Desreguladores endócrinos e efeitos reprodutores em adolescentes

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Desreguladores endócrinos e efeitos reprodutores em adolescentes
Revisão
Desreguladores endócrinos e efeitos
reprodutores em adolescentes
Endocrine disruptors and reproductive effects in adolescents
Raphael Mendonça Guimarães1, Carmen Ildes Rodrigues Fróes Asmus2
Resumo
O desenvolvimento puberal é regulado por hormônios sexuais e gonadotrofinas. Desde o século passado, há uma tendência da puberdade de se apresentar cada vez mais cedo. Esse fenômeno em parte tem sido associado à exposição aos
chamados desreguladores endócrinos. Embora seja muito plausível que os desreguladores endócrinos possam perturbar o
desenvolvimento puberal, há poucas investigações sobre isso e, portanto, essa relação de causalidade ou sua magnitude
ainda não estão claramente definidas. Nesta revisão de literatura, investigações epidemiológicas que estudaram o efeito dos
desreguladores endócrinos no início da puberdade são apresentadas. Grande parte dos resultados encontrados em estudos
populacionais estão em conformidade com os experimentos realizados com animais. No entanto, a mistura de diferentes
componentes com efeitos antagônicos (estrogênicos, antiestrogênica, antiandrogênica) e limitado conhecimento sobre a
janela crítica para a exposição (pré-natal, perinatal e púberes) podem dificultar a interpretação das avaliações. Propõe-se,
portanto, que sejam realizados estudos epidemiológicos prospectivos e estudos de bancada sobre metabolismo hormonal
com animais para esclarecer os principais efeitos dos disruptores endócrinos em pré-púberes e adolescentes.
Palavras-chave: Disruptores endócrinos, saúde do adolescente, saúde ambiental
Abstract
Pubertal development is regulated by sex hormones and gonadotropins. Since the last century, the trend of puberty is to be
present at an earlier age. This phenomenon has in part been associated with exposure to endocrine disrupters. Although it is
very plausible that endocrine disrupters may disturb pubertal development, there is very little research on this and, therefore,
this causality or its magnitude are not clearly defined yet. In this literature review, epidemiological investigations that have
studied the effect of endocrine disrupters on the beginning of puberty are presented. Most results found in population studies
are in accordance with experimental studies with animals. However, the mixing of different components with antagonistic
effects (estrogenic, anti-estrogenic, anti-androgen) and limited knowledge about the critical window for exposure (prenatal,
perinatal and pubertal) can complicate the interpretation of evaluations. It is proposed therefore that prospective epidemiological and bench studies on hormone metabolism in animals be conducted to clarify the main effects of endocrine disruptors
in prepubescent and adolescents.
Key words: Endocrine disruptors, adolescent health, environmental health
1
2
Mestre em Saúde Coletiva. Professor Assistente da Escola de Enfermagem Anna Nery. End.: Rua Afonso Cavalcanti, 275 – Cidade Nova – CEP: 20211-110 –
E-mail: [email protected]
Doutora em Engenharia de Produção. Professora Adjunta do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ.
Cad. Saúde Colet., 2010, Rio de Janeiro, 18 (2): 203-8 203
Raphael Mendonça Guimarães, Carmen Ildes Rodrigues Fróes Asmus
Introdução
Observações em seres humanos e animais nos últimos
40 anos mostram uma tendência preocupante em termos
de impactos negativos sobre o desenvolvimento do sistema
reprodutivo. Nas últimas décadas, tendências seculares da
puberdade precoce têm sido observadas (Parent et al., 2003).
Tal fato pode aumentar os impactos na sociedade devido a
maiores riscos de gestações precoces, e mudanças na temporalidade do desenvolvimento puberal podem influenciar o
risco de uso de drogas, comportamentos antissociais, distúrbios alimentares e estresse emocional.
A maturação sexual precoce em adolescentes tem sido
associada a uma maior prevalência de uso de álcool e tabaco
no final da adolescência (Patton e Viner, 2007). Esse período
vulnerável de transição para a idade adulta é ajustado por
mecanismos endócrino-reguladores (Terasawa e Fernandez,
2001). Desreguladores endócrinos estão associados a diversos
processos fisiológicos que afetam a saúde reprodutiva normal
(McLachlan, 2001). Em seres humanos, a diminuição da contagem de espermatozoides, aumento da incidência de doenças
como a criptorquidia e hipospadia em crianças, bem como o
aumento da incidência de câncer relacionado a hormônios,
tais como câncer de mama e câncer de testículo têm sido observados (Toppari et al., 1996; De Rosa et al., 1998). Cientistas
especializados especulam que essas tendências podem derivar
dos efeitos dos baixos níveis de substâncias químicas no meio
ambiente que interferem ou alteram o sistema endócrino do
organismo. Esses produtos químicos, conhecidos como desreguladores endócrinos, podem atuar por meio de diferentes
mecanismos.
Determinados desreguladores endócrinos imitam os
efeitos dos hormônios naturais, acionando seus receptores
específicos, enquanto outros se unem a receptores hormonais
e bloqueiam a atuação dos hormônios naturais. Eles também
podem interferir na produção, transporte, metabolismo e
excreção de hormônios que ocorrem naturalmente (Goldman
et al., 2000; Stoker et al., 2000).
A puberdade é um processo neuroendócrino complexo,
cujo principal mecanismo ainda não está claro (Parent et al.,
2003). O crescimento na adolescência é impulsionado pela
influência contínua de hormônios de crescimento a partir do
período pré-puberal, com a influência adicional de esteroides
sexuais na adolescência. Durante a puberdade, há um rápido
crescimento em termos de altura e tamanho muscular, com
aumento dos volumes pulmonares. Outras mudanças importantes são o desenvolvimento de características sexuais primárias e secundárias, como o crescimento de pelos pubianos
e aumento no tamanho da mama e dos testículos (Karlberg,
2002).
204 Cad. Saúde Colet., 2010, Rio de Janeiro, 18 (2): 203-8
Há uma lacuna nas produções nacionais e internacionais
sobre a consolidação do conhecimento sobre os efeitos que esses desreguladores endócrinos exercem sobre os adolescentes,
considerando-se essa faixa etária como um período crítico do
desenvolvimento reprodutor. Neste breve panorama da literatura, analisou-se especificamente o efeito dos desreguladores
endócrinos sobre as características sexuais secundárias.
Métodos
Foi realizada uma revisão da literatura a partir de um
levantamento bibliográfico nas bases de dados eletrônicas:
Scientific Eletronic Library On-line (SciELO), Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS)
e Medical Literature Analysis and Retrieval System Online
(MEDLINE). Os descritores em português empregados na
revisão bibliográfica foram: “organoclorados”, “disruptores
endócrinos” e “adolescentes”. Seus correspondentes em inglês
foram: “organochlorine”, “endocrine disruptors” e “adolescents”.
O período abordado neste artigo refere-se à literatura
publicada nas duas últimas décadas (1990-2010), dada a
escassez de artigos sobre essa temática específica com adolescentes. A revisão priorizou estudos de seguimento (coorte e
caso-controle), dado que ensaios clínicos randomizados não
são factíveis para estudos toxicológicos em humanos. Foram
selecionados estudos epidemiológicos que avaliaram a idade
na menarca em meninas, aumento do volume testicular nos
meninos e/ou estágios puberais de Tanner (Marshall e Tanner,
1969; 1970) nos dois sexos.
Disruptores endócrinos
De acordo com uma definição amplamente aceita, um
desregulador endócrino é uma substância exógena que causa
efeitos adversos à saúde em organismos intactos, ou sua progenia, de forma secundária a alterações na função endócrina.
Um potencial desregulador endócrino é uma substância
exógena que possui propriedades que podem levar à desregulação endócrina em um organismo intacto ou sua progenia
(Bergman, Brandt e Brouwer, 1996). Constatou-se que uma
lista crescente de produtos químicos influenciam o sistema
endócrino, seja in vitro ou in vivo; porém, até o momento,
somente alguns estão associados com o desenvolvimento
puberal alterado (McLachlan, 2001).
Desreguladores endócrinos podem exercer tanto efeitos
diretos quanto indiretos sobre os neurônios secretores de
GnRH hipotalâmico, uma vez que receptores de estrogênio
estão presentes em neurônios que se projetam em neurônios
Desreguladores endócrinos e efeitos reprodutores em adolescentes
GnRH, tendo sido localizados dentro dos próprios neurônios
GnRH (Skynner et al. 1999) (Figura 1). Estudos in vivo e in
vitro revelaram receptores de estrogênio e receptores de andrógenos no cérebro imaturo.
Observações preliminares (Rasier et al., 2006) indicam
que o diclorodifeniltricloroetano pode ter efeito estimulante
sobre a secreção de GnRH com o envolvimento de receptores
de estrogênio e receptor de glutamato, bem como receptores
órfãos (Ohtake et al., 2003). Constatou-se que duas misturas
de PCB, Aroclor 1221 (A1221) e A1254 influenciam a transcrição de GnRH e os níveis de peptídeo após a exposição das
células neuronais hipotalâmicas GT1-7 in vitro (Gore, 2002).
Por outro lado, sabe-se que alguns compostos como o DDT
interferem na aromatase no cérebro, que converte a testosterona em estrogênio no cérebro imaturo (Kuhl Manning e
Brouwer, 2005).
A conversão da testosterona em estradiol desempenha
um papel importante na diferenciação sexual do cérebro de
roedores (Roselli e Resko, 1993). Substâncias desreguladoras
endócrinas também podem afetar os níveis de circulação de
esteroides, interferindo na produção dos mesmos por gônadas, em seu metabolismo ou em seus transportadores ou
receptores. Em ratos imaturos, maiores níveis de atividade de
estrogênio podem suprimir o GnRH e gonadotrofinas pituitárias por um mecanismo de controle de feedback negativo
(Grumbach e Styne, 2003).
Na mulher madura, um feedback positivo (estimulante)
pode levar a um aumento do GnRH pré-ovulatório e liberação de gonadotrofinas (FSH e LH) (Levine, 1997; Terasawa e
Fernandez, 2001), podendo intensificar o início da puberdade
(Figura 1). Dados sobre animais tendem a comprovar os efeitos dos desreguladores endócrinos sobre o eixo hipotalâmicopituitário-gonadal, que influencia a maturação sexual e a
reprodução em roedores do sexo feminino. Observam-se os
efeitos diretos e indiretos por meio de mecanismos de feedback sobre as funções secretoras hipotalâmicas e pituitárias.
Além disso, os efeitos diretos sobre as funções gonadal e adrenal podem contribuir para alterações no desenvolvimento da
puberdade (Figura 1). O impacto sobre o início da puberdade
pode ser diferente, de acordo com o tempo de exposição.
Efeitos para a saúde dos adolescentes
Efeitos em meninas
A exposição intrauterina a polibromobifenilo (PBB) por
bebês nascidos após a exposição acidental ao composto em
uma coorte em Michigan, Estados Unidos, foi estimada a
partir de medições de PBB no soro materno feitas nos anos
seguintes à gestação por meio de um modelo de taxa de decaimento materno. Em 1997, 26 anos após o acidente, as mães
Perinatal
IGF 1
Leptina
Glicose
Hipotálamo
Desfechos:
• CUIR
• Peso ao nascer
• Duração do parto
• Circunferência da
cabeça
GnRH
(xeno)estrógenos
Hipófise (xeno)(anti)andrógenos
FSH
LH
Gônadas
Adrenais
Pré-púbere
Desfechos:
• Desenvolvimento
precoce
• Alteração de
tempo de
menarca, pubarca
e telarca
Efeitos não reprodutores:
• Obesidade
• Risco cardiovascular
• Síndrome de ovário policístico
• Diabetes
IGF1: fator de crescimento semelhante à insulina (do inglês insulin-like
growth factor 1);
CUIR: crescimento intrauterino retardado.
Figura 1 - Alvos perinatais e pré-púberes dos disruptores endócrinos
em relação a possíveis desfechos para a saúde.
cadastradas e seus descendentes do sexo feminino com idade
entre 5 e 24 anos foram contatados para fornecer informações
sobre a duração da amamentação, sobre o desenvolvimento
puberal (autorrelato da idade na menarca e estágio de Tanner) e possíveis fatores de confusão. O nível médio de PBB
foi de 17,3 ppb (faixa: 0-1142 ppb); o nível médio de bifenil
policlorado (PCB) foi de 5,6 ppb (faixa: 0-78 ppb). Revelouse que filhas amamentadas por mães com estimativa de nível
sérico de PBB elevado (ppb ≥ 7) teriam apresentado menarca
mais cedo (11,6 anos; n = 16) do que as meninas que foram
amamentadas por mães com baixa (< 1 ppb) exposição (12,5
anos; n = 61). A taxa de risco foi 3,4 (95%IC: 1,3-9,0). Além
disso, altos níveis de exposição perinatal ao PBB estiveram
associados a estágios de nascimento de pelos pubianos anteriores em meninas não amamentadas. A idade na menarca e
estágio de Tanner tiveram pouca associação com a exposição
ao PCB (Blanck et al., 2000).
Em uma análise retrospectiva entre pessoas submetidas
à exposição acidental à dioxina após explosão do reator em
uma fábrica de produtos químicos em Seveso, Itália (Warner
et al., 2004), 282 mulheres que estavam na fase pré-menarca
no momento da explosão (idade média: 6,9 anos, faixa:
0-17 anos) foram entrevistadas por uma enfermeira treinada
para determinar a idade na menarca de forma retrospectiva.
Os níveis de 2,3,7,8-tetraclorodibenzo-p-dioxina (TCDD)
foram medidos em soros armazenados. O nível médio de
TCDD no soro foi de 140,3 ppt (faixa: 3,6-56.000 ppt). A taxa
de risco associada a um aumento de 10 vezes nos níveis de
TCDD foi de 0,95 (95%IC: 0,83-1,09), o que significa que não
houve mudança significativa no início da menarca. As conCad. Saúde Colet., 2010, Rio de Janeiro, 18 (2): 203-8 205
Raphael Mendonça Guimarães, Carmen Ildes Rodrigues Fróes Asmus
clusões foram semelhantes quanto à consideração do TCDD
como uma variável categórica ou se a análise se restringiu a
mulheres com menos de oito anos na ocasião da explosão.
Os autores tomaram como pressuposto que a exposição pósnatal, porém pré-puberal, ao TCDD nessa coorte, embora em
dose substancial, provavelmente ignorou a janela crítica para
os efeitos da exposição.
Scaglioni et al. (1978) observaram desenvolvimento precoce de mamas em crianças italianas. Em estudo com as mesmas
crianças, Fara et al. (1979) detectaram discreto aumento nos
níveis de 17-b-estradiol, presumindo que o desenvolvimento
mamário foi causado por consumo de alimentos contaminados por estrógeno.
Comas (1982) avaliou, em Porto Rico, aumento da incidência de telarca, pubarca e puberdade precoce em crianças.
Outros autores, como Sáenz-de-Rodríguez e Toro-Solá
(1982), realizaram estudos com pacientes com telarca precoce
e estudaram a sua associação com cistos ovarianos. Finalmente, um estudo de coorte realizado em Jerusalém com crianças
apresentando desenvolvimento sexual precoce entre 1974 e
1983 mostrou que a incidência de telarca precoce foi elevada
no primeiro ano de vida. Em 2004, foram relatados resultados de um grupo de 151
meninas nascidas entre 1950 e 1980 de mães pertencentes à
coorte de pescadores de Michigan (Vasiliu et al. 2004). As
concentrações de PCB e diclorodifenil dicloroetileno (DDE)
no soro materno na época da gestação foram retroextrapolados a partir de repetidas medições do soro materno, entre
1973 e 1991. A idade das filhas na menarca e possíveis fatores
de confusão foram adquiridos por meio de entrevistas telefônicas. A menarca foi alcançada entre 9 e 17 anos. Na análise
multivariada, o DDE (p = 0,04) causou uma menarca mais
precoce, ao contrário do PCB (p = 0,08). Um aumento na
exposição intrauterina ao DDE, de 15 μg/L, reduziu a idade
da menarca em 1 ano.
Em oposição aos resultados da coorte de pescadores de
Michigan, não foram encontrados efeitos significativos do
PCB ou DDE na idade da menarca ou estágio puberal em
316 meninas selecionadas a partir do North Carolina Infant
Feeding Study (Gladen et al. 2000). Houve uma tendência de
amadurecimento precoce entre as meninas na categoria de
maior exposição transplacentária (PCB > 4 ppm ou DDE > 4
ppm), porém essas diferenças não foram significativas.
Efeitos em meninos
Em um estudo no norte da Índia (Saiyed et al., 2003),
habitantes de um vale isolado estiveram expostos ao endosulfan por mais de 20 anos devido a pulverizações aéreas
que ocorriam 2 ou 3 vezes por ano como o único pesticida
206 Cad. Saúde Colet., 2010, Rio de Janeiro, 18 (2): 203-8
aplicado em plantações de cajueiros situadas no topo das colinas circunvizinhas. Os níveis médios de endosulfan em 117
meninos da região com idade entre 10 e 19 anos eram significativamente mais altos do que em 90 meninos da mesma faixa
etária que viviam em um povoado a aproximadamente 20 km
(7,47 ± 1,19 ppb versus 1,37 ± 0,40 ppb). O estadiamento puberal, de acordo com Tanner, foi avaliado por um médico e os
níveis séricos hormonais foram medidos. Após a realização de
controles de idade, níveis séricos de testosterona e maturidade
sexual, os escores atribuídos aos pelos pubianos, testículos e
ao pênis estiveram significativamente e negativamente relacionados à exposição ao endosulfan. Em uma coorte de 196 meninos nascidos entre 1986 e
1987 nas Ilhas Faroé, a exposição pré-natal aos PCBs foi estimada a partir de níveis de PCB dos congêneres 138, 153 e 180
em cordões umbilicais (Mol et al., 2002). Aos 14 anos, estágios de Tanner, volume testicular e níveis séricos hormonais
foram determinados em exames clínicos. Apesar da grande
exposição aos PCBs, os resultados não revelaram qualquer
associação definitiva com o desenvolvimento da puberdade.
Da mesma forma, não foram encontrados efeitos do PCB
ou DDE sobre o estágio puberal autorrelatado em 278 meninos selecionados a partir do North Carolina Infant Feeding
Study (Gladen et al. 2000).
Discussão
A partir da publicação de Silent Spring (Carson, 1962),
houve uma crescente conscientização de que produtos químicos, quando presentes no meio ambiente, podem exercer
efeitos profundos e nocivos sobre plantas e animais, e que
a saúde humana está indissoluvelmente ligada à saúde do
meio ambiente. Principalmente nas duas últimas décadas,
observamos um crescente interesse nos meios científicos
e na sociedade e maior atenção da mídia sobre os possíveis
efeitos nocivos em seres humanos e na vida selvagem que
podem resultar da exposição a produtos químicos que têm
o potencial de interferir no sistema endócrino. A intensificação desse interesse e a diminuição da falta de consenso
entre os cientistas podem ocorrer fazendo-se uma avaliação
objetiva dos dados científicos disponíveis sobre os possíveis
efeitos adversos desses produtos químicos a partir de uma
perspectiva global. Países que não possuem a infraestrutura
necessária para monitorar e avaliar esses produtos químicos
manifestaram a necessidade de uma avaliação internacional
mais objetiva.
Os desreguladores endócrinos englobam uma variedade
de classes de produtos químicos que incluem hormônios
naturais e sintéticos, componentes vegetais e pesticidas, com-
Desreguladores endócrinos e efeitos reprodutores em adolescentes
postos utilizados na indústria de plásticos e em produtos de
consumo, além de outros derivados e poluentes industriais.
Geralmente, esses desreguladores encontram-se amplamente
dispersos no meio ambiente. Alguns são persistentes, podendo ser transportados por longas distâncias, cruzando as fronteiras nacionais, e podem ser encontrados em praticamente
todas as regiões do mundo. Outros são rapidamente degradados no meio ambiente ou no corpo humano ou podem estar
presentes apenas por curtos períodos, porém em períodos
críticos de desenvolvimento.
A puberdade marca a transição entre a infância e a fase
adulta reprodutiva. É uma etapa vulnerável da vida, e a desregulação tem estado associada ao aumento de problemas de
saúde e problemas psicossociais. O desenvolvimento da puberdade é um processo multifacetado, que está sob o controle
de diferentes mecanismos de regulação hormonal. Os fatores
causadores ainda não foram elucidados com precisão.
Experimentos em animais mostram evidências do papel
das mudanças pré-puberais nos mecanismos de controle
hormonal, mas também revelam evidências que corroboram
janelas de programação perinatal precoce. Existem diversas
evidências quanto ao fato de que desreguladores hormonais
exógenos podem antecipar ou retardar a puberdade. Foram
constatadas associações entre nascimentos, crescimento pósnatal e desenvolvimento da puberdade, porém as relações
causais ainda estão longe de serem compreendidas. Estudos
experimentais sugerem que substâncias químicas exógenas
que interferem nas metas quanto a crescimento, metabolismo
de lipídeos, diferenciação e funcionamento do cérebro, de gônadas e de glândulas suprarrenais também exercem seu papel.
Estudos epidemiológicos cuidadosamente desenvolvidos por
meio da utilização de marcadores de exposição para substâncias químicas desreguladoras do sistema endócrino ocorrendo
próximo e/ou após o nascimento e no estágio pré-puberal, em
combinação com marcadores de status endócrino e metabólico, são necessários para se chegar a eventuais caminhos que
levem aos cenários ambientais.
O DDT, DDE, vários congêneres de PCB, congêneres de
PBB e ésteres ftálicos têm sido descritos como agentes estrogênicos ou antiandrogênicos em estudos com animais (Crisp
et al., 1998; Hansen, 1998). Alguns dos resultados relatados
em estudos de coorte estão de acordo com esta teoria: uma
menarca em idade precoce esteve associada com maior nível
de exposição pré-natal ao PBB na coorte de Michigan (Vasiliu
et al. 2004); com maior exposição pré-natal ao DDE entre a
prole de progenitores que consumiam peixe em Michigan
(Blanck et al., 2000); com maior exposição ao DDE na fase
puberal de imigrantes que se mudaram para a Bélgica (Krs-
tevska-Konstantinova et al., 2001) e com maior exposição a
ésteres ftálicos na fase puberal em Porto Rico (Colón et al.,
2000). No entanto, em nenhum dos estudos a idade na menarca esteve associada com exposição ao DDE na coorte da
Carolina do Norte (Gladen et al., 2000) ou com PCBs (Blanck
et al., 2000; Gladen et al. 2000; Den Hond et al., 2002).
Uma das razões para os resultados negativos nos PCBs é
que muitas vezes as concentrações totais de PCB no soro são
medidas e diversos congêneres de PCB podem causar efeitos
diferentes e, às vezes, antagônicos (Hansen, 1998). Nenhum
dos estudos que avaliou o desenvolvimento das mamas no estágio de Tanner encontrou uma associação significativa com
PBBs (Blanck et al., 2000), PCBs (Blanck et al., 2000; Gladen
et al., 2000; Den Hond et al., 2002) ou DDEs (Gladen et al.,
2000). Dioxinas e PCBs com características de dioxinas foram
descritos como antiestrogênicos em animais (Brouwer et al.,
1995). Os resultados do desenvolvimento tardio das mamas
em adolescentes com taxas mais elevadas de compostos de
dioxina no soro (Den Hond et al., 2002) corroboram essa
teoria. Contudo, na mesma população, não foram observados
efeitos na idade na menarca. A exposição pós-natal, porém
pré-puberal, à TCDD não demonstrou efeitos significativos
na idade na menarca na população de Seveso (Warner et al.,
2004).
Conclusão
Em comparação com as meninas, o número de estudos
que avalia o efeito dos desreguladores endócrinos no desenvolvimento puberal em meninos é muito menor. A pesquisa
em meninos é mais focada na qualidade do sêmen, que está
muito mais relacionada à fertilidade. Os resultados sobre a
puberdade tardia em meninos expostos a PCB, policlorodibenzo-furanos (PCDF) e endosulfan estão em consonância
com o conceito geral de que esses compostos funcionam
como xenoestrogênios.
Vale ressaltar que não é a exposição a uma substância
química isolada, mas a exposição cumulativa a diversos
xeno-hormônios que irá definir o impacto final. O acompanhamento das mudanças no desenvolvimento da puberdade
deve ser visto, portanto, como uma forma de vigiar o impacto
das mudanças ambientais sobre o desenvolvimento dos indivíduos e sua saúde reprodutora. Recomenda-se, pois, que os
programas de investigação em saúde ambiental realizem estudos epidemiológicos prospectivos e estudos de bancada sobre
metabolismo hormonal com animais a fim de esclarecer os
principais efeitos dos disruptores endócrinos em pré-púberes
e adolescentes.
Cad. Saúde Colet., 2010, Rio de Janeiro, 18 (2): 203-8 207
Raphael Mendonça Guimarães, Carmen Ildes Rodrigues Fróes Asmus
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Recebido em: 23/5/2010
Aprovado em: 2/7/2010

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