá-lo. Imponente educandário.
Posso imaginá-lo como um protótipo do Congresso do Mundo,
conforme idealizado pela pena argentina de Borges que escreveu
tal enigmático conto. Composto de muitos livros e um ajuntado
de prédios de três andares, se contados a partir do térreo.
O hall da entrada principal era intimidador para meninos do
interior como eu. Já do seu auditório, via-se, com ajuda de luz
que penetrava por vidros laterais, campo de futebol no mesmo
molde do estádio monlevadense do Jacuí; pois margeado por
Bazar Monlevade
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uma linha de eucaliptos compridos e magros. Aqui passei grandes
emoções!
Na formatura do ginásio, em 62, lá estavam assentados, e
orgulhosos, os meus pais. Com gravata borboleta, camisa volta
ao mundo, abotoaduras à mostra e terno de calça comprida encontrava-me postado em um pequeno tablado. O auditório estava cheio como sardinhas em lata e eu dizia: Exmo. Sr. Diretor,
distintos professores, amados pais e irmãos, caríssimos colegas e
etc. e tal…
Não mudou muito desde os anos 50. No seu interior, encontrava-se a mais bela biblioteca que conheci em casa de ensino
primário nacional. Como também lindas aluninhas que desabrochavam para a sociedade. Com um detalhe. Eram totalmente indiferentes quanto ao menino Cusecco que vos escreve. Vestiam
saias plissadas azuis e boinas da mesma cor, pareciam imitar as
aeromoças da Panair. Moda da época: as do Sacre Coeur, Santa
Maria e o Instituto de Educação tinham uniformes como esse.
Lembro-me de vê-las com suas mamães fazendo compras no
Mundo Colegial e na distinta Casa Pérola.
Mas voltando ao colégio, por precaução, estive por lá recentemente para conferir a autenticidade das minhas recordações e,
constatei, com pequena diferença, que suas paredes eram mesmo
altas. Medo que a mim acontecesse o que dizia nosso pai ter com
ele acontecido.
Certa ocasião, ao fazer visita longamente planejada aos sítios
que cresceu, disse-me: Jairo, que decepção, estive viajando pela
terra onde nasci; as árvores que julgava gigantes, na verdade não
são e nunca foram. Acho que olhava com olhos de bicho pequeno, como formiga e mosquito. Sim, pai, falei-lhe de volta, mas não
fiques incomodado com isso: as lembranças infantis têm escala diferente das dos adultos. Veja só como ando distorcendo as histórias
desse seu Bazar.
Lá funcionavam a plenos vapores o Jardim da Infância e o
curso primário. Mais abaixo, onde a Rua Plombagina encontrava-se já em suave descida, na esquina com a de nome Ponte
Nova, via-se a bonita casa do seu diretor e esposa. Os Harrington
228
Jairo Martins de Souza
tinham vindo dos Estados Unidos que era a terra onde todo o
povo vivia bem.
Algumas fachadas davam frente para a Ponte Nova que já disse, mas agora em subida, até estabilizar-se em inclinação zero no
cruzamento com a Rua Varginha. De lá se contempla uma belíssima vista do centro de Belo Horizonte, emoldurada, ao fundo, pelo
morro contínuo da Serra do Curral. Sensação que não muda e não
se esgota, tive suave lembrança quando, em momento de felicidade, admirei Santiago do Chile aprisionado pelos Andes. Olhando
para a imponente cordilheira, pensei, tínhamos um horizonte mais
belo!
Além da vista e das lembranças, lá havia, e ainda há, no marco inclinação zero que dizíamos estar, um pequeno trecho público mobiliado ao tempo com pequenos bancos e árvores, e que
dava lugar a uma pequena praça. Defronte a ela, via-se, altaneira
como um senado romano, a fachada elegante do internato feminino. Veritas Vincit é o que de longe se podia ler no entremeio
de seu paredão frontal que portava colunas inspiradas em algum
desenho de geômetra clássico. Eram flagrantes as intenções de
simetria.
A afirmação Veritas... Por sua vez, era feita com letras discretas, mas marcadamente visíveis. O vocabulário e sintaxe latina
não nos complicavam, tinham tradução fácil, lembrar que aqui
“a verdade sempre deveria vencer!”. Talvez funcionasse como as
gárgulas nos tempos medievais que espantavam demônios mentirosos, por exemplo, o que andou assustando Descartes. Que esse
danado não ousasse se aproximar daquela instituição!
Agora, da mesma posição que estávamos, mas voltando os
olhos um pouco mais à direita, damos com os mesmos dizeres…
veritas vincit. Só que escritos ainda mais discretamente, estão
lembrados, estamos contemplando o prédio do internato masculino. Tal como o feminino tinha aspecto austero de uma Faculdade
de Direito. No seu interior ficava alojado o estudante proveniente
do interior ou de outros estados.
Na outra ponta do quarteirão, que fazia vizinhança com a
casa do diretor americano, postava-se a famosa Igreja da Floresta.
Bazar Monlevade
229
Na sua fachada externa não se via nenhuma frase latina, somente
algo nos desenhos das colunas que talvez pudesse sugerir o contorno de uma cruz de alvenaria.
Nela mentalmente vejo escrito com letras que brilham: In Hoc
Signo Vincis! (com esse signo vencerás!).
Bazar Monlevade
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Capítulo 35
O francês dos anos 50 e 60
C
hegando à minha casa, hoje, deparei-me com uma
correspondência com selo marcado em francês. A
moça estivera habitando conosco por doze meses e retornara à
sua terra de origem, Montreal. Sua lembrança fez-me voltar muito
antes de sua presença. Às migalhas do francês ginasial.
Não é que isso tenha sido algo insólito. Nos últimos meses, fatos corriqueiros como esse, têm-me feito buscar passado remoto.
Ando caminhando ao lado de histórias fantasiosas de um menino,
algumas inclusive causam-me embaraços no momento de pô-las
no papel. O que não é o caso em foco. Mas facilitaria se estivesse
produzindo outro tipo de texto, como uma carta retornando o cartão de agradecimentos que recebemos. No envelope escreveria,
ocasionalmente, par avion.
Já que é assim, a redação de hoje segue conforme pista que,
acima, fortuitamente mencionei. O menino Cusecco volta a dizer
de sua infância e de uma língua que lhe foi apresentada em Monlevade: o francês. De forma inusitada! Depois de tempo próprio,
psicologicamente, evoluiu para uma quase intimidade. Isso já nas
classes e carteiras do Batista.
Explico tudo. Foi na Vila Tanque que tive contato com a língua de Baudelaire, autor que tomei conhecimento já no final dos
anos 90. Impressionou-me com as suas flores do mal (fleurs du
mal). Mas, como dizia, tudo começou mesmo foi por meio da
família de monsieur Albert, um amigo da família. É com quem
chego à Rua Dezesseis ou Dezessete, não me recordo bem!
Então é o menino Cusecco que passa a escrever, dizendo:
quando conheci monsieur Albert, era um vovô entrevado. Nunca
soube o porquê. Coisa triste. Talvez porque, como eu mesmo, fos-
232
Jairo Martins de Souza
se distraído e tenha sido vítima de derrame. Batera a cabeça num
arbusto baixo quando andava de charrete com a namorada (cá
entre nós, não creio que tenha sido assim, mas deixemos o garoto
seguir entusiasmado com sua versão sobre o caso!).
Os dois faziam um piquenique em um Parque Municipal, tal
como o de Belo Horizonte com sua lagoa e seus carás. Não muito
próximo, podia-se ver algum menino de Monlevade que lá praticava pesca ilegal, por meio de anzol amarrado na ponta de barbante velho. Ao seu lado uma cesta recheada de pães e biscoitos,
parecia a do Chapeuzinho Vermelho.
O fato, segundo um cronista da época, ficou testemunhado
por antigo retratista que fotografava o belo verde local. É o que
diz o próprio, insinuando a exibição de uma velha câmera reflex,
assim como negativos meio apagados da seqüência comprovadora do que descreveu.
A sua conclusão, ao me fazer encerrar essa longa quebra de
texto, é que o pai da moça, católico apostólico romano, não aprovava o namoro do jovem Albert com sua filha Elvira. Mesmo que
platônico. O rapaz era respeitador, mas comportava-se como um
protestante indeciso. Não ia regularmente à igreja dos crentes, e
tampouco declarara qualquer anseio de mergulhar nas águas do
Jordão.
Agora quem dá opinião, encerrando também relatório sobre
a doença daquele senhor, é o menino Cusecco que, de novo,
retoma a palavra e diz: por mim, o corajoso Albert foi um rapaz
que esteve lutando na resistência francesa ao lado de Jean Moulin. Sua perna foi destroçada em campanha por um estilhaço de
granada.
De minha parte dou contribuição para esse texto, alegando
que eu nunca poderia ser francês. Para isso, dizem, o primeiro
requisito é ser corajoso. Nunca fui!
Tudo isso posto, e voltando à Vila Tanque, relato que ver o
velho Alberto, com o que passo a dizer seu nome em português,
movendo-se pela casa, significou também a primeira vez que vi
uma cadeira de rodas. Imediatamente quis ter um velocípede daqueles, suas duas rodas traseiras tinham tamanho gigante, e lem-
Bazar Monlevade
233
bravam alguns de baixo preço que andavam rápido.
A filha do vovô Alberto era a dona Yvonne. Parecia olhar
sempre para a ponta do próprio nariz, aprendi que chamavam
gente assim de estrábica: o que não a impedia de ser uma senhora simpática e prestativa. Enfermeira de profissão, na lateral dos
cabelos destacava-se um eterno permanente. Na minha cabeça,
era parecida com mulher que ilustrava o popular cigarro Misbela. No entanto ela fumava mesmo era o Beverly, aquele do maço
amarelado. Não me esqueço do seu ranço fedido!
Finalizando essa longa introdução, retomo o assunto que me
levou ao homem que falava francês na Vila Tanque.
Passaram-se anos. Foi durante passagem pelo curso ginasial
que me iniciei no aprendizado do francês. Nele evoluí em tempo
recente. Na primeira ocasião tudo começou por meio de um pai
e de um filho: tudo aqui parece funcionar em família. O pai, Marcel, era o autor do livro didático adotado no colégio (algo como
Les premier pas dans le français). O filho, Daniel, era o professor
efetivo que, orgulhoso, aplicava o método didático do pai. Ambos
eram Debrot.
O professor Daniel Debrot era um homem muito alto, mais
de 1,90, gostava de usar terno azul com camisa branca e gravata borboleta. Tudo um pouco gasto e encardido. Culpa de salário
de professor, mesmo melhor que os de hoje. Aparava os bigodes
com rigor mantendo-os finos e ligeiramente estreitos. Já os cabelos
negros eram fixados com muita brilhantina. Colados à cabeça, lembravam a moda Valentino.
Com saudade lembro que as francesas também não se eximiram na nossa formação. Não tiraram o corpo fora. Trouxeram
grande contribuição para os meninos do Brasil, meu coração
amolece ao lembrar da suave Pascale Petit, e a Bardot. Ambas
vastamente homenageadas na Vila Tanque. Mulheres de acetato
e papel, hoje, Brigitte é uma velhinha que organiza brigadas pelo
mundo animal, mas quem pode se esquecer que andou desfolhando a margarida?
Por tudo isso, resta-me recuperar que essa preferência pela
França é antiga, começou pelo gosto do nosso imperador Pedro
234
Jairo Martins de Souza
pelas coisas da Europa. Pedro II tinha visão avançada, a de um
verdadeiro lorde europeu. Nem parecia português. A história relata com elogios o seu excepcional interesse pela cultura mundial.
Em especial, a francesa. O avô, D. João VI, não era assim. Em
1808, abrira os portos às nações amigas, mas não gostava nem
de viajar nem de tomar banho. Tinha medo de trovoadas e praticamente fugia das tarefas de monarca. No entanto, convidara a
famosa missão chefiada por Montgny e que tinha Debret, e artistas menores. Alguns ficaram para sempre no Brasil. Em particular,
Debret foi pintor que deixou registrado em suas telas muitas das peculiaridades e características da nossa vida colonial. Algumas delas
enfeitam com freqüência livros didáticos de História do Brasil.
Resumindo: tudo foi influência da época, e da cultura do próprio Pedro. O Brasil se tornara, por algum tempo, sede do império
português. O que explico em pequenas partes. De grão em grão
a galinha enche o papo.
A época era a do século dezenove, e os seus vinte e cinco
anos finais constituíram a chamada belle èpoque. Já nosso governante queria reinar a partir de uma cidade elegante. Não esquecer que Pedro era um rei, mesmo que procedente das terras
lusitanas. Tinha como meta que o Rio se tornasse a Paris do cone
Sul. Na ocasião logrou êxito!
Por fim, a França influenciou profundamente a todos nós, e
as nossas leituras. Querem razões mais significativas? Não nos
faltam. Entre elas, a importância de seus romances e autores das
nossas vidas. Que tal Os Três Mosqueteiros de Dumas e Os Miseráveis de Vitor Hugo?
Aliás, não somente nós, mas também nossos gigantes foram
influenciados. Até Machado andou nesse rol. Falava perfeitamente a língua francesa, mas nunca saiu das cercanias do Rio de Janeiro.
Um viajante parado.
Bazar Monlevade
235
Capítulo 36
Onde se diz de livros. O namorado ideal
E
m 1967 estava a serviço da revolução. Era um simples
soldado. A profecia de Joaquim Justo tinha se tornado
verdade. Anos depois, um dos nossos presidentes disse que se ganhasse como uma professora primária daria um tiro no coco. Um
soldado ganhava menos que uma professora. Nunca pensei em
dar um tiro no coco. Antes disso o mesmo general João Batista
dissera gostar mais dos seus cavalos do que de gente.
Isso resume o período que se iniciou no famoso 31 de Março.
A sua valia é a de que pode ser dada como a referência do fim do
tempo coberto por esses escritos.
Muitos artistas, atrizes, escritores, poetas, músicos, enfim,
gente da classe dos intelectuais se queixa da censura que reinou
a partir de 64. Têm memória curta. Não que estejamos fazendo
pouco caso de alguns deles que foram, realmente, importunados
por razões fúteis. Considere-se que a maior parte da população
não entenderia os protestos embutidos em suas letras de canções,
ou os textos dos seus poucos livros e revistas. Não custa lembrar
que alguns até mesmo fizeram sua arte disfarçada com sobrenome de mulher. Como o próprio Chico Buarque que, por razão
diferente, mas copiando a estratégia do nosso pai, vó Rosinha,
Freud, e outros, trocou o nome da mãe, Maria Amélia, transformando-a em Adelaide. Julinho da Adelaide.
Na década anterior, fomos precedidos por algumas mordaças
mais fortes, uma das quais se segue, e que seguiremos, ao mesmo
tempo, explicando. Mesmo na capital dizia-se da retranca em que
vivia a tradicional família mineira, em especial quanto ao excitan-
236
Jairo Martins de Souza
te tema da educação sexual.
Não há necessidade de maior explicação, mas em nossa própria casa, de certa forma, as meninas foram habituadas a trajar
burkas: agora blindagem feita pela família, pais e irmãos. Com
uma ressalva. Nem de longe nosso pai comportava-se como o
conhecido protagonista social de O livreiro de Cabul.
Para a maioria dos rapazes funcionava mais ou menos assim.
Sob o ponto de vista teórico, a principal ferramenta era a
obra literária do religioso católico e psiquiatra João Mohana,
especialista em sexo e educação. Editada pela primeira vez em
1950, um avanço editorial. Dizia do namoro, do casamento, e,
principalmente, das surpresas e da anatomia do sexo. Qual jovem mancebo ao estudá-lo não se sentiria magnetizado? Tudo
era relatado de forma técnica e descritiva. Rapazes! As emoções
e demonstrações de virilidade devem ser controladas, e amenas.
Um padre nos instruía.
Disfarçado de médico! Tudo de acordo e conveniente para
quem está em troca de penas, passando de menino para jovem;
de adolescente para namorado; de noivo para marido; de marido para esposo e, por excelência, de esposo para pai, e que não
tarda passa a ser chefe de família. Pelo que reparei, no futuro,
teria que ter pelos menos dois varões e duas moças para que fosse atendida toda a experiência do espectro familiar: de irmãos e
irmãs, do pai, da mãe, dos filhos e das filhas. Acabei por ter duas
filhas e um filho. Para mim faltou um rapaz!
Voltemos ao livro. Coerente com os ideais da época, o texto
que mais gostava intitulava-se “O namorado formidável”. Li-o
várias vezes. Instruía como respeitar a namorada, futura esposa,
e ajudava a verificar o procedimento das nossas irmãs. O público alvo era o jovem brasileiro Católico Apostólico Romano, com
aficionado fiel nos rapazes de tendências evangélicas como nós.
Tinha claro objetivo médico, considerando-se que nas aulas de
biologia formais não se estudava a parte reprodutora do homem
e a da mulher. A vagina e o pênis.
No máximo versava-se sobre o sexo das galinhas e dos galos,
com restrição nas ilustrações. O objetivo anatômico era bem atin-
Bazar Monlevade
237
gido com a descrição geométrica das diferenças, feita pelo prelado doutor, inclusive com instrutivo desenho complementar da
parte em análise. Não há dúvidas que mesmo que nunca tenha
sido lido por nossos pais, teria deles total aprovação.
Tenho ainda exemplar do livro do Mohana na pequena biblioteca da minha casa. O conteúdo já caducou. Na sua capa
frontal há uma recomendação explícita, reparem os leitores a insinuação de que se cortejava fruto proibido: ‘leitura reservada’.
Já no interior, antes da introdução, o leitor encontrava outras recomendações emitidas pelo editor, o autor, e os conselheiros do
corpo religioso que o liberaram para venda nas livrarias especializadas. Segundo a opinião do censor designado, é um livro bom
para a saúde geral do jovem brasileiro.
Resumindo, nihil obstat quominum imprimatur. A mesma
aprovação à qual fui submetido em capítulo anterior. Esse nada
consta para a impressão significava que não era cadastrada como
proibida pelo Index Librorum Prohibitorum da Igreja.
O Nome da Rosa, da qual já disse algo, foi obra algo como
um milhar de vezes mais lida do que o livro do padre João. Foi
publicada em anos recentes. Como se fosse um desagravo ao que
sofreram alguns escritores, Giordano Bruno, por exemplo, lembro
que, caso tivesse sido escrita antes dos anos 50 do século passado, pode ser que fosse inscrita na lista dos livros proibidos. Pode
ser…
Pode ser que, de acordo com o seu próprio enredo, pudéssemos ver seus manuscritos, trancados a sete chaves na biblioteca do
mosteiro, que é o sítio central da trama. Na sua porta o perspicaz
Jorge, um frade velho e cego que, zelando por sua integridade e
pestilência, a ninguém permitiria a leitura de tão belo romance.
Que tristeza! Assim poderia ser também com esse pequeno Bazar,
por nele constar tal citação bibliográfica. Concluindo, com aquele
personagem o autor italiano Eco quis homenagear Jorge Luís
Borges que, na velhice, tornou-se cego.
Ele, como muitos outros autores, gosta de utilizar esse recurso. Foi o que acabei de fazer.
Tal método de proibição de edição de livros, o Index Libro-
238
Jairo Martins de Souza
rum, perdurou por muitos séculos, foi abolido em 1966. Ano feliz! A partir daí ficou oficializado que dentro do casamento serão
gerados melhores amigos e amantes. Um avanço. Sem pecado,
foram reconstituídas muitas expressões de amor verdadeiro, desenvolvidas a partir do sumiço de culpas. Já se disse que os livros
são nossos amigos de confiança, nunca têm dor de cabeça, e
não nos cobram respostas imediatas. Aliás, não somente os da
nossa língua portuguesa, como também a dos outros países. Daí
a riqueza essencial de conhecer outros idiomas. Fizeram-nos entender melhor a história dos homens e a dos nossos pais.
Agradecemos a todos. Às casas de edição, aos seus autores, e
às suas autoras. E desses, os seus personagens, a começar pelos
das obras sagradas e os dos grandes romances e contos da literatura universal. E, principalmente, aos pais compradores de livros
e, em particular, aos nossos, na figura do padre, o pai, Jaime
Raimundo que, em casa, fazia as vezes do psiquiatra Mohana: o
homem da moral.
Para mim tudo começou pela pequena estante que meus pais
mantinham, não eram muitos os livros, na nossa casa da Rua
Jacuí.
Bazar Monlevade
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Capítulo 37
Onde se lembra de uma pequena estante de livros
P
assava constantemente os olhos pela capa de um
livro na nossa estante… Preciso de tempo para lembrar
seu nome!
Mal iniciei esse capítulo, mas devo voltar no tempo para localizá-lo no móvel. Talvez ajude. Para tanto, escrevo que tinha
duas pequenas portas corrediças e vidros transparentes sustentados por caixilhos de madeira. Ficava em um recinto de passagem
no mesmo ambiente de uma pequena cozinha desativada. Suas,
se me lembro bem, três prateleiras tinham em torno de um metro
de largura e uns 25 centímetros de profundidade. Suficientes para
livros de dimensão mediana. A altura era de um menino de uns 8
anos com o braço direito levantado reto na vertical.
Lá morava parte dos nossos sonhos nos livros de Lobato e
nos de outros autores como os do Pequeno Lorde (quem pode se
esquecer do menino Cedric e da sua paixão pela mãe, a quem
chamava querida?). Mas não somente isso. A literatura juvenil na
estantezinha também era representada pelas belas histórias de
Condessa de Ségur, e nas de outros autores como os de aventuras
narradas por Dumas.
A exemplo dos Três Mosqueteiros, na prática, em nossa casa,
representados pelo trio de irmãos mais novos. Não cansávamos
de nos debater em duelos com paus de vassoura. Eu era o do
meio. Um ano acima, o Géa; um ano abaixo, o Jarbas. Um par de
rapazes e um par de moças complementavam a família.
Escrevi o que foi escrito. Tempo suficiente para estimular e
trazer à memória o nome do livro que via no limiar desse capítulo,
240
Jairo Martins de Souza
e do qual fiz referência. O famoso Quo Vadis (Aonde vais?).
O que nele em especial chamou-me sempre a atenção é que
começava com uma frase latina, e com a mesma terminava. Na
sua última folha, em linha separada, destacava-se uma pergunta,
quase igual ao título. Dizia: Quo Vadis Domine? O qual, psicologicamente, traduzindo, e colocando algo mais que a imaginação
infantil mandava, tornava-se: Aonde vais, menino?
Quem sabe fosse parte da famosa triologia: de onde viemos… Enfim, sem mais nem menos, proponho-me a terminar
esse breve parágrafo como fez o autor daquele velho livro, que
tinha a capa esgarçada pelo manuseio descuidado. Que aquela
indagação seja um alerta para o senhor que sou: Quo Vadis Domine (Aonde Vais, Senhor?).
Hoje sei para onde vou. Aliás, como lembrado recentemente
por um homem afegão (e já encaixado no início desses escritos),
“Vá, menino, acorda tua felicidade!”
Na mesma estante tínhamos uma obra que falava de um senhor chamado Petrônio. Vinha com o nome sempre acompanhado por um aposto, uma qualidade: Petrônio, ‘o árbitro da elegância’. Petrônio disse algo assim, e alguém interpretou certo para a
posteridade, traduzindo que o homem é resultado de sua própria
medida.
Parece-me que estava fazendo uma crítica aos meninos de
sua época e, por extensão, aos da nossa. Não nos esqueçamos
que era um sábio, e disse certo sobre nós. Pois fazemos arbitragem
e qualificamos os nossos colegas de classe por meio da palavra.
Palavra que criou muitos mundos dentro do mundo e, com mais
facilidade ainda, destruiu outros tantos. Lembro que uma palavra
bem pensada pode construir um mundo, um apelido pode fazer o oposto. Em particular dos que eram emprestados por seres
viventes menos qualificados da classe animal, tais como aves,
pássaros e peixes… O nome burro é um dos favoritos. Há outros
nomes usados para o mesmo propósito e que recordam criações
da cabeça e das artes dos homens. Um deles, posso citá-lo sem
qualquer restrição já que diz respeito a minha própria pessoa; enfim, fui algumas vezes chamado de Pinóquio, o inocente boneco
Bazar Monlevade
241
de pau construído pelo boníssimo Geppetto.
O Jarbas era também muito atingido pelo determinismo de
Petrônio, tinha atributos passíveis de análises e avaliações. Pelo
lado dos pássaros (do qual era aficionado em trocas e criação), era
identificado como tucano. Já por parte dos pequenos mamíferos,
era bem conhecido como ratinho. Finalmente, ratinho ou tucano,
dizia irritado, é a p… que o pariu!
Mas ambos tínhamos consolo. Sim, desde criança sou ciente
da saída que o Salvador disse para os meninos fracos e magros
como ele e eu: Vinde a mim os fracos e oprimidos!
Mas Jesus não estava aqui na Vila Tanque em carne e osso e,
na maior parte das vezes, não dava para correr para debaixo da
saia da nossa mãe.
Desfavorecido por essas circunstâncias, no mundo real acreditava mesmo era nas ajudas imaginárias de Hércules. Olhando
para ele, pensava tornar-me um dos iguais ao Mr. Universe, Joe
Weider. Weider nos quadrinhos costumava lançar um repto, um
desafio, torne-se igual a mim em 30 dias e ganhe 10 mil dólares.
Propaganda enganosa. Enfim, fui conhecê-lo, ao Hércules, já menino crescido. De acordo com minhas idéias naquele tempo, era
quem carregava o mundo nas costas.
O que significava sustentar países selvagens como o Congo
Belga que acreditava ser o país do Tarzan. Você está errado, informa um colega que, por ser mais aplicado, diz que o próprio
conjunto de mapas políticos, geológicos etc., se chamava Atlas
escolar não por mera coincidência.
Permaneci pensando que de fato Hércules era o carregador
do mundo. Há coisas que resistimos reconhecer como verdadeiras ou falsas; recusa inconsciente que Freud explicava como fuga
da realidade, e que apascenta inquietações que se remexem dentro das pessoas e crianças. Para o que temos exemplos mais fáceis
de constatar…
Afinal devemos seguir com a verdade, e a verdade, estão
lembrados, deve morar dentro de nós. Com o que confirmo que
a cegonha nos trouxe; a nós e a nossos irmãos. O coelhinho da
Páscoa é que nos delicia com os bombons da marca Garoto do
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Jairo Martins de Souza
Espírito Santo apresentados sob forma de ovo. Papai Noel, e não
o Bazar, é quem traz os presentes do dia 25 de dezembro…
Ouvi certa ocasião uma criança dizer, por que os adultos roubam as minhas ilusões? Aliás, o mundo não é nem mesmo sustentado por uma tartaruga naufragada, e que tinha os pés firmes nos
solos dos fundos dos mares, tal como disse uma velha senhora ao
astrônomo Carl Sagan. Dos velhos, disse ele, também não devem
ser subtraídas as ilusões. Ainda bem!
De acordo com a pista dada pelo garoto, as montanhas Atlas
são as que sustentam o céu e firmamento (como também a habitação final do titã que dissemos).
Não gostava do Capitão Atlas. Não sei bem as razões! Mas
sobre Hércules seguem duas importantes coisas que anoto aqui.
A primeira é que era filho de Zeus, um dos poderosos que ficava
bem no alto do Monte Olimpo. A segunda é que havia cumprido doze tarefas que, considerando-se a excentricidade dos nomes
dos envolvidos, muito me encantavam. Perigosíssimas.
Matar o leão de Neméia; a hidra de Lerna (a serpente de 7
cabeças só morreria se cortadas de vez todas as cabeças); buscar
Cerberus (o cão que nunca latiu...) das entranhas do inferno; eliminar os pássaros canibais do lago Stymphalis; capturar o touro
gigante de Creta; laçar os cavalos do traciano Diomedes; apoderar-se dos espartilhos de Hyppolita, a rainha das amazonas...
(ah, como são úteis as enciclopédias de folhas finas para refrescar
memórias esquecidas).
Finalmente, aproximaram-se. De onde? Do nada! Às vezes
essas histórias começam assim. Foram duas mãos que lhe foram
ofertadas. Foi-lhe dito, poderia escolher uma ou outra. A primeira
foi a do Prazer que lhe ofertou muitas sensações da carne. A outra, a Virtude, que lhe disse. Aperte-me, você vai ser imortal. Sensato o nosso Hércules apertou a alva mão da virtude. Foi recebido
e aclamado pelos deuses gregos do Olimpo, que lhe disseram:
você também é deus!
Bazar Monlevade
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Capítulo 38
Deus era um pai de família muito…
H
oje acordei pela manhã cansado e indisposto. A
madrugada mal dormida trouxera-me muitos conflitos interiores, acudia-me vontade de, uma vez por todas, por em
pratos limpos, um assunto que até então mantive severamente
guardado. A sete chaves. Como um cego e talvez com rigor semelhante ao do velho Jorge, o bibliotecário do mosteiro.
No entanto, asseguro que para entender tal assunto, não há
necessidade que, sobre ele, o leitor se debruce com maiores cuidados. Principalmente os nascidos sob as mesmas influências e
ocasião. Se bem que não posso deixar de reforçar que, a despeito
de tudo, trata-se de assunto delicado: com isso preparo algumas
almas mais sensíveis à fé do que à razão.
Com tal estado de espírito escrevo, indo direto ao cerne do
assunto, avisando que o Deus que conheci na infância era sem
paciência e irritadiço. Um pai da velha guarda. Pouco depois de
formar a família, foi logo expulsando o filho Adão de casa. Nem
o tio Ninico fazia desse jeito bruto. Em Monlevade, para os pais
que tinham recurso, os rapazes rebeldes eram somente mandados
para internato onde adquiririam disciplina. Para os pobres, caso
o couro no lombo não resolvesse, o conserto seguia para o endereço de quartel militar. Por tempo definido! Cá não se pedia Salvador para interceder ao pai para retorno à ternura do lar. Coisa
triste é visão da cruz e o calvário.
Era o do velho testamento, o da lei dura e antiga que fundou
o mundo e permitiu o pecado. Não educou o filho! Não proativo. Intolerante. Rabugento. Tinha muito pouco o jeito do que ‘é
244
Jairo Martins de Souza
amor’ que até hoje gosto: tanto é que, por várias vezes, já citei
aqui esse versículo. Mais parecia um pai que voltava do trabalho
para acerto de contas com os filhos, e que neles batia sem ouvir
direito os relatos feitos pela esposa e mãe.
Achava esquisito um rei, como ele, abençoar troca de direito
de primogenitura entre os gêmeos Esaú e Jacó. Um direito adquirido! Por que deixar Jacó servir ao pai, Isac, o tal ensopado
de carne de caça e, além disso, disfarçar-se de Esaú? Aliás, esse,
quando nasceu, ajudara ao irmão puxando-o pelo tornozelo. O
certo seria dividir privilégios. Enfim, minha mãe não faria como
Rebeca fez!
Não se podia cometer nem mesmo um pecadinho! Nem
mesmo fumar um talo seco de chuchu, ou pensar em caçar passarinhos em dia de finados, ou mirar disfarçadamente mulheres
que passavam pelas ruas desfilando de saias justas. Quem sabe
fossem putas!
Pecado capital! Para casos graves como esse, a bíblia
aconselhava que a solução adequada fosse a cegueira, por meio
da imediata extirpação dos olhos do jovem que cometesse o delito. A ser cumprida pelo próprio criminoso. Pela impossibilidade
de reincidência, isso zerava a infração. Lembro aqui que joelhos
sobre grãos de milho ou feijão eram adequados para faltas leves.
Não há mal que sempre dure, mais tarde tais posições drásticas
foram amenizadas pelos conselhos do médico e padre João Mohana, de quem já falamos. O que demorou! Enquanto isso, o pai
celeste via mais que Jaime Raimundo. Via tudo. Nisso toda a direção da Igreja Mundial concordava: pastores, reverendos, padres,
eclesiásticos em geral, diáconos, fiéis, crentes, e meninos como
eu... Foi nele que se baseou Torquemada, quando andou fazendo
misérias a serviço da Companhia de Jesus!
Passava a sensação de ser uma sentinela que nunca dorme,
pois dos que dormem conheço bem: eu mesmo fui deles, com o
mosquete a servir-me de suporte nas madrugadas frias do Doze.
Onisciente. Sabia de tudo, inclusive lia pensamentos e adivinhava futuras intenções, enfim, fazia com que seus pequenos filhos
sempre se sentissem em débito.
Bazar Monlevade
245
O que me faz pensar que tenha sido o criador do superego
que punia crianças. Sim, o mesmo que fez, em capítulo passado,
o garoto Diquinho resmungar e tomar uns cascudos de sua mãe,
Miranda.
Com tudo isso, sabia de todos os malfeitos e, com tal conhecimento de causa, a eles fazia transformar em sintoma. Criava o
crime, formulando leis antigas e, a partir disso dizia das penas a
cumprir. Como faz a disciplina do Direito, que relata que não há
crime sem lei, nem pena sem cominação legal. Em termos práticos, um pecadinho comum de criança podia fazer criar verruga
bem no centro de uma das nossas mãos, ou nas duas, ou crescer
mamilos como os dos seios de meninas. Ai, que vergonha!
Isso também Freud explica. Esse homem poderia ser chamado de Freund, tamanha, para nós, é a sua colaboração. Amigo.
Repare o leitor a semelhança com o inglês friend. Tive a belíssima oportunidade de conhecer o seu preservado consultório na
Berggasse19, bem no coração da cidade austríaca de Viena. Um
pequeno museu.
Na ocasião, minha mulher interessou-se pelas idéias da filha,
Anna. Considerei natural, pois de minha parte já me interessava
pelas obras do pai.
Viagem que rendeu assunto com nosso pai, um pouco sobre
as questões de educação e afinidade homem-mulher.
Com o que retomo uma dessas ocasiões, falha-me a memória
sobre o local onde estávamos. Mas sei que foi num momento em
que perdíamos o fio da meada, conversávamos sobre a quantidade de filhos que teve e as condições que foram criados. Lembrava, meio tristonho, das condições precárias que nasciam em
tempos idos, comparando, agora satisfeito, com os dias de hoje,
em que até mesmo se antecipa o sexo por meio da tomografia.
Eu disse-lhe. Pai, para quem nasce toda essa tecnologia é
indiferente, ninguém, por si só, sabe se é menino ou menina. Já
não dizem que anjo não tem sexo? Aliás, nem mesmo sabemos
que, já secas no varal muitas fraldas de irmãos mais velhos o
aguardam: desde pequenos tivemos problemas com herança. Ele
riu mais com a expressão do rosto do que com a boca. Deve ter
246
Jairo Martins de Souza
achado informação desnecessária, sabia que hoje, na farmácia, o
que mais existe são fraldas descartáveis (ah, como esse meu filho
é tolinho!).
Não sei pensar com a sua cabeça, pai, mas imagino o que o
senhor tenha imaginado a cada vez que via a barriga da mulher
que inchava de novo: ano que vem tem mais um, a raspa do tacho, a Lucinha, depois dela vem o Jaiminho, que não deu conta
do recado e morreu.
De minha parte, só bem mais tarde fiquei sabendo que, à
custa de ter nádega magra, serei chamado de Cusecco por minha
mãe. Pai, o bebê só tem uma referência: o olhar de quem dele
está cuidando, que é furado como o de uma caveira! Pois esse
também foi olhado por um outro olhar, também furado! Que, por
sua vez, teve um olho antigo que o olhou… furado! E assim a vida
vem seguindo cheia de furos desde o princípio dos tempos.
Quando tais furos ficam grandes demais, tornando-se um buraco, acontecem alguns desastres. O senhor se lembra do buraco
do Dilsinho doido e do buraco da Sá Luzia da Vila Tanque?
Com um detalhe, repare que nenhum dos seus filhos pensa
igual, cada um vê esses olhares furados de forma diferente. Cada
um tem seus buraquinhos!
Outra coisa, que isso não perturbe nosso texto, mas uma vez
li que, nos anos 60, reuniram-se grandes inteligências do mundo
na suposta maior das conferências em Nova Iorque. Os temas
seriam abertos. Foi um fracasso!
Faltou um risco no chão. Uma referência. Pior ainda acontece
com o bebê que não sabe dar nome às imagens que vê, ainda não
entrou no mundo do português, ainda não fala… Vive ainda em
outro mundo. Castigar neném de berço, pai, não melhora caráter.
Não sabe o que é bom ou o que é ruim para os pais. Busca amor
que, às vezes não tendo nome, vira angústia, ah, de novo, voltame à cabeça o exemplo do Diquinho...
Há certo tipo de loucura que funciona assim, fica imprimindo
imagens sem nome dentro do cérebro de gente já adulta. Sem
saber o que é isso, a pessoa não sossega!
Alguns normais, não conformados, mais tarde culpam o mun-
Bazar Monlevade
247
do pelo privilégio de ter nascido. Acusam o marido, a mulher, o
professor, a sociedade… Tolos! Esquecem-se que o ser humano
tem o poder especial da superação. Da transcendência…
Ah, uma coisa volta a puxar a outra. Não era tão bebê assim,
vi o senhor chegar todo cheio de gazes e esparadrapos. 1952 ou
1953. Morávamos em casa de dois pisos às margens do Piracicaba. Soube depois, o senhor tinha caído com a camionete Chevrolet verde na ponte sobre o rio que dava caminho para o Bairro
Tieté. Eu não sabia o que significavam aquelas coisas brancas
que parcialmente o vestiam. Ficaram as imagens, muito depois é
que soube interpretá-las, as gazes e os machucados. Gravadas tal
como um quadro de arte moderna que não entendemos nada do
significado.
Nosso pai cruzou as pernas, ansioso, mãos sobre os joelhos, e
inclinando mais ainda os ombros para frente, disse: Jesus Cristo!
Isso já sabia, nunca gostei que vocês ficassem com gente estranha. Como é arriscado deixar crianças com pessoas mal preparadas, comentou. Será que sua mãe fez isso direito? Fez sim, pai. É
só olhar os resultados. O amor independe de que se tenha ou não
grandes leituras.
Mais calmo, meu pai retruca, parece querer mudar ligeiramente o rumo da conversa. Hoje, meu filho, está difícil ver casa
que tenha máquina de costura. Há mulher que nem mesmo sabe
fazer barra em uma calça, ah, eu gostava era desse jeito. A minha
é uma geração de mulher que se extingue: hoje, querem ser como
os homens. O que é errado. Homem é homem, mulher é mulher.
Nisso é que reside a mágica e o encanto da vida do casal.
Sim pai. Mas hoje há alternativa diferente das meninas que
ficaram velhas junto com o senhor. Dela podem se servir para
diminuir o furo do olhar dos pais, dos tios, dos avós, dos professores… Estou dizendo da leitura, pai, das artes, dos estudos… E
até mesmo a escrita de memórias.
É aí que comemos de novo o fruto proibido, mas prefiro chamar de sublimação, da qual já andamos escrevendo algo quando
nos referimos a vô Clemente. Mas nunca se acha o tal amor perdido, nunca totalmente. Sempre fica um restinho. Um déficit.
248
Jairo Martins de Souza
Aliás, pai, parece que tudo funciona assim. Nem Jesus, com
todo o seu sacrifício, deu conta do recado para salvar totalmente
o homem. O pecado inicial foi tão grande que ficou conta para
pagar, e a ser quitada com a moeda do sofrimento. Agostinho
disse que isso explica o problema do mal e das injustiças aqui na
Terra!
Mas voltando à criança miúda… O quarto das meninas é rosinha, o dos meninos, azul claro. Sou menino, quero ser como
meu pai. É o que a regra da natureza quer e a sobrevivência da
espécie humana precisa. Alguns meninos trocam as coisas e querem ser como as mães. Provavelmente tiveram o quartinho ou as
pequenas almas pintadas de rosinha. Como N.
Por final, tudo isso pode ficar adormecido e retornar com todas as forças na adolescência, a psicologia explica...
E fui falando, falando… A sua curiosidade aumentava à medida que avançávamos na conversa, percebia pelo brilho nos seus
olhos, onde o Jairo aprendeu isso? Pai, disse-lhe, além de estudar
o assunto, passei coisa de dois anos e pouco expondo inconscientemente a minha vida para mim, e para terceiros, em uma
poltrona de consultório.
Não me perguntou o porquê. Acho que receou ficar triste por
algo que tenha deixado de fazer como pai, ou tenha transferido
responsabilidade para outro, seus olhos disseram-me que estava
quase na hora de parar.
Então, para arrematar, disse a ele que essas coisas são explicáveis até mesmo por meio de equações matemáticas. Ficou
surpreendido, mas não pediu que eu continuasse. Imediatamente,
passamos a falar do último escândalo do Congresso Nacional, e
que toda semana aparecia um novo, e que nosso próximo não
seria diferente, e que haveria novidades da próxima convocação
da seleção brasileira, e que o presidente da república gasta mais
consigo mesmo do que com a educação, e que...
Tinha ficado realmente cansado com a densidade do assunto
anterior. Com isso sigo também para descanso!
Pois cá no meu canto, escrevendo um livro como esse, espero
continuar declinando de novas sessões de atendimento, e recu-
Bazar Monlevade
249
perando de novo que passei uma pequena parte da minha vida
na companhia de um médico discutindo intimidade. Que caso
tomasse conhecimento desses escritos, certamente perguntaria
pedindo satisfações: o que quer esse sujeito que, dizendo de si,
diz estar escrevendo memórias dos pais?
Respondo com o silêncio. Dou-lhe o troco.
Nosso pai gostava de ouvir sobre assuntos polêmicos, não contendas. Religião, por exemplo. Riu muito quando, em um dia sombrio, disse a ele a quase centenária frase, o crédito deve ser atribuído a Jung: ‘sou ateu, graças a Deus’. Não conhecia o chiste.
O que não gostava é que ficasse dúvida sobre a intenção do
nosso Criador. Quando falávamos sobre isso, acabava virando
a conversa para ocasiões em que esteve frente a frente com o
demônio, mas nunca recuou. Com a força dos seus braços finos
e o auxílio divino encarava qualquer desafio ou insubordinação
do adversário.
Dizia ter ouvido muitas vezes um estranho bater de asas,
onde não havia pássaros e aves, nem mesmo de pequeno porte.
Batidas fortes que às vezes acreditava fossem de anjos. Gostava de
adotar essa segunda hipótese. Relatava um que o tinha marcado
em especial, enfim, sonho que nunca esqueceu.
O local foi a nossa pequena casa da Vila Tanque. Mas, como
tudo que é relacionado a esse tipo mistério, fica sempre uma falha. Uma clara explicação final. Nunca se manifestou claramente
sobre o assunto. Embolava as palavras.
Ficou como aqui!
Bazar Monlevade
251
Capítulo 39
Confirma-se que, também no comportamento humano,
somente um pingo de café no leite, é realmente café com leite
A
bíblia nos ensina, em sua edição inglesa, que
Adam foi feito a partir de barro sadio retirado do
solo terrestre, composto de minérios de ferro, alumínio, carbonatos, etc. Mas não precisou ser levado ao forno. Tratava-se de criatura especial, não apropriada para ser vista como estátua, santo,
peça para efeito de decoração ou mesmo para contar histórias
mudas em museus.
Depois Adão recebeu o ar vital, após ser moldado pelas mãos
hábeis do criador. Um sopro. Contudo faltava algo. Aí, pode ser
que Deus tenha feito como Michelângelo que, encantado com a
famosa estátua de do rei Davi que tinha esculpido, disse: parla
anima, parla! (fala alma, fala!). Assim fica também recordado que
o que diferencia o homem na natureza é o dom da linguagem e
da fala.
Pronto. Então criados os animais, o criador disse ao homem
que criara: dê a eles os nomes que quiser, para que possam, de
verdade, vir a existir. Assim surgiu o burro, o cão, o gato, a andorinha…
Em seqüência discutível, estive escrevendo sobre o homem,
depois sobre os animais. Agora passo para a mulher... Mas o ovo
não pode vir antes da galinha, ou pode?...
De uma ou de outra forma, o coração do homem e da mulher
adulta nasceram brancos. O das crianças também. Livres do pecado. Com o tempo, conforme o menino que vos escreve gostava
de fazer em classe de educação religiosa, foi pintado com lápis
252
Jairo Martins de Souza
preto forte. A culpa foi do primeiro homem que comeu o fruto
proibido, o sujeito quis ser como Deus. Mas, vimos mais tarde,
a maçã era na verdade uma metáfora que o profeta fez com o
conhecimento. Mais uma!
Na tal classe, também foi-nos relatado algo. Diziam-nos que,
caso fosse dado aceite oficial ao sacrifício que Jesus Cristo fez no
dia escuro do Gólgota, os corações das crianças seriam lavados a
sangue arterial do filho de Deus. Voltariam a ser brancos!
Crianças! A seqüência das cores dos vossos coraçõezinhos
fica assim confirmada: eram brancos, ficaram pretos e, agora, deverão permanecer com forte tom avermelhado.
Não de lápis de cor. De sangue. Sangue que, por ser especial,
nos limpava de todo o pecado. Explicavam mais. Explicavam que
o nosso Deus reviveu no nascimento do filho e que todos os corações, inclusive dos adultos, podem de novo tornar-se brancos.
Com algumas restrições. A experiência revela que, a cada dia,
aparecem pintinhas pretas na vida de todas as crianças desses
escritos. Na dos adultos também!
Marcas, conforme já disse, compatíveis com o singular enigma do Mal que, para maior glória do Senhor, não pode ser totalmente apagado, pois, com isso, o bem, por efeito de contraste,
aparece com mais intensidade.
É o que confirmei certa noite em uma classe noturna. Estudava assunto que estendia suas pinças a áreas totalmente diversas
do nosso foco principal, no caso, a engenharia elétrica. Faz muitos
anos, e aparece aqui fora do assunto e do tempo do Bazar pela
grande valia do exemplo.
Passemos, como se diz no jargão jurídico que tanto meu jovem filho aprecia, ao relato. A aula que iremos assistir é de filosofia. A citação desse nome, em si, deveria colocar o leitor ciente do
clima e das condições da matéria ora sendo ministrada. Heráclito,
Parmênides, Platão, Sócrates, Aristóteles… Desse último, relembro que meus pais pronunciariam Aristote.
Em um dos lados mais estreitos da sala, um dos menores do
retângulo do qual se compunha a planta baixa do ambiente em
que estávamos, assomava a figura de um quadro negro que era
Bazar Monlevade
253
branco (entenda-se a língua e seus usos!). Enorme! Os alunos
centravam olhos e atenção para os movimentos calculados da
figura do mestre. Seu nome era Sérgio, um eclesiástico. O padre
Sérgio.
Vestido à moda secular e com a delicadeza que, a ele, era peculiar, caminhava como uma borboleta. Parecia a ponto de início
de vôo, tal era a leveza dos passos. Alguns colegas diziam fazendo
troça, moçada, se esse aí não for florzinha, minha avó é formiga
tanajura.
Com isso, o padre Sérgio fez um pequeno pingo preto na
branca lousa.
Perguntou: o que vêem vocês, meus caros e sinceros alunos,
na lousa dessa sala de aulas? Quase em uníssono, respondemos
(tal como gosta de fazer, mesmo que mais velho seja, quem se
assenta em carteira de estudante): mestre, é um pingo preto o
que vemos.
O representante da Igreja assentiu, já sabia a resposta muito
antes de perguntar. Trazia, pelas rugas mostradas no claro de sua
face, uma expressão desconsolada de quem sofre com as ingratidões do mundo.
Mas, prezados, retrucou, por que enxergar somente um minúsculo pingo preto? Não poderiam vocês, dizer: vemos sim, padre, vemos uma pequeníssima pinta preta, mas que não apaga,
muito antes ressalta todo o restante de um quadro imensamente
branco.
Só vemos as coisas que têm menos importância, complementou. Tinha alçado teatralmente os braços para o alto, suspirando
forte em sinal de desesperança. Oh, meu Deus! O que fazer com
tamanha falta de luz? Recuperado, seguiu com a sua aula.
A classe sempre o olhou com ouvidos de quem queria ouvilo. Era um pastor que se portava como se fosse responsável pelo
seu rebanho de almas, inclusive como se, no futuro, tivesse que
delas prestar contas. Fazia muito bem o seu papel, inclusive por
meio de análises psicológicas de protagonistas de peças teatrais,
principalmente quando se tratava da Maria Della Costa.
Disse certa vez essa história do pontinho preto para o nosso
254
Jairo Martins de Souza
pai. Gostou muito. Mas, comentou, ninguém escaparia mesmo
de ver sempre algumas pintinhas pretas. Por exemplo, pessoas
como ele, observadoras e detalhistas. No embalo mencionou algumas que andou vendo ao longo de sua vida, e das quais não
conseguia ver a supremacia dos brancos que a elas circundavam.
Parentes desatentos, negócios mal concluídos...
Por fim, nada é perfeito nesse mundo de Deus, mas meu pai
envelheceu em bom tempo. Já em idade avançada tinha paciência de ouvir-me, era uma de suas virtudes. Observava-me com
a boca que não aprumava ficar fechada, acredito por problemas
de oclusão de sua dentadura ou para buscar ar que julgava faltar
para a respiração. A esse respeito nunca nada, a ele, comentei.
Normalmente tinha o olhar curioso, projetava o rosto para frente,
procurando um melhor ângulo para os ouvidos.
Talvez por ter, como eu mesmo, uma incansável cigarra masculina em fase de metamorfose que canta em freqüência constante
no ouvido de pessoas como nós. Zumbido insuportável. Quando
aborrecido, e sem dormir direito há tempo, disse-lhe desse incômodo que não me deixava em paz. Respondeu-me sorrindo: ah,
ah, ah; Jairo, há décadas tenho comigo essa companheira que
canta e continuará cantando até o fim dos meus dias. A medicina
diz que isso é uma das vergonhas da classe dos médicos, pois
para ela não existe explicação. Finalmente um deles me disse,
após muitas idas e vindas: Senhor Jaime Raimundo, disso não
damos conta.
Agora sou eu que volto a falar, pai. O senhor trouxe-me, naquela ocasião, mais uma vez a vida serena que gosto de levar.
Mais um placebo. Dos muitos que me deu.
Minha cigarra silenciou!
Bazar Monlevade
255
Capítulo 40
Parte 1 - Onde se diz do sonho do cofre da Caixa comprado
em Rio Piracicaba. O estudo de uma carroça
N
o final dos anos 50 a loja do nosso pai ainda era o
popular Bazar Monlevade. Já no edifício de tijolos
ao qual estivemos juntos com o leitor e o padre durante festejos de inauguração. Um antigo cronista monlevadense recorda-se
bem, anos mais tarde o Bazar mudaria para Casa Jaime, agora
não estabelecido na Rua da Favela. Nome que foi fruto da popularidade do proprietário junto ao operariado monlevadense, e
também de arranjo com os filhos mais velhos. A sua razão social
passou a ser Jaime e Filhos Limitada.
Antecipo que o artigo que se segue não pertence ao tempo
do Bazar, mas deverá ser visto como se a ele pertencesse. Direito
de Sucessão às avessas, pois passou-se já em adiantado avanço
dos anos 60. Na ocasião, ciente da necessidade de melhor preservar os valores em dinheiro que entravam pelo caixa da empresa,
nosso pai dirigiu-se a Rio Piracicaba.
A finalidade era adquirir um cofre, para guarda de valor, colocado à venda pela Caixa Econômica Federal. Tinha cor verde em
tom carregado como em pé de mexerica nova e a oferta, presumo,
resumia-se ao público comercial de Rio Piracicaba e Monlevade.
A Caixa resolvera diminuir atividades no município que já
contabilizava cerca de 250 anos de existência. Um morador, que
ainda por lá permanece, recorda que o povo não fora consultado
e que as discussões na porta da igreja podem ter sido acaloradas.
As opiniões eram discordantes, deve-se ou não enviar um ofício
ao Exmo. Senhor Governador, ou, graças a Deus, não seremos
256
Jairo Martins de Souza
mais acorrentados pela Tabela Price, ou, como diz um terceiro
que gosta de praticar a agiotagem, melhor assim, temos sistema
que funciona bem entre nós mesmos. Com isso vende seu peixe,
e tenta amenizar as conseqüências da falta da casa de empréstimos.
O que de fato acontece é que a gente dessa cidade acredita mais, e, nos dias de hoje continua acreditando, em um outro
sistema não citado que nunca falha: um empresta para o outro,
o outro empresta para um segundo, que passa a emprestar para
um terceiro mais necessitado e assim a vida segue. A juro baixo,
pois se não é assim, amigos servem para quê? Aqui negociamos
no fio do bigode e estamos conversados. Finalmente, um deles
complementa, pode ter se recordado de um antigo chiste, dizendo, o banqueiro, senhores, é o único ser humano que não tem
coração.
Se faz bem às almas que me lêem, confesso que faz melhor
para mim recorrer às coisas do passado que continuam vivas e
saudáveis, por exemplo o jogo de cortesias comerciais que dissemos. Com isso, confirmando que Rousseau tinha razão. Se a
sociedade é boa, o homem é bom!
Não sei se o que escrevo abaixo aconteceu ou não. Se é agora devaneio ou fantasia. O que sei é que Freud publicou em 1905
que o sonho é a viagem régia para o inconsciente e que, ato psicanalítico ou não, o cofre ainda existe e prossegue em poder da
família. Um ex-guardião dos seus pertences e ainda simbolizando
o sonho de meu pai.
A ida a Piracicaba confirmava que a gerência do Bazar não
queria mais guardar seu rico dinheirinho debaixo de colchões.
Resumindo: batido o martelo e paga a mercadoria em dinheiro
vivo à vista do recebedor (era como nosso pai gostava de quitar
suas contas), passou-se à preparação da fase seguinte.
Um problema de logística. A pesar de não ter excesso lateral,
o peso do cofre era enorme e configurava um exemplar problema
de condução de mercadoria. Carga difícil!
O propósito inicial, por razões de custo, era cumprir o itinerário Rio Piracicaba-João Monlevade por meio de uma carroça.
Bazar Monlevade
257
A partir disso, a primeira que se apresentou, assim como o seu
burro, e o condutor, é estudada por meio de criteriosa análise
veicular. A começar por baixo, seu feixe de molas verga ainda
vazia. Balança para cá, balança para a esquerda e para a direita.
Meu pai, como ex-funcionário da Belgo, zelava pela extensão do
estamos há x dias sem acidentes…
Passemos ao burro, que faz as vezes de elemento motor. Tem
vantagens por ser dócil ao comando, e de ser abastecido em qualquer pasto vizinho. Quanto à manutenção não tem maior inconveniente, pois não tem platinado nem distribuidor. Com o lucro
de não quebrar biela e dispensa o uso de manivela e braço forte:
seu motor de arranque é o chicote e alguns gritos. Desses há de
sobra no mercado. Em qualquer armazém encontra-se o primeiro, e os carroceiros são muito conhecidos por serem desbocados.
Lembrar do próprio que conduzia o burro do Geo, vai, burro filho...
Mas dizíamos que nosso pai passaria a estudar o burro: suas
pernas, seus dentes, suas orelhas caídas… Está bem ferrado com
pregos firmes? Ao carroceiro, uma rápida aproximada dá para
checar se está com bafo de cachaça.
Volte-se lá para a carroça. Senhor carroceiro! Devemos confirmar suas rodas e seus cubos. As minhas? Não, senhor, as da
carroça! Que se verifiquem pontos de possíveis amarrações. Ato
contínuo, é setor que passa a ser analisado pelo nosso irmão mais
velho, especialista em transporte seguro.
Feito o estudo do conjunto de tração burro-carroça ainda
persistem dúvidas. Estão lembrados que na física do atrito e das
trações é indispensável a análise do sistema como um todo?
Será que apenas o atrito dos cascos com o piso consegue,
dentro das leis da dinâmica, o necessário coeficiente de atrito no
solo poeirento? Ou mesmo suportar os solavancos, sem quebras
de mola, ou joelhos, quando da passagem pelas costeletas da estrada que há tempos não é aplainada?
Por final, a pergunta chave, o motor burro consegue tracionar tal carga? Ou, sob o ponto de vista do piso da carroça, ela
suporta a pressão em quilos do cofre que repousariam sobre um
258
Jairo Martins de Souza
seu quadradinho de um centímetro de lado? Após esse diz que
diz, pairaram dúvidas nos ares. Ninguém podia afirmar dava ou
não dava...
Pelo sim, pelo não, o alerta vermelho foi aceso: os procedimentos antecipativos de segurança nos aconselharam. Não dá
para levar nem com essa carroça, nem com esse burro. Ah, tivesse pelo menos o porte do que trabalhava para o armazém do
Geo…
E se chamássemos uma puxada a dois... a quatro burros...?
Não. Nunca vi burros trabalhando juntos. Pelo menos os daqui da
região. Os cavalos sim. Mas somente em diligências, no cinema.
O comentário singelo de um circunstante que observava as
ações definiu tudo. Gente, esse cofre é pesado pra burro!
Bazar Monlevade
259
Capítulo 40
Parte 2 - Onde se continua dizendo do sonho do cofre da
Caixa comprado em Rio Piracicaba. A caminhonete
V
amos devolver o cofre para a Caixa, pai? Isso não.
Colocar em vagão da Vitória-a-Minas? Não. Melhor
chamar uma caminhonete. E que se aguarde a sua chegada. Se
não der, alugo um caminhão, mesmo que seja um fora de estrada
com um motor elétrico por roda. Não desistirei de modo algum!
Nenhum dos filhos nada diz, pois o pai continua pensando
alto.
Um pai pensando automaticamente significava atitude silenciosa da família. Não significa mais. No que fomos sábios, pois
segundos depois já ouvíamos o que ele arrematava, dizendo: uma
caminhonete parruda pode e deve ser a solução para esse problema que considero rotineiro.
Recapitulemos, pois o caso é longo. O propósito inicial, por
razões de custo, era cumprir o itinerário por meio do uso de uma
carroça. Após inspeção, conforme visto por quem fez o serviço, o
seu uso foi descartado. Agora temos um plano b.
Surge logo a primeira caminhonete resultado da diretriz paterna. Reparem todos, alguém diz com um sorriso, essa tem reforço central no estrado da carroceria. Um outro, mais baixinho,
alerta já agachado debaixo do veículo: daqui pode-se ver bem, o
feixe de molas é reformado, e o cardã parece ser novo.
De longe, outro ajudante acusa, vou dar uma verificada no
freio de mão e no de pedal. O motorista informa tranqüilo, está
animado pelo serviço, o volante está com alguma folga, mas dá
para quebrar o galho. O cabo do acelerador? Um pouco frouxo.
260
Jairo Martins de Souza
Sim, a embreagem está alta, gosto de trabalhar com ela assim, e
prossegue dizendo que a caixa é seca, mas a primeira marcha é
sincronizada e ambas as setas da boléia estão descendo a bandeirola… não consegue parar de falar…
Um outro circunstante diz: E os burrinhos? Recordo que neles
não deve ser encontrado vazamento. Freios a disco? Só em carros
importados. De luxe.
Tudo certo, diz um sujeito mais precipitado. Só não se consulta o manual do veículo que, segundo o carreteiro estava no portaluvas. Não está. O homem lembra que anda sumido. Com isso,
voltemos ao veículo, reforçando que não tivemos a aprovação do
fabricante e, das cargas, as suas recomendações.
O que não impediu ao proprietário dizer, levo essa carga pesada onde Deus quiser. Com essas palavras, confirma o ato de fé
que repousa escrito nos pára-choques do seu veículo Diante de
tão forte argumento, todos acenam dizendo: Ok, senhor motorista. Fica aprovado o veículo, o chauffeur, e suas crenças. Negócio
fechado.
Tudo na vida deve ser feito de forma planejada, passemos
para a segunda atividade chefe do cronograma. A missão agora
é colocar o reforçado cofre na carroceria da caminhonete. Para
tanto devem ser mobilizados outros recursos. Que se juntem muitos homens fortes, por exemplo, dos tipos de carregadores que
transportam três sacos de cimento de uma só vez.
Ou que se arregimentem alguns bons samaritanos, naqueles
dias todo mundo ajudava todo mundo nesses rápidos afazeres.
Peço ao leitor mais veterano lembrar que, antes dos avanços da
eletrônica, qualquer cidadão empurrava automóvel que ficava
parado no meio da rua. Não importa que fosse por desleixo ou
falta de manutenção. De um modo geral era carburador sujo, ou
problema no distribuidor. Mas, última forma, não se trata de empurrar automóvel. O caso é de carga pesada. Coisa para carregador profissional, coisa para chapas…
Como esperado estavam lá a postos, na Praça do Bar Primavera. Coçavam saco... Ah, ainda bem que não existem mais
chatos... Mesmo assim, meus filhos, quando em coletivos, reco-
Bazar Monlevade
261
mendo aguardar o resfriamento dos bancos para assentar em lugar deixado livre por algum homem que dele sai.
Enquanto isso nosso pai toma atitude, ofertando recompensa
pecuniária e que, pela rapidez com que assentiram os chapas,
foi compatível com o esforço a ser feito. Resta carregar. Mãos à
obra!
Vamos colocá-lo deitado e com a barriga para cima. Pega
você aqui, pega você lá. Ei! Não você, o outro ali. Faz-se necessário mais dois cabras fortes desse lado e mais dois postados
em cada beirada. Amarre esse estropo aí, rapaz! Afaste-se daí,
menino! Vamos subir com o cofre deitado; ufa, ufa, gente, força,
força...
O que falta aqui é um bom de pé-de-cabra, diz um peão mais
esperto, dê-me uma alavanca e moverei o mundo é o que complementa sorrindo. Um de nós, que simplesmente observa, diz
ter ouvido isso na aula de ciências. Um outro arremata que foi
Arquimedes quem disse.
Mais força, você que está aí enganando, força, força... O
peso está quase de um só lado: fulano, ponha mais braço de sua
parte; diz vermelho, e contrariado, um dos que mais força faz.
Vamos contar juntos 1, 2, 3… 1, 2, 3... Ufa, pronto, mesmo que
um tanto quanto fora de esquadro, lá estava o João Bafodeonça
em cima da caminhonete.
Sempre apreciei o trabalho bem feito e coordenado. Situado
a poucos metros do desenrolar das ações estava pensando solidário com os chapas que trabalhavam, não iríamos agüentar o exagerado peso. Há coisas na vida que não se somam, por exemplo,
sabem os senhores engenheiros, o vácuo feito com uma bomba
não se soma ao de outra.
Conosco não é bem assim. Seres humanos, como aqueles
que vimos trabalhar há instantes, mesmo que com forças desiguais, se feitas e aplicadas com amor, esforço e único objetivo;
enfim, a união faz a força. Senão vejamos, graças a Deus, e aos
fortes muques daqueles chapas, por final o pesado bloco oco de
metal podia ser visto a alguns centímetros acima do chão. Quase
um metro.
262
Jairo Martins de Souza
O homem é uma eterna criança. Tese que reforço aqui, lembrando da brincadeira de quem levanta mais peso, e que faz parte de uma competição que se tornou esporte olímpico. A glória
de um halterofilista é dar um grito e fazer trabalho sem serventia. Deslocamento nulo. Inútil. Como diz a física, deslocando por
meio de uma força um objeto pesado a uma distância determinada, retornando-o imediatamente para o mesmo lugar. Competir
por competir. Ou, voltando mais nos tempos, o que incentivava
Nero, vendo a medição de força entre gladiadores e leões, por
fim, abaixando o polegar no Coliseu romano.
Ou como aqueles chapas que estavam agora ali sentados no
meio-fio, ou em caixas de madeira, e que discutem alegremente
quem carregou mais, quem menos carregou, ou quem carrega
mais sacos de cimento de uma só ombrada.
Não éramos diferentes, indagávamos, quem carregará mais,
por vez, na próxima chegada de sacos de ração das leghorne, ao
sítio de nossos pais?
Mas gente, que barulho estranho é esse? Algo está soando de
modo estranho e, reparem senhores, estamos ainda distantes do
ano 2000. Ai, Jesus, ainda não é hora de haver choro e ranger
de dentes...
Não por acaso estávamos muito aliviados e contentes com
sensação de dever cumprido, pois o cofre, víamos, estava em
cima da caminhonete. Os segundos não precisam passar para que
o ruído, que agora é contínuo, fique mais intenso. Parece-me surgir do oscilar do madeirame que, já empenado, passa a rachar...
Allez vous (corram todos!), o bandido está afundando no piso da
carroceria. Para bom entendedor, meia palavra basta...
Depois do vendaval, vem a bonança: é o que dissemos, minutos depois, já parodiando um velho chiste do Bocage. Um gajo
estava na delegacia prestando depoimento: meu amigo, onde estavas quando ouviste o primeiro sinal de rangido na carroceria? A
um metro. E o segundo? A dois quilômetros, doutor.
Bazar Monlevade
263
Capítulo 41
Uma breve reflexão ainda sobre o cofre da Caixa. Uma
loja da Rua Caetés. Corta um metro e vinte para o rapaz!
F
alha-me o dia, o mês foi dezembro. O ano, talvez
1959. Fiquei orgulhoso ao ver uma folhinha do
Bazar pendurada na salinha de visitas de uma família humilde.
Mesmo que ultrapassada e encardida. Hoje, em minha mente,
vejo-a cintilante com letras douradas marcando os dias festivos
e feriados. Em papel couché! Foi em visita rápida do meu pai
a um cliente. Nela não aparecia foto de miss trajada com maiô,
essas ficavam reservadas para as de propagandas de pneus, para
exposição em borracharias de postos de gasolina. Nesse mesmo
ano creio ter ocorrido a história do cofre que disse parecer ter sido
um sonho!
Mas para a pessoa, e o leitor, que comigo crê, tudo leva a
crer que realmente foi aproximadamente do jeito que sonhei. Pois
na realidade o cofre foi conduzido a bom termo até a matriz do
Bazar. Hoje faz parte dos seus despojos, tendo sido entregue na
porta e com direito a esforços redobrados para sua descarga. A
força dos funcionários fez o trabalho. Por fim, prossigamos orando
para que todo sonho seja formatado assim, que respeite o seu
mérito, que é o de nos proteger dos fantasmas do cotidiano.
E que nele, se sentimos algum perigo físico, o cérebro nos
acorde para nos defender contra qualquer iniqüidade. Lembra-se
de Descartes? Posso dizer que o res cogitans defenda a si mesmo
por meio do despertar do seu complemento, o res extensa?
O sonho do cofre nos trouxe mais se visto sob os olhos do
engenheiro. Boa lição. Não de fundo moral, mas científica. A na-
264
Jairo Martins de Souza
tureza é indiferente a tudo que é humano, basta que se observe o
que vem acontecendo ao longo dos séculos. Ou em fato recente
como esse nosso do cofre. Fosse um pouco maior a força da gravidade exercida sobre a sua massa os chapas não teriam conseguido levantá-lo.
Não há choro que baste, nem vela que seja suficiente. A mesma gravidade que andou fazendo das suas na nossa historinha
nos faz envelhecer e ficar murchos.
O que mais uma vez prova que a vida é uma seqüência organizada de causas e efeitos. Até mesmo no comércio. O que se
deve, deve-se quitar. A causa é a dívida contraída pela aquisição
de algo; o efeito, o pagamento a ser realizado. O Bazar Monlevade
efetuava antecipadamente os pagamentos de suas notas promissárias e faturas a pagar, com a seriedade e o compromisso que
nosso pai assumia viver.
Como também a cobrar com polidez e educação. Algumas
vezes Jaime Raimundo quebrou essa última lição que ensinou.
Andou querendo resgatar ‘papagaio’ antigo. Esquecera o que Vargas ensinara a seu ministro da Fazenda: dívidas velhas não se
pagam. E as novas, Getúlio? Ora, disse o antigo ditador, deixe
que envelheçam...
O que não envelhecem são as lembranças. São imateriais.
Não faz muito tempo vi, em um livro, uma fotografia antiga em
preto e branco, montada por um brasileiro do século retrasado. Era ainda dos tempos do império e trouxe-me, na ocasião,
impressão marcante que aqui explico. Deus sabe lá como essas
coisas sucedem! Para tanto inicio dizendo que se tratava de um
grupo de homens vestidos iguais… Mas, ao mesmo tempo, tendo
modos diferentes. Interessante. Enigmático.
O ambiente pareceu-me totalmente fechado dando a idéia de
uma sala de reuniões para prática de música intimista. Todos os
rostos, em número de trinta bem contados, eram iguais e lembraram-me caricaturas do nosso pai: trinta Jaime Raimundo. No pé
da folha o nome da obra dizia ser: os trinta Valérios. Produção de
um criativo fotógrafo chamado Valério Vieira.
Imaginei também que os componentes da foto éramos nós,
Bazar Monlevade
265
filhos do nosso pai. Mesmo rosto, mesmo jeitão, tudo farinha do
mesmo saco. Imaginei-os engenheiros, psicólogos, professores,
estudantes e comerciantes; todos dignificados pelo pai que tiveram. Fotografia premiada com medalha de prata em competição
internacional. Foi em Saint Louis e corria o ano de 1904. Ao seu
lado, uma outra de mesma feitura, mostraria todas as mulheres da
família concentradas em outras trinta poses de nossa mãe. Seria
ouro!
Por fim basta de encher lingüiça, faltou escrever que o nome
do nosso pai, a identidade da família, foi conquistado com muito
trabalho. Uma palavra mágica. A nossa griffe. O nosso Abracadabra. O mesmo das Mil e Uma Noites, a abreviatura hebraica para
Ab, Bem, Ruach Acdsch. Com ela, abria-se o misterioso mundo
árabe de Ali Babá. Mas demorei a saber que Sherazade nos enganava, como também ao sultão, para continuar a viver.
Aliás, não somente ela como também O Homem que Calculava. Quem podia imaginar que Malba Tahan era um professor de
ginásio brasileirinho da Silva? Um ilusionista! Ai, não conseguia
entender suas divisões para irmãos que herdavam um terço de
cáfila de camelos.
Com o que chego a um fato prático suficiente para demonstrar a força de um nome, por fim, que talvez respondesse à dúvida
de Romeu. Relembro que disse ser o nome do nosso pai bastante
respeitado, adianto mais, adianto que, já adolescente, em seguidas oportunidades servia para solução de assuntos e gestões comerciais muito mais complexas do que as do rapaz Ali, e os seus
sofrimentos com os quarenta ladrões. Uma delas…
Foi em uma renomada loja de tecidos e armarinho localizada
na Rua dos Caetés, tradicional reduto do comércio sírio-libanês
de Belo Horizonte. Que era, estão lembrados, chamado de Cidade Jardim.
Fixada na parede, o freguês via em posição de destaque a
tradicional placa: ‘fiado só amanhã’. O pai, fundador do estabelecimento, dissera-lhes, o olho do fazendeiro é que engorda o gado.
Da porta do estabelecimento, os proprietários, senhores Chia e
Chaim, não arredavam pé.
266
Jairo Martins de Souza
Com modo tímido indaguei a um deles falando baixinho: Seu
Chia, queria comprar um corte de tergal para fazer uma calça.
É para formatura ou para “casamenta”? Casamento. E é para
você mesmo, meu filho? Sim. E você é filho de quem? Do Jaime,
de João Monlevade. Balconista! Corta um metro e vinte para o
rapaz!
Quanto orgulho! Nem precisei fazer nada por escrito. Eu Jairo
M, filho legítimo de Jaime R… acuso o recebimento das mercadorias abaixo discriminadas, a serem pagas por meu pai, proprietário
do Bazar Monlevade, na data exata e combinada do vencimento,
que segue registrado nessa nota fiscal de venda número oxyz,
qual seja referente a um metro e vinte de tecido tergal de cor azul
com risca de giz, medida correta, e padrão, para confecção de
calça social adequada para uso de rapaz em festa de casamento
ou formatura, com boca estreita de 20 cm, e que deverá ser feita
por um velho alfaiate de cor chamado Basílio...
Gostava do nome, Basílio, talvez por lembrar o romance de
Eça, O Primo Basílio. Já aqui anoto que o alfaiate Basílio apreciava cantar antigas canções... Você sabe o que é ter um amor, meu
senhor… Porteiro, suba e diga àquela…
O leitor deve ter percebido que, se não paro aí, insistiria em
escrever sobre fatos que dizem respeito à vida de terceiros. Sim.
É um fantasma. Não posso chegar a dizer que seja uma maldição
da qual falando, procuro afastar. Estratégia, por ora perdedora.
Deveria, supõe-se, dedicar-me mais diretamente ao assunto Bazar. Penso fundo sobre o assunto o quanto posso, e insistindo na
sabedoria do grego antigo.
E assim devo seguir pensando sobre os gregos, suas histórias,
e suas idéias e, mais ainda, o de escrever textos não autorizados.
Rogo que aconteça, comigo, o que ocorreu com Pandora, e recordo que sua caixa foi aberta sem cuidado por um tolo, que acabou
liberando muito mal e coisas ruins. Restou-lhe um consolo… No
fundo, ficou retida a palavra esperança.
Nela reside toda a nossa insistência!
Bazar Monlevade
267
Capítulo 42
Parte A - Onde se afirma que os boiadeiros também viviam
do comércio
A
lguns dizem que o tempo é o senhor das respostas
definitivas. Provavelmente esta frase chegou até
nós extremamente modificada, a partir de pensamento criado pelos antigos gregos, dos quais gosto, e que, por sua vez, formaramna por meio de idéia passada por algum Deus do Monte Olimpo.
Concluo que deve ter chegado resumida, como de fato chegou,
ao escritório da Casa Civil da Presidência da República do Brasil. De onde a copiei e transcrevi para as páginas desses nossos
escritos.
O homem auto-suficiente diz ser também senhor de todas
as respostas. Com um defeito. Aprende machucando as próprias
canelas, diz não precisar do conselho dos mais velhos. O jovem,
normalmente, é assim. Faça sol, faça chuva, faz questão de usar a
sua própria experiência, sua sina é aprender a nadar em rio caudaloso. Não faz como o sábio que procura conhecer a verdade,
observando as experiências de terceiros. A posição do sábio é a
que faz bem ao homem, tanto é assim que busca sempre também
o conselho dos jovens, procura reaprender com eles o que já esqueceu. Regra de ouro.
A ser usada com critério seletivo. Tudo tem a sua medida
certa. Não se aprende nada na vitória total. Lembre-se aqui a do
rei Midas que, para encurtar a história, virou maldição. Tudo que
o homem tocava tornava-se ouro, inclusive seus alimentos. Não
sei se morreu de fome, só fiquei sabendo que morreu com orelhas
de burro.
268
Jairo Martins de Souza
Com essas não gosto de ter contato, mas lembro a mim mesmo que o povo grego foi celeiro de filósofos, os quais dedicavam
grande parte do seu tempo à busca de explicações a respeito do
próprio tempo. Recordemos que dentro da nossa própria casa,
tínhamos, por meio do nosso pai, grande ansiedade a respeito
do tema.
Não compactuo totalmente que o tempo seja absolutamente
o senhor das respostas. O danado pode corromper tudo, inclusive
a verdade de quem é, de fato, o senhor. A qual, normalmente corrompida, como é o caso de quem vos escreve, torna-se realidade
prática para registro de memórias.
Há exceções. As que podem ser traduzidas em um singelo
dizer que realmente as verdades verdadeiras não são esquecidas.
Principalmente quando, e se, somos crianças.
Não esquecendo que sou uma delas, às vezes as lembranças
de um filme ou seriado são tão fracas que nem nos lembramos se
o artista morreu ou não no final.
Pergunto: é o tempo que corrompeu o resultado, ou é a cabeça mole de quem, sendo criança, as esqueceu? Normalmente,
cabeça mole!
Mas há algumas vantagens em ser esquecido. Não disse Nietzsche que la ventaja de la mala memoria es que se desfruta varias
veces de las mismas cosas por la primera vez?
A despeito de qualquer controvérsia posterior suscitada pelo
assunto, passo a relatar que, no princípio das películas de Tarzan,
observava encantado os jacarés que deslizavam nas águas barrentas de um rio. Tarzan era o rei dos macacos. Não é mais.
Voltemos às cenas iniciais. Estranha-nos ver também onça
pintada própria das matas nacionais que, segundo diziam, era
pródiga nas áreas verdes que circundavam João Monlevade.
Onde, que não se surpreenda quem esses tempos não viveu, homens vestidos mais ou menos a rigor, trajando uniformes de caça,
compravam munição no Bazar Monlevade.
As preferidas eram para espingarda cartucheira e de carregar
pela boca. Para a primeira, alguns chegavam até mesmo a fabricar
seus próprios cartuchos, o que significava grande perigo à vista.
Bazar Monlevade
269
Os que compravam no Bazar, faziam-no por meio de pagamento
em dinheiro, prenúncio de que eram metalúrgicos da companhia
siderúrgica Belgo Mineira. A Belgo, dizia-se, pagava muito bem.
Sim. Os metalúrgicos mineiros faziam e pagavam suas compras à vista, ou no caderno, de forma altamente confiável. Mas o
que aqui interessa estava a milhares de quilômetros fora de nossa
cidade, no interior de certo país, em certa floresta, no cimo de
certa árvore, onde via o homem macaco que dissemos e que,
senão vejamos, está lançando aos ares o seu conhecido grito de
provocação à platéia recheada de crianças do Cine Rosário. Criatura criada por Edgar Rice Burroughs. Nome difícil de ler. Mais
difíceis ainda eram suas contendas, os bichos com os quais lutava
não eram nem de silicone nem plástico, ou simplesmente gerados
por software de computador.
Mas pode ser que todos os animais envolvidos nas filmagens
fossem treinados em circos ou zoológicos. Pode ser. O fato é que
víamos, na tela, o Tarzan Lex Baxter lutar com jacarés imensos
dentro do seu próprio habitat, o continente africano.
Antecipamos que, no final da fita, qualquer risco já deverá
estar eliminado. Nada nos impede de abandonar Tarzan à sua
própria sorte, enfim, na companhia de sua Jane, que é com quem
ficará automaticamente no cerrar das cortinas. Assim não faz mal
que se altere o rumo desses escritos que, além de exaltar nossos
pais, pretendem ser também anotações de nomes de outros nossos heróis de tempos passados.
Para tanto façamos chamada de presença. Lembro que o
vulto do Bazar Monlevade, e dos seus colaboradores, deverá
continuar nos espreitando. Sendo assim é aconselhável começar pelo cowboy Hopalong Cassidy, pois foi também um grande
vendedor de botas para boiadeiros (sobre ele, nosso pai, como
comerciante respeitador dos seus confrades, diria, esse sim, é um
artista completo).
Ainda nos homens do comércio, prossigamos com Roy Rogers (de quem a esposa, Dale, era sócia no comércio de coldres,
revólveres... Brinquedos de Natal do Bazar), Rocky Lane, Gene
Autry. Além deles, Cisco, Mix, Cooper, Randolph... Os últimos,
270
Jairo Martins de Souza
caso fossem caixeiros, seriam obviamente escalados para trabalhar na seção de vendas de chapéus Ramenzoni do Bazar.
Como modelos viriam a calhar para os nossos negócios.
Bazar Monlevade
271
Capítulo 42
Parte B - Mais negociantes do ramo do faroeste. Um duelo
ao pôr do Sol
N
ada. Nada se eterniza. Não é sem razão que alguns
gregos antigos insistiam, em suas escolas, que a
vida é movimento. Com o movimento viria o desgaste, com o
desgaste viria a morte. Com a morte… Ótimo, aí a vida seguia,
conforme explicado por outros homens muitos séculos depois.
Diziam, voltamos aos antigos gregos, que o mundo tem regras
simples para seguir seus caminhos. Criaram até mesmo uma receita geral. A teoria das quatro causas… Muito interessante. Com
elas explicavam o porquê de um homem crer em um Deus vivo,
ou um marceneiro ser levado a fazer uma mesa e cadeiras, assim
como meu pai evoluir da capina para o comércio.
Tudo isso a despeito de que a maior parte dos seus homens,
a exemplo de Parmênides, dissessem que, na verdade, tudo é
parado. Caminhada sem objetivo. A busca do infinito que desanimou o homem. O vazio. O espaço. O tempo. A Terra é parada.
O mundo é parado. O mundo termina ali, num grande precipício,
logo após o horizonte que limita a barreira das águas do Mar de
Nova Almeida. O movimento é uma ilusão dos nossos próprios
sentidos.
Tal como imagens de poças de água no asfalto em dias de sol
quente. Entenderam?
Aqueles homens não eram conduzidos pela realidade criada
pela Arte. Viviam a partir do que viam próximo. A fantasia deles
era a própria realidade…
Com o que chegamos finalmente ao nosso lar belorizontino
272
Jairo Martins de Souza
da Rua Jacuí. Quanta diferença! A nossa fantasia morava no som
de um rádio, ou nas imagens esmaecidas do cine Rosário e da
televisão Itacolomi. O mundo de matrix!
O Brasil não precisava de heróis, aqui era tudo tranqüilo. Afora o Vigilante Rodoviário que se aventurava a capturar assaltantes
inocentes, nada parecia perturbar a ordem local. Nada de guerra
mundial, nada de flechadas e lutas de terras com índios bravios,
nada de grandes assaltos a trens pagadores e diligências da Fargo.
Nada de nada. Somente algum ladrão de galinha.
Compare-se com aqueles antigos gregos. Nossa fantasia, nossa tevê, o Rosário, nossos artistas, tudo fazia parte da intimidade
da casa. Entravam em nossas vidas como se fossem amigos e
confidentes. Algumas vezes até mesmo familiares.
Audry. Buck. Búfalo. Casey. Errol. Gunn. Grant. Kildare. Lucky. Masterson. Maverick. Ness. Shannon. Vic. Yuma...
Alguns eram simplesmente cowboys: em português, boiadeiro. No ramo da venda de carne. Alguém pode dizer que o nome
boiadeiro destoa um pouco da moda da época. Estamos combinados. Fica melhor manter cowboy: filme de cowboy. Em números absolutos a maioria deles ambicionava ser xerife, Marshall, ou
delegado. Ou simplesmente ajudante, cargo para rapazes inexperientes com a estrelinha que todos ambicionávamos. Quero ser
xerife. Quero também. Par. Ímpar.
A Camisa do Paladino do Oeste era negra. No entanto usava violência moderada. Contida. Nunca o vi ficar roxo de raiva,
nada de tolerância zero tão aplicada nesse início de século vinte
e um. A estritamente necessária para corrigir os pistoleiros, jogadores profissionais e assaltantes de cavalos... Fica destacado aqui
porque também provava ser muito bom para anunciar, e vender
conjuntos de coldres e cinturões com a marca have gun will travel
(outro grande negociante...).
Mas dizíamos de cavalos... Os dos carroceiros belorizontinos,
após breve utilização por meninos como nós, eram devolvidos de
onde vieram puxados a cabresto. Já os dos filmes de vaqueiros, a
toda entrada de cidade, eram levados ao ferreiro. Repare o leitor,
era a primeira providência, ao mesmo tempo em que a tina de
Bazar Monlevade
273
água era colocada na frente do animal.
Ei, young man, please check the horseshoes of this boy of
mine! (Rapaz! Dê uma olhada nas ferraduras do meu amigo!).
Depois disso, trate-o com carinho, dê-lhe feno, e mais água, o
quanto deseje. Sim, faça tudo que for necessário para a ele dar
um bom repasto e descanso. Enquanto trabalhas, irei tomar um
trago para matar a sede that kills me (que me mata) no salloon de
mademoiselle Dollie.
Mais tarde, ao pôr do Sol, há um encontro marcado. Há aqui
algo do mineiro Fernando Sabino. Obra maravilhosa. Marco da
literatura nacional quando amigos antigos devem se reencontrar.
Já, para nós, o por do Sol era o prenúncio do final dos folguedos
diários que começava, estivéssemos na capital, com o Sol iluminando bem cedo o céu do bairro da Sagrada Família.
De lá surgia cheio de enfeites, como um imperador Inca, e
reinava no céu durante todo o horário comercial. No fim da tarde,
morria depois das cruzes do cemitério do Bonfim. E por lá ficava
sossegado, enterrado por doze horas aproximadas. Depois disso
voltava de novo, ressuscitado na mesma Sagrada Família... Depois morria de novo... Segundo os entendidos, esse ciclo deverá
prosseguir por aproximados 5 bilhões de anos.
Para outros, o por do Sol trazia e continua trazendo a morte. Estão recordados do que disse sobre o um corpo que cai no
capítulo em que meu pai e meu tio Ninico conversavam durante
andamento de um serviço corriqueiro de capina?
Quando Jeff Chandler puxava o cão e acionava o gatilho da
sua arma justiceira, o contato da picada junto à pólvora gerava a
expansão dos gases que levava consigo em velocíssima expulsão
as imaginárias partículas de chumbo da bala de festim. Minúsculas. Levavam em cada fragmento a palavra justiça. Bíblica. Olho
por olho, dente por dente.
Na garagem da nossa casa na Rua do Contorno a densa fumaça que parecia mascarar toda a cena aos poucos desaparece,
desvelando o segredo de toda essa grande encenação. Sim, caro
leitor, o Jeff Chandler daquele duelo era, na verdade quem vos
escreve, um ordinário Cusecco.
274
Jairo Martins de Souza
Do lado contrário jazia em espasmos de ai, ai, o menino perdedor do par ou ímpar. Caso fosse eu mesmo, e antes de deixar
cair a cabeça para o lado, diria: diga... a O... lí... via e.. às cri....
anças que e... rrei to... da a... minha vida e me arre... pendo. O..
O... mapa da mina de ou... ro perd... ida... Diga... a el... a que
a a... mo...
Bazar Monlevade
275
Capítulo 42
Parte C - Qual menino não gostaria de ser um boiadeiro?
N
ão há necessidade de enfatizar alguns conselhos que já são por demais conhecidos. Um deles que prudência e caldo de galinha não fazem mal a ninguém.
Mas, por cautela extraordinária, reforço para mim mesmo que
não se deve resumir emoções infantis em uma ou outra palavra.
Qualquer que seja a escolhida acabará sendo incompleta. Mesmo
assim ela é a soberana do mundo dos homens, vários intelectuais
e estudiosos assim a elegeram, e a colocaram na coroa de reis, no
cimo de torres e monumentos de praças sagradas.
Pessoalmente, vou prosseguir tentando dignificá-la com a verdade, que segundo a bíblia é o que nos liberta. Então declaro que
me considerava fisicamente fraco para exercer no futuro a profissão de vaqueiro. Mas não custava nada sonhar. Não foi Shakeaspeare quem disse que o menino-homem é da mesma matéria que
o sonho? (Men are such stuff as dreams are made on…).
Dado tal tom ilusório de intelectualidade ao texto que escrevo,
acidentalmente verifico no meu Lanco, presente da quarta série,
que passa da hora do Repórter Esso. No vídeo, o austero Heron
Domingues consulta um espelhinho, verificando se a brilhantina
estava bem assentada. Lembro-me bem quando anunciou a renúncia de Nixon à presidência dos Estados Unidos da América.
Dias antes explodira o famoso escândalo do hotel Watergate.
Correto. Mas estamos na Rua Jacuí, Bairro Floresta, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Heron já se despedia do seu telespectador, boa noite...
Aqui o tempo como sempre passa rápido. Já na cama, e
276
Jairo Martins de Souza
pensando nos mal feitos prometidos para o dia seguinte, de longe ouvia o início do noticiário da Real Aerovias Nacionais. Nele,
Dênio Moreira, futuro porta-voz da revolução de 31 de Março,
diria boa noite para um homem solitário assentado numa poltrona de plástico. Seu nome era Jaime Raimundo. Derradeira
atração.
A televisão abria os olhos do homem para o mundo, naquela pequena saleta nosso pai assistia ao nascimento de um novo
mundo, e de um novo homem. O homem da tecnologia. Senão
recordemos: uma cachorra soviética que vai ao espaço sideral, a
descoberta do transistor, uma ilha do Caribe que se rebela, um
presidente que aqui renuncia em cadeia nacional……
Um mundo bom para o Bazar. E para nós, seus dependentes.
Por exemplo, o de morar em uma casa tal como a que morava a
família Anderson. Dois pisos: um sobrado! Robert Young, Jaime
Raimundo; Elizabeth, Alice Martins; Kathy… Buddy… E as ruas...
Verdadeiros boulevards. Algumas parecidas com a Avenida do
Aeroporto em Monlevade.
O mundo evoluía, mas foi adulto que entendi o enigma do
Lone Ranger, o Zorro americano Clayton Moore. O de jamais retirar a sua máscara, o porquê de nunca mostrar o rosto. Explicado
pelo próprio como se estivesse defendendo um discurso proferido
com a lógica de homem grego.
O homem teme ao delegado escondido por trás da minha
máscara. O bandido é um homem. O bandido teme ao delegado
que sou eu…
Se tirar a máscara, os ladrões de cavalos se acostumam
com o meu rosto. Deixam de temer ao desconhecido que sou
eu... Ademais, a que tenho foi feita com pedaço da camisa que
o meu querido irmão tinha usado no combate em que morreu.
Nesse mesmo dia Tonto salvou-me a vida. Foi onde conheci esse
amigo índio que vocês vêem comigo cavalgando. Desde então
lutamos juntos contra a falta de ética e honestidade que assolam
a América.
Exato. Tonto era o seu parceiro, Lothar não saía do lado do
Fantasma... Onde estão as mulheres em todas essas histórias?
Bazar Monlevade
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Em casa! No mundo dos cowboys uma incansável montaria valia
mais que qualquer Mary Ann, Jane, Kathy, Martha, Suzan…
Ainda assim, qual menino dos anos 50 não gostaria de ser
um boiadeiro?
Bazar Monlevade
279
Capítulo 43
Onde prosseguimos dizendo principalmente sobre os boiadeiros, mas lembra-se outras fascinações dos anos 50
O
s boiadeiros (lembro a mim mesmo o acordo fechado
de chamá-los cowboys, ou vaqueiros) faziam o estilo lonely man (que gosta de ficar só). Vagavam pelas pradarias
onde, destemidos, caçavam búfalos e, zelando pelo gado, matavam cascavéis. A ele, e a nós, bastava a companhia da natureza
selvagem e das belas planícies.
À noite usufruía o peso e a beleza da criação, agora intensificada pela força dos astros noturnos. Fumando, fazia círculos
concêntricos com a mesma arte do religioso que acompanhamos
do Tieté até o Bazar em capítulo passado. Coitado! Não tem consciência de a quantas andará, no futuro, a saúde dos vaqueiros
que faziam propaganda dos Marlboro, Winston e Camel.
Mas dizíamos que era noite, hora em que o vaqueiro sozinho
tocava educadamente o seu instrumento. Canta bem e sem temores. Sem preocupação de ter ao lado, como dizia o poeta, uma
mulher que pudesse levar o seu violão e a sua gaita. Ao longe,
no primeiro nascer dos raios solares, assobiava contente e ouvia
muuuu... Era o gado que zelava, e que mugia sossegado enquanto bebia das águas límpidas de um regato raso. O leitor logicamente deduziu que o vaqueiro estivera descansando das muitas
milhas caminhadas sob pó e calor intensos. Fosse dos velhos,
acima dos trinta anos, mijaria fino e doer-lhe-ia muito a próstata
após tal esforço de rotina. Já seu cavalo, incansável soldado, via
sempre de pé. Estranho que não se deitem nunca…
De férias, nesses mesmos horários, em Rio Piracicaba, tam-
280
Jairo Martins de Souza
bém descansávamos escutando satisfeitos o canto das seriemas
que apareciam pelas manhãs no pasto vizinho ao nosso sítio.
E assim sucediam-se os dias, tanto para nós, quanto para ele.
Não demora o artista deverá estar dormindo sossegado. Acima
dele somente o céu coalhado de estrelas e mais nada. Nada de
poluição e efeito estufa.
Observem os senhores, dorme sem retirar as botas dos pés. O
direito tem o mesmo molde do pé esquerdo. O militar desconhece
diferenças. Lembro-me bem, por isso valorizo o seu sofrimento,
as botinas do Doze também doíam-me os pés. Poderiam ter sido
fabricadas pelo nosso tio Ninico.
A bonança sempre sucede à tempestade, na vida tudo tem
compensações, mesmo que isso seja por meio de sonhos, senão
vejamos, o cavaleiro que também é dono de um rancho distante
deverá prosseguir recordando, a si mesmo, da linda esposa que
ficou para trás. Por seguro, e ao longo de toda a viagem que fez,
e está fazendo, relembra que a mulher ficou cuidando dos filhos
que perguntam, mamãe! Mamãe! Quando papai vai voltar?
Da mesma forma como nossa mãe dizia para seus filhos,
quando questionada sobre as viagens de Jaime Raimundo, a mulher respondia. Logo, filho... Logo... É o que diz, enquanto deslizando suavemente se desloca para um canto qualquer… Zelosa,
esconde as lágrimas que reconhece como de saudade acordada
pela pergunta inocente do filho que do pai sente falta.
Ama a casa de troncos e paus roliços que o seu homem construiu. Madeira de lei. O martelo, o serrote, os cravos, os pregos
e os calos foram, do marido querido, os únicos e exclusivos ajudantes; enfim, a contar somente com os seus próprios seiscentos
e cinqüenta músculos. Inclusive os do ouvido que tem o tamanho
de uma pulga pequena. Forte como um urso empurrou pedras de
cortes irregulares de mais de cem quilos para fazer o baldrame da
casa dos seus amados.
Imagino que tenha sido assim que nosso pai tenha construído
a sua primeira casa. A carpintaria era uma de suas artes.
À noite, antes de dormir sobre colchões de pedras, como consolo, toma rápido gole de uísque de milho, a cachaça americana.
Bazar Monlevade
281
Recordo que Jaime Raimundo, nos seus últimos anos, ingeria
café forte com lexotan. Estranho. Um deveria cancelar o efeito
do outro.
Há um outro tipo de boiadeiro que não vivia do comércio
de carnes, mas de amor. Platônico. Como em Os Brutos também
amam. Comum naqueles dias, repleto de olhares furtivos e muita
resignação: o amor e o sexo, tal como os cavalos selvagens, podiam ser domados (cento e poucos anos depois, João Mohana
prosseguia lecionando tal receita moral). A mulher dos seus sonhos é casada com o fazendeiro que o hospeda. Leal, não abandonando a sua ética, o vaqueiro Shane vai embora. Sobe com
rapidez a montaria, que o aguarda já selado, e põe com elegância
o chapéu. Com um último olhar, um último aceno de mão... O
galopar é lento até a derradeira curva que um olho desarmado de
menino pode ver.
O cinema Rosário cai em lágrimas furtivas, inclusive o menino Cusecco. Alan Ladd abruptamente finca mais forte as esporas
no costado do amigo que o acompanha há anos. Fiel companheiro. A montaria obedece e praticamente voa, rapidamente vai se
tornando miniatura de animal. Um pônei. Do tipo que Cedric, do
Pequeno Lorde, gostava de montar. E que assim vai seguindo na
busca do horizonte, agora tem envergadura de um cão, de um
gato, rato, mosquito, formiga, ameba… de um pontinho móvel
na tela. Sumiu!
As luzes se acendem pouco a pouco, como um vagalume faz,
acabou a sessão de hoje. Pesada condenação. A vida é dura para
quem é mole, e triste por instantes. Levanta, vá embora. Depressa. Que as lágrimas sejam disfarçadas, homem não chora! Que
não as vejam os pagantes que entram para a próxima sessão.
A despeito disso, o menino que vos escreve deve buscar novas forças e continuar recordando cinemateca passada. Pois os
cartazes publicitários colados na porta do cinema dizem que no
próximo domingo continua o mesmo seriado do detetive chinês
Fu Manchu. Depois, o filme de Tarzan Contra os Caçadores de
Elefantes deverá ser a sessão principal. No sábado, Marcelino: o
menino que conversava com Jesus. Renasce a vida.
282
Jairo Martins de Souza
A boa Maria nos avisa: dona Alice saiu há pouco com sua avó.
Ambas estavam com sacola de feira... Interessante, não lembro de
ver a vó Rosinha desgarrada desse acessório.
Nosso pai não parava de trabalhar, devia estar pelo meio das
estradas paulistas. Aqui em casa, em O fugitivo, David Jansen
também prosseguia em sua viagem interminável. Busca o homem
de um braço só. Quando o deixará em paz aquele nojento detetive Gerard? E Javert? Lembro que esse homem não larga dos pés
do protagonista Jean Valjeant nos Miseráveis.
E também dos meus. Já velho custou-me conter lágrima furtiva em recente produção teatral. A satisfação que nos traz é a
certeza de que o bem deverá sempre vencer.
E o bem, tal como a verdade, deverá continuar vencendo.
Mas, enquanto isso, voltemos para as portas do cinema Rosário.
Mãe! Posso sair para trocar gibis? Pode. Não se esqueça do exemplo que seu pai lhes dá. Não se deve passar manta em ninguém.
Certo, mãe.
Por acaso um de vocês que está nessa roda tem um Cavaleiro
Negro para trocar por um Flash Gordon? Um Búfalo Bill por um
Sobrinhos do Capitão? Um Hortelino…
Caía a tarde… Na Rádio Inconfidência o funcionário responsável preparava a radiola para o toque do disco do ângelus.
Bazar Monlevade
283
Capítulo 44
Onde se confirma que a morte é assunto para adultos. A
verdade sobre a morte. Uma história familiar de assombração. Nosso pai era um contador de histórias nato
R
eli hoje o que já escrevi sobre o meu avô Clemente, examinando detalhadamente aqui e ali. É
essa a razão porque escrevo esse capítulo. Algo ocorreu dentro
de mim. O ponto central que suscitou tal ação foi quando andei
relembrando a própria morte do meu avô. O resultado foi um
desejo inusitado de anexar, nessas notas, o modo como a Morte
penetrou espiritualmente dentro do meu mundo infantil. Aliás,
meus pais ajudaram-me a ter dela uma imagem de horror, por
meio de relatos sobre aparições de fantasmas, avisos e coisa e tal.
Relatos simples.
Tais como os da bíblia. Nossa referência literária de cabeceira.
Um deles, dentro dos dez mandamentos, por meio de passagem
muito bem descrita por quem a relatou. O profeta Moisés foi claro
e direto nos escritos que fez na pedra das leis: Não levantarás falso testemunho, Não cobiçarás a mulher… Mas, principalmente o
Não matarás, ou a proibição, em todos em sentidos, de provocar
a Morte.
Tudo isso é razão porque sobre ela prossigo escrevendo, inclusive com um breve estudo sobre as chamadas assombrações.
Cumplicidade antiga. Mais para o final, ilustro por meio de detalhes de um caso verídico. Com isso esclareço aqui a ordem em
que as coisas andarão!
O leitor já deve conhecer o meu estilo. Não tem se tornado
melhor, faço tudo por alto! Nesse passo, sinto-me autorizado
284
Jairo Martins de Souza
a abordar o assunto como de minha prática. Resta o consolo
que, após o texto que se segue, volto a ser o menino Cusecco
escritor.
Ficaria contente se o trecho abaixo fosse lido com vagar.
A minha tese é que a história social do homem (já dentro do
estudo prometido) pode sustentar que, desde os primórdios da
humanidade, a presença de sombras que não vemos, pois baseadas em corpos físicos que já se foram, assola o imaginário das
populações.
Sim. Vão-se os corpos, e se vão conforme o extermínio lento
que a medicina legal explica, é verdade, ficando gradativamente
cada vez mais escondidos nos seus locais de despojo. Tudo isso
acontece, a despeito de que suas imagens permaneçam no inconsciente coletivo de quem os assistiram, e os descreveram para
terceiros e assim a história se espalha, inexoravelmente, esse deverá ser o destino de todos.
Não há como negar, de maneira mais ou menos intensa, assombrações, sejam vivas, sejam mortas, aparecem irremediavelmente na vida das pessoas. Independente da classe e da grandeza
social, e da cultura, elas estão sempre dizendo presente, mesmo
que desprovidas de maiores comprovações. Não há como dizer
não a elas, tal como, de forma simplória, vou espantá-las com
algumas cebolas, réstias de alho e principalmente com uma cruz
que imita a utilizada no Calvário.
Não devo omitir fraquezas de menino, as dos anos 50 não arredavam pé do nosso cotidiano. Na nossa casa entravam escondidas com as revistas de terror viradas ao avesso. A elas lia magnetizado, verificando tudo sobre o que paralisa todos os sonhos de
uma vida pessoal. As capas impressionavam. Caso fossem vistas,
seriam imediatamente recolhidas por nossa mãe.
Seus desenhistas e criadores orientavam-se em retratos falados, vistos em escavações e quebras feitas em pirâmides, caixões
velhos ou sepulcros que abrigavam defuntos. Copiavam também
figuras apocalípticas de quadros medievais, na época, os demônios dominavam a Arte e os quadrinhos. Restam-me algumas
fontes a citar, pois podia ser também influência de visita daqueles
Bazar Monlevade
285
artistas a museus paupérrimos do Peru, ou porque talvez tenham
ouvido que nas terras da Monróvia existe um príncipe chamado
Drácula, enfim, certo mesmo é que tudo começou com a expulsão do anjo caído.
Para nós, algo ficou de verdadeiro. Do que digo agora é de
um caso real, continuo escrevendo sobre assombrações, foi história relatada por um nosso parente próximo, que ouviu de terceiros, e que disse ter visto um exemplar na pequena cidade de
Alpercata. Aí darei mais detalhes no andamento desse mesmo
capítulo.
Acontecia também aparecerem disfarçadas em lençóis brancos que se moviam, diabo fantasiado de anão, e em gente morta
que voltava de campo santo e velório domiciliar. Desse último, o
bondoso senhor Alcides, natural das terras de Pernambuco, talvez
tivesse 60 anos. Na ocasião, nosso pai tinha em torno de 43.
O Alcides era um honesto recuperador de móveis usados
que, durante alguns poucos anos, foi nosso locatário. Tinha as
bases das unhas sempre sujas de verniz e estendera boa relação
de amizade com nosso pai. Conversavam longamente e eu ficava
ouvindo sem entender o que diziam, lembro-me vagamente tê-los
ouvido falar algo sobre a política estadual de JK. O relato que se
segue já foi por mim veiculado em várias ocasiões, a diversas pessoas, quando conversando fiado em torno de assuntos que têm
dura missão de o tempo fazer passar.
Nosso pai dizia ter sido informado em primeira mão quando o amigo moveleiro morreu. Pelo próprio morto. Estávamos a
aproximadamente 122 km de distância, mais propriamente em
Rio Piracicaba e, após noite de merecido sono, levantou-se dizendo normalmente. Vamos a Belo Horizonte, o Alcides morreu. Pai,
como o senhor sabe? O Alcides avisou-me hoje pela madrugada.
Devemos voltar após o enterro, finalizou, movimentando-se rapidamente como de praxe.
O morto foi velado no seu próprio estabelecimento comercial, junto a guarda-roupas, mesas e cadeiras que cheiravam a
gasolina e verniz intenso. Alguns móveis quebrados achavam-se
meio escondidos pelos cantos da loja. Na urna mortuária, que po-
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Jairo Martins de Souza
deria ter sido fabricada pelo próprio usuário, eram poucas as velas acesas colocadas sobre dossel improvisado. Ao lado, a esposa,
dona Lica, chorava, copiosamente, a perda do marido. Algumas
amigas davam apoio à viúva, e tomavam café forte.
Próximo ao seu fundo de comércio, a barbearia de um sujeito
chamado Urbano, com as portas de aço abaixadas, explicava o
motivo: estamos fechados por razões de luto. Lembro-me bem,
as mãos do seu Alcides, agora partes mortas de um cadáver, com
os dedos entrelaçados na altura da barriga, tinham sinal roxo de
quem tinha sofrido uma sangria, antiga função médica das sanguessugas que, diziam, abaixava a pressão arterial de quem a
tinha alta. Assombrado pela estranha sensação de estar em um
velório, foi tudo que pude observar nessa cerimônia pública que
antecedeu ao carregamento para o Bonfim.
Mas o que restou de real desse senhor para as nossas vidas
não foi somente uma de suas poltronas adquiridas à viúva por
nosso pai. O cadáver esteve acomodado nela antes da chegada
do caixão de madeira entregue pela funerária. Junto a ela, cujo
forro era de pano xadrez, associávamos a figura do morto assombrando-nos por longos anos. Particularmente não me assentava
naquela poltrona nem que fosse obrigado!
Mas não somente ele, e sim quaisquer outros seres que se
moveram ou se moviam, desde que julgados traiçoeiros, traziam
algo de assombrado. O demo podia vir disfarçado de qualquer
coisa, inclusive na pele e na saia justa de moça bonita. O pastor
dizia, meninos, o lobo costuma aparecer, na vida dos crentes, disfarçado em cordeiro.
Imagem que sempre me provocou recusa. Não me agrada
ver um filhote de carneiro incluído no ditado popular que disse.
O cordeiro, inclusive, era, entre os animais, o preferido para sacrifícios religiosos, um deles, o próprio Jesus, que procurou tirar
o pecado do mundo. Na verdade, para cavalo de satã havia outros bichos melhores… um deles, o gato. E o coitado do porco. A
própria bíblia diz que alguns espíritos malignos foram jogados no
lombo de uma vara deles em exorcismo praticado pelo próprio
Jesus.
Bazar Monlevade
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Com isso, é hora de voltar por definitivo à história de assombração prometida no título do próprio capítulo, onde disse ter sido
no seio da nossa própria família. A protagonista foi uma prima, a
M. Aliás, não podia ser somente M, ela era moça de família, tinha
pai, tinha mãe... Se fosse capixaba, seguramente seria da Penha.
M da Penha.
Como não era o caso, talvez fosse de Jesus, tal como nossa
avó Maria Luiza, mas isso não posso jurar… O que sei é que era
parenta próxima de sangue e, como em muitos outros casos, distante em geografia e contato.
Sobre ela circulava relato aterrorizador que nosso pai gostava
de dissertar. Considerava-se perito no embate contra assombrações e entidades sobrenaturais correlatas: gente, coisas estranhas
estavam acontecendo na cidade de Alpercata!
Toda a dezena de vezes em que esse caso foi contado começava nas circunstâncias que diremos. Antes antecipando que as
famílias de Monlevade visitavam-se com freqüência, e era normalmente grande o número de filhos e agregados. O cafezinho e
a broa de fubá, com flocos de queijos esparsamente distribuídos
no seu interior, eram cortesia costumeira, enquanto a família visitada e os visitantes permaneciam sentados nas poltronas. Somente os pais conversavam. O assunto versava sobre coisas comuns
da vida de operários, preço do arroz, da carne e a quantas andava o comércio. Poucas eram as futricas: as mães, com olhares
policialescos e investigativos, vigiavam os filhos.
A foto de uma dessas ocasiões mostraria, além dos pais que
conversavam, meninos e meninas com as mãos na boca tentando esconder os risinhos. Alguns olhavam para frente, outros para
os lados. O que não podia acontecer era que fosse perturbada
a seqüência da conversação e os raciocínios pausados dos pais.
A nossa mãe, em particular, tinha uma ferramenta silenciadora:
balançava a mão direita ao mesmo tempo em que os dedos se
chocavam uns com os outros. O resultado fazia lembrar o estalo
do chicote do carroceiro que açoitava o burro do Geo quando
fazendo entregas pelos morros da cidade. Funcionava!
Obtido o silêncio que fora alterado, o ritual prosseguia com
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Jairo Martins de Souza
trocas de idéias que também versavam sobre religião e assombrações. Tudo sem ruído, sem celulares ligados, e com as visitas comodamente assentadas. Era tempo que as pessoas podiam
conversar tranqüilas. Para as crianças eram suficiente bancos de
madeira que cabiam de quatro a cinco de uma só vez. Com algumas precauções. Em uma ponta assentava-se um menino. Na
outra devia ficar assentado um outro de peso parecido. No meio
ficava um qualquer, como se fosse o fulcro onde estivesse incrustada a metade de um balanço.
Não eram permitidos levantamentos abruptos dos que estavam nas laterais, afim de que se evitasse que o banco ficasse em
gangorra. O equilíbrio estático era muitas vezes obtido não à custa de lançamentos de vetores de tamanhos adequados em papel
quadriculado, mas, sim, à custa de eventuais beliscões das mães
vigilantes.
Se as famílias não eram de relações freqüentes, os filhos, envergonhados, já tinham sido submetidos às reapresentações preliminares (essa aqui é a minha mais nova, a Lucinha. Tão magrinha. Sim, é característica familiar. Ah! Sim. Esses três são o Geia,
o Jarbas e o Jario. Os outros dois mais morenos, o Hélio e a Leni,
estão de castigo... Ah, sim. Lembro-me deles. O Jario é o mais
velho, não é? Não, é o Izaias que está no internato de Itabirito).
Não demorava muito e a visita poderia indagar por educação: Jaime, e a filha do Hernundes, o que é mesmo que com ela
se passou?
Nosso pai sorria satisfeito com a pergunta, sabia que qualquer
história, quando verdade, não precisa contar mais de uma vez,
mas a resposta já estava entabulada na ponta da língua. Nada
com que se preocupar, dizia inicialmente com olhar que espelhava satisfação, a menina do Hernundes está bem. Mas, há tempo
atrás, tinha ficado, de um dia para o outro, cheia de demônios.
Não se sabe se foi praga ou olho gordo de alguém. O fato é que,
sem quê, nem por quê, foi tomada por capeta safado e forte! De
repente começou a levantar sacos e mais sacos de milho de uma
só vez. A moça, minha sobrinha, não se alimentava normal e bebia pouca água (nossa mãe olhava a cara de susto dos filhos.
Bazar Monlevade
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Meninos de pouca fé!). Subia em árvores como esquilo, pulava
como um sapo, era mais veloz que um raio, mais ladina que uma
raposa e escancarava a boca como um cachorro raivoso. Subia
nos telhados, escondia-se no forno de barro do terreiro. Nosso pai
prosseguia.
Imagine só senhor e senhora que nos visitam, a boca daquele forno é muito pequena, mal dá licença para entrada de
uma forma de bolo médio. O diabo zombava e fazia pouco do
Senhor quando acuados com uma cruz por algum fiel destemido.
Jesus Cristo! Tinha a força de uma legião. O que é pior, o padre
da paróquia vizinha corria da pobre coitada, como o diabo foge
da cruz. Acho mesmo, senhor visitante, nem padres especializados em exorcismo dariam conta da menina; muito menos esferas
eclesiásticas mais altas, caso a elas fosse encomendada alguma
providência.
Finalmente, poderia encerrar, agora em outra ocasião, outras
eram as visitas sentadas na sala da casa do sítio de Rio Piracicaba. A luz da vela estava por se extinguir. E o pior de tudo era que
o prato de resistência da moça, o que comia, era caco de vidro
moído…
Com essa observação, talvez deixasse o caso em aberto, ou
pode ser que inconscientemente negligenciássemos a atenção
quanto ao desfecho do relato. Da prima M, de Marie, diria Charcot, após exibi-la como espécie rara na Salpètrière, uma brasileira,
essa mulher é uma histérica. Na Graça Internacional seria ouvido
que ela não é o que a medicina diz. O que aconteceu com ela, diz
o pastor, é que foi tomada pelo adversário… Esse sintoma é mais
freqüente em mulher é o que diriam, respectivamente, agora em
conjunto, fechando triunfantes a conferência e o culto.
Mas não há registro consolidado, nem mesmo por alto, e ao
certo, o que realmente a ela aconteceu. Pelo silêncio futuro, posso
afirmar que ficou boa. Sarou!
No entanto toda história tem que ter um fim, nada dura para
todo o sempre. A ansiedade era diretamente ligada a se venceria
o bem, ou se venceria o mal. A moça era nossa prima, o mal
estava diretamente no meio de nós. Magnetizado pela escuta do
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Jairo Martins de Souza
incômodo desconhecido, ficava na sala: poderia sair, não precisaria ficar escutando a mesma história de assombração.
O encerramento do caso. Ainda está por vir le grand finale.
Com a garganta seca por ter falado em excesso, nosso pai ordenava, apontando calmamente a mão para algum dos filhos, sua voz
que acompanhava o gesto, agora também era relaxada. Nesse
intervalo, captava a impressão que o seu relato causara na platéia,
menos ao visitante, mais à sua família. Subitamente, parecia já ter
esquecido do agitado assunto que terminara, dizia: menino! Vá,
por favor, na cozinha pegar um copo d’água para mim.
Deus nos ajude! Um pedido paterno era um mandado judicial. Com brutal descarga de adrenalina, atravessava a escuridão
do corredor de passagem, à busca do filtro de barro na cozinha.
Imagens gravadas do Conde Drácula, rabos de capeta etc. eram
ativados num piscar de olhos. Já tinha também visto, em jornal
velho, ações de exumação determinadas pelo judiciário, como
prova complementar para levantamento de culpa em processo.
Tétricas. Quem não se lembra das ossadas do anjo da morte de
Auschwitz? O caso Mengele. Enfim, tudo isso ficava misturado
num pedaço de segundo.
Estoque vasto. O monstruoso Frankenstein montado, outra
metáfora, a partir do povo francês destroçado pela revolução,
não era nada perante as minhas criações... Por fim, escrevo agora
o que não conseguia dizer naquele momento crucial: ainda que
ande no vale das sombras da morte…
Com o que volto à realidade. Por prevenção. E resumo o assunto, dizendo que o tempo muda as coisas com o avançar dos
dias. A nossa moral da história. Não ficamos paralisados como
Parmênides. Ótimo, pois os próprios campos santos que, hoje,
acolhem as assombrações que a morte faz gerar, mais se assemelham a parques e jardins. Da Paz. De rosas. Da Colina. Laranjeiras. Serenos. Transferem sinal de tranqüilidade. A morte ficou
asséptica.
O Exorcista hoje é motivo de risadas gostosas dos meus filhos. Arrepia-me os cabelos só de pensar na cena do capote preto
que dirigia aquele furgão tipo carro de funerária. Uma cabeça
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sem corpo. Cá está de novo a tal mula sem cabeça...
Mas tudo isso não é fácil de resumir em poucas palavras. Para
tanto existem os estudiosos da Igreja, e para isso não foi criado o
Bazar.
Façamos rápida atualização. Recentemente tivemos notícias
daquele povo. O pai de M, nosso tio Hernundes, morreu com a
avançada idade de 101 anos. Era magro e mirrado, diziam que
a filha também era assim. Só que não tanto. Quando a conhecemos, de ouvir falar, morava na, para nós, longínqua cidade de
Alpercata, MG. Tinha situação remediada, e quase todos os seus
familiares zelavam por um sítio de tamanho razoável, que ficava
próximo àquela pequena cidade em uma propriedade rural que
pertencia ao tio Hernundes: o irmão do nosso pai tinha uma família grande.
O que já me causava certa estranheza. Não a grande quantidade de primos que tínhamos daquele mesmo pai e daquela
mesma mãe, e sim o nome da cidade de Alpercata onde eram
domiciliados. Fazia confusão. Alpargatas Roda era sapato feito de
juta pintada de azul que usávamos no dia-a-dia. Com as reduções
e trocas normais de consoantes e vogais era chamado de “precata”. “Precatas Roda”. Com isso misturava o nome da cidade com
a do calçado. Tudo em nome da economia.
Pelo mesmo motivo, falamos cê ao invés de você.
Bazar Monlevade
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Capítulo 45
Algumas considerações sobre a velhice. A paciência de ouvir...
N
osso pai quando estava assentado e com as pernas cruzadas, lembrava um menino franzino com
cara de adulto. Não mudara em relação ao jovem que estive secretamente filmando na casa da nossa avó Dica no limiar desses
escritos. Não tinha nem rugas nem vincos em excesso no rosto,
sua velhice se expressava muito mais no peito gasto do que no
abdômen com natural sobra de pele. Gostava de usar pouca roupa. Nos dias de calor, costumava dispensar a camisa de manga
comprida que a maior parte das pessoas idosas, por prudência ou
por vergonha, não costuma dispensar.
A propósito disso, um dia comentei com ele, conversa sem
compromissos, sobre um artigo escrito por Rachel de Queiroz. Tinha gostado dele. Essa senhora era mais que nonagenária, mas
continuava a encantar a todos com a sua simplicidade, sua cultura e o seu bom humor contagiantes. Tinha lá suas idéias sobre o
modo de vestir dos mais velhos, os quais explico com minhas próprias palavras: fico contrariada com essas senhoras já passadas
da hora, que ficam mostrando velharia e pelancas que nada tem
de beleza! O uso de maiôs e biquínis de pouco pano pertence, de
direito passado, às jovens com as peles de Iracema… E por aí ela
seguia escrevendo com seu estilo agradável, talvez passando pito
em algumas amigas artistas que não sabem, estão perdendo, em
sua plenitude, as delícias de ser avós…
Meu pai, manteve-se calado até que terminei o assunto, como
disse, gostava de usar short. Perguntei-lhe, o que você acha do
que disse, pai.. Acho bem, respondeu-me com um sorriso fraco.
294
Jairo Martins de Souza
No fundo suspeitei que quisesse dizer algo como: e eu com isso?
Não sou mulher nem avó!
Observando-o melhor, reparo que com o passar dos anos os
braços enfraqueceram um pouco e continuavam magros, como
sempre foram, compatíveis com os seus cinqüenta e poucos quilos. Mesmo assim, restavam-lhes força e flexibilidade para carregar um bisneto de baixo peso ou transportar tranquilamente
compras que gostava de fazer em mercearias ou feiras livres.
Parecia um pouco menor do que os 1,70 metros registrados
na sua licença de Tiro de Guerra. Mas nunca chegou a ficar encurvado como muitos dos seus pares de idade avançada. Na parte baixa dizia guardar bom estoque de saúde, e a próstata não
mais o incomodava.
Como há muito já disse, nas pernas tinha excelente retorno
venoso, ficava agachado todo o tempo que fosse preciso. Talvez
ajudado por lembrança atávica de muitos anos e ascendências
que viveram nos roçados. Compare-se, não faz mal sempre lembrar que vivemos de comparações, sou seu filho, o quarto dos
mais velhos para os mais novos, e se permaneço agachado alguns
segundos, levanto-me vendo estrelinhas.
Fato que me faz gostar da postura assentada do corpo. Nessa posição estávamos ambos, em um belo dia, ele ouvia-me na
sala de visitas de uma de suas casas. De frente um para o outro,
conversávamos há minutos, as poltronas eram as do tipo que a
gente vai se afundando à medida que o tempo passa. A despeito
disso, muito mais sábio que eu, de há muito já praticava a razão,
e o porquê de termos dois ouvidos e uma só boca. Não tomava
conhecimento, mas o fantasma de Shakespeare há alguns anos o
aconselhava que é melhor o homem de poucas palavras. Verdade
simples, e pura.
As pernas agora não cruzadas permitiam que o tronco estivesse bem à frente. A cabeça jogada num ângulo aproximado de
quinze graus com a vertical facilitava a sua escuta.
De vez em quando gangorrava lentamente o tronco buscando uma posição de melhor conforto. Com isso demonstrava interesse, pois falávamos nesse dia sobre tudo e todos os assuntos,
Bazar Monlevade
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desde avanços da tecnologia, passando por métodos modernos
de criação dos filhos, até as crônicas políticas e sociais em evidência nos programas da televisão aberta.
Era assim que teve a paciência de ouvir-me muitas tardes de
sábado.
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Capítulo 46
Onde o nosso pai diz que o ano durava menos que 365 dias
C
aso Jaime Raimundo estivesse vivo, teríamos seguramente muitas coisas para conversar. Não faltaria ma-
terial!
Temos muitas histórias em comum. Foi o que lhe disse certa ocasião. Talvez o senhor mal se recorde, eram muitos os seus
filhos. Quais histórias? Diga-me uma. Ah, sim. A do colégio Municipal de Belo Horizonte. O senhor queria transferir-me do Colégio Batista para aquele próprio da municipalidade. Ah sim, não
somente por questão de economia, todos os meus filhos na época
estudavam em escolas particulares, como também porque diziam
que os melhores colégios de Belo Horizonte eram o Municipal e o
Estadual. Certo, pai. Fiz a prova e fui reprovado.
Como? Reprovado, lembra-se do que o diretor disse-lhe,
quando lá retornamos para verificar se dava para contornar a
situação. Seu Jaime, não dá, o rapaz não sabe nem mesmo o que
é o teorema de Pitágoras. E não sabia mesmo, pai. Só de ouvir
falar nele tinha vontade de ir ao banheiro, um horror! Para salvar
a pele e esconder a ignorância, disse a todos que não fiz a tal demonstração porque não queria sair do Batista. Na ocasião todos
os demais irmãos que estudavam conseguiram, de alguma forma,
ingressar no Colégio Estadual. Bons tempos! A educação pública
nas capitais era de qualidade e, o senhor se lembra, tinha sido
inaugurada uma unidade do Estadual lá na Sagrada Família.
Ah, sim, disso tudo me lembro... Mas, filho, o que gostaria
mesmo é saber o que pensas a respeito do que lhe disse há dias,
sei que esqueceste e ainda não anotaste nesses escritos. É sobre
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Jairo Martins de Souza
o aparente encurtar dos tempos… Sei que tens procurado nos
livros os alimentos que, na verdade, deverias buscar na palavra
de Deus, mas, tenho fé que cada coisa deve vir a seu tempo
certo.
Eu também, pai. No entanto, sobre o que o senhor me perguntou, a cada dia aumenta a velocidade das máquinas que os
franceses chamam de ordinateurs. Como? Computador! Há muitos anos essas máquinas são microprocessadas. O que é isso? Significa que podem ser programadas, pai. Com elas se faz o mesmo
que se faz com um vídeo cassete, veja só, como esse Philco velho
que o senhor tem em casa. Lembre-se, pai, que há necessidade
de seguir as instruções do seu manual para fazer gravações do,
por exemplo, programa do Leão de amanhã. Com uma diferença. O quê, filho? A velocidade. Fazem contas e corrigem erros a
milhões de vezes por segundo!
Essa e outras coisas nos fazem parecer que a vida corre mais
rápida, já que tem influência em tudo. Mais notícias nos chegam
na unidade de tempo. Coisas, pai, que se fôssemos levar aos limites matemáticos seriam descritos como estudos de cálculo, derivadas, integrais e operadores diferenciais, enfim, difíceis de entender. Quanto a esses assuntos, filho, digo o que ouvi de alguém,
que me disse que um sujeito sábio falou: só sei que nada sei!
Entretanto tenho comigo uma outra pergunta que carrego
desde menino: veja se você pode ajudar-me nesse sentido. Não
se preocupe, vou direto ao assunto. Se souber, pai. Enfim, como
é que se sabe que a terra gira? Sempre pensei, como muitos,
que tudo gira em torno de nós, que o homem era o rei da terra e,
assim como ela era, ele também era o centro do mundo. Eu também, pai, quando menino. Na verdade as contas não são muito simples, mas León Foucault, um francês, pelos idos do século
dezenove, já tinha provado isso. Como? Com um singelo ponto
imaterial, um fio comprido, um pêndulo, muita matemática e por
aí segue…
Para mim é suficiente o que falaste filho, simplesmente vou
seguir com minhas dúvidas, mas acredito em você, enfim, esqueça, vou morrer com essa interrogação...
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O senhor disse-me, pai, de algo que o incomoda… Para compensar vou dizer-lhe um outro que me aborrece… Incomoda-me,
pai, saber que gente lutadora como o Pierre Curie ter sido atropelado e morto por uma carruagem no centro da velha Paris. Um
cavalo matar um gênio!? Isso acontece filho, até mesmo o burro
do Geo poderia ter atropelado um gerente da Belgo na descida
do morro. Quantas boas pessoas não vi morrer em acidentes na
BR 381?
É, pai, pelo menos, repousa homenageado com sua Marie no
Panteão francês. Nada mais merecido! Nunca soube nada sobre
isso, filho (repara o leitor, aqui estão um pai e um filho que relaxadamente conversam fiado. Um consolando o outro. Cada qual
a sua maneira!).
Mas Jairo, é nosso pai quem diz, a mim me parece que os
anos, faz tempo, duram menos que 365 dias. Vou tocar de novo
no assunto, já que há linhas atrás você andou desviando a conversa, enfim, você que estudou... Não muito, pai, apenas para
satisfazer a minha curiosidade: cada um tem seu limite particular.
Não sei se estou certo, filho, mas tenho outra sensação, talvez seja
a mesma que comentei antes, algo como se a própria Terra estivesse rodando mais rapidamente em torno do Sol.
Parecem-me, as estações estão cada vez mais se misturando. Acho mesmo, que hoje teria dificuldade em saber quais são
os dias certos ou errados de se plantar o milho, a mandioca ou
o feijão. Os cientistas não nos informaram nada sobre qualquer
alteração de velocidade da Terra nesse seu caminho anual, pai.
Mas nós mesmos podemos verificar. Com pequena precisão, é
claro. Como?
Com um cabo de vassoura fincado bem reto aqui mesmo no
meio do seu terreiro. O que não pode é ficar nem um pouquinho
inclinado. No dia primeiro de Janeiro, ao meio dia, marcada no
chão a posição exata em que está a sombra desse pedaço de pau,
vamos passar a observar o movimento. De quê? Da sombra do
pau, pai. Que deverá ser no sentido de afastamento em relação a
ele, o toco de pau, até aproximadamente a metade do ano. Tudo
sempre ao meio-dia?
300
Jairo Martins de Souza
Sim, diariamente. A partir de Junho, pai, a metade do ano,
a sombra do meio-dia do pau deverá ter ido até onde pode ir no
máximo, e começará a voltar devagarzinho até o ponto de origem
da primeira sombra. A que foi marcada no primeiro de Janeiro
do ano anterior.
É hora de conferir. O quê, Jairo? Se a terra estiver se movimentando igual ao que os nossos calendários indicam, significa
que no final da volta, ao meio-dia, as sombras do dia primeiro
de Janeiro de um ano, e o do outro, deverão estar exatamente no
mesmo lugar.
Foi assim, pai, que os egípcios descobriram a duração do ano.
Os egípcios? Os de José, que, na bíblia, era amigo de Moisés?
Agora sou eu quem digo, não sei, pai, mas, voltando ao assunto,
foram trezentos e sessenta e cinco dias arredondados para voltar
até a posição original do cabo de vassoura do meio-dia que disse
logo de início. Que é, o senhor sabe, o tempo aproximado que
a Terra leva para viajar todo o caminho anual de ida e volta em
torno da nossa estrela, o Sol.
Esse caminho, fosse visto como se vê em um mapa rodoviário, teria aproximadamente o contorno externo de um ovo, se
visto de cima. Podemos chamá-lo de elipse. O Sol fica mais ou
menos onde deve estar o olho de um pintinho que está por nascer. Podemos chamá-lo de foco da elipse. A quem, ao pintinho?
Ou ao seu olho? Ao olho.
Na verdade, filho, não acho que o que dizes seja estranho,
algumas dessas coisas na prática são bem familiares para mim.
Estou acostumado a descansar debaixo de sombras de árvores,
costumava brincar com as minhas próprias em vários horários do
dia. Decerto sei muito bem as diferenças dos seus tamanhos ao
longo das horas do dia ou sob as luzes dos postes, por sinal, até
mesmo vi, na minha juventude, várias sombras que sabia ser assombrações. Mesmo que tenha medo de fato é de gente viva, que
costuma dar facadas nas nossas costas. Tal como faziam alguns
irmãos de fé que não pagavam as prestações de relógios, e outras
mercadorias que o Bazar Monlevade vendia a prazo.
No entanto, águas passadas não movem moinho, filho. En-
Bazar Monlevade
301
fim, voltando ao início desse papo, nunca fiz as medições que
disseste, mas sinto que o ano está durando menos que 365 dias
ou, quem sabe, pode ser, como disse, que seja a minha velhice
que avança veloz.
Bazar Monlevade
303
Capítulo 47
A marcenaria do nosso pai. O nome do nosso tio Gervásio
veio copiado de um religioso medieval
A
literatura diz que a tentativa do não esquecimento é que motiva livros. Heloisa inspirou o monge
Abelardo, Heliodora inspirou Gonzaga; Dulcinéia...
Dizem que Heliodora era escrava negra, ele, branco. Amor
sincero. Como, sinceramente, com o passar dos anos talvez diga
impropriamente que o Bazar foi meu: conhece-se bem a tendência dos filhos de roubar os amores dos pais.
É como, escrevendo, sigo desconstruindo o meu mundo. Já o
dos meus pais foi construído capinando roçados, fazendo biscates
e criando sua loja. Seus livros foram o proceder da natureza bruta
dos homens e a dos animais caseiros. Gosto de descascar abacaxis, dizia o nosso pai, em diversas ocasiões, quando as coisas
ficavam pretas.
Descascando abacaxis ou não, e se não, quanto a outras tarefas que executava, podemos, por exemplo, vê-lo serrando madeira. Como podem aqueles braços tão finos concentrar tanta força
e disposição? Parecem feitos de aço disfarçado em músculos, derme, epiderme e poucos pelos capilares. Trabalhava forte mesmo
que a madeira fosse de lei. Não se rendia a trabalho pesado. A
lâmina do velho serrote Almada entrava em ardência com o diligente vai-e-vem dos seus braços. De vez em quando parava para
amolar o aço dos dentes da ferramenta da qual cuidava bem.
Foi o que com ele aprendi na prática, e que recomendo a
todos por meio de relato, em especial aos meus filhos. Algumas
ocasiões por meio da conhecida historinha da competição dos
304
Jairo Martins de Souza
dois lenhadores, o velho e o novo. O velho, enquanto descansava, afiava as lâminas do machado que estava usando em contenda com um outro lenhador; jovem impetuoso que prosseguia,
sem descanso, usando a lâmina que se tornara cega ao longo da
competição.
O velho lenhador sabia que o machado amolado faz melhor
o seu trabalho, executando com eficácia as mudanças na matéria que o trabalho produz. O mesmo trabalho que, relembro, faz
mudar o trabalho de quem trabalha. Ou de quem estuda. Ou de
quem pensa. Um marceneiro primitivo que, ao fazer de um tronco
de madeira uma mesa de jantar, transforma a natureza, de uma
coisa ele faz outra. Reflete o marceneiro “para melhor usar alguém a mesa, deve fazê lo sentado”. E pensa e faz uma cadeira.
Sem que perceba modificou o mundo e foi por esse modificado. Fez a mesa, a mesa o fez, porque fez com que fizesse o projeto
de uma cadeira para tomar um café da manhã. A idéia de mesa
fez o marceneiro transcender, fê lo pensar a idéia de cadeira e, por
extensão muitas coisas mais.
Deixando o tempo que passava tranqüilo, contei tudo isso
ao nosso pai. Ouviu calado. Disso eu sabia na prática, respondeu
baixo, concordando com o que a ele tinha dito, e, por final, como
sempre fazia, perguntou onde tinha aprendido essas coisas. Disselhe que foi com as oportunidades que ele, a mim, concedeu. Riu
satisfeito. Não me perguntou mais nada nesse dia. Talvez tenha
ficado pensando sobre a importância do marceneiro, e quão nobre é essa profissão. Até mesmo José, pai do Senhor Jesus, foi um
dos bons a fixar traves e a encaixar tábuas e pranchas, comentou
de forma isolada.
Era jeitoso no trato com madeiras, volto a dizer do meu pai,
seus encaixes, suas guarnições e suas travas. Gostava de trabalhar
sem pregos, quando fazia seus trabalhos em madeiras de carpintaria, da marcenaria e da construção. Posso vê-lo manufaturando
os encaixes bem feitos de uma manivela de soltar papagaios, fazia
trabalhos de qualidade em quaisquer que fossem os tipos de madeira. De primeira ou de segunda. A imbuia, o cedro e o pinho ou
o angelim verde, que é aquela que fede quando nova.
Bazar Monlevade
305
Das tarefas mais simples assentava e cortava bem os barrotes
e, para executá-los não necessitava de guia de mãos e aconselhamentos. Simplesmente criava. Transcendia da mesma forma que
fez o marceneiro de quem dissemos na página anterior. Vamos
novamente vê-lo trabalhar, talvez tivesse desenvolvido essa arte
com o amigo Alcides que morrera. Cuidadosamente enverniza
uma cadeira que há pouco acaba de fazer, tudo que o cerca já
está absolutamente limpo.
Foi carpinteiro por breve tempo, pois mudou de profissão,
migrando em sua última forma para o comércio. Talvez tenha sido
secretamente inspirado pelo belíssimo poema do Grünewald, o
que diz da forma e sua transformação, que não deve cessar, para
outra mais elevada. Um círculo fechado. Móvel. Gostava de perguntar-lhe sobre como passou de mascate a dono de próspero
negócio, ou sobre como conduzia seus negócios. Enfim, como
andou avançando em sua forma. Demorava a responder.
Pensava e estudava o assunto. Não gostava de dizer abobrinhas quando o assunto era comercial. Ou, quem sabe, pode ser
que mais das vezes estivesse, pelo cansaço da espera, querendo
matar a pergunta de um dos seus filhos. Poderiam ser momentos em que estivesse lembrando dos seus tempos de menino nas
cercanias de Viçosa, com a nossa avó Dica chamando-o para almoçar.
Quando velho, lembro que somente de idade, já não mais
lançava mão do seu serrote, no máximo capinava horta de terra
fofa. A face é magra, tem poucos vincos cravados na face ora
clara ora morena, cor da tez que dependia do número de horas
que ficava exposto aos ares marinhos. Gostava muito de sair, fazendo compras caseiras e travando contato com as pessoas. Olha
longe para fora da janela, parece procurar algumas nuvens ou um
pássaro que voa.
De pé, busca coisas do mundo, organiza pensamentos e raciocínios, coleciona datas, conta os casos do passado, faz projeções. Nunca foi de capinar sentado. Quem o conheceu, sabe bem
do seu dinamismo. De repente, numa dessas situações, lembrouse de um nosso tio por parte de mãe.
306
Jairo Martins de Souza
O tio Lino é um dos de nossa família que demorou um pouco
mais no forno. Sua cor é de um marrom forte, quase preto. Era divertido, entre outras coisas, porque tinha voz grossa e era ligeiramente gago. O nosso mano Bilico tem muitos traços do Lino, um
deles, além da cor, é a de falar com frases jogadas rapidamente
para fora. Ambos atropelam as palavras, esquecem-se das pausas
que fazem mais fácil a comunicação.
Gostava, volto a dizer do tio Lino, de conversar com nossa
mãe, sua irmã, e, com ela, assim como com todos, o seu rosto
estava sempre na posição de quem estava prestes a sorrir. Rosto
acolhedor. Como o Gervásio, um outro tio que não era um homem de alma tão suave como o Lino. Talvez mais inocente. Lembrei-me dele há algum tempo atrás quando via a série Cosmos
em texto feito pelo astrônomo Carl Sagan. Sagan dizia sobre uma
pancada que a Lua tomou há cerca de 800 anos atrás.
Pois é. Talvez muitos tenham visto o mesmo clarão em outras
partes do mundo, inclusive antigos avós do nosso tio que naqueles
anos ainda residiam na África. Mas quem relatou foi certo senhor
Gervasius a quem Sagan se referiu. Nessa versão antiga nosso tio
era o metódico cronista do mosteiro de Canterbury pelos idos do
século doze da era cristã.
Escreveu: ‘Às exatas horas de… Eu e mais cinco monges irmãos assistimos extremamente assustados a uma grande explosão no nosso corpo celeste irmão, era dia claro’.
A Lua continua balançando até os dias de hoje, conforme
vigiada por meio de precisas medições de repetidora de laser instalada na sua superfície por astronautas. Imperceptivelmente. Entretanto, o que viu o frade que tinha o nome do nosso tio Gervasius? Um asteróide que tinha caído no solo lunar com velocidade
de quase 100.000 quilômetros por hora!
Mas por que aqui lembramos tal inusitado fato? Impressionou-me. E por trás das vitrines do Bazar, está o ato literário de
lembrar algumas pessoas às quais o menino quer bem. Por assim
dizer, intertextualidade não literária!
Bazar Monlevade
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Capítulo 48
Onde se diz dos três filhos que se foram. Mas a vida seguiu
adiante
M
uchas personas creen que los viejos no tienen
derecho a enamorarse… Essa frase parece um
velho chichê. Não é.
Nosso pai rumava a meio-caminho para ser um sexagenário
quando ocorreu um divisor de águas nas nossas vidas. O leitor se
lembra quando relatei, no capítulo 15, algo sobre Lúcia, Lucíola
e a tal cesta das bodas de prata?
Na época continuava seguindo bem com seus negócios, mas
passou a andar para trás em relação ao casamento que nos gerou. Não que estivesse equivocado. Mas tinha jurado perante a
família, e ao mundo, o ‘prometo te amar e te respeitar até que a
morte nos separe’.
Para ele foi duríssimo o longo período que se submeteu para
a quebra do juramento. O povo tem um ditado que gosta de seguir à risca, o que Deus uniu o homem não tem autoridade para
desunir. Prudente e para evitar maiores maledicências, esperou
que todos os seus filhos, homens e mulheres, constituíssem família para seguir isolado com o seu calcanhar de Aquiles. De certa
forma, não logrou êxito!
Mas não somente ele. Eu mesmo andei misturando algumas
atitudes em momento crítico da vida. Como nesses escritos, em
temas delicados como esse em que perco a força dos argumentos
e determino autoritariamente o fechamento do assunto. Não posso deixar de ter alguns arrepios, pois desguarnecido das minhas
credenciais de engenheiro, perco a racionalidade e a lógica dos
308
Jairo Martins de Souza
meus iguais da minha antiga profissão.
Enfim, meu filho advogado, a mim diria... Pai, não se preocupe, caso venhas a ser processado e condenado em eventual
sentença transitada em julgado. Afinal, foste admitido culpado
por não ter cumprido a regra si ne qua non, que deve nortear o
trabalho de um escritor. A de não impingir ao seu leitor um desnecessário trabalho de virar com as cansadas mãos, num virar e
revirar de olhos, e buscando em linhas que se perderam o significado do que estás a escrever agora. Mas podes ficar tranqüilo,
patrocinarei as tuas causas.
De minha parte diria à autoridade: senhor juiz, sou um homem casado de hábitos simples, sossegado, com três filhos e vida
quase que contemplativa. Não cometi crime maior que o de relembrar procedimento do meu pai que não se liga ao interesse e
à intenção proposta desse Bazar.
Por final, escrevo que não se deve colocar reparo nessas coisas da vida, nem na minha, nem na do meu pai. Perdas inconseqüentes ocorrem todos os dias da nossa existência: cabelos que
caem, dentes arrancados, emoções mal vividas por desatenção,
passeios e leituras deixados de fazer por razão que qualquer criminalista chamaria de fútil. Perdas fúteis. Muito diferentes das dos
primeiros anos dos nossos pais, que as tiveram importantes. Três
filhos.
Quando Eunice se foi, ela era a primogênita, o pai de vocês
ficou três dias mudo, calado, sem falar... Estamos ouvindo o início
de depoimento de um terceiro, amigo dos meus pais. Seu pai perdeu a língua. Um sábio triste. A palavra não consegue cobrir tanta
tristeza. Na mesma condição de desconsolo e desânimo a mulher
também ficou, mas só que por tempo interminável. Resguardo extenso e que tinha o nome especial de luto fechado. Praticamente
vegetou!
Assim funcionava na Vila Tanque, agora sou eu quem diz.
Imagino que inicialmente meu pai tenha vestido uma camisa preta. De luto fechado. Com o passar dos dias, não sei quantos, estou certo de que todos que o viram, o viram com um pano preto
retangular costurado no bolso de sua camisa de brim.
Bazar Monlevade
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Uns dias mais, o sinal de que algo ruim acontecera sofria pequeno deslocamento na vestimenta. Com dimensões diminuídas,
mas ainda costurado com linhas pretas na camisa de manga curta. Volta aos poucos certo calor na alma. Com ele a volta à vida.
Na porta do Bazar não mais se vê o Estamos de Luto! A
tristeza maior passa a fazer distância do coração triste que ainda bate por vida nova naquele peito. A mulher é boa parideira,
pode-se ter novos filhos nesse mundo de Deus. O tempo vai se
escoando, assim como se escoam os círculos concêntricos de uma
pedrinha jogada da vertical nas águas de um lago tranqüilo. O
retângulo preto, que vimos paulatinamente reduzir as dimensões,
transforma-se em pontos que nunca deixarão de aparecer. Até
fundir-se em um só. Estacionado dentro da alma. Impossível de
ser extirpado. Como o ponto idealizado por Foucault para que
compreendêssemos o seu pêndulo. Imaterial!
É assim que funciona o amor. Fica somente a saudade que,
com mais tempo, transforma-se em sentimento suave. Resignação. Novas perdas aconteceram. Várias vezes ouvimo-los dizer
relatos da pobreza hospitalar dos tempos em que perderam os
outros dois filhos. Introduziam com ar reflexivo no mesmo molde
que dissemos quando da falta prematura da filha Eunice.
Quando o Paulo se foi... Quando o Jaiminho se foi…
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Capítulo 49
Onde se diz algumas coisas sobre o final de vida dos nossos
pais: anos 90 e início dos anos 2000
O
fundador do Bazar Monlevade morreu às três horas
da madrugada de quatro de Março de 2003. Dia de
carnaval - hoje não há mais ô jardineira por que estás tão triste,
nem menino fantasiado de marinheiro. Aos 87 anos incompletos:
nascera em 26/3/1916.
Antes disso, já no hospital, pedira um pão de queijo recheado
com lingüiça bem temperada. Como do seu gosto. Tinha se mudado há cerca de três décadas para o Espírito Santo, mas não se
esquecera das delícias da boa comida mineira. No último contato
disse-me estar relaxado, foi embora tranqüilamente! Tal como um
elefante que se afasta em definitivo de sua manada, ele conhecia
o seu destino.
Aqui deverá permanecer para todo o sempre, abaixo de um
relvado, mas alguns metros acima do nível do mar. Com o espírito
pairando sobre as águas oceânicas de Nova Almeida, pois gostava muito de ir à praia, e de banho diário em água salgada.
Encontra-se sepultado no setor rosa, requescitatiam in pace,
jazigo 26-49, do cemitério Parque Jardim da Paz. O Início de
Uma Nova Vida é o que diz o seu comercial. Fica em Laranjeiras,
município de Serra, a alguns quilômetros da capital dos capixabas.
No seu caminho de acesso, vê-se o morro do Mestre Álvaro que
monitora a vida de toda a grande região do planalto serrano. Bela
vista encravada do lado esquerdo da grande reta do aeroporto para
quem caminha em direção ao município de Serra. Como nosso
pai, muitos mineiros a ele escolheram como residência definitiva.
312
Jairo Martins de Souza
Visitei-o hoje. Há flores desidratadas, mas limpas, em seu túmulo. Alguém por ele anda zelando, tirando poeira daquele tampo de simples granito.
Noutro parque, o da Colina, em Belo Horizonte, minha mãe,
Alice Martins de Souza, repousa desde 07/03/1995. Em Janeiro
do mesmo ano estive com ela no sítio de Rio Piracicaba. Morando
distante, foi onde a vi pela vez derradeira. Lembro-me bem, estava feliz: minha mulher cortou-lhe os cabelos sob a sombra amiga
de mangueiras cujos frutos tanto apreciava.
Senhor, leve-me logo, o meu peito dói muito! Foi o que disse
pouco antes de morrer: foi atendida rapidamente! Seu espírito
paira sobre o alto das montanhas de Minas, mais próximo do
céu.
Ao vê-los mortos, nos caixões nos quais se tornarão cinzas,
tal como prometido pelo salvador, entendi muito bem que, com
eles, um pouco de minha carne também morreu.
Mas de tudo há que se tirar algo de bom. Se estão lembrados
de algo que acabaram de ler, o sonho de um menino de Monlevade por aqui ocasionalmente renasceu.
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Capítulo 50
Final
N
esta manhã, em que concluo as páginas desse livro, o sol ainda não conseguiu se desvencilhar da
grossa capa de nuvens que teimosamente esconde seus ombros.
Nem conseguirá. Hoje é Finados. Nele minha avó Rosinha nasceu e meu avô Clemente disse não ser próprio para caçar.
Afora uma ou outra correção gramatical, ou de ortografia
grosseiras, algo me diz que é hora de parar. Com o coração leve,
pois o ruído de crianças da casa vizinha anuncia que a vida segue
com alvíssaras para o menino Cusecco: faz poucos dias, minha
primogênita anunciou a vinda do primeiro neto. Outros virão!
Cai chuva fraca e estamos cruzando os céus do mês de Novembro a dez mil e oitocentos quilômetros por hora. Observamnos os olhos atentos e fixos das estrelas da constelação do escorpião. O ano é de 2007.
* * *
Esse livro foi editado e impresso em papel
Renova solf 75g/m2 e Capa Triplex 250g/m2
pela Grafer Editora em 2008
* * *
Grafer Editora
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