a ocupação e o despejo da “telerJ”

Transcrição

a ocupação e o despejo da “telerJ”
Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 3
EDITORIAL
Derrotar o velho: A
fazer brotar o novo F
ÍNDICE
importância dos
Movimentos Sociais
Marina Barbosa, professora da UFJF e militante do ANDES-SN
O
MTST é um movimento popular que atua para organizar
a imensa massa de trabalhadores das periferias brasileiras.
Sim, somos um movimento de estratégia territorial em
luta pela construção do poder popular! Apostamos na organização e luta para realizar as transformações necessárias em nossa
sociedade e conseguirmos respirar o ar de um mundo novo.
Uma das principais tarefas na construção do novo é derrotar o velho. E o velho é o capital. Por isso, fazemos ocupações que enfrentam
a propriedade privada e nos solidarizamos com greves que paralisam a
produção e manifestações que ameaçam a circulação de capital. Nosso
empenho é prático na luta de classes.
Mas entendemos que o desafio é enorme. Estamos nas ruas desde
a Comuna de Paris, derrotamos o czar na Revolução Russa e fomos
guerrilheiros na Revolução Cubana e Nicaraguense. Nossa luta é histórica e mundial, sabemos como ela é difícil... portanto, nossa vitória
não pode ser por acidente e nem dependendo de favores das elites, que
jamais hesitam em esmagar aqueles que as questionarem.
Refletindo sobre essas e outras questões ao longo de nossa trajetória
de luta que já chega perto da maioridade, chegamos à conclusão de
que nossas trincheiras devem se ampliar. Mais do que isso: queremos
encarar o desafio de unir prática e teoria, comumente separadas na luta
anticapitalista.
A Revista Territórios Transversais é parte desse esforço. Com
ela, nosso objetivo é apresentar alguns de nossos acúmulos; debater temas pertinentes à questão urbana; abrir espaços para a produção teórica
de apoiadores e aliados; produzir reportagens e entrevistas sobre acontecimentos relevantes; sempre numa perspectiva crítica. Enfim, ajudar
a debater e entender os rumos do capitalismo contemporâneo e fazer
ecoar o barulho das metrópoles e suas forças de resistência.
Para isso, criamos este espaço que, a princípio, será semestral. Formulação crítica, expressão política e artística e jornalismo independente
a serviço da luta social.
Não foi fácil. Além das dificuldades financeiras, nossa equipe não
conta com profissionais do ramo editorial.
Fundamental: sem a solidariedade de mais de cem doadores, sejam
indivíduos ou coletividades, essa empreitada não seria possível, por isso,
nosso mais profundo agradecimento. Devemos agradecer também ao
nosso extraordinário conselho editorial, formado por militantes, intelectuais e personalidades que nos apóiam e apostam em iniciativas como
esta. Por fim, nenhum sentido haveria sem a existência e resistência das
milhões de trabalhadoras e trabalhadores que vivem o massacre diário
do desenvolvimento capitalista nas cidades brasileiras. É para esse povo
que dedicamos o primeiro número da nossa revista.
Conselho Executivo Territórios Transversais
avelização e o
Colapso Urbano
Maurilio Lima Botelho, professor da UFRRJ, co-autor de “Até o último homem”
A Disputa por trás do Plano Diretor de SP
Guilherme Boulos, filósofo e psicanalista,
da coordenação nacional do MTST
Os Legados dos Megaeventos
Guilherme Simões, professor de sociologia,
da coordenação nacional do MTST
Resenha:Um Mundo em Ruínas
André Villar, filósofo e doutor em Serviço Social, co-autor de “Até o último homem”
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Um final de semana na Ocupação Copa do Povo
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Ensaio: a MAIOR ocupação do Mundo
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Mirela VonZuben, jornalista; Felipe Melo, fotógrafo
Pablo Pascual e Amanda Perobelli, fotógraf@s
O Anticapitalismo do MTST
Débora Goulart, cientista social, professora na UNESP/Marília,
militante da Conspiração Socialista
O Programa Mais Médicos
Felipe Monte Cardoso, médico de família,
militante do Fórum Popular de Saúde
As Contradições Urbanas da Capital Federal
Francisco Carneiro de Filippo, economista, militante do PSOL/DF
Érika Lula de Medeiros, advogada, militante do PSOL/DF
Drama do Povo no Despejo da TELERJ
Henrique Sater, médico, do setor
de comunicação e da coordenação estadual do MTST/RJ
O Poeta CHE GUEVARA
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Jeff Vasques, poeta, militante do PCB
Conto: UM NEGÓCIO
Pedro Rocha, filósofo e professor da UNIRIO.
Ilustrações
Batata
Capa
Chrysantho Figueiredo e Henrique Sater
Quadrinhos/Charges
João da Silva, Nico e Carlos Latuff
quem faz e ajuda a fazer
Conselho Editorial: César Órtega • Débora Cristina Goulart • Eblin Joseph Farage • Elizete Menegat • Francisco
Miraglia Neto • Maria Orlanda Pinassi • Marildo Menegat • Marina Barbosa Pinto • Marina Monteiro de Castro • Neil
Larsen • Nilo Batista • Paulo Eduardo Arantes • Roberta Lobo • Valério Arcary • Terry Eagleton
Conselho Executivo: Clarice Salles Chacon • Felipe Brito • Guilherme Simões• Henrique Sater • Pedro Rocha de Oliveira
Tiragem: 1000 exemplares. Data de fechamento da edição: 29 de maio de 2014. Para assinar: www.mtst.org/territorios • facebook.com/mtstbrasil • [email protected]
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4 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento
Movimentos sociais e estratégia de classe
Marina Barbosa Pinto
C
onversar sobre
os movimentos
sociais na atualidade exige reconhecê-los como sujeitos sociais
que ao mesmo tempo são produto e produzem a conjuntura na qual se manifestam. Para
decifrá-los em sua integralidade
há que identificar suas determinações estruturais e, assim,
entender a correlação de forças
entre estes atores do processo
histórico e também os sujeitos
destas ações.
O sistema capitalista tem,
nas duas últimas décadas, em
resposta à sua crise, intensificado sua ofensiva sobre o trabalho
e sobre os processos de reprodução social. Este cenário condensa as reações de diferentes
segmentos sociais em diferentes formas organizativas, desde os setores mais clássicos dos
trabalhadores em suas formas
também clássicas (sindicatos e
partidos), como diferentes experiências que inovam nas formas organizativas e de luta e agregam os trabalhadores, desempregados, juventude em torno do
direito à vida expressos na luta pela saúde, educação, transporte, moradia, lazer, democracia. Em
síntese: no direito à vida na cidade plenamente.
Movimento social é manifestação política realizada por sujeitos sociais para enfrentar as contradições político-sociais resultantes do sistema
organizado por oposição de classe, sua existência
no cenário político é expressão do processo histórico e social, e não um acidente ou uma ação
de grupos que têm por definição um comportamento vândalo.
A resistência ocorre em âmbito internacional,
com levantes por democracia, greves por direitos,
enfrentamento ao desemprego, reações à ação do
grande capital, defesa do meio ambiente, por políticas públicas universais, dentre outras bandeiras.
Tratam-se de respostas massivas da classe trabalhadora aos cortes de direito em meio às políticas
de “austeridade”. Mas este cenário de reação ainda não foi suficiente para inverter a correlação de
forças que determina a quadra defensiva da ação
da classe em âmbito mundial, visto que prevalece
a luta para manter conquistas básicas, para tentar
perder menos de seus direitos já consolidados,
uma vez que o avanço ideológico, político, militar das forças capitalistas em todo o território planetário se consolidou nas duas últimas décadas.
A etapa atual da acumulação do capital se assenta no processo de superexploração da classe
trabalhadora como uma expressão intrínseca à
nova configuração capitalista. Podemos perceber isso de modo mais nítido e cruel na privação
econômica, social, política e cultural a que está
submetida a maioria da população, enquanto
o desenvolvimento econômico, tecnológico e
científico proporciona condições excelentes de
bem-estar a poucos indivíduos.
Trata-se de um momento de crise e, em tais
momentos, as contradições constitutivas se agudizam, provocando uma reorganização das relações sociais e de produção. Na atualidade, tal
reorganização ocorre no sentido da intensificação dos processos de mundialização do capital e
reconversão produtiva, e do desdobramento dos
pressupostos organizativos neoliberais nas relações de trabalho: a reestruturação das políticas
sociais a partir de sua privatização e desconfiguração das mesmas como materialização de direitos
sociais coletivos, as quais dão sequência às reações
da classe dominante à crise de acumulação e expansão do capital e se traduzem para a classe trabalhadora com a precarização de suas vidas.
Nesse contexto, é reservado à classe trabalhadora um recrudescimento da exploração por
meio de novas configurações nas relações de
compra e venda da sua força de trabalho, bem
como uma destruição permanente do arcabouço
jurídico e social de reconhecimento e efetivação
de direitos concernentes à sua reprodução. Destacam-se nestas estratégias do capital: a) a violência institucional, ou a dominação mantida pela
coerção mais extrema; b) a contenção da reação
pela assistência; c) o investimento ideológico nas
propostas de empreendedorismo, empregabilidade, inserção social, responsabilidade social, entre
outras, na maior parte das vezes feito diretamente
pelos grandes grupos capitalistas, através de fundações privadas, ONGs e entidades empresariais.
Profundas mudanças ocorrem e desnudam o
grau de exploração da força de trabalho: restrição
de postos de trabalho, diversificação de atividades,
fim de atividades laborais, desemprego estrutural,
precarização de contratos de trabalho, perda de
direitos sociais e trabalhistas, redefinição do papel dos servidores públicos no âmbito dos estados
nacionais a partir da reconfiguração do papel do
Estado frente à questão social, redução das políticas sociais, medidas assistencialistas, entre outras.
Cabe destacar que esse quadro, por não se
circunscrever somente à economia e à política,
invade a totalidade da vida social, acarretando a
conformação de uma nova sociabilidade.
Uma racionalidade de caráter pragmático e
produtivista alça a competitividade, a eficácia e a
rentabilidade ao patamar de únicos critérios válidos para orientar as análises e decisões sobre a vida
em sociedade, contribuindo para acarretar forte
dessolidarização, expressa no culto ao individualismo, no cultivo da concepção fragmentária
do social, na desqualificação da coisa pública, na
descrença no potencial emancipatório das classes
trabalhadoras.
Neste quadro de superexploração da classe
trabalhadora e nova sociabilidade marcada pelo
pragmatismo e pelo individualismo é que se põe
em xeque a relação entre as lutas imediatas e o
projeto estratégico de emancipação da classe. Este
questionamento tem dois matizes: um que desqualifica os movimentos sociais e seu potencial
para organizar a reação dos trabalhadores, porque questiona a classe como agente possível de
organizar-se enquanto sujeito autônomo. Nessa
concepção, o conflito é deslocado para o âmbito
individual concentrando-se na ação solitária do
individuo que será o responsável pelo seu fracasso
ou vitória no contexto da disputa pelo espaço na
sociedade e o máximo de espaço organizativo são
as instituições de caráter não governamentais que
cumprem papel associativo ou de solidariedade
civil destituído do caráter de classe. O segundo matiz é a ressignificação destes movimentos
que, em sua maioria, assumem o papel de atuar
na perspectiva de organizar a classe para ajustá-la
ao processo de acumulação em curso, destituindo
o processo de ação do seu caráter conflituoso e
marcando assim este espaços como um lugar de
constituição de consenso entre patrões e empregados, Estado e população.
De fato, o determinante deste processo, o que
unifica os dois matizes e os classifica como iguais
na diferença, é a perda da referência no projeto estratégico de ruptura com a ordem estabelecida, o
que faz com que a ação dos movimentos tenda
a se restringir às lutas presas em suas amarras re-
Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 5
formistas no enfrentamento com o capital. esse
sentido, o processo de organização e politização da
classe trabalhadora – e daqueles que se caracterizam como “sem-” terra, teto, etc.– acaba dissociado da experiência de enfrentamento, organização
de base, desafio à patronal e ao aparato repressivo
estatal, e da unidade com os demais trabalhadores.
O que tai experiências exigem é justamente a ação
para além do imediato, e na direção da contribuição estratégica para a organização da classe na luta
pela sua emancipação. O capitalismo, neste marco, é assumido como única verdade possível para
organizar a vida em sociedade, portanto, caberia
aos sujeitos submeterem-se e tentar viver o “menos pior” no contexto da ordem.
Nesse árido terreno de reorganização da classe,
um conjunto de entidades sindicais e movimentos
dos trabalhadores resistiram à avalanche que reordenou a ação dos movimentos sociais. Resistiram
mantendo sua ação estruturada na perspectiva
da organização dos trabalhadores a partir de seus
locais de trabalho, pois isso é o que aglutina em
torno das reivindicações relativas ao processo de
venda de sua força de trabalho e, portanto, propicia a construção das mediações que viabilizam
as lutas cotidianas para responder às necessidades
destes sujeitos. Mas resistiram também nos espaços de luta pela vida, com destaque para o direito
à vida na cidade. Nessa luta, ao definir sua táticas,
seu local de ação direta, politizar os debates, as reivindicações e ações, o movimento procura o seu
reconhecimento como sujeito, forçando sua presença na arena de negociação; e busca recuperar
a condição e a identidade de trabalhador de seus
participantes, superando ilusões em relação à democracia liberal.
Neste processo de resistência, é possível identificar: a) que alguns movimentos sociais estão
demonstrando novas formas de confronto com
os interesses dominantes, expressando diferenças
frente à trajetória organizativa e a cultura política de esquerda no Brasil; b) que não é possível as
configurar como novas formas de representação
coletiva da classe trabalhadora, tendo em vista sua
metamorfose na atualidade; e c) que essas lutas e
resistências se dão num quadro de ainda forte refluxo e num contexto de ausência do operariado
da cena política, o que confere limites à intervenção. Mas podemos afirmar que há diversos pontos
de unidade entre esses distintos movimentos organizativos de segmentos da classe, tanto os “clássicos”, quanto aqueles que trazem renovação de
método de luta e organização. Ambos resistiram
mantendo o princípio da independência de classe,
o que é o principal ordenador da organização da
classe para atuar em defesa de seus direitos: ter o
discernimento político e prático de que o lado do
trabalhador é um e o do patrão é outro, uma vez
que seus interesses no processo organizativo das
relações sociais são antagônicos, de modo que não
é possível ter uma ação que tenha como horizonte
a unidade institucional e societária entre trabalhadores, patrões e estado.
Por fim, resistiram tomando como referência
para a construção deste processo a democracia,
condição para o envolvimento dos trabalhadores
nas suas entidades, nos seus caminhos de luta e
no projeto para o qual a ação de sua organização
corporativa irá se direcionar. Isso é o que permitirá a participação dos indivíduos na condição de
sujeitos sociais coletivos que se unificam pela particularidade de serem vendedores de sua força de
trabalho – único bem que os permite lutar pela
sobrevivência na sociedade capitalista.
A junção destes dois princípios – independência e autonomia – propiciará que os espaços
organizativos e de ação de fato representem os interesses dos que vivem do seu trabalho e que escolheram esse lugar para atuar socialmente. Também
dará vitalidade à capacidade de reação frente ao
processo de ação da classe dominante, pois, com a
democracia, o embate das ideias e propostas estará
à disposição dos sujeitos e poderá assegurar a politização do processo. Com a independência mantemos a consciência de que os interesses e lugares
das classes sociais são distintos, pois seus interesses
são antagônicos, o que permite compreender mais
profundamente o papel do Estado nesse embate.
Mas a junção destes princípios não é suficiente,
há que ter como base o projeto estratégico de ruptura com a ordem. Isso é o que permite a unidade,
superando a fragmentação, para a luta da emancipação, partindo das necessidades objetivas e levando a luta para patamares mais amplos organizativos
e programáticos.
No Brasil, na atualidade, o que se verifica é que
o processo organizativo da classe, em consonância
com o processo internacional, tem confirmado o
embate entre dois projetos: um que direciona essa
organização para o consenso entre as classes, abandonando a perspectiva de ruptura com a ordem; e
outro, minoritário, que mantém como horizonte a superação da organização das relações sociais
pelo ordenamento do capital, refirmando a ruptura com a ordem societária capitalista.
O governo Lula da Silva cumpriu um papel decisivo para esta configuração majoritária das forças
dirigentes da classe, visto que seu governo combinou, por um lado: a) a conjuntura econômica
mundial que desenhou
um quadro de maior
fragilidade dos direitos do trabalho,
com aumento do
desemprego e recrudescimento
da
reestruturação produtiva e alteração na
relações de trabalho
com a precarização
e perda de direitos,
gerando maior temor
e direcionamento de lutas e reivindicações para se
manter os empregos e não por melhorias nas condições destes. Por outro lado, b) a ilusão de que
aquele governo era o governo da classe, e portanto
suas diretrizes estariam a favor de seus interesses, o
que gerou um desarme político e uma “confusão”
ideológica como se não houvesse mais distinção
de classes, como se todos (trabalhadores e patrões)
pertencessem ao “mesmo lado”. Podemos até
afirmar que viemos da mesma matéria – as lutas
da classe trabalhadora deste país. Porém, na mistura que forjou o seu produto, aquele governo desde seu inicio, era outra coisa, não era mais representante dos interesses dos trabalhadores. Isso fez
com que os principais organismos da classe, em
especial sua principal central sindical e seu maior
partido, assim como os partidos aliados e representantes de segmentos importantes da classe, assumissem um papel de correia de transmissão do
governo no movimento, destituindo-se de seu caráter de classe e de capacidade de enfrentamento e
construção das lutas perante os ataques do Capital,
até porque alguns dos representantes do patronato,
também estavam no governo, juntamente com os
representantes dos trabalhadores.
Acreditamos que a base organizativa dos trabalhadores está no local onde estes exercem seu
trabalho e buscam sua sobrevivência e que a autonomia frente a partidos, Estado e governos é
condição para manter o
princípio da independência de classe. Acreditamos
também que a democracia
é a condição para responder
aos interesses dessa classe. Mantendo a firmeza nestes princípios
e tendo a capacidade de ler a realidade e definir a unidade com os que
querem lutar em favor dos interesses
dos trabalhadores, sempre atuando a
partir das reivindicações reais e concretas destes, seremos capazes de aglutinar
forças para reverter a quadra defensiva da
classe e manter o horizonte de ruptura
da ordem como horizonte que dá sentido às lutas sociais. •
6 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento
favelização mundial
o colapso urbano da sociedade capitalista
Maurilio Lima Botelho
V
ivemos um momento
crucial na história urbana: a partir de 2008, mais
da metade da população
mundial vive em cidades. A informação causa estranheza e choque. A vida
urbana só agora se torna uma realidade para a maioria da humanidade e,
no entanto, a sensação imediata, para
a maior parte das pessoas, é que as
cidades tornaram-se insustentáveis.
Apenas essa constatação demonstra a intensidade dos problemas sociais a serem enfrentados: a margem
para crescimento das cidades ainda é
imensa, dado que um contingente de
pessoas enorme ainda vive no campo;
no entanto, o estado das cidades é extremamente crítico. Como as gigantescas aglomerações urbanas podem
receber continuamente novos habitantes se os que aí vivem já estão, em
boa parte, em estado de penúria e em
habitações extremamente precárias?
Essa tensão traz para o primeiro
plano das reflexões sobre o futuro das
cidades a relação entre urbanização e
favelização. A evolução urbana mundial hoje é marcada por uma intensa
favelização, o que bem poderia ser
encarado como uma regressão social:
a urbanização contemporânea é, marcadamente, uma involução urbana.
Involução, não porque os novos
habitantes das cidades, os milhões
que chegam para se apertar entre
ruelas, barracos, casebres e perseguir
avidamente uma sub-remuneração,
estejam provocando uma reversão na
cultura urbana ou uma decadência
nos modos de vida da sociedade. Na
verdade, o próprio desenvolvimento
capitalista, esgotado em sua dinâmica
histórica, provocou um colapso urbano que pode ser visto em diversas
manifestações pelo mundo, mas cuja
face mais evidente é a exponencial
favelização que se alastra por todo o
planeta. As massas empobrecidas que
engrossam ou expandem os terrenos
das favelas por todo os cantos no glo-
bo não são, portanto, as responsáveis
por essa regressão urbana mundial,
são as suas principais vítimas.
Segundo os dados oficiais do Programa das Nações Unidades para os
Assentamentos Humanos (ONU
-Habitat), somente em países da periferia do capitalismo existem mais
de 800 milhões de pessoas vivendo
em favelas, o que representa 32% da
população dessas nações (em 2010).
Mas esse número esconde realidades
mais duras. Além de não englobar a
favelização no centro do capitalismo
(situação grave hoje, por exemplo,
nos EUA, países do Sul e Leste Europeu), os dados são rebaixados por
relatórios questionáveis fornecidos
por países-membros que “solucionam” seus problemas habitacionais
com maquiagens estatísticas ou com
limitados programas de urbanização
de favelas. Os próprios pesquisadores
da ONU admitem essas dificuldades
em função da maleável classificação
utilizada por cada país para definir assentamentos precários, aglomerados
subnormais ou favelas. Assim, os números oficiais da ONU apontam para
a chegada de 58 milhões de pessoas
nas cidades dos países periféricos,
entre 2000 e 2010, sendo que, desse
total, seis milhões foram morar em
favelas. É um número assustador e ao
mesmo tempo subavaliado.(1)
U
m dos problemas da
classificação – evidente
quando se tenta reunir
realidades nacionais ou
regionais distintas sob um mesmo
conjunto de dados – é o nível de generalização necessário para conseguir
estabelecer identidade entre as formas de habitações apreendidas em
diferentes contextos. A categoria utilizada pelo ONU-Habitat e aplicada
em relatórios sobre as condições precárias de habitação é slum, um termo
que surgiu em Londres, no início do
século XIX, para denominar cômo-
dos de “baixa reputação”, utilizados
por populações pobres e miseráveis,
principalmente famílias de operários
industriais que, recebendo baixíssimos salários, tinham que se apinhar
em quartos alugados de casas ou edifícios insalubres. Associado a cortiços, casebres, barracos improvisados
com diversos materiais etc., o termo,
com o tempo, passou a ser utilizado
na Inglaterra como uma definição
técnica para “casa materialmente imprópria para habitação humana”.(2)
Contudo, essa definição é por demais ampla, e as condições que fazem
com que uma casa seja considerada
imprópria variam de região para região, país para país e mesmo de cultura para cultura. O programa da ONU
para a habitação segue, então, um
critério pautado na ausência de pelo
menos uma das seguintes características: a) moradia duradoura que ofereça
proteção contra condições climáticas
adversas (tempestades, chuvas etc.),
b) espaço suficiente (máximo de três
pessoas dividindo um cômodo), c)
acesso suficiente e sem grande esforço
à água tratada, d) acesso a instalações
sanitárias adequadas (banheiro privado ou público dividido com poucas
pessoas) e, por fim, e) segurança na
posse do imóvel (propriedade regularizada, posse reconhecida ou proteção contra despejos forçados).(3)
Embora o termo slum não tenha
um correspondente fiel em língua
portuguesa, é comum a sua tradução
por favela, inclusive pelos próprios
órgãos da ONU. (4) A origem da palavra “favela”, como se sabe, se deve
ao Morro da Providência, no Rio de
Janeiro, próximo à Central do Brasil
e ao comando central do Exército,
onde se instalaram soldados veteranos da Guerra de Canudos que não
tinham para onde ir. Por trazerem
uma determinada planta da região
do conflito ou por causa de um morro existente no sertão nordestino, o
aglomerado de habitações precárias e
improvisadas foi chamado de Morro
da Favela. Sendo “favela” o nome de
uma planta que apresenta sementes
em cápsulas (fava, vagem). Assim, as
primeiras décadas do século XX, o
nome de uma comunidade específica
tornou-se o substantivo genérico que
designaria todos os aglomerados habitacionais miseráveis que se erguiam
na cidade, principalmente nos morros. Através da imprensa, rádio e depois TV, e graças à condição de capital nacional e centro cultural do país,
essa acepção do termo se expandiu
do Rio para todo o país, muitas vezes deslocando expressões regionais,
como vila, mocambo, etc.
Embora utilizado por jornalistas, cientistas sociais, historiadores,
geógrafos e arquitetos, os órgãos de
pesquisa e estatística oficiais preferem
expressões técnicas substitutas de favela, com a justificativa de que esse
termo possui conotações locais, culturais e carregam juízos valorativos.
Em âmbito nacional, por exemplo, o
IBGE utiliza a categoria de “aglomerados subnormais”, definido como o
conjunto com mais de 51 habitações
carentes de serviços públicos essenciais, ocupando terrenos alheios (públicos ou privados) e estabelecidos de
forma desordenada e densa. (5)
U
m dos problemas das definições formais é que,
como elas dependem da
aplicabilidade da leitura realizada, partem de amostras que
muitas vezes podem encobrir a realidade: no caso do IBGE, por exemplo,
se um conjunto de habitações possuir
todas as características estipuladas,
mas apresentar menos de 51 casas,
então esse aglomerado, essa pequena favela, não entra na contagem – e
quantas pequenas favelas dessas existem nas cidades brasileiras?
Também as diferentes definições
utilizadas por órgãos diversos criam
distorções quando se agrupam dados
Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 7
thomas leuthard
Com mais de 1 milhão de habitantes, Dharavi é uma “fervilhante colméia de fabriquetas de fundo de quintal e minúsculas moradias”
gerais ou quando se avaliam políticas
públicas. Por exemplo, enquanto o
censo de 2010 indicava um quadro assustador de avanço da favelização no Brasil,
um relatório da ONU sobre a situação
das cidades, lançado aqui mesmo durante
o Fórum Urbano Mundial de 2010, colocava o país entre os primeiros do mundo na “melhoria das favelas”, retirando
10,39 milhões de pessoas das “condições
inadequadas de moradia” entre 2000
e 2010. (6) Contudo, o órgão oficial de
estatística do governo brasileiro mostrava
que, no mesmo período, as favelas tiveram um aumento populacional de 65%,
uma ampliação de 4,2 milhões de moradores, somando um total de 10,7 milhões
de pessoas vivendo nos chamados “aglomerados subnormais” em todo o país.
Enquanto a economia brasileira cresceu,
nesses dez anos, 42%, as favelas cresceram, em termos absolutos, 75%.
Em algumas regiões metropolitanas, o
percentual de moradores em favelas é alto,
como em Belém, onde mais da metade
dos habitantes estão em favelas (53,9%),
ou Salvador, onde cerca de um quarto
vive em comunidades (26,1%). Mas no
geral, pela estatística oficial, a população moradora de favelas no Brasil é baixa, pois apenas 6% dos brasileiros vivem
nessas condições consideradas precárias.
Por mais assustadores que sejam esses
dados, entretanto, eles são subdimensionados, pois em Recife, enquanto o
IBGE indica 109 “aglomerados subnormais”, a própria secretaria de habitação municipal aponta para “400
aglomerados de baixa renda”. (7)
Em São Paulo, cidade com o segundo
maior número de moradores de favelas
(atrás apenas do Rio), as discrepâncias
não são menores: em 2006, o jornal
O Estado de São Paulo comparava os
números do órgão nacional com os da
prefeitura e indicava que, enquanto o
IBGE tomava apenas 8,7% da população como residente em favelas (909
mil moradores), a administração municipal apontava para 31% da população paulistana vivendo em condições
precárias (3,4 milhões). A grande
diferença se deve à metodologia empregada na definição das condições
de habitação, assim como a inclusão
de cortiços e pequenos agrupamentos
que são negligenciados na delimitação
dos “aglomerados subnormais”. (8)
De qualquer modo, embora possamos reduzir as distorções e as negligências praticadas através dos levantamentos estatísticos, os números são
mudos, descoloridos e incapazes de
expressar com um mínimo de concretude as necessidades existentes nas
favelas por todo o mundo. Necessidades que têm se ampliado e se aprofundado por todos os lados.
D
haravi, na Índia, famosa
por ter servido recentemente de cenário para
filmes hollywoodianos, é
conhecida por ser um grande organismo produtivo informal, uma “fervilhante colméia de fabriquetas de fundo de quintal e minúsculas moradias
em que as famílias vivem, trabalham
e se divertem quase literalmente uma
em cima da outra”. (9)
A favela, com uma população estimada de um milhão de moradores,
desconhece a separação entre casa e
trabalho, pois suas 15 mil residências
funcionam como oficinas, a maioria
muito pequenas: por exemplo, numa
casa de 20 metros quadrados podem
dormir 22 membros de uma mesma
família. Mais de 2 bilhões de dólares
por ano são produzidos em renda nessa favela, mas isso raramente se converte em remuneração para os próprios moradores.
“Em labirínticos corredores, tão estreitos
e verticais que a luz do sol bate no chão
apenas por minutos, moradias precárias
escondem fabriquetas conectadas à economia mundial. Delas saem potes de barro,
latões de alumínio, carteiras, sapatos, calças, bonés, roupas, tecidos ultracoloridos
para exportação, celulares e toda sorte de
eletroeletrônicos recauchutados. Um cemitério de quinquilharias que ressuscita em
novos produtos. É como estar num lixão,
no meio da sujeira e de odores que trazem
à memória temidas doenças. O esgoto jorra
na frente das casas e dos barracos. Pilhas de
sacos plásticos e sucata descartada pela área
mais nobre de Mumbai encontram abrigo
e serventia nos quartos, salas e onde mais
houver espaço.” (10)
Dharavi é a maior favela indiana
e a Índia é um dos países com mais
grave quadro de favelização no mundo. A décadas de total negligência dos
governos, mesclam-se os problemas
habitacionais, crescimento econômico acelerado em determinados pólos e
zonas econômicas especiais, mas geração de emprego insuficiente para a
grande maioria das milhões de pessoas que buscam anualmente uma nova
vida nas cidades. Mumbai (onde fica
a favela de Dharavi), antes chamada
8 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento
Bombaim, é a vitrine de todos esses
problemas: maior cidade do país, as
favelas são inúmeras e infindáveis:
“Qualquer pessoa que visite Bombaim se
impressiona com as enormes favelas, que se
estendem a perder de vista desde a extremidade do aeroporto – a barriga do avião chega
quase roçando os tetos ondulados e enferrujados de um mar de choças empoeiradas antes de transpor o alambrado da extremidade
da pista. À noite, os sem-tetos ocupam todos
os trechos de pavimento livre. Calçadas, entradas de prédios, o espaço sob viadutos em
construção são cobertos pelos vultos adormecidos dos pobres. Mães abrigam bebês e
criancinhas no aconchego de seu corpo, sem
outro meio para defendê-las. Os que têm
sorte bastante para ter um charpai, uma
cama simples de madeira e molas, se amontoam nela, a cabeça de um ao lado dos pés
do outro. Há barracões, choças e moradores
de ruas ao lado de clubes de campo, colados a
prédios de apartamentos luxuosos.Apesar do
vertiginoso crescimento da construção de moradias, 60% dos 18 milhões de pessoas que
constituem a população de Bombaim vivem
em favelas ou nas ruas. Isso significa 10,8
milhões de pessoas. Em Dharavi, a maior
favela de Bombaim, há um banheiro para
cada 1.500 pessoas. De acordo com o último recenseamento da Índia, feito em 2001,
40 milhões de habitantes das cidades indianas vivem em favelas, apenas “49,5% das
famílias urbanas tinham água encanada em
casa e somente 57,4% possuíam instalações
sanitárias”. (11)
Com uma tradição de tratamento
violento do problema das ocupações
irregulares (o caso mais famoso é a
decretação do Estado de Emergência, em 1975, no governo de Indira
Gandhi, para que favelas fossem destruídas), a Índia tenta hoje resolver o
problema das aglomerações de habitações precárias por meio de parcerias
público-privadas (PPPs), onde a força
também comparece. Incorporadoras e
construtoras são contratadas para eliminar favelas e explorar o espaço liberado, desde que forneça um teto para
os antigos moradores em espigões com
apartamento minúsculos. Dharavi está
na mira dos tratores: uma das grandes
PPPs em curso no país tem por objetivo construir um grande conjunto comercial e residencial no local da favela,
assentando para isso os antigos moradores em conjuntos habitacionais.
Como as residências do emaranhado
são, no fundo, unidades produtivas,
a maioria dos moradores é contra a
remoção, pois o deslocamento para
apartamentos deve liquidar com suas
fontes de renda.
Em muitos casos, os loteamentos
irregulares, sejam sobre as áreas agrícolas ou desérticas, são feitos por terceiros que vendem os pequenos lotes
sem possuir nenhum título ou garantia da propriedade. Uma das características que acompanham a expansão
mundial das favelas é exatamente a
formação de um vigoroso mercado
imobiliário informal voltado para as
populações miseráveis – não bastando
a miséria extrema, até mesmo o acesso
a um pequeno terreno ou um barraco só se torna viável, na maioria das
vezes, através da compra. O mercado
é um corpo totalitário que se interpõe
mesmo entre os mais miseráveis – o
acesso não-mercantil à habitação, ue
parecia uma característica das áreas
favelizadas no passado, está agora se
tornando raro.
Talvez um dos maiores desafios
para a questão urbana no mundo contemporâneo seja exatamente essa ampliação e consolidação de um mercado imobiliário informal irregular – e
muitas vezes ilegal – em torno das
favelas, que se expandem ou se multiplicam por todo o mundo. Segundo
a ONU, em relatório divulgado em
1996, a maior parte dos acréscimos realizados nos estoques de moradia “na
maioria das cidades do [hesmifério] Sul
nos últimos 30 ou 40 anos” tem sido
feita pelo mercado imobiliário ilegal
ou informal. Mas o órgão alerta que,
mesmo nos países do Norte, a participação desse mercado tem sido importante para a oferta de novas habitações
a preços baixos. (12)
S
egundo a ONU, até 2020,
o número de habitantes das
favelas em todo o mundo
deve chegar a cerca de 900
milhões de habitantes. Metade de
todo o crescimento das favelas se
deve ao crescimento interno da população já presente nas comunidades, um quarto se deve ao êxodo de
populações do campo para a cidade,
que encontram nas favelas a única
alternativa de moradia, e o outro
quarto do crescimento se deve à incorporação de áreas rurais ao redor
das cidades, engolfadas pela expansão urbana através das favelas.
A urbanização da humanidade, uma realidade aparentemente
óbvia, mas somente agora tornada
real, é o resultado da aceleração da
fuga para as cidades: milhões de
pessoas são expulsas de suas terras
por jagunços, seguranças privados,
paramilitares empregados dos grandes proprietários de terra ou simplesmente porque não conseguem
concorrer com a dinâmica destrutiva do agronegócio globalizado.
Mas há algo novo na relação entre
campo e cidade: a urbanização sem
limites, estendendo-se pelo horizonte (chamada por especialistas
de urban sprawl, ou urbanização
“esparramada”), lança suas franjas
por cima das terras antes destinadas
à agricultura. Em muitos países da
periferia do capitalismo, as favelas são a forma intermediária entre
as cidades propriamente ditas e o
campo, formando um continuum
rural-urbano marcado pela pobreza. Como definiu com precisão o
geógrafo norte-americano Mike
Davis, “em muitos casos, a população rural não precisa migrar para a
cidade; a cidade migra até ela”. (13)
Do mesmo modo que a relação entre campo e cidade parece
ter mudado, há algo absolutamente novo na história da urbanização
em nossos dias: a urbanização do
fim do século XX e início do XXI
torna-se independente da geração
de empregos ou do crescimento
econômico. Enquanto a saída do
campo, no passado da sociedade capitalista industrial, estava associado
à oferta de emprego nas cidades ou
mesmo ao crescimento como um
todo da economia nacional, a urbanização de hoje não apenas ocorre
em velocidade muito superior ao
crescimento econômico apresentado pelos mercados nacionais, como
muitas vezes ocorre sem crescimento econômico. Assim, “a urbanização atual não está apoiada na
expansão da indústria e do emprego
(...). Trata-se, em geral, do paradoxo de uma ‘urbanização sem crescimento’ econômico, ou de uma
urbanização da pobreza”. (14)
Por isso, a favelização é uma
marca indissociável da urbanização
atual. No passado, o processo de
urbanização acelerado puxava consigo a favelização, resultado da concentração de riquezas ou da desproporção entre oferta habitacional
e demanda crescente nas cidades.
Mas a crise econômica e a miséria
generalizada têm invertido a relação: em muitos lugares a favelização é que tem puxado a urbanização ou, o que é mais preciso, ocorre
uma favelização sem urbanização,
já que a aglomeração de barracos e
casebres por quilômetros sem saneamento, infraestrutura, vias de circulação ou equipamentos públicos,
não poderia ser chamado de espaço
urbano rigorosamente. É como se
estivéssemos presenciando o nascimento de um mundo pós-urbano,
uma urbanização sem a formação
de cidades – os conceitos são de difícil aplicação porque a realidade,
catastrófica e original, não se deixa
definir.
Em todos os casos, a urbanização quase se tornou um sinônimo
de favelização e, no entanto, por
mais crítica que seja a situação dessas cidades em crise, o florescimento do mercado imobiliário informal
e/ou irregular é apontado por instituições e organismos econômicos
internacionais como a alternativa
para a carência de moradia. Organismos como o Banco Mundial ou
mesmo o ONU-Habitat, principal
órgão internacional preocupado
com os descaminhos das formas
de habitação no mundo, ressaltam
em seus documentos oficiais e discursos o papel da transformação da
terra, dos imóveis e das casas em
mercadorias, o que permitiria flexibilizar o seu acesso. A solução neoliberal para o problema habitacional
é na verdade o reforço da interdição
à habitação, ou seja, a consolidação
da moradia como uma mercadoria
que precisa ser obtida por meio de
uma relação monetária. Os organismos internacionais e seus intelectuais estimulam, por exemplo,
o reconhecimento, a regularização
e mesmo a titularização das áreas
ocupadas informalmente, dos assentamentos precários e das favelas, prioritariamente como forma
de transormação em propriedade
privada, portanto em conversão da
posse da habitação numa mercadoria. Pretende-se combater a carência habitacional estimulando-se as
suas causas, principalmente as condições que tornam possível a especulação imobiliária.
Para aqueles que vivem em situações de extrema pobreza, precariedade e insegurança econômica
e residencial, é evidente que o reconhecimento da posse de sua moradia, por mais precária que seja,
torna-se um passo importante para
garantir a estabilidade social. Mas o
mero reconhecimento como parte
de inclusão nos circuitos do mercado imobiliário é uma estratégia inconseqüente que poder levar à posterior expropriação indireta.
A crítica radical dessa situação,
em que mesmo na mais extrema
pobreza o mercado acaba vencendo, deve começar pela reabilitação
da esquecida proposta de revolução
urbana. Nos marcos de uma sociedade capitalista em crise, cada
vez mais excludente e destrutiva, a
formulação imediata dos caminhos
dessa revolução deve ser o acesso à
moradia por fora do mercado, inclusive o informal.•
(1) Estado das Cidades do Mundo 2010/2011 –
Unindo o Urbano Dividido – Resumo e Principais Constatações,
(2) Slums of the World: The face of urban poverty in the new millennium, UN-Habitat
(3) C.f. Slums of the World: The face of urban
poverty in the new millennium, UN-Habitat,
2003.
(4) e (6) Estado das Cidades do Mundo
2010/2011.
(5)Censo Demográfico 2010: Aglomerados Subnormais – Primeiros Resultados, IBGE.
(7) Em Pernambuco, 852 mil pessoas moram em
“aglomerados subnormais”, O Globo, 22 de dezembro de 2011.
(8) SP engana: um terço vive de forma precária,
O Estado de São Paulo, 12 de fevereiro de 2006.
(9) e (11) Kamdar, Mira. Planeta índia: a ascensão turbulenta de uma nova potência global.
(10) Megacidades: Mumbai, O Estado de São
Paulo, 3 de agosto de 2008.
(12) An Urbanizing World: Global Report on
Human Settlements, UN-Habitat, 1996, p. 239.
(13) Davis, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006
(14) Arantes, Pedro Fiori. O lugar da arquitetura num “Planeta de favelas. ” In: Opúsculo 11,
2008, p. 4.
Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 9
Plano Diretor de São Paulo: o leão do dia
Guilherme Boulos
D
esde o fim de
tão atualmente ocupadas
2013, o Plano
pelo Movimento, alguDiretor Estratémas em regiões de alta
gico de São Pauvalorização imobiliária,
lo, a maior cidade do país,
como a Ocupação Faixa
entrou em debate de revisão
de Gaza, no Morumbi.
É um documento oficial que orienta a utilização do território de um município. Nele
e aprovação. Foram dezenas
Ainda em relação às
estão sintetizados os objetivos de quem controla a cidade, por isso é um instrumento de
de audiências oficiais e ouZEIS,
conseguimos depoder e alvo de disputa entre setores opostos. No Plano Diretor define-se, por exemplo,
tras tantas mobilizações não
finir uma reserva para
a quantidade, os tamanhos e onde serão as áreas para construção de moradias,
-oficiais organizadas pelo
os trabalhadores mais
praças, aparelhos de saúde ou lazer, etc. Define-se também o mesmo sobre centros
MTST e outros movimenpobres. O conceito de
comerciais, empresariais e condomínios de luxo. Ou seja, quem exerce o poder ou tem
tos populares para incidir no
HIS é amplo, podendo
mais influência no Estado, como é o caso do capital imobiliário, define a orientação do
texto e torná-lo mais comabranger até mesmo faPlano Diretor e se favorece dele. É um campo de batalha entre as classes que vivem na
patível com os interesses dos
mílias com renda mensal
cidade e o lado dos mais pobres que começam a reagir...
trabalhadores urbanos.
de 10 salários mínimos.
Nesse processo, conseNo entanto, 70% do
guimos um avanço inicial.
déficit habitacional braO único interlocutor públisileiro é composto pela
do Orçamento da União, principal- rão revertidos por um Plano Direco do Plano era – como de
chamada Faixa 1, isto é,
costume – o setor imobiliário. Com mente via PAC e MCMV. Podemos tor. A transformação dessa situação, famílias com renda mensal de 0 a 3
seu poder político alçado pelo fi- afirmar sem receio que foi o setor traduzida numa Reforma Urbana salários mínimos. O texto do Plananciamento maciço de campanhas econômico que mais obteve fun- Popular, não se fará por Projeto de no Diretor garantiu que no mínimo
eleitorais, as empreiteiras e incorpo- dos públicos durante os governos Lei ou Decreto. Nenhum Plano Di- 60% das habitações construídas em
radoras sempre moldaram os planos petistas. As grandes empreiteiras retor, na atual relação de forças, será ZEIS terão de ser destinadas à Faixa
diretores e a legislação urbana por tornaram-se trustes, com ações em capaz de reverter a lógica do capital 1, o que representa uma vitória do
seus interesses econômicos. Des- vários outros segmentos da econo- imobiliário.
interesse popular contra o mercado.
Mas pode ser parte de um prota vez, não foi diferente e fizeram mia, e se internacionalizaram alçaSegundo, conseguimos incluir
pesados lobbies para a aprovação de das pela política externa de Lula. Se cesso de enfrentamento constante pontos relevantes nas diretrizes do
já tinham hegemonia sobre o mo- e calcado nos movimentos popu- Plano: uma política de prevenção
suas propostas.
Porém, agora surgiu um ator delo de desenvolvimento urbano, lares. É nesse sentido que vemos o de despejos forçados; o estímulo à
que não estava convidado. Os mo- passaram a ter controle completo. Plano Diretor como o leão do dia. construção de habitação popular
vimentos populares fizeram intensa Definições das localizações de no- É preciso “matá-lo” incorporando por gestão direta das entidades pomobilização no último período, es- vos empreendimentos, de regiões de ao máximo propostas de contro- pulares; e ajudamos a defender um
pecialmente em relação ao tema da crescimento e das políticas públicas le da especulação e de estímulo à ponto importante, que já constava
moradia popular, e com isso nos fir- para o setor passam essencialmente apropriação social do território, seja do PL original do Prefeito, que é o
mamos como interlocutores do pro- pelos agentes de mercado ligados ao para moradia popular seja para ser- estabelecimento da Cota de Solidaviços e espaços públicos.
cesso. Foram forçados a nos ouvir e setor imobiliário.
riedade – um dispositivo que obriga
O resultado deste processo de
Foi nessa direção que se pautou empreendimentos com mais de 20
incorporar algumas de nossas questões. Ao invés do domínio incon- privatização da política urbana é a intervenção do MTST nos deba- mil m² de área a doarem um percenteste do mercado, estabeleceu-se sabido. Valorização imobiliária bru- tes do Plano Diretor de São Paulo. tual de área para habitação popular.
tal, colonização de regiões perifé- Já havíamos tido experiências de
um conflito de forças mais aberto.
Por último, contribuímos com
Vereadores mais diretamente li- ricas pelo mercado e expulsão dos menor monta em municípios da as propostas desenvolvidas pelo Regados ao mercado e o próprio Se- mais pobres para periferias mais dis- RMSP, como Taboão da Serra e lator Nabil Bonduki no sentido de
Embu. Nestes casos conseguimos buscar dar mais eficácia aos mecacretário de Desenvolvimento Ur- tantes.
Os instrumentos do Estado para melhorar consideravelmente as di- nismos de combate à especulação
bano (responsável pelo PL original)
tiveram que ceder em pontos im- regular esse processo foram esvazia- retrizes dos Planos.
imobiliária previstos no Estatuto
portantes para nós. O MTST ela- dos ou não são exercidos. Regula- Em São Paulo, a maior e mais rica das Cidades, tais como o IPTU proborou uma proposta que, de forma ção urbana no Brasil não existe. E cidade do país, o jogo de interesses gressivo no tempo, a desapropriação
geral, foi incorporada no PL Substi- isto tem a ver, dentre outras coisas, é mais pesado. Mas a mobilização de áreas ociosas com títulos da dívitutivo, relatado pelo vereador Nabil com o papel das construtoras e in- também o foi. Conseguimos mo- da pública e a dação em pagamento.
corporadoras no financiamento das bilizar mais de 10 mil trabalhadores
Bonduki (PT).
Foi um avanço, considerando as
Antes de pontuarmos estas con- campanhas eleitorais. Executivo e sem-teto nas audiências e em ma- relações de forças na sociedade e o
quistas, vale uma consideração. O Legislativo estão, de modo geral, nifestações relacionadas ao Plano. peso do setor imobiliário na econopoder do mercado imobiliário e da capturados pelo mercado em todos Como resultado, várias propostas mia nacional. Mas temos a clareza
construção civil e pesada no capita- os níveis. O Judiciário, por seu lado, indicadas pelo Movimento foram de que este foi apenas o leão do dia.
lismo brasileiro é desproporcional. alinha-se por seu conservadorismo contempladas.
Outros virão e exigirão muito mais
Em primeiro lugar, aumenta- mobilização popular. Combater a
Se já eram historicamente acostu- e elitismo inerentes.
É nesse contexto que temos de mos a quantidade de áreas marcadas apropriação do espaço urbano pelo
mados às benesses do Estado, estes
setores da economia, nos últimos pensar o Plano Diretor de São Pau- como ZEIS (Zonas Especiais de In- capital exigirá um profundo acúmuanos, foram os maiores beneficia- lo e de qualquer outra metrópole do teresse Social), que são destinadas à lo de forças dos trabalhadores das
dos pela generosidade do crédito do país. Os interesses econômicos em moradia popular. Conseguimos in- periferias. E as grandes batalhas não
BNDES e por investimentos diretos jogo são muito poderosos e não se- clusive garantir várias áreas que es- serão vencidas com leis ou decretos.•
O que é o Plano Diretor?
10 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento
Megaeventos e capital imobiliário:
um caso de amor
copa2014-danilo
Guilherme Simões
Estádio Mané Garrincha, no Distrito Federal, é o mais caro da Copa: desvios de verbas públicas estimados em mais de 430 milhões de reais.
E
m qualquer lugar de nossa sociedade capitalista global, a realização de um grande evento,
seja esportivo ou não, mobiliza
sempre muitas questões. O público-alvo,
a movimentação de pessoas e mercadorias, a lucratividade, as condições para a
realização do evento em si, o intercâmbio
cultural e mercadológico e, finalmente,
seus impactos e legados para a cidade que
o recebe.
Como se sabe, quanto mais industrializado um país, mais urbanizado ele
será, em um aprofundamento da contradição entre capital e trabalho. Nas metrópoles, essa contradição é caracterizada
por uma profunda segregação territorial
levada a cabo pelo Estado através dos seus
seguidos governos no sentido de garantir
a lucratividade para as empresas. Nesse
sentido, o Estado garantiu essa infraestrutura para a ampliação da indústria; gerou
os bens de consumo coletivo estritamente necessários à reprodução da força de
trabalho e, por fim, garantiu a ordem e o
controle social com a contenção de movimentos reivindicatórios. Parceria fundamental entre Estado e iniciativa privada
para a urbanização, ao mesmo tempo em
que se empreendeu um profundo e devastador processo de espoliação urbana.
Entretanto, com o rápido crescimento
da vida social na cidade, o local de moradia dos trabalhadores tornava-se cada
vez mais parte da assim chamada questão
social. As vilas operárias, característica
da “solução” habitacional do período, já
não podiam dar respostas à necessidade
de moradias, tanto pela quantidade de
operários atraídos pelo desenvolvimento
econômico quanto pela valorização cada
vez maior dos terrenos.
Este movimento fica evidenciado
com a configuração da cidade e o crescimento de sua periferia. A especulação
imobiliária é, justamente por essas razões,
uma atividade extremamente lucrativa, e
não esteve e nem está isolada, sendo parte
de um dos braços mais robustos do capitalismo brasileiro, justamente porque não
depende de um alto grau de desenvolvimento de forças produtivas para efetivarse. Assim, o mercado imobiliário passa a
determinar o crescimento da cidade, se
apropriando de imensas áreas em volta
do centro e “liberando” áreas periféricas
para os mais pobres, o que também não
é a esmo: sabe-se que, tendo onde morar (mesmo com imensa precariedade),
o trabalhador não receberá parte de seu
salário que seria investido em habitação,
isto é, essa dinâmica também rebaixa os
salários, aumenta a exploração do trabalho e, por conseguinte, os lucros.
Para supostamente diminuir o déficit
habitacional, não é de hoje que o Estado
apresenta “soluções habitacionais”, com
objetivos para além de ajudar quem precisa de casa. O BNH (Banco Nacional
de Habitação) durante o período militar
chegou a construir mais de um milhão
de moradias. Entretanto, o financiamento dessa “política habitacional” era quase
exclusivamente (em 80% dos casos) para
trabalhadores de renda média e alta, isto
é, o foco não era habitacional, mas voltado para a indústria da construção civil.
Já nos anos 2000, novamente auxiliada pelo Estado, dessa vez sob égide
de um governo democrático-popular,
a indústria da construção civil e, por
consequência, a especulação imobiliária
ganham grandes investimentos. Pacotes
econômicos planejados pelo governo federal socorrem a construção civil em pleno período de crise das bolsas de valores.
Em 2009, após o anúncio do Minha Casa
Minha Vida, as ações de várias construtoras puxam a alta da Bovespa. O jornal
“O Globo” não poderia ser mais claro:
“O ano de 2009 se aproxima do fim e é hora
de fazer as contas. Quem olha para trás e ignora o que aconteceu antes de janeiro nem acredita
que vivemos “a pior crise desde 1929”, como
tanto se afirmou. Faltando apenas seis pregões
para o investidor estourar o champanhe, o Índice Bovespa (Ibovespa), principal indicador da
Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa), deve
encerrar o ano com alta de cerca de 80% (...)
o grande vencedor foi o setor da construção civil,
cujas ações sobem, em média, 204%”
Não somos especialistas em economia financeira, mas os dados são bastante
convincentes... Ora, a escolha do Brasil
como sede de megaeventos como a Copa
do Mundo ou Olimpíadas não poderia
se dar de maneira alheia a essa dinâmica.
Sabe-se que os promotores desses eventos
são empresas privadas de variados ramos
(turismo, entretenimento, alimentos,
etc.) que não visam nada menos que um
evento lucrativo. Sabe-se também que
para que isso se viabilize, são necessárias
uma série de intervenções na cidade do
ponto de vista da mobilidade urbana,
etc., as quais não podem ocorrer sem gerar um grande impacto social, na medida
que alteram o cotidiano da cidade e, por
conseguinte, de toda a população urbana,
especialmente os trabalhadores. Repõese de maneira mais intensa um conflito
que não é inédito, mas antes é fundador
da cidade: a avidez da multiplicação dos
lucros contra as necessidades coletivas de
uma imensa massa de pessoas que vivem
e sobrevivem na cidade.
Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 11
N
o Brasil, todas as cidade
sede sofreram e sofrerão
importantes impactos por
conta da realização da
Copa do Mundo de 2014. Mais adiante
traremos alguns exemplos. Por ora destacaremos Itaquera, bairro periférico da
Zona Leste de São Paulo, que sediará seis
jogos da Copa do Mundo 2014, entre
eles, a concorrida abertura do torneio.
Lá, está sendo concluída a obra da arena
que abrigará os jogos. Além do fato de ser
um empreendimento privado (uma parceria entre a gigante da construção civil
e pesada Odebrecht e o Sport Club Corinthians Paulista) que está sendo quase
integralmente financiado com dinheiro
público, sendo R$ 400 milhões emprestados pelo BNDES e mais R$ 420 milhões em CIDs (Certificados de Incentivo ao Desenvolvimento) dos governos
estadual e municipal de São Paulo, está
em curso um rápido e atabalhoado processo de mudanças naquela região, algumas das quais veremos a seguir.
Vale ressaltar que Itaquera é uma
região periférica que vem recebendo
“incentivos econômicos” e se tornando
uma espécie de fronteira urbana. Ainda
nos anos de 1970, o bairro tinha pouca
infraestrutura urbana. Sua população era
composta de operários e trabalhadores
assalariados no comércio e no setor de
serviços. Grande parte dessa população
pagava a casa própria em parcelas a perder
de vista. Terrenos vazios eram produtos
da especulação imobiliária e conviviam
com ruas de terra e muita precariedade.
Seguindo a lógica de valorizar áreas centrais e expulsar os mais pobres para a periferia, o governo municipal inicia a construção das Cohabs (prédios populares)
nos anos de 1980, causando grande explosão demográfica no bairro. Esse processo se agravou com a chegada do metrô, obra que gera grande valorização dos
terrenos mais próximos e também exige
moradores com maior poder de consumo. Para se ter uma ideia, a implantação
do canteiro de obras do Metrô dobrou o
preço dos terrenos, em média. Estavam
dadas as bases para uma constante valorização fundiária que iria transformar
definitivamente o bairro: de uma região
periférica quase inútil para a especulação
imobiliária e empreendimentos privados,
Itaquera passa a ser objeto de investimentos altamente lucrativos. Se bem que ainda preservava um inconveniente para essa
lógica: um grande número de trabalhadores pobres e de moradias precárias.
A escolha (forçada) de Itaquera como
sede da Copa do Mundo abre um novo
momento desse processo. Dezenas de
obras de infraestrutura já foram feitas
ou estão em andamento. Obras como
a duplicação de um trecho da avenida
Radial Leste e a construção de um dos
chamados parques lineares prevêem o
despejo de milhares de famílias. Segundo
matéria do UOL de setembro de 2013,
a Prefeitura de São Paulo recebeu “doação” de uma área da empresa Itaquera
Desenvolvimento Imobiliário após pagar
R$ 1,8 milhões pela desapropriação de
outra área da empresa. Nessas áreas serão construídas um “Pólo Institucional”
(complexo de construções comerciais e
institucionais) e duas novas avenidas. O
Complexo Viário Itaquera foi parcialmente entregue em abril de 2014, segundo previsão da Dersa (Desenvolvimento
Rodoviário S/A), responsável pelos serviços. Importante ressaltar que: a incorporadora Itaquera Desenvolvimento
Imobiliário condicionou a doação da área
à desapropriação de outra; o tamanho total das áreas adquiridas pela prefeitura é
de quase sete por cento do total de áreas
de propriedade da empresa; o acordo se
deu pela notória e extrema valorização
que essas outras áreas terão em um futuro
muito breve.
Enquanto isso a valorização dos terrenos no entorno é crescente. Segundo
pesquisa realizada pelo Conselho Regional de Corretores de Imóveis do Estado
de São Paulo (Creci-SP) o preço de um
imóvel usado no bairro da Copa teve
aumento de mais de 50% em seis meses, entre janeiro e julho de 2012. Portanto mais de dois anos antes do evento,
a construção do estádio que vai sediar
jogos da Copa em 2014, em São Paulo,
já teve impacto no mercado imobiliário
do bairro de Itaquera, mesmo sem nenhuma obra em andamento. Durante
esse período, para se ter uma ideia, o valor do metro quadrado de casas de dois
dormitórios saltou de R$ 2.272,66 para
R$ 3.508,06. Considerando todos os
elementos da pesquisa, a valorização do
entorno chegava a cerca de 40%. O presidente do Creci-SP, José Augusto Viana
Neto, em entrevista ao site monitormercantil em novembro de 2012, comemora: “As pessoas sabem que a região vai receber
obras de infra-estrutura e melhorias urbanas e
isso acaba provocando uma antecipação da valorização futura dos imóveis, cujos limites vão
sendo testados à medida que essas melhorias vão
se materializando”.
A valorização em 6 anos de mais de
160% para compra de imóveis é bastante convincente, bem como a de quase
100% para aluguéis em menos de 4 anos.
Novamente não é necessário ser expert em economia para entender que a
alegria do setor imobiliário faz com que
milhares de moradores daquele bairro
saiam e procurem outras localidades com
preços acessíveis à sua renda. Locais evidentemente mais longínquos e precários.
Temos aí uma justificativa concreta
para uma ação como a ocupação “Copa
do Povo”, organizada pelo MTST em
Itaquera.
S
abe-se que o Brasil forma junto com Rússia, Índia, China e
África do Sul o grupo conhecido
como BRICS, intitulado como
as principais economias emergentes do
mundo. Nada mais se trata do que aqueles países da periferia do capitalismo que
não podem, por sua origem colonial e/ou
de capitalismo tardio, desfrutar de uma
industrialização plena, tampouco de uma
exploração da força de trabalho completamente regulamentada. Nesses países, a
exploração do trabalho reúne outras características como o menor valor da força de trabalho e a presença marcante do
Estado como garantidor e mantenedor
da economia de mercado. Em tempos
de agudização da crise nos centros, nada
como grandes eventos na periferia que
tragam a recuperação para os primeiros e
os gastos para os últimos. Seja uma guerra
ou uma Copa do Mundo...
Laura Capriglione, blogueira do site
apublica visitou um alojamento de despejados por obras em Johannesburgo, a
“próspera” e “emergente” capital sulafricana. Segue um trecho de seu artigo O
“legado” da Copa na África do Sul:
“entramos na escuridão do prédio, onde pelo
menos duas mil pessoas acotovelavam-se no
chão, em um frio de zero grau. No lugar de colchões, papelão. O cheiro azedo de urina e suor,
misturado a alguns restos de comida, criava uma
atmosfera nauseante. Como faltasse espaço no
chão, vários homens tinham de dormir nas escadarias do prédio. Mas os degraus estreitos não
permitiam a acomodação na largura. O jeito era
enrolar-se no cobertor fino e, como uma múmia,
tentar se equilibrar –a cabeça em degraus mais
altos, os pés nos mais baixos. Qualquer movimento em falso e o corpo escorregava; às vezes
atropelando outro albergado no lugar. Cercados
pela polícia, os sem-teto da Igreja Metodista
eram os últimos remanescentes da “faxina”
promovida pelo governo de modo a retirar da
cidade-sede da Copa do Mundo, os milhares de
sem-tetos que vivem nas ruas de Johannesburgo,
principalmente no centro”.
A professora Raquel Rolnik (FAU
-USP) afirma que cerca de vinte mil famílias sulafricanas foram removidas por
conta da realização da Copa do Mundo
de 2010. Na Cidade do Cabo, outro importante centro urbano do país, por estar
localizada numa região geopolítica e comercialmente estratégica, as obras, como
não poderia deixar de ser, também deixaram seu legado. Moradores de rua do
centro da cidade foram removidos para
uma favela improvisada com contêineres de zinco, bem longe da vista dos aficionados por futebol. Conhecido como
Cidade de Lata, esse bairro (que pode ser
considerado como um verdadeiro campo de concentração) reuniu cerca de três
mil pessoas, que tiveram a promessa de
construção de moradias definitivas. Tal
promessa ainda não se realizou, mesmo
quatro anos depois do mundial. A Copa
do Mundo foi a chance da cidade se ver
livre dos pobres inconvenientes. Era para
ser um abrigo provisório, enquanto se
construíssem habitações dignas. Mas os
pobres seguem no mesmo local, “morrendo de frio no inverno e assando no
verão”, relata Capriglione. Vale dizer
que a Cidade de Lata fica a cerca de 30
km do centro da Cidade do Cabo, onde
foi construído o suntuoso estádio Green
Point, com capacidade para 55 mil torcedores, ao custo de US$ 600 milhões.
Naquela região ergueu-se também um
refinado centro comercial, bastante avesso à pobreza...
Já na China, de acordo com Ricar-
Indíce zap/FIPE
12 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento
Copa 2014 (Portal Transparência)
do Ricci Uvinha, articulista da revista
Motrivivência, esse outro membro dos
BRICS, por ocasião do Jogos Olímpicos em Pequim no ano de 2008, realizou dez mil obras de infraestrutura a
partir de 2001. Nessa conta também estão estádios, hotéis, avenidas, restaurantes, entre outras edificações que criaram
grande contraste com os templos e outras construções milenares daquele país.
No transporte, o metrô recebeu mais de
87 quilômetros de vias, com seis novas
linhas. Ao todo, estima-se que foram
gastos em torno de US$ 42 bilhões de
dólares para essa edição dos Jogos.
Segundo a ONG Centre on Housing Rights and Evictions (COHRE),
1,5 milhão de pessoas foram despejadas e 300 mil casas foram demolidas
em Pequim para a realização de obras
como o Ninho do Pássaro e o Cubo
d’Água. Novamente, os dados oficiais
não são precisos, mas a valorização e o
crescimento da especulação imobiliária
nos territórios de Pequim foram notórios. Para se ter uma ideia, no distrito
de Qianmen, um dos mais antigos de
Pequim, mesmo depois de a Comissão
Municipal de Planejamento decretar um
plano de conservação para proteger suas
25 áreas históricas na Cidade Velha de
Pequim, novos “habitantes” foram aparecendo após o anúncio dos jogos olímpicos. Rolex, Prada, Starbucks, Nike,
Adidas, Apple, etc. conviviam com as
antigas estruturas e também com moradores que, aos milhares, deram lugar à
obras turísticas e de estrutura para o megaevento. Foi justamente de Qianmen
que surgiram os principais protestos de
moradores despejados pelas obras das
olimpíadas mais caras da história. Apesar de fazer parte do ambicioso projeto
modernizador do gigante asiático e, por
isso, ter gasto com muito mais melhorias do que a média mundial, as Olimpí-
adas de Pequim também deixaram um
legado de segregação social e territorial
típicos da urbanização monopolista.
Nunca é demais lembrar que Barcelona sofreu com aumento da especulação imobiliária; Seul despejou cerca de
15% de sua população; a Grécia faliu
poucos anos após sediar as Olimpíadas;
o Qatar já tem 1200 trabalhadores que
morreram durante obras pra 2022 e o
país utiliza trabalho escravo de imigrantes nas obras... No caso do Brasil e seu
próximo megaevento (a Copa do mundo
de futebol), um dos principais impactos/
legados da Copa do Mundo de 2014 são
os gastos astronômicos com as obras ditas necessárias à realização do evento.
Aeroportos, avenidas, trem, metrô, estádios, hotéis, portos, segurança pública,
telecomunicações, etc. estão entre as demandas do mundial. Na tabela, podemos
ver com certa clareza os gastos totais que
chegam a quase R$ 26 bilhões, com boa
parte financiada (empréstimo) do governo federal (mais ou menos R$ 8 bilhões,
mas com a maior parte, cerca de R$ 14
bilhões garantidos como obras-legados
(investimento direto) dos governos federal, distrital, estaduais ou municipais.
A iniciativa privada gastará em torno de
R$ 4 bilhões resumidos aeroportos (privatizados) e os estádios Arena da Baixada
e Beira Rio (menos de R$ 1 bilhão). Se
apenas com o futebol, o capital sugou
tudo isso, o lema agora é: imagina nas
Olimpíadas!
Uma das principais características dos
chamados legados dos megaeventos é o
“embelezamento” urbano. Várias cidades que receberam esses eventos passaram a ser verdadeiros objetos de desejo de
empresas dos mais variados ramos. Não
há segredo. A resposta para essa atração é
a possibilidade de lucrar mais (e recuperar taxas de lucro ameaçadas pela recessão
mundial). E isso não se dá apenas pela vi-
sibilidade que ganham as cidades ao promover essas grandiosas festas mundiais.
Além desse fato óbvio e insuficiente para
o ímpeto de lucratividade está a absurda valorização dos territórios sede. Ao
construir enormes redes de infraestrutura (metrôs, avenidas, portos, aeroportos,
túneis, hotéis, etc.) as cidades promovem
outra festa: a da especulação imobiliária.
Os territórios em volta dessas construções são valorizados, o que significa dizer
que, por exemplo, atividades imobiliárias
como o aluguel serão mais lucrativas dali
em diante, o que já demonstramos com
o caso de Itaquera. Mas não é só isso. A
outra faceta da especulação imobiliária é
“criar” valor para outras atividades econômicas daquela região valorizada. O turismo, a gastronomia, o entretenimento e
até o transporte ficam mais caros quanto
mais próximos de regiões valorizadas. O
que faz com que os mais pobres fiquem
cada vez mais restritos também em sua
mobilidade. E assim a cobra come o próprio rabo na perversa dinâmica urbana
do capitalismo contemporâneo.
Entre os nefastos resultados disso está
o fortalecimento do capital imobiliário.
No caso do Brasil, esse braço da economia vem se tornando cada vez mais importante, como já citado. Vejamos alguns
dados de como isso tem se desdobrado.
De acordo com o índice Zap/Fipe do
mercado imobiliário, São Paulo registra
registra alta de 195,2% no preço médio
dos imóveis entre 2008 e 2013 - isto é, o
preço praticamente triplicou em 5 anos.
O aluguel variou 95,1% no mesmo período, quase duplicando. No Rio de Janeiro, o aumento no preço dos imóveis chegou a 234,2% e no caso dos aluguéis foi
de 131,1%. No caso brasileiro, é evidente
que o fortalecimento do setor imobiliário não se restringe aos megaeventos. As
bilionárias linhas de crédito por meio do
PAC e Minha Casa Minha Vida alçaram
a construção civil ao mais alto posto no
capitalismo brasileiro. Isso pra não tocar
no fato de que algumas delas se internacionalizaram nesse processo, casos da
Odebrecht e OAS. É evidente, portanto,
que o enfrentamento da questão habitacional passa pelo combate ao capital imobiliário e, consequentemente, ao regime
da propriedade privada.
As ocupações urbanas de luta por
moradia estão entre os principais meios
de ação reivindicatória do Brasil. Não
apenas pelo poder potencial que carrega
de mobilização de grandes massas espoliadas pelo desenvolvimento e a tragédia
do capitalismo. Mas também porque
esse fato carrega outro: esses trabalhadores marginalizados pelo processo social
vivem na imensa “unidade produtiva”
chamada cidade, concentrados nas periferias e, ao mesmo tempo, espalhados, significam uma constante ameaça
à ordem, pois para sobreviverem devem
subvertê-la. E apenas organizados podem dar consequência transformadora à
sua existência. Nesse sentido, ainda que
carregada de contradições, a ação reivindicatória pode tornar-se forma para um
programa de transformação social. As
ocupações podem configurar-se como
instrumento da luta contra o capital, pois
escancaram o privilégio da propriedade
privada e seu regime de proteção (jurídico, burocrático, ideológico, etc.) de
um lado, e de outro opõem a expressão
da violenta contradição produzida por
esse sistema: uma imensa massa de trabalhadores que não podem acessar os bens
produzidos ou servidos por eles próprios.
Apenas lutando e direcionando nossa potencialidade organizativa e política contra o sistema capitalista é que poderemos
reivindicar a cidade para todos. Estamos,
assim, diante de uma importante face da
atualidade da luta de classes. Quem disse
que ela não existe mais? •
Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 13
mundo em ru í n a s
H
RESENHA
André Villar
sob
á tempos que o capitalismo não cessa de chafurdar num interminável lodaçal de crise, num desabamento que só
tende a se generalizar e recrudescer. Uma teoria crítica radical do capitalismo é mais necessária do que nunca. O
último livro de Marildo Menegat, Estudos sobre ruínas, é uma importante contribuição para quem deseja compreender – e transformar! – nosso mundo em escombros.
O livro consiste numa reunião de artigos e entrevistas produzidos ao longo dos últimos cinco anos sobre diversos temas: o
conceito de barbárie na tradição crítica brasileira, as transformações do caráter da universidade, a dinâmica de crise e o colapso
do capitalismo, a subjetividade fetichista no mundo da mercadoria, as prisões, a experiência com as drogas no século XX, e daí
por diante. Não seria possível resumir o rico e diverso conteúdo da obra em algumas poucas linhas. Limito-me a destacar um
argumento central e polêmico que se encontra no centro das suas reflexões do autor.
Diferentemente do que acontece na maior parte das análises críticas do capitalismo, o livro assinala que esse sistema, após um
longo curso de ascensão, atingiu os limites estruturais. A valorização do valor é a única finalidade da produção capitalista. A consecução desse objetivo absurdo depende da arregimentação de massas crescentes de trabalho vivo para o interior dos processos de
produção de mercadorias. Mas é exatamente isso que já não é mais possível ser cumprido desde que entraram em cena, nas últimas
décadas do século XX, os processos industriais baseados na microeletrônica. A partir de então, a força de trabalho humana passou a
ser substituída em enormes quantidades pelos novos agregados tecnológicos, sem que haja qualquer possibilidade desse movimento
ser compensado pela criação de novos produtos ou pela expansão territorial do capitalismo, já consumada. Nas palavras do autor:
Em termos da estrutura do capital, há um deslocamento importante na sua composição orgânica, com um aumento significativo do capital constante
e, em decorrência, uma redução bastante expressiva do capital variável, ou seja, da força de trabalho. Essa nova composição bate forte na razão de
existência do capital, que é a sua permanente acumulação. Para a realização desse fim é determinante incorporar quantidades crescentes de trabalho
humano, de onde se extrai o mais valor que movimenta a lógica do todo. Contudo, à medida que esse mesmo trabalho é substituído por complexos sistemas de produção automatizados, a criação de riqueza perde as suas antigas bases materiais, gerando ao mesmo tempo uma imensa
crise social – que é constatável pelo desemprego estrutural – e um limite lógico para a continuidade da acumulação – que se deve à perda da sua
substância viva: o trabalho.
Menegat apresenta, então, uma formulação radical para a compreensão do estágio contemporâneo do capitalismo. Não
estaríamos simplesmente atravessando mais uma das crises do capitalismo, diante da qual poderíamos nos posicionar como quem
espera o retorno da normalidade depois de passada a tormenta. Pelo contrário. O horror social e ecológico de nossa época seria
a manifestação do caráter miserável de uma forma social cuja correspondente forma de riqueza se tornou arcaica em função dos
novos potenciais produtivos que ela própria contribuiu para criar: uma forma social que só pode ampliar seu prazo de validade através
do recrudescimento inaudito de seus impulsos destrutivos.
O autor utiliza o conceito de barbárie para designar os retrocessos que irrompem nesse contexto. A barbárie, segundo ele, é uma
característica da lógica dessa civilização, no sentido de que pertence ao seu caráter. “É o determinismo da sociedade burguesa”.
E quem são os bárbaros? “Os bárbaros não são estranhos a esta sociedade, sendo tão somente o produto de relações sociais
estranhadas. Eles são a própria identidade desta forma social”. Os bárbaros são todos aqueles que, de um modo ou de outro,
contribuem para perpetrar o horror cotidiano em que naufragamos e o mundo ainda mais sombrio que está por vir. Uma das
manifestações da contradição do capitalismo é que, como num leito de Procusto, essa forma social amputa a substância social
que sobra aos seus mesquinhos limites. E é nesse sentido que tem de ser compreendido o enorme surto de encarceramento
que explode em todo o mundo. Esse vínculo estrutural está por detrás da política do medo e das campanhas de ódio e revanche que grassam em nossa época. “A sanha por mais prisões e por se prender todos os que parecem ameaçadores não tem
limites. No mundo inteiro, dos Estados Unidos à China, e desta à Europa, passando pelo Brasil, estão encarcerando
populações gigantescas. Essa tendência revela uma irracionalidade sem saída”. O descalabro se consuma através do
extermínio físico da “humanidade supérflua”, com destaque para o Brasil, que é uma das vanguardas da desintegração
capitalista. A quantidade de mortos por causas violentas no país é típica de uma situação de guerra civil, e obedece a
um corte francamente genocida: tais causas atingem prioritariamente jovens negros. “Os vínculos entre vida material
e fundamentação do poder, com as razões da punição, não podem mais ser escamoteados, sob o risco de sermos covardemente coniventes com os novos genocídios que a preservação da sociedade burguesa tardia exige”. Assim, o “pessimismo”
que às vezes parece atravessar as análises de Marildo Menegat não é nada mais do que a tradução do péssimo mundo no qual
vivemos, e está articulado com a utopia da criação de uma nova e melhor forma de organização social. “Utopia é pessimismo transformado em força vital”. De fato, o autor não vê grandes potencialidades no proletariado e suas antigas formas de
organização. Os antigos coveiros do capitalismo parecem não ter mais impulso emancipatório: humilhados e derrotados
as vagas das inovações tecnológicas, integrados ao modo de vida e consumo capitalista... Todavia, a contradição entre o que
é e o que pode ser explode com toda força. Os enormes contingentes de seres humanos “sobrantes” podem ser a base de um
amplo movimento social de emancipação. Mas tal movimento tem de ser criado conscientemente: não pode ser o resultado
de qualquer determinismo objetivo inerente à desintegração capitalista. A transformação social passa pela criação de uma
“contra-esfera pública” e de um “contra-poder” para a “autogestão das necessidades sociais de massas crescentes jogadas para fora da esfera de valorização do capital”. Os potenciais produtivos desenvolvidos pela humanidade, que não
mais cabem no interior do invólucro da forma da mercadoria, devem servir à satisfação das necessidades básicas comuns
e ao tempo livre, e não mais ao insano processo de valorização do valor. Há tempos que as universidades se tornaram um
apêndice do processo global de produção de mercadorias, no qual o conhecimento é avaliado em função dos critérios de
rentabilidade. “Se a relevância de todo o conhecimento é determinado por sua capacidade emancipatória, podemos dizer
que algo de muito profundo se modificou nessa modalidade de universidade, reduzida à unidade de um ramo da produção.
Nela não importa mais para que serve o conhecimento; o importante é que ele seja vendável”. Marildo Menegat resiste
no interior dessa imensa fábrica produtora de mercadorias que se tornou a universidade brasileira.•
Marildo Menegat Estudos sobre ruínas. Rio de Janeiro:
Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2012.
14 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento
CAPA
COPA DO POVO: cadê
A ocupação Copa do Povo em Itaquera: se há dúvida que o poder popular exista, a comprovação está na
Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 15
ê o gol da moradia?
a voz do povo; a voz que habita.
felipe melo
Mirela Von Zuben
N
as ondas falhas da sintonia de
uma rádio qualquer de São
Paulo, o som se anuncia desse
jeito: “a taça do mundo é nossa! Quer uma promoção para ganhar quatro convites para assistir a Copa do Mundo?
(...)”. Enquanto a propaganda denuncia a
chegada de um dos eventos mais esperados e sonhados dos últimos tempos no país
verde-amarelo, o “mundo real” há tempos
desperta em frente aos olhos do brasileiro.
O dono do rádio que toca o anúncio
ajeita sua casa modesta – se é que podese chamar o amontoado de lonas pretas,
seguradas firmemente por pontaletes e fitas de plástico, de casa, moradia, ou lar. O
aparelho, que só funciona à base de pilhas,
está colocado em cima de um carrinho de
bebê tomado pela sujeira, bem em frente à
entrada da barraca. Ao lado do homem, a
esposa e o filho pequeno ajeitam algumas
madeiras sob o sol forte e o ar gélido de
meados de maio de 2014 na região de Itaquera, na capital paulista. Desde o dia dois
daquele mês, 4,5 mil famílias – número
aproximado – abrigam-se da mesma forma
que eles. O local, denominado de Copa do
Povo por aqueles que o formam, tem nome
ousado, provocativo e sugestivo – e faz praticamente um grito para um dos maiores
problemas do território brasileiro – a falta
de moradia digna.
Formada na periferia da Zona Leste da
capital paulista, a ocupação enraizada pelo
Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto
(MTST) reivindica, além de um lar para
cada uma destas famílias, também a melhoria nos sistemas de saúde, educação e mobilidade urbana, setores da sociedade que
mais carecem de investimento no Brasil.
O terreno escolhido por eles encontravase ocioso há anos e, usado como forma de
especulação imobiliária, estava registrado
como área rural – localizado ironicamente
bem no coração de um centro urbano. De
acordo com o que foi apurado pelos próprios militantes do Movimento, o proprietário desta área de cerca de 160 mil m² pagava “abusivos” R$ 57 de imposto por mês
para manter o terreno tomado por mato e
pés de eucalipto: um local improdutivo.
Desde o começo
N
o início, em dois de maio de 2014,
as famílias chegam ao local com
enxadas, lonas e pontaletes, prontos para o esforço de terem de capinar todo o terreno. Ali, já no primeiro dia,
uma garoa fina limpa a alma dos novos moradores e os prepara para extensos dias de sol e calor
intenso, mesmo no outono.
Quando o primeiro raio desponta na ocupação, já é possível ver a dimensão do local: uma
imensidão de espaço, de esperança e de vidas.
No entorno dali, ruas de asfalto e dois espaços
primorosos – o Parque do Carmo, local que
abriga uma extensa área verde e um planetário;
e o SESC Itaquera, polo de atrações artísticas e
culturais na cidade mais cinza do país.
Já na Copa do Povo, logo na entrada, há um
espaço dedicado ao encontro dos moradores. O
chão, feito de cimento previamente à ocupação,
é extenso e abriga em um dos cantos uma farmácia com ervas medicinais – uma horta com
diversas plantas cultivadas pelos próprios moradores que as regam, inspecionam e colhem
posteriormente. Pouco mais ao lado, virado ao
centro daquela espécie de praça, há um palanque feito de madeirite, usado de palco para a
militância durante as periódicas assembleias da
ocupação.
Brigadas, “rango” e cozinha
A
Copa do Povo é bem extensa. Por
isso, foi dividida em oito brigadas –
espécies de bairros dentro de uma
cidade. Cada brigada, enumerada
de G1 a G8, tem sua independência dentro da
ocupação. Um “gê” contém banheiro e cozinha próprios, utilizados e mantidos em comunidade. Eles são construídos com pedaços de
madeira que garantem a sustentação das paredes de madeirite e os fogões são fruto de doação
dos próprios moradores.
Nada dentro da Copa do Povo é pago. Tudo
o que se tem ali é dado de forma voluntária. Por
isso, os moradores sempre deixam o que podem
na sua respectiva cozinha. Vale desde arroz, até
carne, legumes e temperos; o importante é a
participação ativa ali dentro. Cada um que deixa entregue a comida na cozinha, tem de assinar o nome para marcar ali a sua participação no
que o MTST chama de “poder popular”.
No dia 17 de maio de 2014, a cozinha co-
16 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento
munitária do G6 preparou feijoada. “A gente
deu a ideia e todo mundo do grupo concordou. Cada um vai trazendo os ingredientes e
nós cozinhamos tudo”, conta Andreia Barbosa
da Silva, 30 anos, uma das voluntárias daquela cozinha junto a Marinalva Rosa dos Santos,
36, e Marli Tomás de Souza, 45. Unidas, as três
preparam café da manhã, almoço, café da tarde
e janta para os moradores da referida brigada. E
funciona da mesma forma nas outras sete.
Enquanto prepara a comida, Andreia relata uma das suas maiores dores na vida, afinal,
cozinhar é uma arte e uma porta aberta para a
contação de histórias, de desabafos e aumento
no círculo de amizades.
A mulher perdeu o marido em 2009 e, desde então, cuida dos cinco filhos sozinha. A vida
de seu marido foi tirada injustamente, assim
como acontece com muita gente no país. “Ele
trabalhava duro todos os dias, fazia entregas em
Suzano. Um dia, foi transportar uma carga de
verduras de uma esquina para a outra e parte
dela atingiu uma moto quando o caminhão
passou por um buraco e acabou trepidando”,
relata com lamentação. “O motoqueiro foi internado e ele era da “correria”, sabe?”, conta,
fazendo alusão ao envolvimento do homem
com o crime. Os amigos dele cobraram a culpa
do marido de Andreia por meses, até que foi
morto dentro de seu carro com tiros em 26 de
novembro daquele ano, sem condições financeiras de sustentar o homem e sua chantagem.
Já sedada pelo sofrimento que a vida lhe impôs, Andreia engole seco e respira fundo. Rapidamente volta a ajeitar os talheres e pega um
pano para limpar o balcão enorme feito de madeira que é utilizado para a colocação das panelas e ingredientes.
O café da manhã é servido às oito da manhã,
o almoço às 13h30; o café da tarde e a janta vêm
logo em seguida. Para avisar quando a comida
está pronta, um jeito rústico: vai na base do grito mesmo. Há alguns ainda que usam apitos e
trombones e passam pelas vielas de terra avisando sobre a abertura do “rango” de cada dia.
Em menos de cinco minutos, a fila está formada. Alguns comem ali mesmo, na frente da
cozinha, acomodados em cima de pallets ou
de algum canto confortável, e outros preferem
ir até suas barracas para fazerem a refeição. O
único problema ali é a proximidade tão grande
com as ruas de terra. Mesmo com a higiene em
dia e o cuidado com os alimentos, a poeira sobe
muito fácil e, inevitavelmente, acaba atingindo
seus pratos. “É um tempero especial”, brinca
Andreia, que conta que, por dia, são feitos ali na
cozinha do G6 cerca de vinte quilos de arroz e
quatro de feijão. E é comida da boa, viu? Tudo
feito no capricho e com os temperos certeiros.
Você tem sede de quê?
S
em a infraestrutura adequada, já
que a Copa do Povo carece de
energia elétrica, sistema de esgoto, distribuição de água e ligação
de telefone, os moradores têm de trabalhar
em equipe para que a ocupação toda seja
abastecida de forma justa. Para isso, nas cozinhas existem pilhas de garrafas PET que
armazenam o líquido que servirá para matar
a sede e garantir o cozimento correto dos alimentos, além da limpeza deles, é claro.
Com o auxílio também de pallets, os homens – principalmente – usam sua força para
carregarem as panelas e utensílios de cozinha para a entrada da ocupação. Lá, tudo é
lavado em água corrente por eles mesmos e
há uma fila organizada entre os representantes das brigadas para garantir que tudo esteja
limpo a tempo para a preparação das refeições. Já em sacolões, as garrafas são levadas
até o mesmo local e, depois de cheias, são
entregues de volta aos seus locais de origem.
“A gente pede pros meninos pegarem água
e deixamos tudo aqui (na cozinha). Sempre
tem alguém que passa e pede, né”, afirma
Andreia.
O armário da cozinha de cada brigada,
graças à união dos moradores, está sempre
cheio: tem arroz, feijão, açúcar, sal, macarrão, farinha e outros itens básicos. A carne,
os legumes e as verduras são entregues pouco antes do preparo, já que não existe energia
elétrica para sustentar uma geladeira por ali.
Mesmo assim, tem quem congele água em
garrafas antes de levá-las para a ocupação, assim é possível manter o frescor em meio ao
ar seco da área.
A
A vista geral
ocupação do MTST tem uma vista um tanto quanto privilegiada da
região de Itaquera. Localizada em
um ponto alto do bairro, da região
da cozinha do G5 é possível ver a maior antítese do povo instalado ali: a Arena Corinthians,
ou Itaquerão, ou ainda Arena São Paulo. Orçado em R$ 820 milhões no início de sua
construção, em maio de 2011, hoje seu gasto já atinge os R$ 1,17 bilhão. A abertura da
Copa do Mundo da Fifa deve acontecer neste estádio no dia 12 de junho com o jogo do
Brasil contra a Croácia. Enquanto ali as obras
seguem naquele famoso “jeitinho brasileiro”
de deixar tudo para a última hora, na Copa do
Povo a população não hesita em construir, erguer barracas e deixar o local o mais próximo
possível do ideal e adequado para eles.
No dia 17 de maio, pouco antes do meiodia, um grupo do G5 se ajeita e começa as
obras de finalização da cozinha comunitária.
Com a força em equipe, levam tintas verme-
lhas – símbolo do Movimento, da ação popular e da voz do povo – e pedaços de madeira.
Em menos de duas horas, tudo fica pronto.
Ali, vale a ajuda da criançada na pintura, dos
novos adultos no carregamento das partes pesadas da estrutura e dos mais velhos e das mulheres nos retoques finais. Ao lado de uma das
paredes da mais nova cozinha, o grito, pintado de branco em uma faixa vermelha: “Dilma, estamos aqui! Queremos resposta, somos
o seu G5 despertador!”.
As ladeiras do G3 e G4
E
xceto pelos primeiros instantes de
existência da Copa do Povo, em dois
de maio, a população da ocupação
não viu a cor da chuva em 15 dias.
Seca para uns, sorte para outros. As ladeiras íngremes que abrigam o G3 e o G4 são perigosas; de vielas estreitas e tortuosas, seja a noite,
seja durante o dia, são cercadas por diversos eucaliptos e mostram o temor iminente por um
deslizamento de terra caso a chuva atinja o local
de forma torrencial. No local, a própria população encarregou-se de construir escadas na terra,
mas, mesmo assim, é preciso andar sempre com
um olho no chão e outro no horizonte.
Bem no meio da ladeira, quem desponta é
Daniel José dos Santos, 42 anos, uma verdadeira
máquina de construir barracas. Com problema
de mobilidade, tem uma perna mais curta que a
outra, mas isso não o impede de carregar o fardo
de construtor: sozinho, já ergueu oito moradias
– pelo menos até 18 de maio, quando foi encontrado por ali. “Quando a gente chegou, o
pessoal do MTST passou as instruções de como
construir”, conta, enquanto explica de que forma ergue o lar. “Dá pra montar uma barraca em
duas horas. Primeiro, faço quatro buracos na
terra. Coloco os pontaletes e nivelo o solo, já
que aqui é descida. Tem também que colocar
uma madeira em volta pra evitar que entre bicho, tipo cobra e rato. No espaço, tem que dar
pra caber um colchonete e uma pessoa em pé.
Depois, é só colocar a lona por cima e amarrar
tudo com fita”.
Depois de dadas as instruções, ele começa a
construir o oitavo barraco desde que entrou na
ocupação, já no primeiro dia. Com a enxada,
“liga o motor” e nivela o solo, parando no meio
para descansar – a respiração ofegante, quase
nula devido a uma traqueostomia, não é suficiente para parar o homem que possui um terço
amarrado na mão direita, mesmo membro que
dá por falta de três dedos. “Tem que ter fé, né”,
sorri, enquanto aponta o indicador da mesma
mão para o céu. Tira o boné vermelho, seca o
suor com a manga da blusa e retoma a jornada. Pega a enxada e continua a desempenhar sua
primordial função por ali.
Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 17
Segurança garantida, ordem na vida para o G1, a equipe já se depara com uma a um gasto de R$ 550 por mês, fora o custo de uma
S
ob a luz da chama laranja que forma
uma fumaça rala no céu, a Lua vira
lâmpada no teto de estrelas da Copa
do Povo. A fogueira serve de aquecedor natural das madrugadas gélidas que
tomam conta por ali. Uma pausa para um
cigarro. Depois do quinto copo de café, o
trabalho está apenas começando. Silas André
dos Santos, 28 anos, o Alemão, ajeita o gorro enquanto descansa após a primeira subida
pela ladeira do G5.
Com cara de poucos amigos, seriedade e
lanterna de pilha na mão, Alemão é o “chefe” da segurança da ocupação. Se o Brasil
possuísse um quarto da organização que se
vê durante as madrugadas através da colaboração dos próprios moradores, haveria déficit em índices criminais, em dores de cabeça
para autoridades e população, e em choros
desesperados de mães que perdem filhos
para o crime a cada dia.
Pontualmente às dez da noite, um grupo de uma média de 35 homens se reúne na
praça principal da ocupação todos os dias.
Ali, se dividem em equipes que farão a ronda
noturna a partir das onze, até às seis da manhã, no que para eles é chamado de “trilha”.
Alemão coordena tudo. Chegou na Copa do
Povo no dia três de maio e desde então assumiu essa difícil missão.
Os homens da segurança devem trabalhar de calça e sapato fechado, já que o risco
de serem picados por cobras durante a noite
é muito grande e a falta de visibilidade do
chão aumenta as chances de alguém sair dali
lesionado. O trabalho é árduo, mas garante o
bem estar das 4,5 mil famílias que vivem ali.
“Aqui vocês vão encontrar de tudo, desde
bêbados, até brigas de casais e gente usando
drogas. A noite é imprevisível”, diz Alemão,
enquanto passa as instruções para os homens. Logo depois, já sai a primeira equipe
que tem ponto de encontro em frente à cozinha do G5, local mais alto da ocupação.
O coordenador da segurança explica
como é feita a abordagem. “Se a gente se depara com um bêbado, por exemplo, temos
de conduzir ele até a sua barraca, sem fazer
barulho. Os moradores respeitam bastante,
mas são diversas situações diferentes”.
As noites de sexta-feira para sábado e de
sábado para domingo são as que dão mais
trabalho para a segurança da ocupação. “O
pessoal sai do trabalho na sexta e já vai pro
bar, né. Daí acaba chegando bêbado, é normal isso em qualquer lugar”, pontua Alemão.
Na sua primeira saída na madrugada do
dia 17 para 18 de maio – sábado para domingo – logo ao descer a escada que dá entrada
mulher bêbada. Conduzida por um amigo, a
moradora trança as pernas enquanto afirma:
“hoje é meu aniversário!”. Como um vulto,
ela aparece em frente ao coordenador e, antes de um estalo nos dedos, desaparece entre
as lonas do G1.
Com os braços cruzados para trás, gola da
blusa azul-marinho levantada, botas e lanterna na mão, Alemão parece uma raposa
andando entre as barracas. Para em cada fogueira e procura por vestígios da ilegalidade.
“Aqui dentro da ocupação é proibido bebida
alcoólica e uso de drogas. Se a gente vê, pede
pra guardar, pra apagar, senão é convidado a
se retirar”, afirma.
Em cerca de uma hora, toda a parte baixa da ocupação é percorrida por sua equipe. Sem grandes ocorrências naquele dia,
só mesmo os bêbados deram um pouco de
trabalho aos anjos dali. Eles param no G5 e,
sob a luz do luar, retomam a jornada até que
o sol desponte novamente.
N
Mar de gente
a Copa do Povo, o que mais se vê são
barracas com muita gente. É o caso
da família de Maria Gomes Ferreira,
55 anos, que levou consigo mais 20
pessoas – entre filhos, genros, noras e netos – para
a ocupação.
É tanta gente que sua barraca parece mais um
hotel. Com todo o cuidado do universo, o lar tem
diversas divisórias para garantir a privacidade de cada
um ali dentro. As paredes são feitas de lona preta e,
no que poderia ser chamado de “sala” da barraca da
família, todo mundo se reúne e ri o tempo inteiro.
Maria veio do Piauí, mas os filhos deram o primeiro choro da vida em solo paulistano. “Quando
eu era pequena lá no Nordeste, comi muito feijão
com caldo verde. Não quero isso pros meus filhos”,
afirma. Natanael Ferreira dos Santos, 32 anos, é o
filho mais velho de oito que Dona Maria colocou
no mundo – um deles já morreu. Ficaram sabendo da existência da ocupação por serem membros
da Associação de Moradores do Jardim Helian, local de onde vêm, e que fica próximo dali. “Eles (o
MTST) procuraram a associação pra divulgar a ocupação pros moradores, mas acompanhamos tudo e
acabamos entrando nessa também”, conta Natanael.
“Nosso país precisa de mais moradia, não de Copa
do Mundo. Precisa de educação e de saúde, a gente
não tem nem postinho lá no Jardim Helian”.
A opinião de Natanael é a mesma compartilhada
por milhares dos que vivem por ali. Entre os que têm
o mesmo pensamento, está Marcone Vieira Pereira,
de 28 anos, que chegou ali na ocupação junto à sua
mulher Maria Elita Santos, 26, e à filha Stephanny,
6. Há três anos saíram do Maranhão e estacionaram
suas vidas na capital paulista em busca de oportunidades. “Aqui a gente tem mais opções, mas pagamos um aluguel de R$ 400 e, com água e luz, chega
babá e perua pra Stephanny, que precisa ir pra escola”, conta Maria Elita, que trabalha de empregada
doméstica.
Ficaram sabendo da ocupação pela televisão, já
que o foco atual da mídia fica dividido entre a Copa
do Povo e a Copa do Mundo da Fifa. “Um amigo
nosso também quis vir pra cá e chegamos já no primeiro dia”, conta Marcone. “A empresa que eu faço
bico de pedreiro cedeu vários pontaletes pra gente e
conseguimos assim erguer a barraca. O custo de vida
em São Paulo é alto, mas ainda assim compensa mais
ficar aqui do que voltar pro Maranhão”.
Quando questionados se concordam com a realização da Copa do Mundo, as famílias nunca hesitam na resposta, que é sempre negativa. “Ao invés
de fazer a Copa, não é mais justo primeiro dar saúde
e educação pra quem tá dentro do país?”, questiona
Maria Elita.
A voz do povo é a voz que habita
A
coordenação geral da ocupação anuncia
e o povo responde. “M-T-S-T...” – “A
luta é pra valer!”. É em tom de revolta,
força e persistência que as assembleias da
Copa do Povo tomam forma a cada nova reunião.
Neste momento, são repassados todos os recados
para o pessoal e a agenda de manifestações pela capital paulista. “Um, dois, três, o quatro não se conta,
ou dá a nossa casa ou o sem-teto toma conta”.
Para a manutenção da ordem ali, cada brigada
possui seus próprios coordenadores, moradores que
se voluntariam para a função. Eles são encarregados
de manter uma lista com todas as famílias que permanecem vivendo no local e repassam as informações para a militância, porta-voz das 4,5 mil famílias
e ponte entre os moradores e os governos municipal,
estadual e federal.
Na assembleia de 17 de maio, um mar de gente
tomou conta da praça. Foi anunciado ali o 3º Ato
“Copa sem povo, tô na rua de novo”, mobilização
que, no dia 22 do mesmo mês, ganhou mais uma
vez destaque nacional. Os holofotes estão no povo e
a voz é da população também.
Estima-se que, naquele dia, 20 mil pessoas tenham comparecido na manifestação que teve início
às cinco da tarde no Largo da Batata, em São Paulo,
capital. Ali, palavras de ordem ecoaram na cidade cinza e o trânsito parou. Somente com o
caos na mobilidade urbana é que se consegue a atenção do governo.
E foi o que aconteceu. No dia seguinte,
foi dado um novo prazo para a permanência das famílias no espaço e ficou prometida
uma visita da Caixa Econômica Federal na
ocupação. Até o dia 16 de junho – quatro
dias após o início da Copa do Mundo da Fifa
– ela estará na Copa do Povo para verificar a
viabilidade da construção de um empreendimento habitacional no local. Se há dúvida
que o poder popular exista, a comprovação
está na voz do povo; a voz que habita.•
NOVA PALESTINA
ENSAIO
a maior ocupação do mundo
Fotos por Pablo Pascual(1, 2 e 3)
e Amanda Perobelli(4)
Desde novembro de 2013, oito mil famílias ocupam uma área com mais de 1 milhão de m² localizado na região do Jardim Ângela, periferia da zona
sul de São Paulo. A ocupação Vila Nova Palestina, que homenageia a histórica luta de um povo por sua terra contra o sanguinário exército de Israel,
é considerada a maior ocupação urbana de luta por moradia do mundo e está entre as dezenas de ocupações que foram feitas na maior cidade do país.
22 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento
MTST: avanços e obstáculos
de uma luta anticapitalista
Débora Cristina Goulart
Ato organizado pelo MTST/Resistência Urbana no dia 22 de maio reuniu mais de vinte mil pessoas pela Campanha “Copa Sem Povo Tô Na Rua de Novo”.
A
s notícias sobre as ações do
MTST aparecem cada vez
mais na grande imprensa,
mostrando a força de mobilização deste movimento. Mas qual é
sua importância na organização da classe
trabalhadora brasileira, no campo da esquerda e das lutas populares? Diferente
dos sindicatos e dos atuais partidos, a base
social do MTST é o subproletariado.
A expressão “trabalho informal”,
utilizada pela Organização Internacional do Trabalho – OIT, não é suficiente para explicar qual é a condição dessa
parte da classe trabalhadora no Brasil.
Milhares de pessoas que se encaixariam
nesse tipo de trabalho estão submetidas a
condições muito mais duras do que simplesmente “não terem carteira assinada”.
Deve-se levar em conta, em primeiro lugar, que este processo é uma tendência
crescente vinculada às transformações
no âmbito da produção capitalista, como
a reestruturação produtiva e o desemprego estrutural. Ademais, precariza a
materialidade da reprodução da força
de trabalho, transformando em subproletário todo trabalhador que depende da
venda de sua força de trabalho de forma
explícita, com o trabalho produtivo e a
valorização do valor, ou de forma camuflada, com o trabalho improdutivo pela
regulação do sistema de assalariamento,
inseridos em condições precárias de trabalho e remuneração, instabilidade da
atividade de trabalho, jornadas ampliadas
e direitos do trabalho negados. Além disso, a competitidade entre os trabalhadores isolados, sem representação sindical
e sem proteção trabalhista legal, leva a
uma extrema individualização das ações
que buscam diminuir a brutalização do
trabalho diário. Por outro lado, a necessidade do aumento da renda pode levar
a atividades ilícitas, não como atividade
principal, mas secundária na vida desses
trabalhadores.
O avanço da subproletarização no
Brasil se dá com a desindustrialização
do final dos anos 1980, expressão da reestruturação produtiva que introduziu
o toyotismo no interior das unidades
produtivas e o neoliberalismo como um
conjunto de medidas de contrarreformas
que visavam conter a queda da taxa de
lucro, após a crise dos anos 1970, impactou diretamente na composição da classe
trabalhadora no Brasil.
O desenvolvimento de uma estrutura mais flexível de acumulação através da
introdução de técnicas de gestão da força
de trabalho, que desconcentra as unidades produtivas, intensificou a terceirização e recolocou o trabalho polivalente,
multifuncional. Isto, somado à entrada
em larga escala de tecnologia computadorizada na produção, gerou a diminuição do capital variável (força de trabalho)
em relação ao capital fixo (maquinário),
aumentando assim a produtividade.
Daí, o desemprego estrutural se alimentar de dois mecanismos aparentemente contraditórios: a desproletarização do trabalho industrial com a redução
dos trabalhadores nas fábricas e o aumento do subproletariado, principalmente no
setor de serviços, com trabalho precário,
parcial, mal remunerado, mais feminino,
que exclui os jovens e idosos, causando
uma heterogeneização, fragmentação e
complexificação da classe trabalhadora.
O resultado da implantação desta
nova organização do trabalho tem como
finalidade intensificar a exploração da
força de trabalho, o que dificulta manter os direitos conquistados ao longo do
tempo, por gerar uma crise nas organizações da classe trabalhadora ligadas aos
setores produtivos. Esse processo se agravou nos anos 1990, com a aplicação do
conjunto de contrarreformas neoliberais,
legitimadas pelo voto popular que elegeu
governos neoliberais.
Assim, as mudanças no processo produtivo, aliadas às políticas neoliberais,
destruíram as bases de sustentação de um
sindicalismo de confronto construído ao
longo da década de 1980, com a criação
da CUT. Os alvos prioritários da política neoliberal são os sindicatos e centrais
que vinham de uma história de oposição
aos governos na década de 1980, e que
construíram, com luta, as conquistas dos
trabalhadores. Podemos chamar essas or-
Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 23
ganizações de “herdeiros do novo sindicalismo”.
Diante da crise, a CUT reorientou
suas ações na tentativa de não perder mais
espaço entre os sindicalizados, apostando
em uma análise conjuntural de que não
era mais possível estar na ofensiva, com
ações diretas e greves, pois a capacidade
organizativa e mobilizatória tinha sido
atingida pelo aumento do desemprego
e queda da renda. Por outro lado, uma
postura unicamente defensiva poderia
desgastar as bases de confiança entre os
trabalhadores e os dirigentes, aumentando uma insatisfação já crescente na base.
A saída foi a combinação de um direcionamento para as questões corporativas
(produtividade, participação nos lucros,
abertura comercial, etc.) e a abertura
para a intervenção em políticas públicas
(questões de gênero, étnicas, trabalho
infantil, etc.), mas tal concepção necessitava de espaços de negociação para que
essa estratégia de ação se realizasse. Daí a
aposta nos fóruns institucionais, como as
câmaras setoriais, e a participação em espaços de “oposição democrática”, onde
haveria “possíveis ganhos”.
O que se construiu ao longo dos anos
1990 foi uma forma de ação sindical que
aderiu ao neoliberalismo em seus princípios fundamentais e fez oposição corporativa, tal como o fez, desde seu surgimento, a Força Sindical.
Entre os movimentos sociais também
ocorreu uma reorientação das ações e
seus instrumentos, sobretudo a partir da
metade da década de 1980 e que se aprofunda nos anos 1990. Durante o período
ditatorial a autonomia era o foco dos movimentos que se colocavam em oposição
ao Estado autoritário. Com a abertura
política, diversos movimentos passaram a
forçar a participação política em instâncias do Estado, visto agora como possibilidade de aumento das práticas democráticas pela ampliação da cidadania.
A consolidação da “redemocratização”, como resultado da promulgação da
Constituição de 1988, das eleições diretas, em 1989, e da redefinição do quadro
político-partidário, trouxe um contexto
adequado para a aposta definitiva de um
determinado campo político no projeto participativo democratizante. Esse
campo formou-se com número significativo de intelectuais e professores universitários, que tiveram grande papel na
divulgação desse projeto, sobretudo por
sua vinculação a universidades Esses professores eram majoritariamente vinculados ao Partido dos Trabalhadores. Mas é
preciso também destacar que muitos se
tornaram dirigentes de ONGs e, após a
eleição de Lula, ocuparam cargos nas secretarias dos Ministérios.
Forma-se uma “frente” política que,
articulada pelo Partido dos Trabalhadores, sobretudo, propõe focar as ações na
construção da cidadania através da diminuição da exclusão econômica e do
aumento da participação política da sociedade civil organizada, tanto nas esferas
do Estado quanto em diversos locais da
sociedade. É formulado um método de
democratização social que teria a capacidade de “incluir” grandes parcelas da
população nas benesses materiais do capitalismo periférico.
Porém, essa aposta na ampliação de
conquistas pela via da cidadania já estava
presente na visão dos movimentos sociais
no fim dos anos 1970. Ao focalizar a ação
na participação política que passa pelo
Estado capitalista, não questiona sua origem e dinâmica de classe.
Ainda nos anos 1990, Lúcio Flávio
Rodrigues de Almeida, professor da
PUC-SP, alerta para os possíveis entraves
nas lutas que a ênfase na cidadania pode
trazer. Por um lado, o Estado e as empresas capitalistas estão intrinsecamente
ligados pela concentração e centralização do capital que fragiliza as políticas
que poderiam ser implementadas pelo
Estado. Por outro, a intensidade da dependência do trabalhador em relação à
empresa e a presença dos “trabalhadores
sem trabalho”, que dependem dos trabalhos precarizados e ilegais, mostra como
a dinâmica da exploração do trabalho no
final do século XX, foi favorecida por
legislações aprovadas no âmbito do Estado, em favorecimento da acumulação
do capital. Assim, embora o proletariado
tenha crescido em número, ele está cada
vez mais fragmentado, diversificado, desorganizado e perpassado pela ideologia
da irreversibilidade da subordinação do
trabalho ao capital.
Porém, ao contrário da adaptação
cidadã, há organizações da classe trabalhadora que têm buscado construir
uma nova subjetividade que não admite
a exploração e dominação de uma classe
pela outra, e procura a frear a “participação” na democracia burguesa. São esses
movimentos sociais que podem nos dar
algumas indicações do caminho a seguir: a construção de uma subjetividade
coletiva, de classe, que possa, de maneira autônoma e antagônica a esse estado
de coisas, tentar a retomada da luta por
transformações radicais da sociedade
capitalista. Acreditamos que o MTST
é uma dessas organizações de trabalhadores que têm buscado um caminho de
enfrentamento, mesmo sendo arremetido ao centro das políticas regressivas de
direitos.
O
embrião da sua construção do MTST ocorre no
interior do Movimento
dos Trabalhadores Rurais
Sem-terra(MST), e se acentua durante a
Marcha Popular Nacional de 1997, que
passou por várias cidades, e cujo intuito
era estabelecer vínculos mais organizativos entre os movimentos do campo e da
cidade. No município de Campinas, no
estado de São Paulo, militantes do MST,
estreitaram laços com militantes, vindos
de movimentos urbanos. Esta aproximação gerou um grupo que passou a investigar os problemas sociais urbanos, como
foco de ação diferente do campo: com
outras motivações, organização e estratégias. Com a participação de alguns militantes do MST, ocorre uma ocupação de
terreno em Campinas, conhecida como
Parque Oziel. É aí que ocorre a primeira
experiência de ocupação na cidade, ainda
com traços da organização gestada pelo
movimento rural.
Os anos seguintes foram importantes
para o amadurecimento das formas de
luta urbanas e para a configuração de um
movimento com características próprias,
bastante diversas das estratégias já consolidadas no campo.
A partir do ano 2000, o movimento
já tinha uma base social clara: a população
pobre das periferias das grandes e médias
cidades, e um projeto político de transformação social, a partir da reivindicação
por moradia e reforma urbana. Começa,
também, a estabelecer contatos, ainda
que incipientes, entre diferentes movimentos urbanos em algumas capitais do
país, como Rio de Janeiro e Recife.
Seu crescimento se dá aos poucos,
combinando ocupações e formação política dos ativistas, do que surge um método de ocupação e resistência urbana. Mas
o avanço não é linear e as experiências resultam em diferentes resultados.
Em 2001, ergueu-se a ocupação Anita Garibaldi, em uma área de 250.000
m 2, localizada na periferia da cidade, no
bairro Ponte Alta, próximo ao Aeroporto
Internacional de Guarulhos. Um terreno
de propriedade particular, desocupado
há mais de 50 anos, que vinha sendo utilizado ilegalmente para depósito de lixo
e, segundo moradores do entorno, para
“desova” de cadáveres.
Essa ocupação foi significativa para
o histórico do MTST, por ter sido a
primeira grande ocupação (seja pelo tamanho do terreno, seja pelo número de
pessoas agregadas, chegando a 12.000) e
por ter se mantido sem ação de despejo, o
que favoreceu o movimento a prosseguir
em seus objetivos de crescimento na região metropolitana de São Paulo.
A primeira ocupação ocorrida no
Governo Lula foi em 19 de julho de
2003, quando um grupo de 300 pessoas ocupou uma área de 170 mil m² em
São Bernardo do Campo em frente à fábrica da Volkswagen do Brasil Ltda., no
km 23,5 da Via Anchieta. Tinha início
a ocupação Santo Dias, que, em dias,
atingiu quatro mil pessoas e confirmou
a previsão dos militantes de uma boa
adesão dos moradores das favelas e dos
morros do bairro de Ferrazópolis, onde
se situa o terreno ocupado.
Não houve qualquer abertura para
negociação e, em menos de um mês,
houve o despejo. Depois desta ocupação
o movimento procura aprofundar suas
formas de atuação e intensifica a formação dos militantes para avançar em novas
ocupações, o que ocorre apenas em 2005
com o acampamento João Cândido, em
Itapecerica da Serra e Chico Mendes, em
Taboão da Serra.
Essas duas ocupações, que duraram
por volta de dois anos, representaram um
novo patamar de organização e elaboração interna de suas ações e prioridades do
MTST. Mudou o desenho da ocupação,
a estrutura organizativa, as relações internas e a forma de negociação e pressão
sobre os governos se aprimoraram. De
outro lado, o Estado aprimorou o tipo
de relação que estabeleceria com o movimento, passando da não aceitação das
ações e da determinação do despejo para
a negociação, o que, contudo, não significou conquistas de moradias.
O
Encontro Estadual do
MTST de 2007 decide
pela ampliação da atuação
do movimento, buscando
consolidar um “cinturão” de lutas no
estado de São Paulo, e realiza, concomitantemente, três novas ocupações em
2008, nos municípios de Embu das Artes, Mauá e Campinas. A esse processo, o
movimento chamou de “estadualização
do MTST”, Indo além das ocupações na
região metropolitana de São Paulo, fora,
feitas ocupações em cidades do interior e
ações para interrupção de transportes de
mercadorias nas principais rodovias do
estado, conhecidas como “trancaço”.
De todo modo, até 2008, o foco
principal das atividades do movimento
foram as ocupações na Região Metropolitana de São Paulo, aprofundando a
organização interna dos acampamentos, uma vez que os “acampados” tem
a tarefa de manutenção/proteção da área
ocupada.
A estadualização das ações de ocupação aprofundou a negociação com o governo do estado de São Paulo, e além do
que já era realizado com as prefeituras das
áreas, visto que as reivindicações passam
pela parceria entre essas três instâncias
para a viabilização das moradias.
Este processo coloca o MTST no
enfrentamento direto com o governo
do Estado, quando suas manifestações
podem gerar desgastes políticos ao executivo. Isso se dá porque o movimento
opta por ações que chamem a atenção
da população e da mídia para a instância
de governo a que se quer atingir, o que
em geral serve para forçar uma abertura
de negociações. Essas ações são marchas,
acorrentamentos a prédios públicos ou
em áreas públicas e greves de fome em
locais de grande circulação.
Apenas um ano depois das ocupações em nível estadual, o movimento se
lança ao objetivo de nacionalizar o movimento, formando grupos de atuação em
estados diferentes, mas sob uma única
organização e procurando unificar uma
carta de princípios políticos e de atuação.
A manifestação que inaugura essa nova
fase é o acorrentamento de militantes aos
portões do prédio de apartamentos em
que o presidente Lula tem um imóvel,
na cidade de São Bernardo do Campo
em julho de 2009. Foram oito dias até a
abertura das negociações com o Ministé-
24 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento
rio das Cidades. O resultado foi o compromisso do governo federal em incluir
as famílias acampadas no programa habitacional Minha Casa, Minha Vida.
A escolha pela interpelação direta ao
presidente Lula foi construída internamente no MTST, como forma de acelerar as negociações, mas também ocorre
pela construção de uma rede de alianças
com outras organizações de trabalhadores para a construção de uma resistência
que possa avançar em conquistas tanto
corporativas quanto da classe, questionando o papel do governo federal liderado pelo PT nestes avanços.
Partindo de uma caracterização de
crise da esquerda, identificada com a
ruptura do PT e da CUT com os interesses da classe trabalhadora, e da dificuldade dos sindicatos de organizarem a
parcela de trabalhadores fora do mercado
formal de trabalho, o MTST se vê como
a organização que pode realizar esse trabalho de formação política junto a uma
parcela da classe trabalhadora. Para isso
ressalta a necessidade da unidade entre
as organizações que não abandonaram a
perspectiva anticapitalista. Sendo assim,
envolveu-se com a formação de uma
nova central, em meados de 2004, conjuntamente com setores do sindicalismo
e do movimento popular que buscavam
reconfigurar as lutas dos trabalhadores no
Brasil. Desse esforço nasceu a Coordenação Nacional de Lutas (CONLUTAS)
que, em 2010, passou a ser Central Sindical, intitulada Central Sindical e Popular
(CSP Conlutas).
Com o mesmo intuito, a formação da Frente de Resistência Urbana se
inscreve na avaliação da necessidade de
uma ação nacional unificada. Mais do
que oposição ao governo do PT, os movimentos sociais urbanos que integram a
Frente de Resistência Urbana, o fazem
por partilharem da centralidade da luta
direta como instrumento de ação coletiva e da proposta de uma Reforma Urbana anticapitalista. Nos termos da Frente
de Resistência Urbana, as obras do PAC,
o programa Minha Casa, Minha Vida,
são parte de uma contrarreforma urbana,
que evidencia a aliança perversa entre Estado e capital imobiliário, reproduzindo
uma lógica excludente e repressiva de desenvolvimento urbano.
Mas não nos esqueçamos que a história do MTST foi construída, quase
que integralmente, nos governos do PT,
revelando que seu crescimento tem relação direta com as condições de vida dos
subproletários, em cuja luta por moradia
se engajam. Tal engajamento é sinal de
um acertado posicionamento crítico em
relação às políticas federais.
Lula, eleito com mais de 65% dos
votos, confunde a esquerda, que tem caracterizações muito diferentes sobre seu
governo. Para alguns, o PT já era neoliberal antes de chegar a ser governo, encerrando o ciclo de hegemonia do PT na
esquerda brasileira. Para outros, a tese da
“herança maldita” dos governos anteriores, colocava o governo sob “disputa” e
seria necessário fortalecer a parcela mais
à esquerda dentro do governo. De nossa
parte, concordamos com outros autores
que afirmam que o governo do PT, porém, conseguiu agregar definitivamente
o apoio da burguesia industrial e agrária,
quando “iniciou sua política agressiva
de exportação centrada no agronegócio,
nos recursos naturais e nos produtos industrializados de baixa densidade tecnológica” cuja sustentação se dá pelo saldo
positivo da balança comercial, do superávit primário e da superexploração do
trabalhador.
Se, por um lado, o governo do PT
conseguiu ampliar as medidas neoliberais, favorecendo o conjunto da burguesia, entre os trabalhadores não perdeu
apoio: ao contrário, apenas aumentou.
Mas como, ao ampliar as medidas neoliberais, o governo Lula pôde agradar também os trabalhadores? Se de um lado o
governo fez uso de políticas de desenvolvimento interno e distribuição de renda
com a ampliação dos programas sociais
(Bolsa Família, entre outros), de outro, a
esquerda anticapitalista representados nos
partidos, sindicatos, movimentos sociais,
organizações, etc., se viu frontalmente
afetada pelos governos do PT. Em primeiro lugar, porque parte dessa esquerda
demorou a se desvencilhar da “história”
do partido, sua representação popular,
enfim, das expectativas no governo do
PT. Em segundo lugar, porque aqueles
que não viam possibilidades de mudança
no eixo neoliberal já demonstrado pelo
governo, não entendiam ainda a gravidade do problema para as organizações da
classe trabalhadora. Em terceiro, porque
aqueles que a entendiam, não sabiam
ainda como agir neste novo contexto.
O balanço desta “batalha de ideias” foi a
desqualificação da esquerda, ainda “encarnada” no PT, que adotara as mesmas
formas de agir dos governos anteriores. E
mais, as alianças levaram antigas figuras
da política conservadora e reacionária
aos quadros do governo como sua base
de apoio.
Outra gravíssima conseqüência para
a esquerda anticapitalista é a interpelação
direta do governo com os trabalhadores
pela via das políticas compensatórias através da figura pessoal do presidente Lula,
que desorganiza a classe trabalhadora e
desqualifica também suas organizações.
Os vínculos historicamente construídos entre os movimentos sociais e o PT,
se apoiou na construção de um “projeto
de nação” que aos poucos, como vimos,
se transforma em projeto de classe, da
classe dominante, implementado pelo
PT, recém convertido em partido da ordem.
Neste cenário, o MTST defende que
os movimentos populares urbanos devem traçar uma estratégia de ação, com
vistaa objetivos abrangentes, formas de
ação contundentes e organização autônoma, duradoura e qualitativamente
superior ao que vem sendo realizado até
então. Na Cartilha do Militante, os objetivos estratégicos traçados são a conquista
da moradia, a reforma urbana e a transformação social pela via da construção
de uma identidade coletiva. Embora não
haja um aprofundamento desses objetivos, fica claro que a única “saída” a ser
considerada é a superação desse estado de
coisas, através da formação de militantes
qualificados para a ação responsável, e da
construção de uma identidade coletiva
que faça com que, como diz a Cartilha
do Militante, “o povo explorado perceba
que [...] eles são o time dos oprimidos e
que o único time com quem eles devem
brigar e competir é o time dos opressores”.
Ao se apresentar como um movimento que não é de moradia, mas que
se organiza a partir da moradia, o MTST
afirma que a luta contra cada um dos
problemas que desumaniza o trabalhador
no capitalismo é uma “luta contra o conjunto”. Esse conjunto é o capitalismo,
que aparece indiretamente em vários documentos, geralmente, pautado pela dominação e ausência de qualidade de vida
dos trabalhadores.
No Programa de Ação do MTST,
a sociedade atual é apresentada como o
“conjunto das relações e formas bárbaras de opressão que marcam a vida social
contemporânea”. Em outro momento,
como “uma sociedade que transforma tudo e todos em mercadoria (que)
não vê problemas em atirar bilhões de
trabalhadores ao lixo quando não são
mais úteis ao seu consumo vampiresco”.
Concluem, portanto, que este sistema
social não serve aos trabalhadores e que
a solução não é “aumentar o preço do ser
humano, limitando-se a tornar a miséria
mais suportável; queremos uma vida digna e livre”.
É apenas no Relatório da Reunião
Nacional do MTST de 2009 que o capitalismo é citado diretamente como de
“natureza contraditória e opressora (que)
impede um acesso da maioria ao poder
e às riquezas sociais” e sua superação é
nomeada como “construção de uma sociedade socialista”.
O
debate sobre as limitações
do capitalismo e da proposição do socialismo como
horizonte do movimento
aparece mais clara e profundamente nos
documentos internos do movimento.
Este fato não está relacionado à ocultação
de suas posições políticas, mas à crítica
ao que é chamado de “bandeiras vazias”,
em várias passagens dos documentos. O
MTST tem uma concepção de militância fincada na realização do trabalho de
formação da base social como instrumento de transformação social, sem o
qual qualquer bandeira política seria infértil e inconsistente. Com uma posição
estratégica de superação do capitalismo e
buscando a construção de uma base social
autônoma e consciente, o MTST propõe
bandeiras que articulem a ação do dia a
dia e os os objetivos mais amplos. Essas
bandeiras são: a reforma urbana e o poder
popular.
O MTST faz uma crítica às propostas
de reforma urbana que se limitam à melhoria da qualidade dos serviços urbanos e
à conciliação com os interesses privados,
que fariam concessões à pressão da população organizada por acesso a algum direito de forma pontual. Segundo o MTST,
a reforma urbana proposta é um projeto
“de classe, de enfrentamento à cidade
do capital”, tendo, como contraposição,
a apropriação coletiva do espaço, a partir
dos seguintes eixos: “crítica à cidademercadoria, combate ao capital imobiliário em todas as suas formas, defesa das
expropriações de terras, questionamento
das políticas de cidadania participativa”.
A proposta de construção do poder
popular aparece de várias formas nos documentos do movimento, ora como objetivo, ora como bandeira e ainda como
princípio organizativo. Isso porque nenhuma proposta pode ser efetivada plenamente sem que passe por uma construção
coletiva realizada desde as relações cotidianas até as propostas de transformação
mais abrangente. Ao mesmo tempo em
que o poder popular deve estar presente
na formação e dinâmica dos grupos nos
acampamentos, deve também se efetivar
no enfrentamento do caráter mercadológico do espaço nas cidades. O poder popular como prática política e organizativa
é uma “experiência de discutir e fazer
nós mesmos”, ou seja, a construção da
“organização das massas em espaços de
reflexão e decisão coletivos” capaz de expressar uma “crítica ao Estado capitalista
e apontar para formas políticas realmente
democráticas”.
Mas as contradições que enfrentaram outros movimentos no passado, estão presentes também no MTST, como
a tensão entre base e direção, o conflito
entre a necessidade imediata, neste caso
a moradia, e as conquistas mais amplas
e a longo prazo, como a luta antineoliberal e anticapitalista, e a relação entre
o movimento e outras organizações e
partidos, incluindo aí o PT. O papel do
petismo em algumas prefeituras tem se
mostrado ambíguo. Ora como repressor
das ocupações, ora como único canal de
negociação que, inclusive, pode garantir a
entrada do movimento em programas sociais, arrefecendo as enormes dificuldades
de organização de uma base em extrema
condição de pobreza.
Pretendemos neste espaço de divulgação e debate mostrar uma parte de nosso trabalho de doutorado, como forma
de contribuir na publicização de informações e diálogo com interlocutores na
esquerda anticapitalista.•
ALMEIDA, L. F. Corrosões da cidadania: contradições da
ideologia nacional na atual fase de internacionalização do capitalismo. Revista Lutas Sociais, São Paulo, n. 1 Xamã, 1996.
Atas da reunião coord. nacional, cartilha do Militante e Programade ação do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto.
BEHRING, E. R. Brasil e Contra-reforma: desestruturação
do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2003.
GOULART, D. C. Entre a denúncia e a renúncia: a
APEOESP (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do
Estado de São Paulo) frente às reformas na educação pública
na gestão Mário Covas
Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 25
SAÚDE
a saúde além dos médicos
para um debate sobre o
Programa Mais Médicos
Felipe Monte Cardoso
C
aminho com a agente comunitária de saúde (ACS) e com
o residente de Medicina de
Família e Comunidade em
um bairro da periferia de Campinas (SP)
numa cálida tarde de fevereiro último.
Sob sol de 40 graus da mais crítica onda
de calor dos últimos 50 anos, a vida segue:
crianças tomam banho de caixa d’água,
moradores se refugiam sob as escassas árvores, as jovens perambulam pelas ruas,
mesmo após início do período letivo. A
ACS fala sobre os personagens da comunidade, enumera os problemas de saúde
mais comuns dali: a falta de saneamento
básico, a dengue (o bairro foi epicentro de
uma epidemia no ano passado), a poluição de uma fábrica de asfalto e os reflexos
do crime organizado na vida das pessoas.
Antes de ser ACS, trabalhou na produção
de uma metalúrgica. Confidencia que,
dentro da linha de montagem, jamais se
imaginou lidando diretamente com o
público. O generoso sorriso ao apresentar
“sua área” denuncia o orgulho que sustenta seu trabalho.
Há milhares de Roses nas quebradas e
zonas rurais Brasil afora. A Estratégia de
Saúde da Família, criada (com o nome de
Programa de Saúde da Família) em 1994,
é responsável por atender cerca de 110 milhões de brasileiros (1). Embora haja um
batalhão de trabalhadores e trabalhadoras
da chamada Atenção Primária à Saúde no
Brasil, foi apenas com o polêmico Mais
Médicos, resposta oficial às Jornadas de
Junho, que este tema chegou ao centro
do debate público em anos recentes.
O mal estar com a saúde no Brasil é
fenômeno antigo. Antes de existirem os
modernos sistemas de saúde, a gente se virava: rituais místicos, ervas medicinais ou
prescrições alimentares sempre fizeram
parte de nossa chamada medicina popular. No entanto, desde o período colonial,
as péssimas condições de vida impunham
altas taxas de adoecimento e mortalidade (2). Não raro também o povo foi visto como empecilho para a produção de
riqueza: a mesma sanha agroexportadora
que impôs a imunização obrigatória contra a varíola, estopim da rebelião popular de 1904 no Rio de Janeiro, também
apadrinhou a prática secular de contágio
proposital de populações indígenas com
a mesma doença, “presenteando-as” com
roupas contaminadas pelo vírus. No Brasil, paradoxalmente, a guerra biológica e
seu antídoto foram armas descarregadas
contra o povo.
Este passado ainda está vivo hoje. Num
país em que o carro é prioridade ante o
direito coletivo à mobilidade, em que
os empregos vão se esgotando cada vez
mais, que o acesso a alimentos saudáveis
é sacrificado em nome do agronegócio,
em que a especulação imobiliária esmaga
o direito à moradia, as condições de saúde
são prejudicadas. Não é à toa que quase
metade dos entrevistados apontam a saúde como sua maior preocupação (3). A
relevante – porém insuficiente – redução
dos níveis de desemprego consolidaram
esse cenário a partir do segundo governo
Lula.
ão foi surpresa, portanto,
a enorme popularidade
dos lemas em defesa da
saúde durante as Jornadas
de Junho. O que surpreendeu muitos
ativistas foi uma defesa generalizada do
direito à saúde (sintetizada na palavra
de ordem “põe os R$0,20 no SUS”).
Durante a era dourada do lulismo, o
crescimento econômico possibilitou a
fantasia de que seria possível promover “inclusão social” através do consumo. Um dos símbolos da mal chamada
“nova classe média”, junto com o carro
próprio e as tralhas eletrônicas, era o
acesso a planos de saúde.
Historicamente, o uso de serviços
privados de saúde serviu como índi-
N
ce de segregação social entre as classes dominantes, os setores remediados
e os segmentos mais pauperizados das
classes trabalhadoras. O lulismo, fruto também dessa diferenciação social,
soube trabalhar com essa questão, de
um lado garantindo enormes lucros às
operadoras de planos de saúde, de outro lado comprando o apoio popular
(ou o “consentimento passivo”, segundo Ruy Braga) através da ampliação do
acesso dos trabalhadores aos planos de
saúde.
Quando a vida se mostrou claramente insuportável para milhões, o edifício
ideológico da “cidadania via consumo”
desmoronou. Um de seus pilares era o
consumismo de saúde, desmoralizado
pelo protestos. O governo Dilma, após
se refazer do choque e garantir que nada
iria mudar substancialmente (ainda em
junho, desistiu da reforma política e assegurou à banca internacional que continuaria a desfrutar das prioridades de
sua política econômica), resolveu agir
na saúde.
Estava no fim das férias quando veio à
tona o pacotaço denominado Mais Médicos, no sugestivo dia 09 de julho. Na
semana anterior, havia acompanhado
à distância as mobilizações de algumas
entidades médicas, cuja pauta transitava de um corporativismo conservador
à franca hostilidade xenofóbica e elitista, que assustaram setores expressivos
da sociedade brasileira. Desde abril, o
governo ameaçava finalmente enfrentar
a carência de médicos no SUS, com a
“importação” de estrangeiros para regiões de difícil fixação de profissionais
brasileiros. Essa era a maior razão da
enorme grita das entidades.
26 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento
O
s médicos, como demais trabalhadores da saúde, enfrentam piora das suas
condições de trabalho. Sua jornada
média aumentou consideravelmente
entre 2002 e 2006 (estão entre as maiores, perdendo para caminhoneiros, motoristas e executivos
de grandes empresas), frequentemente trabalham
em mais de um emprego. No entanto, os médicos, comparados com as demais profissões da saúde, ainda gozam de um status melhor, com maiores
salários (4) e condições de trabalho menos insalubres. Resumindo: a situação está piorando, mas
não está tão ruim para os médicos, se comparado
a outras categorias profissionais. Há vários motivos para isso: o prestígio de que desfrutam por seu
papel frente ao sofrimento e a morte ou sua importância para as grandes empresas da doença. Mas
gostaria de destacar dois elementos que considero
fundamentais: a falta de profissionais e o tipo de
profissionais formados.
As enormes dificuldades de acesso da maior
parte do povo à assistência à saúde esbarram, entre
outros fatores, na falta de trabalhadores nos serviços públicos. O poder público, fiador da política
de restrição dos gastos sociais ao mínimo, desde a
criação do SUS (em 1988) não se compromete com
a expansão de um mercado de trabalho estatal necessário à consolidação do direito à saúde. Some-se
a isso a expansão desordenada do ensino superior,
que criou um grande contingente de profissionais
de saúde formados, levando ao enorme contrassenso que é ter carência de atendimento e elevada taxa
de desemprego de determinadas categorias, como
profissionais de enfermagem, psicólogos, nutricionistas, fisioterapeutas, entre outros. No caso dos
médicos, cuja escassez frequentemente representa
as dificuldades de acesso nas reclamações da população, a situação é um pouco diferente.
Nos recentes estudos patrocinados pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) e coordenados pelo Prof. Mario Scheffer, da Faculdade
de Medicina da USP, foi possível traçar um quadro
mais exato dos problemas do mercado de trabalho
dos médicos (5).
No ano
de 2011, o Brasil tinha 1,9 médicos por 1000 habitantes, índice semelhante ao do Canadá, mas
menor que EUA, Reino Unido, Espanha e Cuba
(segundo dados do Banco Mundial). Fica evidente
que a proporção não é ínfima, mas está longe de
representar superpopulação de médicos, conforme
querem setores das entidades da categoria. O estudo mostra ainda que durante a ditadura o ritmo de
crescimento de profissionais graduados aumentou
e se mantém até o presente. Chama a atenção o fato
de que há menos de 10 anos predominam as mulheres entre os recém-formados..
Este estudo evidenciou grandes disparidades geográficas: a maior parte dos médicos se concentra
nas capitais e nos estados mais ricos, em geral no
Sul e Sudeste, além do Distrito Federal. Outra variável chave é a concentração de médicos no setor
privado. Embora apenas 25% da população tenha
planos de saúde privados, na disponibilidade de
médicos essa estatística se inverte: há 4 vezes mais
médicos na rede privada que no SUS. Está aí o cerne do problema.
Suas origens remontam a ditadura de 1964.
Nesse período, quando foi consolidada a separação
entre público e privado na saúde – coisa que o período dito democrático não foi capaz de modificar – o mercado de trabalho na medicina precisou
se adequar às necessidades dos negócios na saúde.
Naquele momento, houve uma expansão no ritmo de formação de novos médicos, com abertura
de novas faculdades. A medicina liberal perdeu o
monopólio para novas formas de trabalho; mesmo
assim, o assalariamento e a prestação de serviços ao
setor público e ao privado não mudaram o prestígio
(e as vantagens econômicas) da prática da medicina
subordinada aos interesses empresariais.
O negócio na saúde se expandiu através do
modelo de atendimento baseado no hospital, nas
tecnologias mais avançadas, no trabalho médico
especializado e fragmentado. O Brasil começou a
absorver a compra de máquinas modernas (como
tomógrafos, aparelhos de ultrassom de última geração), medicamentos recém-lançados, etc. Copiar
os padrões de medicina dos países ricos – uma ob-
Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 27
sessão até hoje – nos levou a privilegiar a
incorporação tecnológica no lugar da resolução das grandes questões nacionais
da saúde: baixo acesso das populações
pobres aos serviços de saúde, os problemas da urbanização (como saneamento
e moradia), as periódicas epidemias (que
ainda nos atormentam, como a dengue
e a tuberculose) ou o péssimo padrão de
alimentação.
Tanto no setor privado, como no setor
público, a ideia fixa pela modernização
orientou o mercado de trabalho e, mais
grave ainda, as faculdades de medicina.
Este modelo de saúde voltada aos negócios e à modernização passou a dominar
os currículos dos cursos de medicina.
Até hoje, as especialidades gerais (como
a medicina de família e comunidade ou
pediatria) representam a minoria dos
médicos com especialização ou residência. Esta realidade não foi modificada
pelas sucessivas tentativas de reformas
das Diretrizes Curriculares Nacionais
do curso de medicina e é agravada pela
distribuição e preenchimento das vagas
de Residência Médica, que termina por
definir a posição do médico no mercado
de trabalho.
P
or essas razões, o Mais Médicos
é aquele remédio que alivia a
dor, mas não resolve o problema. Ele se inscreve no projeto
lulista de combinar expansão dos grandes
negócios e pequenas migalhas para apaziguar as enormes contradições sociais
brasileiras. Basta lembrar da previsão do
então ministro da saúde, Alexandre Padilha: a porcentagem da população usuária
de planos de saúde iria passar dos atuais
25% para 40% em 2022 (7). É precisamente dentro do projeto de privatização
do SUS que precisamos entender o programa.
A pesquisa “Demografia Médica no
Brasil” mostra que, entre 2005 e 2009, o
ritmo de expansão das vagas de trabalho
no setor privado cresceu muito mais que
os médicos formados e que os postos de
trabalho no SUS. Mais grave ainda: havia, em 2011, vagas no setor privado para
ocupar praticamente todos os médicos
brasileiros. Isso explica a agudeza da crise da escassez de médicos, com que sempre sofreu o SUS, mas que passou a afetar parte do setor privado em expansão. É
nesse contexto que o governo vinha preparando, já antes de junho passado, um
programa nos moldes do Mais Médicos,
acelerado em virtude da pressão das ruas.
Em síntese, as mudanças que Dilma
preparou foram: ampliação de vagas em
cursos de medicina, especialmente em
universidades privadas; criação de postos
de trabalho na atenção primária à saúde
com vínculos trabalhistas precários (sem
direito a férias ou 13º salário, por exemplo), baseado principalmente na “importação” de profissionais estrangeiros, após
a baixa adesão de profissionais nacionais;
precarização da política de formação de
médicos de família e comunidade, ao
preferir as especializações em serviço no
lugar da residência médica (8).
E
ssas medidas se destinam a
“inundar” (metáfora que ouvi
de diversos colegas em postos
de mando no Ministério da
Saúde) o mercado de trabalho de médicos; reservar para os profissionais brasileiros os postos de trabalho no setor privado, em um primeiro momento, até que
a expansão desordenada das vagas de medicina – pois não respondem às necessidades regionais e do SUS – seja capaz de
gerar um abundância relativa. Isso tenderá a rebaixar os salários e aumentar o
subemprego, como já ocorre com as demais categorias da saúde. É fundamental
frisar que o Mais Médicos, sob o absurdo
pretexto de pagar “bolsas” aos profissionais que aderiram ao programa, torna-se
novo paradigma de precarização do serviço público. Outro aspecto que salta aos
olhos é que o governo sequer dá a importância devida aos demais profissionais de
saúde, cujas péssimas condições de formação e trabalho inviabilizam a melhora
geral das condições de trabalho no SUS.
O governo Dilma acaba por reforçar a fetichização da categoria médica como solução mágica para os graves problemas de
saúde do povo brasileiro (9).
Por fim, as mudanças propostas na
formação nem apontam para a superação
do paradigma especializado e medicalizador, pois a prioridade não é para especialidades gerais, nem vem combinadas com medidas que subvertam a lógica
dos negócios. Mesmo depois de junho, o
bloco lulista insiste com a “convivência
harmônica” das grandes empresas da doença, que tem franco acesso aos salões do
poder (10), e do SUS. Esse projeto, síntese do arranjo conservador da Constituição de 1988, mostrou claramente que
não serve ao povo brasileiro. Na discussão sobre quantos e quais médicos o país
precisa, a resposta deve passar por superar nossos grandes dilemas sociais. No
caso da saúde, devemos retomar a noção
de que apenas mudanças profundas serão
capazes de derrotar a indústria da doença,
da modernização ao custo da pobreza da
maioria, e de um sistema educacional típico de uma nação dependente. Isso certamente colocaria em cheque a mentalidade – e as práticas – senhoriais de parte
da categoria médica, como ocorreu nas
profundas reformas sanitárias do Reino Unido da década de 1940 e de Cuba
nas décadas de 1960 e 1970. Nesses dois
casos, os dilemas nacionais foram enfrentados, cada qual de acordo com suas
possibilidades e limites históricos. Muito
diferente do nosso cenário político atual,
em que o grande esforço do governo é
salvar a Copa do naufrágio iminente.
Nesse sentido, o SUS, fruto da transição pelo alto (expressa pela “Nova República”), embora tenha proporcionado
mudanças no atendimento à saúde, não
foi capaz de subverter a lógica acima
mencionada. Como na política urbana
ou na questão da segurança pública, o
Brasil ainda está amarrado aos termos gerais legados pelo regime ditatorial. Ainda hoje, a saúde no Brasil é uma combinação entre a prioridade na expansão
dos grandes negócios e a mitigação das
enormes tensões sociais. A ideia de direito à saúde segue embelezando a Carta
Magna, a produção técnica e acadêmica
brasileiras, mas definitivamente não contempla o sentimento popular, que só tem
levado tiro, porrada e bomba, ao invés de
saúde, educação, transporte e moradia.•
(1)(http://dab.saude.gov.br/dab/historico_cobertura_sf/historico_cobertura_sf_relatorio.php)
(2) CONRAD, RE Tumbeiros: o tráfico de escravos para o
Brasil – São Paulo: Brasiliense, 1985
( 3 ) h t t p : / / w w w 1. f o l h a . u o l . c o m . b r / s e m i n a r i o s fol h a / 2 014 / 0 3 / 14 3 247 8 - d at a fol h a - ap ont a - s aud e - c o mo-principal-problema-dos-brasileiros.shtml
(4) Escassez de médicos, Neri, M (org.). Rio de Janeiro:
CPS/FGV, 2008; O médico e seu trabalho: aspectos metodológicos e resultados do Brasil. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2004
(5) Demografia Médica no Brasil: Resultados gerais e descrições de desigualdades. Coordenação: Mário Scheffer; Aureliano Biancarelli Alex Cassenote. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo e Conselho Federal de
Medicina, 2011
(6)http://www.redebrasilatual.com.br/saude/2014/04/setor-privado-e-perfil-das-faculdades-afasta-jovens-medicos-damedicina-de-familia-4148.html
(7) Revista Carta Capital, edição 696, 09 de maio de 2012
(8) sobre o trabalho dos médicos estrangeiros, pode-se ler os
interessantes relatos das dificuldades, críticas e reconhecimento
dos méritos destes profissionais ao programa, nos seguintes links:
http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=9440:manchete200314&catid=25:politica&Itemid=47; http://remediosdirce.blogspot.com.
br/2014/02/os-estrangeiros-os-pacientes-e-os.html
(9) O setorial de saúde do PSOL debateu este tema, conforme os textos a seguir: http://www.psolsaude.com.br/159; http://
www.psolsaude.com.br/52#comment-95
(10)http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/95986-uniao-quer-ampliar-acesso-a-planos-de-saude.shtml
28 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento
Ensaio sobre a política habitacional no DF
O
Distrito Federal, principalmente se considerarmos a
população do entorno, é
hoje a unidade da federação
com a maior desigualdade social do Brasil.
E certamente não se explica esta realidade
sem compreender a política habitacional.
A luta por moradia no Distrito Federal sempre esteve bastante vinculada aos
principais projetos de poder estabelecidos,
cada qual ao seu modo, seja durante os
anos de gestão Roriz, com o domínio dos
processos de grilagem, seja a versão mais
moderna do capital imobiliário como
protagonista da política fundiária a partir
das gestões Arruda/Agnelo. De coincidente, os dois modelos traziam a tentativa
do domínio dos movimentos de moradia,
seja pela cooptação ou pela repressão. O
recente protagonismo do MTST, colocando em xeque a política de moradia e
garantindo a autonomia do movimento
frente ao governo, é um marco na luta por
moradia digna no Distrito Federal. Para
tentar entender esse marco, faremos um
breve resumo da política habitacional do
Distrito Federal que, em conjunto com
as demais políticas, são responsáveis pelas
mazelas sociais em que vivemos e pelo altíssimo déficit habitacional que, hoje, é de
praticamente 50% da população.
A construção de Brasília e a
expulsão dos trabalhadores(as)
C
omo diversos documentários,
livros e relatos já mostraram,
Brasília foi construída graças a uma forte migração de
trabalhadores e trabalhadoras para o Planalto Central. Durante a construção, de
acordo com o censo de 1960, a população chegara a 140 mil pessoas, e cresceria
mais nos anos seguintes. É o primeiro dos
três grandes fluxos populacionais ao DF.
Num primeiro momento, a maior parte
desses trabalhadores foram instalados nas
cidades próximas a Brasília, notadamente
a Candangolandia e o Núcleo Bandeirantes além das já existentes Planaltina e
Brazlândia. Relatos mostram que a construção da Vila Taguatinga, ainda no final
dos anos 50, já ocorrera a partir da pressão
dos trabalhadores. Nos primeiros anos da
década de 60, são construídas Gama e Sobradinho.
Após a realização das construções,
que permitiram realizar a inauguração do
Distrito Federal, com a vinda da Administração Pública Federal e a série de novas
oportunidades e propiciado pela grande
processo migratório dos anos 70, o DF vê
também saltos enormes no crescimento
populacional. No espaço de vinte anos,
entre 1960 e 1980, a população multiplica-se por 10, atingindo 1,2 milhões de
pessoas. É nesse cenário, em meio à dita-
Francisco Carneiro de Filippo
Érika Lula de Medeiros
dura militar, que ocorre a construção de
mais uma série de cidades-satélite. Além
das já citadas Gama e Sobradinho, também é projetado o Guará. Porém, a história da luta por moradia nesse período
é marcada pela resistência e consolidação
do Paranoá (vila de trabalhadores do início da construção que reage às tentativas
de remoção) e pela Campanha de Erradicação de Invasões, série de remoções
forçadas das ocupações da Vila IAPI; das
Vilas Tenório, Esperança, Bernardo Sayão
e Colombo; dos morros do Querosene e
do Urubu; e Curral das Éguas e Placa das
Mercedes, totalizando mais de oitenta mil
moradores.
Desse processo de remoção das ocupações nasceu a Ceilândia que, desde o
início, foi marcada por uma série de conflitos.Em especial, no início, tais conflitos
estouraram em resposta à negligência,
por parte do Governo do Distrito Federal (GDF), em garantir a infraestrutura
da cidade. Posteriormente, já nos anos
70, houve revolta quando o GDF tentou
forçar os moradores a pagar o lote inicialmente calculado pelo valor de mercado
daqueles anos, em descumprimento das
próprias normas da fundação da cidade.
Não à toa, é da Ceilândia que surgem
muitos dos processos de resistência ao governo militar naquela época e, até hoje, é
fonte de resistência e luta. No que tange
à moradia em particular, nos anos 70-80
ganhou a Associação dos Incansáveis de
Ceilândia conseguiu derrotar o governo
militar. Hoje, nos anos 10 do século XXI,
o MTST, que tem na Celândia sua maior
base no DF, vai fazendo história e conquistando vitórias.
Assim, desde o primeiro momento, a
construção do DF já traz a marca da segregação geográfica como co-irmã da
segregração social. O argumento de que
Brasília seria uma cidade para todos fica
para trás em menos de 20 anos de cidade.
A consolidação da segregação
social e o domínio coronelista
A
partir dos anos 80 surge no DF
a figura de Joaquim Roriz,
que, entre governador biônico
e eleito, governou o DF por 15
anos. Esse período entre 1988 e 2006 concentra as principais transformações sociais
na região. Primeiramente, constata-se que
o fluxo migratório continuou intenso. A
população dos anos 80, aumento em 50%
em 1996, atingindo 1,8 milhões de habitantes.
Em 1988, ano em que Roriz assume,
o DF era a 13ª unidade da federação no
ranking brasileiro de desigualdades. De lá
pra cá, o índice não só piorou, como o DF
assumiu a pior colocação do país. A política de moradia implantada por Joaquim
Roriz tem muita responsabilidade sobre
isso.
Ao se deparar com este enorme fluxo
populacional associado às grandes extensões de terras públicas no DF, Roriz não
titubeou em armar uma política habitacional que lhe garantisse o domínio político e econômico sobre o DF. A política
habitacional permitia a ocupação das terras públicas por parte da população que
chegava ao DF, mas colocava a maior parte das famílias numa relação de dependência econômica e política para com o grupo
Rorizista: as ocupações não garantiram
a titularidade do terreno. Construiu-se
uma enorme demanda por regularização
de lotes no DF, que até hoje não está resolvida; as famílias deveriam, via de regra,
estar vinculada a alguma cooperativa; a
maioria dessas cooperativas eram coordenadas por capangas de Roriz (Pedro
Passos, José Edmar, Paulo Roriz, Roney
Nemer, etc) que extorquiam política e
economicamente as famílias; a desistência
de algum cooperado implicava a retirada
ou envio do nome para o final da lista da
regularização. Esse processo de definição
da ordem na fila para regularização, por
razões óbvias, não era transparente, garantindo o domínio político.
As ocupações ocorriam em regiões
de pouca ou nenhuma infraestrutura urbana e também vieram acompanhadas do
desemprego estrutural, gerando enorme
demanda por outras políticas públicas.
Quase toda conquista de direitos, todavia,
ainda que fruto de um abaixo-assinado ou
passeata, era, ao fim, associada a um favor
de Roriz e/ou seus capangas para o povo.
Infelizmente, a esquerda à época não
soube identificar a melhor forma de combater esse processo. Ao denunciar tudo,
passou também a criminalizar o único
elemento positivo de todo o processo
que era a justa ocupação das terras. Hoje,
por exemplo, Agnelo se utiliza de termos
pejorativos como “grileiros” para tentar
associar o MTST às cooperativas do passado.
No início dos anos 90, muitas destas
ocupações tornaram-se novas cidades satélites: Samambaia (em 89), Santa Maria,
Recanto das Emas, Riacho Fundo, São
Sebastião, que havia sido fundada como
Agrovila ainda no início da construção do
DF. Ao longo dos anos, é verdade, parte
da estrutura urbana (asfalto, saneamento,
água e luz) chegou à maior parte destas
regiões. Porém, a política de exclusão e
segregação geográfica deixaria sua marca
com o crescimento cada vez maior da desigualdade e do acesso ao conjunto de benefícios destinado ao Plano Piloto, Lagos e
outras regiões de moradia da alta burguesia da cidade.
A hegemonia da
especulação imobiliária
E
m 2006, a dupla Arruda/Paulo
Otávio assume o Governo do
Distrito Federal. Inicia-se ali
um novo processo de gestão de
terras no DF, bastante vinculado ao ciclo
imobiliário, que se consolidou nas últimas
duas décadas como um dos setores mais
dinâmicos do capitalismo brasileiro. A eleição de 2006 abriu as portas para esse setor
desbravar o quadrado da capital.
Bons elementos não faltavam para a
expansão imobiliária. Fartas terras públicas, parcela relevante da população com
alto poder aquisitivo, uma cidade já marcada pela segregação geográfica e social
(não sendo necessárias grandes remoções),
uma burguesia ávida por um novo projeto
capaz de articular seu domínio e a ausência de um projeto de esquerda realmente
alternativo. Assim, rapidamente a proposta de domínio da especulação imobiliária
ganhou consenso com a classe média e
com a burguesia do DF. Um jargão importante foi criado: “combater os grileiros,
os invasores da terra pública”. A Agência
de Fiscalização do Distrito Federal (AGEFIS) fortaleceu o poder de repressão. A
Terracap (Agência de Desenvolvimento
do Distrito Federal) consolida-se como o
grande balcão de negócio dos empreiteiros. Para consolidar o quadro, a aprovação
do Plano Diretor de Ordenamento Territorial (PDOT), sob as marcas da caixa de
Pandora, tirou os entraves legais que ainda
restavam para a transformação do direito à
moradia em mercadoria de alto valor.
A transformação causada pelo projeto
trazido por Arruda e paulo Otávio (um
dos maiores especuladores do DF) foi forte
e sobreviveu à crise política do governo. A
fraudulenta construção do Noroeste é um
símbolo mais visível do processo, mas que,
atingiu em cheio também muitas das cidades-satélite (como Ceilândia, Taguatinga,
Samambaia, Guará e Gama, pra não dizer
todas). Diversos foram os grupos removidos de forma bruta, com o oferecimento
da “passagem de volta pra casa”. Restringe-se e controla-se o território. Os centro
das cidades são disputados pelos novos donos do DF.
A lógica era muito simples. Do conjunto de terras públicas existente no DF,
grande parte não será mais ocupada pelas
famílias pobres. Elas serão vendidas nas licitações mensais da Terracap para os empreiteiros. Existe uma demanda constante
por moradia na população mais rica do
DF, e esse mercado está aí para ser ocupado. Outra parte das terras será destinada
aos demais empresários aliados por meio
do Pró-DF. As famílias pobres que necessitem de moradia popular, serão empurradas para o entorno, para onde também irá
Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 29
a repressão da Força Nacional.
A eleição de Agnelo em 2010 dá
continuidade a esse processo. Tentando
se diferenciar, cria uma versão rebaixada
do Minha Casa Minha Vida, o “Morar
Bem” que, tal como o federal, atua como
complementar a política especulativa,
buscando os terrenos, a preço de mercado, onde possam ser alocadas as famílias.
O primeiro cadastro do Morar Bem
mostra a falência da política habitacional
no DF, desde os tempos de Roriz. Cerca
de 50% da população, 330 mil famílias,
apresenta-se como demandante por moradia. O “Morar Bem”, nesses quatro
anos, tornou-se uma falácia burocrática e
peça de propaganda. Atendeu realmente
apenas 2 mil famílias nos extratos sociais
mais altos do programa, pois só estas têm
condições de pagar a mensalidade do financiamento. A maioria dessas famílias
foi para o Jardim Mangueiral que inclusive já sofre com a falta de infra-estrutura (transporte público, escolas, centros
de saúde ou comércio, entre outros. Os
moradores ficam, ainda, reféns da Odebrecht, gestora da Parceria Público-Privada, mostrando que o ciclo da história
se repete.
Para os demais que são chamados (o
GDF já convocou quase 100 mil pessoas), encontram um processo caro e burocrático para conseguir todos os documentos e, quando se apresentam, lhe são
oferecidas parcelas cujo prestação inicial
fica acima do valor do aluguel tradicional. Se alguém não consegue todos os
documentos ou não tem como pagar
a prestação, é retirado do programa e o
GDF diz assim estar “diminuindo a lista”. A todos, aprovados ou não, a fala de
sempre: “esperem quietos que chegará a
sua vez. Mas não se mobilizem, pois isto
é coisa de grileiro e poderá ser punido”.
De fato, o combate e a repressão estatal
às ocupações durante a gestão Agnelo
seguiu diretrizes semelhantes da política
de Arruda.
E a Copa do Mundo com isto?
D
urante sua campanha pra
Governador do DF de 2010:
Agnelo Queiroz prometeu
entregar 100 mil moradias
populares ao longo de seu mandato. Essa
promessa seria refeita em 2011 e 2012.
Até o início de 2014, o número de casas
entregues não chegou a 5 mil.
Também no início de seu mandato,
Agnelo autorizou o crescimento da capacidade do Estádio Mané Garrincha de
42 mil para 70 mil pessoas. O objetivo
era, mais uma vez, curvando-se à FIFA,
entregar a ela o direito de escolher a cidade que faria a abertura da Copa do Mundo. O critério de escolha era a cidade que
fizesse os melhores mimos para os reis.
São Paulo foi escolhida e Brasília ficou
chupando dedo. Menos mal: na época o custo estimado do Estádio era em
torno de R$ 700 milhões. Bem abaixo
dos dois bilhões de reais que a Terracap já
desembolsou até o momento, conforme
demonstra a própria empresa.
Mas o que o custo do Estádio tem a
ver com a política de moradia no Distrito Federal? Muita coisa, e o centro
da resposta encontra-se na mesma Terracap, empresa pública que é responsável pela gestão das terras no DF e pelo
desembolso dos gastos do estádio: Entre 2011 e 2014 a Terracap realizou 35
editais de licitação de terrenos no Distrito Federal. Boa parte deles em áreas
de habitação, que foram adquiridas por
empresas do setor de construção. A
média das licitações gira em torno de
60 lotes vendidos e R$100 milhões a
receber ao longo de 180 meses.
Desse monte de número, poderemos tirar duas conclusões importantes:
I – A receita arrecada pela Terracap
é muito menor que o volume de gastos
com o estádio. Ou seja, a construção
do estádio está falindo a empresa. Por
isso, em alguns momentos, o GDF
remanejou recursos de outras áreas
sociais, como a saúde, para custear a
construçãodo estádio:
II – A cada mês, o número de áreas
destinadas à moradia popular vai diminuindo, em virtude justamente da privatização das terras no DF.
Como todo processo social, o fato
do GDF priorizar construir estádio para
a Copa e vender terrenos ao invés de garantir a moradia pública tem importantes consequências. Em primeiro lugar:
a mentira do governo: existem mais de
330 mil pessoas cadastradas no programa
Morar Bem do Distrito Federal. Com
cerca de 5 (cinco) mil moradias no DF
contempladas até o momento, fica claro
que o programa não é prioridade. Mas o
GDF fica insistindo que já chamou mais
de oitenta mil pessoas pra entregar os documentos e tenta convencer de que isto
basta. Em segundo lugar: a exclusão das
pessoas. O programa, sem perspectiva
de avançar, busca excluir as famílias pelas duas formas já citadas: primeiro pelo
excesso de burocracia, exigindo muito
tempo dedicado para as famílias conseguirem comprovar o cadastro. Segundo,
pelo preço da parcela do financiamento.
A uma família que ganha 6 (seis) salários, algo como R$ 4.400,00 por mês,
é oferecido um apartamento de 2 quartos no Jardim Mangueiral cuja parcela é
R$ 1 mil! As famílias que ganham até 3
salários mínimos, maior parte dos que
demandam, pouco ou nada foram contempladas até agora justamente porque
não conseguem garantir o pagamento
das prestações. Por fim: expulsão para
o entorno. Na falta de perspectivas, está
ocorrendo hoje em nossa região uma
saída grande de famílias para o entorno.
Deveria ser obrigação do GDF ajudar as
cidades próximas em suas políticas sociais. A política de saúde, de educação,
de assistência social, de moradia e transporte deveriam ser unidas de forma. Pelo
contrário, até mesmo por parte do Governo se vê o argumento de que a culpa
dos problemas da saúde e educação são
devidos à pressão do entorno e, na práti-
ca, unificada está apenas a política de repressão por parte da polícia do DF e GO
e da Força Nacional.
O que se vê, em suma, é a expulsão
de famílias para longe do DF aliada ao
crescimento desordenado da cidade, voltado apenas pra atender as grandes empreiteiras e com a ausência de políticas
sociais. O DF terá o estádio mais caro do
país e, ao mesmo tempo, a maior desigualdade social -- a maior distância entre
ricos e pobres, entre aqueles que têm direito à cidade e às suas estruturas, e aqueles que que são cotidianamente excluídos
dela. Enquanto isso, os leilões no grande
balcão de negócios da Terracap seguem
religiosamente todo mês.
A luta popular como alternativa
real: a experiência do MTST/DF
MTST, desde 2008, vem
trabalhando no DF com a
perspectiva de se consolidar como um movimento
social na luta por moradia a partir de
princípios importantes: a independência
de classe, frente aos governos e diversos
grupos políticos; o respeito às famílias
como protagonistas de forma a não criar
a dependência econômica ou o assédio
moral por parte da direção; a luta popular como método de conquista e avanço
dos direitos; a solidariedade de classe aos
diversos setores e segmentos que lutam.
Com esses princípios, o MTST ganhou respeito e força. Hoje, é o principal movimento popularl no DF. Desde
o início vem promovendo ocupações, de
forma a denunciar a política habitacional pró-especulação, criando uma nova
cultura nas famílias: ao invés de esperar a
burocracia do governo ou das cooperativas, ocupar a terra e lutar por direitos. A
cada nova ocupação, aumenta o núme-
O
ro de participantes e aumenta a força do
movimento.
A partir da ocupação do Novo Pinheirinho na Ceilândia, em 2012, e em
Taguatinga, em 2013, no centro do capital imobiliário, o MTST conseguiu
mostrar pro GDF que a criminalização
não iria interromper as lutas forçando o
GDF a iniciar um processo de negociação. Conquistas vieram desde então, a
melhoria do auxílio emergencial, a criação do auxílio aluguel, os cadastros das
famílias, a promessa de regularização do
Nova Planaltina. Nem com as primeiras
vitórias, o Movimento parou de fazer
luta. A cada entrave no cadastro era mais
uma pressão no na Companhia de Desenvolvimento Habitacional (Codahb).
Também se promoveram ocupações na
própria Terracap.
O MTST vai fazendo história. Desde os Incansáveis de Ceilândia e passando pela luta pela regularização, nos anos
recentes, é o primeiro movimento de
luta por moradia (e não só regularização)
com força e comprometido com a luta
dos trabalhadores. Seu exemplo é inspiração para sindicatos, movimentos estudantis, advogados populares, partidos de
esquerda e artistas populares.
Ainda falta muito por se conquistar
no DF. A força da especulação imobiliária, e o discurso de que é necessário o
uso da força para combater as ocupações
urbanas ainda segue dominante. Porém,
frente à máquina da morosidade e da falsa propaganda do Morar Bem, a experiência do MTST é aquela que conseguiu
abrir brechas de lutas e criar a expectativa de que é possível reverter esta longa
história de 54 anos de exclusão social a
partir da moradia no Distrito Federal e
entorno.•
30 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento
A ocupação e o despejo da “TELERJ”
drama do povo na cidade dos megaeventos
Henrique Sater
C
onforme amplamente noticiado
no dia onze de abril deste ano,
na calada da madrugada, mais de
1600 policiais da Tropa de Choque e do Bope iniciaram a violenta reintegração de posse da ocupação da Telerj, no
bairro do Engenho Novo, Zona Norte do
Rio de Janeiro.
Três dias antes, numa terça-feira, a juíza
Maria Aparecida Abreu realizou uma audiência no Fórum Regional do Méier, com
quase todos os envolvidos no processo: re-
presentantes da empresa OI (suposta proprietária do terreno) e da prefeitura e estado
do Rio de Janeiro. A “lista de convidados”
para conversar sobre a ocupação não era pequena: havia ali representantes das Secretarias de Habitação e de Direitos Humanos,
do Corpo de Bombeiros e da Defesa Civil
do Estado do Rio de Janeiro, das Secretarias
Municipais de Habitação e de Desenvolvimento Social, Secretário de Governo e do
Conselho Tutelar, além da Polícia Militar.
A notícia da audiência chegou à impren-
sa, mas convite algum chegou à coordenação da ocupação. Uma comissão foi formada e, mesmo com muitos constrangimentos
à normalidade daquela audiência, conseguiu
acompanhar a discussão que poderia definir
o futuro das famílias ocupantes. E começaram os preparativos: rapidamente se apontava quem levaria as munições e bombas
em número suficiente, quem ia arcar com
as despesas e quem cuidaria das crianças. A
verdade é que não parecia ter havido muita
organização para o que estava por vir na sex-
Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 31
ta, dia 11, e até o coronel Rogério Leitão,
comandante do 1º Comando de Policiamento de Área, parecia hesitante em decidir
datas, tamanho do operativo e complexidade da operação.
Em alguns momentos, o desejo por um
massacre transbordava pelo caráter formal de
configurar aquela audiência como um mero
momento técnico para operacionalizar o
despejo com o “mínimo de danos possível”:
“Vamos fechar as ruas em volta para impedir
que novos oportunistas entrem!” “Que tal
cortar água e luz para ver se eles desistem!”
“Não é melhor tirar as crianças antes, para
evitarmos tragédias?” “Se tivesse tido algum
tipo de ação mais forte no início, as famílias
não teriam tido coragem de entrar!”
A transcrição exata da audiência revelaria muito das entranhas de um poder público que mal titubeia em escolher entre a
“ordem” e a vida. Perla, 30 anos, uma das
coordenadoras presentes na sala, sintetizou
o cheiro nauseante da indiferença à vida dos
mais pobres em uma única frase: “Eles falam da gente, das seis mil famílias, como se
fôssemos animal pro abate.” A audiência
terminou conforme esperado, com a reintegração de posse previamente autorizada,
não houve nenhum indicativo nem de diálogo com as famílias, muito menos de um
prazo exato para o dia do despejo. Havia, no
entanto, um tom de urgência no pronunciamento da juíza e uma indefinição do que se
daria nos próximos dias.
E
m algum lugar, conjecturas a parte, (onde o poder se situa acima
dos poderes e das forças sociais,
onde é mais vontade do que inteligência ou racionalidade), foi decidido
executar-se um despejo, a toque de caixa,
inconsequente e irracional do ponto de vista
dos que afirmam a vida digna como horizonte. E o que foi visto no dia onze, ainda
que dificilmente inédito para as seis mil famílias que ocupavam o local, mais uma vez
evidencia o estado de exceção permanente
que o espaço urbano periférico vive diariamente.
A Comissão de Direitos Humanos, presidida pelo deputado Marcelo Freixo, apurou alguns dados do massacre com os hospitais que atenderam os feridos. Apenas como
amostra da sexta-feira sangrenta no Engenho Novo, podemos citar duas vítimas:
Maycon Gonçalves Melo, 25 anos, levou
um tiro de bala de borracha no olho e perdeu a visão; Regina Teixeira Vieira, 55 anos,
levou 6 pontos na mão ao tentar se proteger
de uma bomba. Além disso, dezenas de feridos deram entrada na UPA Engenho Novo
e no hospital Souza Aguiar. Entre eles, algu-
mas crianças que inalaram gás lacrimogênio
em excesso.
Muitos maus-tratos foram denunciados
pelas famílias que moravam no complexo de
prédios e terrenos ocupados havia 12 dias.
O conflito não se restringiu à ocupação e a
imprensa nacional e internacional narraram
uma manhã extremamente tensa. Diversos
veículos queimados, ações policiais truculentas nas comunidades vizinhas e descontrole completo da ação transformaram o
Engenho Novo num palco de atrocidades e
violência contra os trabalhadores mais pobres. A questão habitacional mais uma vez
virava caso de polícia, confirmando o recado que o atual governador do Estado, Pezão,
deu no dia seguinte ao povo carioca: “foi
feito o que tinha que ser feito.”
Numa rápida resposta ao massacre, as famílias decidiram na própria sexta-feira à tarde protestar em frente à prefeitura do Rio
de Janeiro. Mesmo após uma manhã traumática, tiveram forças para chegar à Cidade
Nova e pedir algum tipo de garantia digna
às famílias afetadas. Nenhuma resposta foi
dada, nenhum representante do poder público sequer as recebeu e a dramática situação não apontava para solução alguma. As
famílias optaram por permanecer acampadas
em frente à prefeitura e passaram um final de
semana ao relento, pois a Guarda Municipal
foi orientada a não permitir nenhum tipo
de barraca ou proteção aos acampados. Um
grande ato foi marcado para segunda-feira e,
mesmo sob forte chuva, uma grande pressão contra a prefeitura foi respondida com
repressão da Guarda Municipal e uma total
ausência de propostas por parte do governo.
À noite, as famílias foram impedidas de dormir na frente da prefeitura e ficaram acuadas. A movimentação policial era intensa.
S
e parássemos a narrativa da ocupação
da Telerj nesse ponto, talvez o que
continuasse chamando a atenção é a
violência do Estado contra os mais
pobres. Nesse sentido, o descaso e cinismo
personificados pelos poderosos, entrelaçados
a um aparelho repressivo que atua absolutamente fora da lei (sob o pretexto de tentar
garanti-la), aparecem como peças-chave
para compreender o que ocorreu na manhã
do dia onze de abril.
O que não salta aos olhos, mas é central
para compreendermos esse tipo de processo,
é a lógica que o espaço urbano carrega enquanto produz-se e reproduz-se enquanto
tal.
Quando a capa do jornal O Globo anuncia exatamente uma semana antes da sextafeira, “Como nasce mais uma favela”, fica
evidente a importância que tem para esta
lógica o surgimento de uma ocupação urbana espontânea e numa área muito próxima ao Maracanã. Trata-se da resposta mais
concreta e extrema dada pelos trabalhadores
frente a um modelo de cidade que joga os
mais pobres para cada vez mais longe.
A sequência dos fatos é pedagógica: tenta-se atribuir a iniciativa a criminosos; se
não for possível, insiste-se na teoria conspiratória de que “forças ocultas” iniciaram
a ocupação e incansavelmente nega-se que
a responsável pela iniciativa é a necessidade
real de moradia. Nesse meio tempo, apressa-se com todos os recursos necessários a
aprovação jurídica do despejo e, como fosse
alternativa, coloca-se como opção um abrigo sem dignidade alguma.
O poder público conseguiu em grande
parte o que queria: realizou um despejo rápido, não se comprometeu com nenhuma
das famílias com solução digna e, de maneira sorrateira, confundiu a coordenação e as
famílias, prometendo um cadastro no programa Minha Casa Minha Vida, que além
de não representar garantia nenhuma, continha uma declaração assinada pela família
que havia cometido uma invasão de propriedade. Além de tudo, impediu a participação do MTST (que apoiava a ocupação)
nas negociações.
O que era uma ocupação espontânea,
que possuía uma coordenação e organização
internas, num local abandonado há mais de
20 anos, tornou-se novamente um local vazio, cercado e vigiado sob o manto sagrado
da propriedade privada.
Após serem literalmente enxotadas do
entorno do prédio da prefeitura, algumas
dezenas de famílias ainda desabrigadas foram até a Catedral Metropolitana, no centro
da cidade pedir ajuda humanitária da igreja,
que fechou as portas para os mais necessitados. O calvário estava se completando.
Mesmo tratando os mais pobres como
coisas descartáveis, o Estado não pode e não
conseguirá esconder o déficit habitacional
do Rio de Janeiro e a violência da especulação imobiliária. A estimativa de 220 mil
moradias necessárias apenas no município
do Rio de Janeiro e os preços abusivos dos
aluguéis por toda a cidade produzem uma
panela de pressão, que às vezes dá sinais que
vai estourar com ocupações como a da Telerj.
Novamente, a questão da moradia está
na ordem do dia no Rio de Janeiro. A insuficiência e as contradições do Minha Casa
Minha Vida e a nova espoliação urbana
ocorrida para sediar os megaeventos empurram a situação para o nível do insuportável.
O legado da Copa pode ser de muitas lutas
na cidade nada maravilhosa para o povo.•
32 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento
na garganta do futuro
Jeff Vasques
“En la lucha de classes / todas las armas son buenas / Piedras noches poemas” (Paulo Leminski)
P
ara para a lutadora e para o lutador, qual seria a utilidade da
poesia que precisa, todo dia, a todo instante, lidar com situações urgentes, duras, tensas, concretas? De que servem
essas palavras soltas, muitas vezes difíceis de entender ou
descoladas de nossa realidade, abstratas? Por que perder o precioso
tempo da luta com poesia? Quantas batalhas já foram ganhas com
um verso? Parece que as imensas tarefas colocadas diante de nós simplesmente não combinam, não rimam, com poesia...
Pois, imagine um lutador em meio a uma guerrilha na selva, faminto, exausto, com asma... tendo que dar conta, diariamente, de
questões de vida-ou-morte... se nossa luta cotidiana parece não deixar espaço para poesia, muito menos essa, não? Pois esse guerrilheiro não só dedicava muito de seu escasso tempo à leitura de poesia,
como escrevia em seus cadernos surrados poemas em meio à batalha. Esse guerrilheiro-poeta era Che Guevara.
Che carregava consigo, ao ser aprisionado na Bolívia, três cadernos: um diário de guerra, um caderno de reflexões e um caderno
verde em que tinha anotado, ao longo de anos, 69 poemas preferidos. Sua fama de grande leitor de literatura e poesia era muito bem
conhecida por todas as companheiras e companheiros combatentes.
Quando Che assumia o grupo de vanguarda, todo mundo já ficava
tenso porque alguém teria que carregar suas pesadas mochilas cheias
de livros. À noite, ao redor da fogueira, enquanto outros dormiam,
durante os poucos descansos, era comum encontrar Che perdido
entre páginas, lendo incansavelmente. Chana, amiga
campesina, dizia que Che, nesses momentos, “ficava
caladinho, meio ido, com a cara muito suavezinha e
como se estivesse em outro mundo”. Em vários outros momentos, Che falava nas rodas aos soldados e
camponeses de Victor Hugo, Rubén Dario, Tagore, Neruda. Um jovem de catorze anos, chamado Acevedo, se surpreendeu ao fuçar os livros na
mochila de Che: “Não havia Mao, nem Stalin,
e sim o que eu menos esperava, ‘Um ianque na
corte do Rei Arthur’”, livro do escritor norte-americano Mark Twain. Che não leu só os
escritores sociais ou mais politizados, mas também se apropriou da leitura dos clássicos.
M
Pra quê?
as qual seria o papel da poesia para as pessoas revolucionárias? Há, claro, uma função mais direta e
mais reconhecida: instrumento de propaganda da
luta e de denúncia da miséria capitalista. Mas há
outra fun;ão, muito esquecida, e ainda mais importante: ser um
instrumento para compreensão das contradições específicas
que um militante revolucionário enfrenta, um instrumento para compreensão de si e do mundo, da luta que trava
externa e internamente (pois, sim, o inimigo também é
íntimo e pode colonizar nosso peito e coração).
O militante que luta para superar o capitalismo e
construir uma nova sociedade enfrenta situações extraordinárias, desafios únicos em seu momento histórico. Por isso mesmo, sofre de alegrias, tristezas
e angústias igualmente únicas na busca por se fazer
um novo homem e uma nova mulher. Vivenciamos,
ainda que de forma embrionária, novos valores, novos sentimentos, novos dilemas que demandam novas palavras, novos canais de
expressão! Todo esse movimento subjetivo e singular precisa vir à
tona, tornar-se palavra comum, imagem compartilhada, símbolo e
questionamento coletivo, permitindo a construção da identidade do
ser revolucionário.
P
Cantar a vida e a luta!
or tudo que foi dito, é preciso fechar o punho, mas abrir o corpo: botar pra fora o que querem que apodreça aqui dentro como
amargura e desgosto, como ânsia e medo, como vão heroísmo
ou culpa católica. Por isso, é preciso dançar outros corpos, que
não os das propagandas; entoar outras canções, que não as do esquecimento; pintar outros rostos; escrever nossa própria história e poesia, com
nossas palavras, com nossos corpos marcados pela luta e com nosso novo
espírito nascente. Precisamos criar juntos sentidos ao mundo. E a arte de
luta, a poesia de luta, pode nos ajudar nisso! Que nos tornemos as e os
“poetas do futuro” como foram Che e tantos outros, que superaram a
terrível separação entre o sonho e a ação.•
(Che Guevara, tradução de Jeff Vasques)
Velha Maria, vais morrer:
quero falar contigo seriamente.
Tua vida foi um rosário completo de agonias,
não houve homem amado, nem saúde, nem dinheiro,
apenas a fome para ser compartida.
Quero falar de tua esperança,
das três distintas esperanças
que tua filha fabricou sem saber como.
Toma esta mão que parece de menino
nas tuas, polidas pelo sabão amarelo.
Abriga teus calos duros e os nós puros de teus dedos
na suave vergonha de minhas mãos de médico.
Escuta, avó proletária:
crê no homem que chega,
crê no futuro que nunca verás.
“Deixe-me dizer-lhes, mesmo correndo o risco de
parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é
guiado por grandes sentimentos de amor. [...] Talvez
seja este um dos grandes dramas do dirigente político.
É preciso que ele alie, ao espírito apaixonado, uma
inteligência fria, tomando decisões dolorosas,
sem contrair um só de seus músculos [...] Nestas
condições, é necessário ter muita humanidade, um
grande sentido de justiça e de verdade, para não
cair em um dogmatismo extremo, em uma fria
escolástica, para não se isolar das massas.” Che Guevara
Nem rezes ao deus inclemente
que a vida toda mentiu tua esperança;
nem peças clemência à morte
para ver crescer suas pardas carícias;
os céus são surdos e o escuro manda em ti,
terás uma vermelha vingança sobre tudo,
te juro pela exata dimensão de meus ideais:
todos os teus netos viverão a aurora.
Morre em paz, velha lutadora.
Vais morrer, velha Maria:
trinta projetos de mortalha
dirão adeus com o olhar
num destes dias em que te vais.
Vais morrer, velha Maria:
ficarão mudas as paredes da sala
quando a morte se conjugar com a asma
e copularem seu amor na tua garganta.
Essas três carícias construídas de bronze
(a única luz que alivia a tua noite),
esses três netos vestidos de fome,
chorarão os nós dos dedos velhos
onde sempre encontravam algum sorriso.
Isso foi tudo, velha Maria.
Tua vida foi um rosário de magras agonias,
não houve homem amado, saúde, alegria
apenas a fome para ser compartida.
Tua vida foi triste, velha Maria.
Quando o anúncio do descanso eterno
turvar a dor de tuas pupilas,
quando tuas mãos de eterna faxineira
absorverem a última ingênua carícia,
pensas neles… e choras,
pobre velha Maria!
Não, não o faças!
Não ores ao deus indiferente
que toda uma vida mentiu a tua esperança,
nem peças clemência à morte,
que tua vida foi horrivelmente vestida de fome,
acaba vestida de asma.
Mas quero anunciar-te,
na voz baixa e viril das esperanças,
a mais vermelha e viril das vinganças,
quero jurá-lo pela exata
dimensão de meus ideais.
Toma esta mão de homem que parece de menino
nas tuas mãos, polidas pelo sabão amarelo.
Abriga teus calos duros e os nós puros de teus dedos
na suave vergonha de minhas mãos de médico.
Descansa em paz, velha Maria,
descansa em paz, velha lutadora:
todos os teus netos viverão a aurora.
EU JURO!
(Poema dedicado a uma velha mexicana a que
uevara tentou ajudar na cidade do México em 1954)
Contra o vento e a maré
(Che Guevara, tradução de Jeff Vasques)
Este poema (contra o vento e a maré) levará minha assinatura.
Te dou seis sílabas sonoras,
um olhar que sempre carrega (como um pássaro ferido) ternura,
um anseio de água morna e profunda,
um escritório escuro em que a única luz são desses versos meus,
um dedal muito usado para suas noites de enfado,
uma fotografia de nossos filhos.
A mais linda bala desta pistola que sempre me acompanha,
a memória inesquecível (sempre latente e profunda) das crianças
que, um dia, você e eu concebemos.
E o pedaço de vida que me resta,
isto eu dou (convicto e feliz) à revolução.
Nada que nos possa unir terá maior poder.
(Poema dedicado à esposa Aleida)
Alberto Korda
Velha Maria, vais morrer
34 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento
recomendamos
POR QUE
OCUPAMOS?
ATÉ O ÚLTIMO HOMEM
Felipe Brito e Pedro Rocha (org.)
o processo de “legitimação” das Unidades de Polícia
Pacificadora (UPPs) em um quadro de colapso e dissolução
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urbanísticos e as transformações dos megaeventos esportivos ao
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E
Pedro Rocha
ncolhida junto à mureta da bica, numa posição que, a nós,
teria sido extremamente incômoda, havia uma esfarrapada que escondia o rosto com uma mão entrelaçada de
cabelos. Tivemos a impressão de que ela fazia isso porque
seus olhos não estavam dispostos em seu rosto de forma simétrica.
Naturalmente, não queria que percebêssemos aquilo. Mas nada escapa ao nosso olhar que, por sua vez, é absolutamente reto e frontal.
Saímos dali tão logo satisfizemos através da bica nossas necessidades. Mas, à noite, reencontramos a mulher. Sob a treva completa,
suas imperfeições não seriam perceptíveis mesmo ao nosso olhar
penetrante; mesmo assim, ela continuava escondendo o rosto.
Aproximou-se e nos propôs um negócio. Os termos nos pareceram razoáveis, e concordamos, embora nos repugnasse contratar
algo àquela noite, naquele lugar, com aquela criatura que sabíamos
muito bem ser disforme. Ela estendeu uma das mãos para coletar
seu pagamento que, conforme acordado, deveria ser efetuado imediatamente. Deixou, no entanto, a outra mão sobre o rosto. Quando
as moedas e outros objetos começaram a transbordar a concha sulcada
de sua palma, pensamos que ela retiraria a mão do rosto para apará-los,
mas não o fez. Ao invés disso, esperou que terminássemos de despejar
o que lhe era devido, enfiou o que pôde nos numerosos sacos de
suas vestes, e depois se ajoelhou na terra úmida para recolher o
que caíra. Foi-lhe difícil realizar tal coisa com apenas uma das
mãos. Enfim, levantou-se, mas hesitou um instante. Dissemos-lhe, então: “Vamos, mulher, é tua vez de entregar tua
parte.” Então, sem relutar, mas sem jamais deixar-nos a
possibilidade de lhe entrever os olhos tortos, ela fez vir a
ter em nosso meio, envolta em lenços e trapos, a máscara maravilhosa de um rosto perfeito de mulher.•