entrevista exclusiva do presidente da república bolivariana da

Transcrição

entrevista exclusiva do presidente da república bolivariana da
CAMPANHA ADMIRÁVEL
Embaixada da República Bolivariana da Venezuela em Portugal
Ano 2 Nº 8 -Web: portugal.embajada.gob.ve
Edição Especial Setembro 2013
ENTREVISTA EXCLUSIVA DO PRESIDENTE DA
REPÚBLICA BOLIVARIANA DA VENEZUELA,
NICOLÁS MADURO À REVISTA ESPANHOLA
EL VIEJO TOPO
Venezuela
Crónica de uma jornada com
Nicolás Maduro
por Victor Rios e Miguel Riera
e Nicolás Maduro, Presidente eleito da República Bolivariana da Venezuela, sabe-se pouco em
Espanha. Apenas quatro traços, divulgados principalmente pelos meios de comunicação hostis ao
processo revolucionário. El Viejo Topo queria conhecê-lo, e o Presidente venezuelano aceitou ser
entrevistado, sem pôr o menor obstáculo.
Mas o convite de Maduro não se limitou apenas a uma
simples entrevista. Imerso no que ele nomeou Governo de
Rua, o Presidente tem visitado durante os primeiros cem
dias do seu governo todos os cantos do país. Praticamente
todos os dias visita um lugar diferente e, acompanhado por
um Ministro, vai tomando nota dos principais problemas da
zona, conversa com as pessoas, e aprova projectos. Pode-se
dizer que, durante este período, o governo da Venezuela
teve em parte um caráter itinerante, algo surpreendente
para nós que estamos habituados a que o Presidente
espanhol tenha muito pouco contacto com o povo, até por
vezes tem vindo a abordar a imprensa através dum ecrã de
plasma, ocultando a sua presença física para os mortais
jornalistas.
.
Pois bem, o Presidente convidou a equipa do El Viejo Topo
a acompanhá-lo durante uma dessas jornadas, e assim ao
longo da mesma iria proceder à entrevista. Uma
oportunidade única para observar de perto o líder
venezuelano.
Assim, no dia 20 de julho El Viejo Topo esteve bem cedo
no aeroporto de Caracas, aguardando o avião presidencial.
Após um voo de 25 minutos, aterrámos no aeroporto de San
Carlos, a capital do estado llanero (planície) Cojedes.
Muitas pessoas estavam no aeroporto e nas ruas
circundantes à espera para ver Maduro; devido aos vidros
escuros dos veículos que nos transportavam, muitos devem
ter pensado que o Presidente estava no interior de algum
deles, por isso, fomos recebidos calorosamente pelas pessoas
que esperavam a passagem da comitiva.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, a pequena
caravana entrava numa base militar. Dois helicópteros
sobrevoavam-na. A banda militar colocou-se em posição: o
Presidente avança decidido para ela.
Abreviemos a narrativa: Após as honras militares, a
delegação dirigiu-se para um pequena tarima coberta
frente à qual estavam já situados muitos militares e suas
famílias, mais de duzentos. Íamos assistir à cerimónia de
promoção de um punhado de generais, bem como à
entrega de estandartes a diversas regiões militares. E
depois, o discurso.
Nicolas Maduro não tem papas na língua: “pão, pão e
queijo queijo”, às claras. Embora este não ser o tema
principal, Maduro faz uma referência à Espanha, essa
Espanha devastada pela corrupção que aninhou em
grande parte da classe política, e foi (ainda é?) cúmplice
da direita fascista venezuelana. Cita o desemprego, e
sublinha como é intolerável que 55% dos jovens espanhóis
não encontrem emprego. E o Topo está de acordo com as
suas palavras.
Em redor da grande tenda em que nos encontramos, as
forças armadas criaram uma pequena exposição de
armamento. Tanques, canhões, equipamento militar
diverso. O Presidente detém-se em cada área; devagar sai
acompanhado dos soldados e oficiais. A manhã prolongase.
Tanto tempo em pé, faz fraquejar as forças do “Topo”.
Mas os outros não parecem estar cansados. De repente,
num ritmo muito rápido, Maduro e um grupo de soldados
entram numa grande tenda de campanha: Será o governo
militar de rua? Aparentemente, há assuntos para resolver.
Depois de um par de horas, aparecem vários soldados com
algumas refeições. Começa a cair uma chuva intensa,
chamam-lhe palo de agua. Dentro da tenda, o Presidente,
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Venezuela
perguntem", diz ele enquanto conduz o carro. É óbvio
que não vai ser uma entrevista convencional, dessas
em que o entrevistador mede as perguntas e o
entrevistado tenta esquivar as respostas. Daí o tom
coloquial, cordial, nada presunçoso com que decorre a
conversa. Então decidimos começar.
Alguém nos tinha dito que o seu compromisso social
e político começou sendo ele ainda muito jovem, assim
perguntamos-lhe sobre os seus primeiros anos. Sem
retirar os olhos da estrada, o Presidente responde.
Eu nasci e cresci na Caracas dos anos sessenta e setenta.
Cresci numa favela, na zona onde se encontra a
Universidade Central da Venezuela. Esses anos foram de
grande agitação social e política, houve grandes lutas,
concentradas principalmente num forte movimento
estudantil, universitário e de educação secundária, e
também nas escolas. Lembro-me, ainda quando era
pequeno, dos ataques na Universidade Central, porque eu
nasci e cresci frente à igreja de São Pedro, numa
comunidade de classe média popular e ali praticamente
vivia-se sob um cerco. Às vezes nem conseguíamos sair
de casa durante uma semana, tínhamos que nos manter ao
abrigo das rajadas de tiros que se formavam para assaltar
a Universidade. Essas lembranças de quando ainda era
uma criança, são da época de Raul Leoni, que governou o
país desde 1964 até 1969. Leoni invadiu a Universidade
com o batalhão Bolívar, com o exército. Depois, houve
outra invasão. Lembro-me muito bem, nos anos 70, com
o governo de Rafael Caldera, o líder dos democratascristãos. Entrou na Universidade Central e fechou-a,
porque esta estava dando início a um processo de
renovação universitária, um pouco na linha dos protestos
de Córdoba e do Maio francês...
a Ministra da Defesa, o Presidente da Assembleia Nacional e um
grupo de militares continuam as suas conversas. De repente, por
volta das seis, a lona de entrada abre-se e dá passagem ao
presidente e à sua comitiva. Maduro dirige-se a nós. É tarde, e a
entrevista está prestes a começar. "Como vamos faze-la?", diz.
Pensa durante alguns segundos, e continua "Venham comigo,
vamos para o carro".
Tudo acontece tão rápido. Quase a correr, chegamos até às
viaturas. Alguém nos indica qual é o nosso carro. O que
fazemos?: um vai ao frente e dois atrás. Falta o motorista. E este
aparece: é Nicolas Maduro. O próprio Presidente é quem conduz
o carro. Não podemos evitar certa confusão por alguns segundos.
Um de nós acha piada à categoria do motorista.
Mas as surpresas continuam: Maduro não nos trata como
estranhos nem como jornalistas. Ele trata-nos como
companheiros.
O Presidente pergunta se temos o gravador pronto. "Vá lá
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[Em 1918, Córdoba foi o epicentro de um movimento
reformista conhecido como a Reforma Universitária, que
se espalhou depois a outras universidades na Argentina,
e a grande parte da América e Espanha.]
…Na Venezuela essa renovação que pretenderam os
estudantes universitários nos anos 69 e 70, foi afogada
em sangue. Lembro-me muito bem daquele ataque,
porque tinha oito anos, e havia um jovem onde eu morava
chamado Pedro, que depois passámos a chamar de Pedro
o raro, que foi espancado brutalmente pela policia à
nossa frente; eles (a polícia) espancavam os jovens na
cabeça, e ele (o Pedro) ficou com perturbações, meio
louco. Chamávamos-lhe Pedro o raro, porque tinha um
comportamento estranho, ficou mesmo muito perturbado.
Lembro-me daquela parte da minha infância, porque
sempre esteve ligada à repressão, aos protestos. O meu
pai era um homem de esquerda, e entrei para o Partido
Acção Democrática. Ele mantinha uma posição de
esquerda, crítica, de fato participou no ano de 1967 na
fundação do Movimento Eleitoral do Povo, juntamente
com um líder que veio da social-democracia chamado
Venezuela
mundo pode existir isso, mas na Venezuela, em geral, tem
existido pelo menos desde os anos 50. No Liceu tínhamos cem
militantes no movimento político Ruptura, Uma centena. Em
toda a região do sul tínhamos trezentos estudantes militantes
de doze, treze e catorze anos de idade. Estes são os primeiros
anos da minha militância política, que depois foi evoluindo.
Como já vos disse, naquela altura havia muita repressão, muita
perseguição. Houve muitos assassinatos de jovens e muita luta.
E eu formei-me não só nas lutas estudantis, mas também na
luta nos bairros.
Mas a juventude não está interessada apenas na política
... Perguntamos-lhe que outros interesses tinha Nicolás
Maduro nessa época, se fez mais do que estudar e militar...
Eu era um desportista, praticava muitos desportos, mas
dediquei-me com maior disciplina ao basebol. Estive em várias
selecções de basebol nacionais, na selecção da capital, e numa
selecção nacional de basebol juvenil. Como tinha facilidade
para o desporto e também desenvolvíamos outras actividades
culturais nos bairros, formámos grupos de jovens que
praticavam futebol, basebol; animávamo-los, organizávamo-los
e dirigíamo-los. Nós também fizemos cineclube, teatro popular.
Música popular, salsa, rock, um pouco de tudo.
A chuva não fez parar a cerimónia
Luis Beltrán Prieto Figueroa, um professor. Ao professor Prieto
roubaram-lhe as eleições primárias para a candidatura
presidencial no partido Acção Democrática, e por isso é que ele
teve de formar a sua própria força política. Tenho a certeza que
eles (Acção Democrática) roubaram-lhe a eleição presidencial.
Naquela altura não havia máquinas para defender o voto e o
sistema eleitoral venezuelano era fraudulento. Não valiam os
votos que eram emitidos e que eram depositados nas urnas,
naquela altura o que valia era aquilo que se punha na acta final.
Era o que eles chamavam Acta mata votos. Alteravam
completamente os resultados.
Digamos que aqueles são os anos que marcam a minha
infância. Quando chegam os anos 70 entro para o Bacharelato.
No primeiro ano, quase no primeiro dia de aula, comecei a
militar na Frente da Unidade Estudantil do Liceu Urbaneja
Achelpohl. E depois ali mesmo, comecei a militar numa
organização revolucionária chamada Ruptura, que era a parte
legal, o lado legal do Partido da Revolução Venezuelana (PRV),
que era clandestino e dirigido por Douglas Bravo.
Nicolás Maduro sempre foi bom a jogar basebol
Eu toquei em várias bandas de salsa e organizámos o
Movimento de Jovens Roqueiros de Caracas nos anos 80. Na
Venezuela, houve um movimento de rock muito interessante
nesses anos. Eu era um membro do grupo Enigma, ainda há
alguns vídeos que estão no Youtube.
[Douglas Bravo: político e guerrilheiro, ingressou no Partido
Comunista em 1946, aos 12 anos, mas foi expulso em 1964.
Fundou o PRV em 1966. Participou nas insurreições de 04 de
Fevereiro e 27 de Novembro de 1992.]
Tinha eu então 12 anos de idade, comecei a militar quando ainda
era uma criança. Naquela época, as escolas venezuelanas
estavam altamente politizadas. Eu não sei em que outra parte do
Um antigo vídeo do grupo Enigma ainda está no Youtube
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Venezuela
Tocávamos rock pesado... a alma desse grupo era
um guitarrista venezuelano que não vejo há já
alguns anos, era o Carlos Carrillo, que aprendeu a
tocar a guitarra só de ouvido, sozinho no seu
quarto, ouvindo Led Zeppelin. Ele tocava a
guitarra igual a Jimmy Page, o guitarrista de Led
Zeppelin. Ele (Carlos Carrillo) tocava
surpreendentemente bem, era um grande
guitarrista. Nos faziamos isso tudo, mas sem
deixar a luta revolucionária; criávamos jornais
revolucionários nos bairros.
E então veio o Caracazo ...
[Caracazo: em 27 de Fevereiro de 1989
desencadearam-se fortes protestos e revoltas
contra o governo de Carlos Andrés Pérez. O
governo ordenou uma dura repressão, que
encabeçava a Força Armada, a Guarda Nacional
e a Polícia Metropolitana. Fontes extra oficiais
dizem que os números dos mortos rondaram os
3500.]
Na altura do Caracazo eu militava na Liga
Socialista. Estávamos coordenados com os
movimentos populares de Caracas e de várias
partes do país. O Caracazo surpreendeu a todos.
A Venezuela vinha acumulando nos anos 80
pequenas explosões sociais, em Mérida, no
Oriente... Já no ano de 1984
tinham-se
produzido revoltas populares estudantis em
vários lugares do país. E quando Carlos Andrés
Pérez ganha as eleições em 1988, no seu
discurso começa por anunciar que vai
estabelecer um acordo com o Fundo Monetário
Internacional (FMI) para implementar um pacote
económico neoliberal, ou seja, privatizar a
educação, a saúde, as empresas fundamentais do
país, o que provoca uma irregularidade nas
condições de trabalho e endivida o país.
Começou a respirar-se um clima estranho, que
em 27 de Fevereiro realmente surpreendeu a
todos. Não foi apenas um Caracazo foi um
Venezonalazo em todo o país. Uma aproximação
a uma insurreição geral.
No sábado, 05 de Março, ainda existiam
combates por todo o país. A repressão foi com
sangue e fogo. Possivelmente Caracas, o que é a
Grande Caracas, foi a mais afectada. O povo saiu
às ruas para saquear, e foi como um grito de “já
chega” com a ameaça do pacote neoliberal, de
uma década e meia de acumulação de miséria. A
taxa de pobreza atingia um 80 % da população.
A extrema pobreza estava perto dos 40%. Era
uma situação que o país não podia suportar mais.
O Caracazo criou uma situação de ruptura social
do povo venezuelano com a classe dominante
que teve a sua máxima expressão após a ruptura
política que significou a insurreição militar boli5/ El Viejo Topo 308/ Setembro 2013
variana de 4 de fevereiro do Comandante Chávez.
Em 4 de fevereiro, o povo disse “Sim, nós podemos” e foi naquele
momento que começou a nascer uma visão de construção e conquista do
poder político, na grande maioria dos venezuelanos. Todo o sistema político
estava podre na Venezuela. A esquerda estava domesticada, são poucas as
excepções dos líderes reconhecidos da esquerda que não estavam
domesticados pelo sistema, comprados, ou cansados de lutar. E Chávez criou
uma liderança absolutamente renovadora à política venezuelana e constituiu
desde o primeiro dia uma liderança revolucionária. Revolucionário,
nacionalista, independentista, bolivariano. Construiu uma outra forma de
fazer política que expressou a psicologia colectiva de um país em busca de
uma transformação profunda, um país que já não acreditava em ninguém,
nem em si próprio. Um país que começou a acreditar na esperança de
Chávez.
Mas, como é que Nicolás Maduro contacta com Hugo Chávez?
Quando?
No ano de 1990 comecei a trabalhar no Metro de Caracas, principalmente
no Metrobus, o sistema de autocarros que faz parte do Metro de Caracas. Eu
fui para lá trabalhar seguindo a estratégia que tínhamos na Liga Socialista,
que era construir uma força sindical de classe, revolucionária, nas empresas
fundamentais do Estado venezuelano: as indústrias básicas de Guiana, a
Companhia de Eletricidade Nacional, o Metro de Caracas, a empresa
petrolífera. Elaborou-se um plano para desenvolver nelas forças
revolucionarias sindicais, e ir somando-as às forças populares dos bairros, às
forças rurais. A ideia estratégica que nós partilhávamos é que tudo isso
confluiria numa insurreição geral contra o sistema.
No ano de 1991, em Agosto, estava a conduzir o meu autocarro na área de
Belas Artes na rota 4-21, uma rota que utiliza principalmente a classe média
de Caracas. Era meio-dia e faltava dar ainda uma última volta quando vejo
uma pessoa mesmo ali na porta do autocarro. Era o Ezequiel, um amigo que
já há tempo não via. Tinha-o conhecido nos meus tempos de liceu, nos anos
70. Há muito que não o via. "O que é que estás aqui a fazer?",
perguntei-lhe. E ele respondeu-me: “Preciso de falar contigo com urgência".
Devia ser uma coisa importante para que me procurasse e me encontrasse no
autocarro. Então dei a volta que faltava e, de seguida, fomos almoçar numa
arepera (loja de comida tradicional) que ficava perto da paragem de Belas
Venezuela
começa a perseguição", porque na América Latina, a
tradição é que os golpes militares sejam da direita, e
como aqui a crise que o neoliberalismo tinha criado era
tão grande, qualquer coisa podia acontecer. Então, na
manhã seguinte disseram pela televisão que iria falar o
chefe do Golpe, e de repente na televisão aparece a
imagem de um homem moreno, com um rosto magro e
boina vermelha. Falou e disse o que já todos sabemos...
[O que ele disse começava assim: Companheiros:
Infelizmente, por enquanto, os objectivos que nos
propusemos não foram alcançados na capital ...]
Artes. Lembro-me que comemos uma canja de galinha e arepas
(comida tradicional venezuelana).
"E o que é que estás a fazer? Por que querias encontrar-me e falar
comigo?", perguntei. "Bem Nicolás, entrei em contacto com um
grupo de militares que vão organizar uma insurreição contra Carlos
Andrés". Eu olhei para ele... E disse: “Estas a falar a sério?". Já
tínhamos perdido muitas pessoas em armadilhas..."Vai ser uma
armadilha, querem lixar-te", mas ele disse que não, e começou a
contar-me. Eu não sei se em Espanha é assim, mas aqui na
Venezuela toda a gente sabe tudo, e ele sabia que havia dois líderes,
um que parecia um sacerdote, que controlava o Ocidente do país,
que resultou ser Francisco Arias Cárdenas (actual governador do
estado Zulia), e o outro, disse-me assim, com estas palavras, “é o
Chefe da tropa, e é um seguidor de Bolívar, de Ezequiel Zamora, e
canta canções de Ali Primera (cantor venezuelano). Eu disse que isso
parecia uma armadilha. Ele disse-me que eles pediram-nos para
mobilizar as nossas pequenas forças sindicais. "E quando vai
acontecer isso?" perguntei-lhe. "Em dois ou três meses", respondeu.
Corria o mês de Agosto de 1991. "E o que podemos fazer?", disselhe. E deu-me várias ideias, uma mais louca do que a outra, lugares
onde atacar. Isso confirmou-me que poderia ser uma armadilha.
Então respondi-lhe: "Bem, camarada, isto cheira-me a uma
armadilha, olha que nos vão matar... Já mataram muitas pessoas”.
"Ezequiel”, continuei, "se essas pessoas existem e estão em pé de
luta, o povo venezuelano vai acompanhá-los cem anos, porque o
povo está cansado, e se aqui há um sector verdadeiramente patriota
nas Forças Amadas, e organizam uma insurreição, podes garantir
que o povo vai acompanhá-los”. Despedimo-nos, passaram dois dias
e não voltei a vê-lo. Ele foi procurar-me, mas não me encontrou, não
conseguiu ir ter comigo em nenhum trajecto. Em Dezembro, houve
rumores de que haveria uma insurreição militar a 16 ou 17 desse
mês. Mais tarde, descobrimos que sim, havia realmente a intenção de
fazer uma insurreição em 17 de Dezembro. Depois houve o rumor de
que esta tentativa tinha sido cancelada. Assim que eu encontrei de
novo o Ezequiel perguntei-lhe o que estava a acontecer e ele disseme: “Isto vai acontecer, isto já está preparado”. "Claro que vai
acontecer, o que não sei é quando, porque eu não tive mais
contactos", disse-me. E eu não voltei a vê-lo até ao dia 04 de
Fevereiro. Eu estava a trabalhar à noite na minha linha 4-21,e ao
chegar a casa muito tarde, por volta das 00:30, de repente, o telefone
tocou. Era a minha irmã, que me informou haver uma insurreição
militar contra o governo. Eu pensei: “Deixa ver quem são, agora
Eu dei um salto quase até ao tecto. E gritei: "A coisa
era verdade!“. Meu Deus... Passou-me uma coisa pelo
corpo... Fiquei em choque, como se estivesse louco.
Imediatamente saí para a rua. Claro, tínhamos de estar
atentos, porque cada vez que uma coisa assim acontecia
no país, sempre procuravam um grupo de sindicalistas
cuja lista já tinha a polícia política. E nesse dia eu dormi
numa concha...
N.de T. [Concha: uma casa segura]
Comecei a procurar o Ezequiel, encontrei-o e fomos em
busca do contacto com os militares, que já estavam na
prisão. E a partir daquele dia, eu, militante da Liga
Socialista, comecei a ter contacto com o movimento
militar bolivariano, com Chávez, e desde fora trabalhei
em solidariedade com eles. Depois preparamo-nos para
outra insurreição, e ali sim participámos diretamente na
rua, em 27 de Novembro, nessa revolta sim mobilizámos
pessoas e muitas freguesias [bairros] em Caracas, mas
no final, derrotaram-nos militarmente.
[Em 27 Novembro de 1992 houve uma outra tentativa de
golpe de Estado contra o governo de Carlos Andrés
Pérez, apenas nove meses depois de 04 de Fevereiro do
mesmo ano. Participaram civis e militares, assim como
os partidos políticos Bandeira Vermelha e Terceiro
Caminho]
Chávez, em 4 de Fevereiro de 1992 abriu um processo
histórico, partiu em dois a historia e despertou uma força
revolucionária que conseguiu mudar não só o modelo,
económico, político e social na Venezuela que tem
evoluído rapidamente em direcção ao socialismo
abordagem nuestroamericano (nosso-americano)-, mas
também atingiu a história da América Latina e das
Caraíbas como nenhum outro processo em 200 anos
antes.
Estamos, então, perante uma segunda independência
da América Latina?, perguntamos…
O Comandante Chávez já tinha pensado sobre isso e
dizia que a independência é só uma. Que a
Independência é contínua, não há primeira ou segunda, é
um processo único. Poderia ser o segundo grande
momento da independência, de uma nova independência
El Viejo Topo 308/ Setembro 2013/ 6
Venezuela
da América Latina e das Caraíbas que, de fato, do ponto de vista
histórico, se fosse estrito, devíamos dizer que começou com a
Revolução Cubana. Com um processo expansivo em termos de
ideias, como exemplo, como força real para transformar a
sociedade e tomar o poder político por projectos de mudança
nesta fase Chavista.
Nesta segunda fase Chávez tem um peso de fundamental
importância, porque conseguiu num curto espaço de tempo desde 04 de Fevereiro de 1992 até o dia 05 de Março de 2013,
passaram 21 anos, um mês e um dia- construir um movimento
revolucionário, transformar a sociedade venezuelana, alterar a
correlação de forças com o imperialismo no nosso continente;
fundar várias organizações dentro do conceito bolivariano dos
anéis de força ...
Anéis de força... É conveniente explicar isso aos nossos
leitores espanhóis, -sugerimos.
O segundo anel esta constituído pelo MERCOSUL e a
UNASUL. Ou seja, a América do Sul, cada vez mais
definida num nível geopolítico e geoeconómico.
O terceiro anel de força, como eu já vos disse, é a CELAC.
O Libertador Simon Bolívar considerou vários anéis de força a
partir de um ponto de vista geopolítico. O primeiro anel de força,
que ele chamou Colômbia, estava formado pela fundação de uma
poderosa nação de Repúblicas, correspondendo ao que hoje são a
Colômbia, o Equador, o Panamá e a Venezuela. Porque o Panamá
fazia parte da Colômbia, que chegava até a América Central. Um
segundo anel de força que o Libertador visualizou, era a aliança
da Colômbia com a Confederação do Peru e a recentemente
criada Bolívia, que praticamente ocupavam uma parte importante
da América do Sul e parte da América Central. Tinha a
Amazónia, o Pacífico, os Andes, as Caraíbas, a costa atlântica...
Este era o segundo anel, a aliança da Colômbia, Peru e Bolívia. E
um terceiro anel de força, ele (Bolívar), pensou-o e ativou-o mas
falhou, resultado da sabotagem norte-americana.
No Congresso do Panamá Bolívar pensava criar uma
confederação de Repúblicas independentes, antes colónias
espanholas, confederadas numa só. Ia desde o México até à
Patagónia. Um bloco de poder. Era o terceiro anel de força.
O comandante Chávez, resgatando a doutrina e pensamento
estratégico do Libertador avançou com algo parecido, o primeiro
anel de força: Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa
América (ALBA) e PETROCARIBE. A ALBA é a aliança
política, económica, social, integral de um bloco que avança no
socialismo. Um segundo anel de força que é o Mercado Comum
do Sul (MERCOSUL) e a União de Nações Sul-Americanas
(UNASUL). Um terceiro anel de força que é a Comunidade de
Estados Latino-Americanos e das Caraíbas (CELAC). Tudo isso
já estava no pensamento bolivariano. Talvez a diferença entre a
ALBA e o projecto da Colômbia é a presença de países e
repúblicas dos três lados do Continente, das Caraíbas, da América
Central e da América do Sul e que não temos fronteiras comuns.
Mas nós temos a grande força da identidade política e ideológica
rumo ao socialismo na ALBA, e PETROCARIBE é uma
poderosa aliança energética e económica, que serviu como o
primeiro anel de força para a constituição das novas Caraíbas na
nova América Latina que hoje existe.
7/ El Viejo Topo 308/ Setembro 2013
Chávez conseguiu em 21 anos, liberar a Venezuela e
constituir um conjunto de anéis de força libertadores do
Continente. E, certamente, conseguiu gerar uma nova
referência alternativa ao capitalismo, ao neoliberalismo e
resgatar a bandeira do socialismo para a humanidade. A
figura de Chávez é transcendental para compreender o
processo histórico da América Latina, até mesmo para
compreender o pensamento de Bolívar.
Como Ministro das Relações Exteriores, Nicolás
Maduro, desempenhou um papel importante na criação
desses anéis ... mas continuamos a falar sobre o seu
relacionamento com Hugo Chávez.
A primeira vez que vi fisicamente Hugo Chávez, foi no dia
16 de Dezembro de 1993. Eu estava na prisão de Yare,
visitando-o com um grupo de companheiros. Fiquei
impressionado quando o vi pessoalmente. Tivemos uma
reunião aproximadamente de uma hora . “Para que é que
vocês vem?", perguntou ele. Eramos líderes sindicais do
Metro. Então eu respondi: "Bem, nós queremos saber qual a
tua estratégia”. (Como sabem, nós aqui em Caracas
diretamente tratamo-nos de tu). “Queremos saber o que
podemos esperar de ti no futuro . Ele não parou de falar
durante 50 minutos. Sobre a sua cama estava o livro Um
grão de milho, de Tomás Borge, à conversa com Fidel
Castro. E estava cheio de tirinhas de papel intercaladas em
muitas páginas. Eu fiquei contente, porque Fidel Castro era
uma referência moral para a América Latina e o mundo, um
fenómeno da política mundial e da história. Chávez não
parou de falar o tempo todo, com grande coerência, de tudo
o que teria de ser feito. Ele tinha a certeza de sair da prisão.
Falou em tudo o que se tinha que fazer nas ruas, que tinha
de se avançar na construção de um poderoso movimento de
massas, continuar a construir o movimento militar
bolivariano nas filas das Forças Armadas, construir uma
força para uma possível insurreição popular. E abrir um
espaço no caso de existir a possibilidade de uma solução
Venezuela
pacífica. Ele explicou tudo isso, e eu saí de lá mesmo aos
saltos, assim como em Fevereiro de 1992. Fiquei muito
animado, muito motivado. Não tinha nenhuma dúvida sobre a
sua personalidade pelo que eu tinha lido nas suas cartas, mas
naquele dia, 16 de Dezembro de 1993, selei um compromisso
espiritual com ele. Eu seguirei o caminho deste homem onde
seja que ele for, pensei. E assim foi.
Ele foi levado para o hospital militar por um problema de
saúde, e no dia 26 de março de 1994 saiu em liberdade. Foi no
Sábado Santo (Pascoa). Desde esse sábado eu estive a seu lado,
a trabalhar em mil coisas. Ele contactou-me no final de 1994,
para que fizesse parte da direcção nacional do Movimento
Bolivariano Revolucionário 200, que ele havia fundado em
1982 e agora tinha reorganizado. Estive ali com ele um ano e
meio, e eu sempre metido nas lutas sindicais.
Naquela altura, na Venezuela houve uma reforma da lei
laboral, e queriam tirar-nos o nosso direito ao que nós aqui
chamamos prestações sociais, em março de 1997. Então
Chávez encabeçou as lutas. Foram anos de grande repressão,
entre 1994 e 1998, e como entre nós dizemos: “quando não
estávamos na prisão, então andavam à nossa procura”.
Tínhamos sempre a polícia política em tudo o que fazíamos.
Até mesmo num baptizado entrava a polícia política.
Depois, em 1995, Chávez criou um lema: "Por agora, por
nenhum, Constituinte já". Porque havia eleições autárquicas e
de governadores, e ele disse que não devíamos desgastar-nos
nesses comícios. Íamos perder tempo, dizia ele, e dividir umas
forças que ainda não tínhamos acabado de construir. Ele já
sabia que a solução para o país era uma Assembleia
Constituinte. Uma Constituinte popular, plenipotenciária,
revolucionária.
O ano de 1996 foi um ano muito difícil para nós, havia muita
repressão, e ele sugeriu no final desse ano começar a preparar
as eleições de 1998. Muitas pessoas não concordaram, mas
depois os companheiros cederam, e em 19 de Abril de 1997,
em Valência, a capital do estado Carabobo, convocámos uma
assembleia
nacional
do
Movimento
Bolivariano
Revolucionário 200 (MBR200), com 500 delegados vindos de
todo o país, e ali decidimos lançar a candidatura do
Comandante Chávez e impulsar um novo movimento político
que servisse para conseguir a vitória, e também, alem disso,
houve uma terceira decisão: promover uma ampla aliança
política eleitoral.
pontos. Mas depois chegou a ter 20, 30 até 40 pontos nas
sondagens. Em Julho já tinha quarenta e tantos. Foi um
fenómeno eleitoral. Foram desmoronando-se todas as
candidaturas da burguesia, e ganhamos as eleições com 56%
dos votos.
Nessa eleição eu fui eleito deputado para o ultimo
Congresso da IV República e tornei-me chefe do grupo
parlamentar da bancada . E acompanhei o comandante , até
que tivemos que renunciar para convocar a Assembleia
Constituinte.
Realizou-se um referendo para que o povo decidisse se estava
de acordo em convocar uma assembleia para elaborar uma
nova Constituição. E nesse referendo, numa segunda pergunta,
questionou-se o povo sobre o método eleitoral para eleger os
constituintes. Era um método completamente diferente do que
era utilizado antigamente para o Congresso. No referendo
quase 80% aprovou fazer a Assembleia Constituinte.
Em 25 de Julho de 1999 elegeu-se a Assembleia
Constituinte. Elaborou-se a nova Constituição, foi levada a
debate público e no dia 15 de Dezembro de 1999, o povo
votou. Houve uma campanha brutal em que a oposição
acusava a Constituinte de proibir a propriedade privada, de
eliminar a liberdade de expressão, a liberdade de religião,
diziam mil coisas, mas a Constituição foi aprovada por 71,78
% dos venezuelanos. E assim começou o processo
democrático revolucionário. Depois fui eleito deputado. Fui
deputado quase oito anos, presidi várias comissões de
trabalho, fui Presidente da Assembleia Nacional, e em Agosto
de 2006, o Presidente chamou-me, e fui nomeado Chanceler.
A viatura penetra rapidamente no aeroporto por uma
porta lateral. Nicolás Maduro pára junto às escadas do
avião presidencial. Descemos. De repente, percebemos que
o Presidente tinha-se ido embora, já não está mais
connosco. Vemo-lo a uns cem metros: Foi ter com as
pessoas que estavam lá à espera para o cumprimentar.
Como diabo é que ele chegou lá tão rápido?, volta e sobe a
bordo do avião. Entra na parte traseira e perdemo-lo de
vista. Vinte e cinco
minutos depois, aterramos no
aeroporto de Maiquetia em Caracas.
E foi isso o que fizemos. Lançamos a candidatura de Chávez
em 1997. A oligarquia estava confiante de que Chávez não
passava de 10%. Então, fundamos o Movimento Quinta
República (MVR). Ele sugeriu esse nome. Fizemos uma
comissão para escolher o nome e ele propôs esse. O
planeamento básico era participar nas eleições para convocar
uma assembleia constituinte que iria promover uma revolução
democrática e pacífica no país.
Em Janeiro de 1998 tinha 6 pontos nas sondagens. Em
fevereiro, 10. A burguesia dizia que Chávez não passava de 10
Quando El Topo reparou que o próprio Presidente era o motorista da
viatura foi uma grande surpresa
El Viejo Topo 308/ Setembro 2013/ 8
Venezuela
Mas a única coisa que lhe perguntei foi: “O Senhor Presidente, já
pensou bem sobre isso?” Ao que ele respondeu que tinha pensado
muito bem. “Começa amanhã", disse ele . E no dia seguinte, fui à
Assembleia, apresentei a minha demissão das funções como deputado
e Presidente da Assembleia, e incorporei-me como Chanceler durante
seis anos e quatro meses. Foram anos de duro combate no campo
internacional, com a construção e consolidação da ALBA, a
consolidação do PETROCARIBE, a fundação da UNASUL em 17
Abril de 2007 em Margarita, a fundação, em 2 e 3 de Dezembro de
2011, da CELAC e em geral, o fortalecimento da parceria estratégica
com a Rússia, China, Irão, Belarus, Índia, todo o mapa que temos
constituído.
Anos difíceis, enfrentando a hostilidade do império, certo?
Descendendo do avião Presidencial em Maiquetia
Uma viatura espera o Presidente, quem nos
convida a acompanhá-lo. Novamente é o Presidente
quem conduz o veículo. Vamos em direcção a
Caracas, o gravador está pronto. Com o volante nas
mãos, Maduro retoma a conversa que tínhamos
interrompido.
O comandante chamou-me no dia 07 de Agosto à
noite. Ele queria fazer algumas mudanças no gabinete,
e antes tinha-me perguntado sobre o currículo de
vários deputados, com a ideia de nomear qualquer um
deles Ministro. Tivemos muito contacto naqueles dias.
Foi durante a última guerra que ocorreu em Beirute,
com a agressão de Israel, que acabou derrotado pelo
Hezbollah. Chamou-me nessa Segunda-feira, eram
aproximadamente oito da noite, e começou a falar de
política. Então disse-me que o Chanceler Ali Rodriguez
estava doente e iam passar alguns meses até se
recuperar. Comecei a meditar sobre um nome a propor
para o Ministério das Relações Exteriores, no caso de
que ele me perguntasse. Mas ele avançou dizendo que
precisava de resolver esse problema, e que tinha
pensado em mim para que fosse Chanceler. Ele disse:
"Eu preciso de um Chanceler, mas que seja um
companheiro de luta, que esteja ao meu lado como um
companheiro, que seja mais do que um Chanceler".
Nunca na minha vida eu pensei que poderia ser
Chanceler. Nunca. Uma vez, em 2001, ele falou sobre a
possibilidade de eu assumir o Ministério do Trabalho, e
como eu era um líder sindical isso teria sido mais fácil.
9/ El Viejo Topo 308/ Setembro 2013
Foram anos difíceis, porque a Venezuela está no epicentro de uma
batalha por um mundo novo, uma batalha contra o imperialismo, na
América Latina e no mundo. E nessa batalha conheci ainda mais Hugo
Chávez, como ser humano, como um líder, como uma pessoa muito
exigente. Ele era muito exigente . Ele era um exemplo, ele sempre teve
a certeza do que queria e como obtê-lo. Ele era um homem de acção,
era muito parecido com Bolivar, no sentido de favorecer a acção. A
acção como um centro de vida, da reflexão, da formulação de ideias,
da filosofia, de tudo... era muito estudioso, muito inteligente. E além
disso tinha uma virtude, que também tem Fidel Castro, que é converter
aquilo que é complicado em algo simples, e transmitir, comunicar-se
oralmente com as grandes maiorias.
Chávez conseguiu convocar para a política as grandes massas do
povo. Convocando-o para grandes tarefas. Para uma nova
independência. E deixou um povo formado, ele deixou um povo com
grandes valores.
Não podemos dizer que a revolução está consolidada totalmente, mas
tem avançado um trecho importante na possibilidade de se tornar
irreversível, um longo caminho ideologicamente, na formulação da
nossa ideologia. Nós temos uma ideologia revolucionária, bolivariana
e socialista. Temos um corpo doutrinal. Temos um projecto de pátria,
de país, que é de pátria grande, articulado com uma visão do mundo. É
impossível fazer a revolução tentando transcender o capitalismo e
construir uma sociedade socialista pensando num país só...Isso é
impossível. Se não pensamos na humanidade, o socialismo será
impossível. Há que ter uma visão que abranja o mundo e toda a
humanidade e a região que te pertence, neste caso, a América Latina e
as Caraíbas, devemos propugnar forças no campo internacional para
fazer o socialismo viável. De contrario, é impossível. Neste sentido
Trotsky estava certo. Embora Lenin também, porque se Lenin não
tivesse consolidado a Revolução Bolchevista não se teria conseguido
avançar em nada. Nesse debate que ocorreu há cem anos, trazendo-o
para o presente, Hugo Chávez escolheu a ideia da revolução
permanente em termos práticos. A revolução em todos os espaços, de
todos os dias, a revolução em diferentes dimensões, a dimensão
Venezuela, a Latino-américa revolucionaria, a Latino-américa
independentista, as alianças com as forças anti-imperialistas do
mundo. Nesses anos, eu consegui simpatizar muito com ele do ponto
de vista humano, político e conhecer profundamente as ideias que
configuravam o projecto de Hugo Chávez. Agora estou a realizar
muitas tarefas, e é como se ele me tivesse preparado para essa batalha,
Venezuela
mas também acho que preparou o povo, preparou-nos a
todos. Ninguém pode se sentir individualmente
preparado para esta batalha que estamos a travar, mas ele
preparou-nos a todos para esta batalha.
Perguntamos: Quando esteve à frente da
Chancelaria, qual foi o assunto mais difícil que teve
que enfrentar?
A possibilidade de uma guerra com a Colômbia. Em
Julho de 2010, o Presidente Uribe preparou a agressão.
Vários organismos de inteligência latino-americanos
enviaram-nos informação em primeira mão, que
comparada com aquela que já tínhamos, deu-nos as
coordenadas de dois possíveis ataques e as respectivas
datas, para abrir uma frente de guerra com a Venezuela
nos dias prévios à tomada de posse de Juan Manuel
Santos à Presidência. Esse foi o momento mais perigoso.
Nós denunciamo-lo, a UNASUL pronunciou-se, e eu em
dois dias fiz uma rápida visita a todos os países da
América do Sul. O Presidente Chávez esteve a dirigir
pessoalmente essa conjuntura. Tivemos ativadas todas as
nossas Forças Armadas, assim como também todo o nosso
sistema de detecção de radares e de defesa.
.
Fizemos um grande trabalho diplomático e político, e
evitamos que Uribe atacasse a Venezuela. Derrotámo-lo
no cenário político e diplomático. E também no cenário
militar, porque os militares na Colômbia recusaram
realizar esta operação contra a Venezuela. Esse foi
talvez o mais complexo de todos os momentos que vivi como
Chanceler de Chávez.
Depois, o Presidente começou a dar sinais de que estava doente
e finalmente Nicolás Maduro teve de assumir a Vicepresidência…
Sim, começou uma fase dura e difícil para o Comandante quando
ele começou a sofrer fortes dores que lhe afetaram um joelho e uma
perna, o que por vezes o impedia de andar. Nós pensamos que era
um problema muscular, pensamos que era outra coisa, até que
chegou o momento do exame e descobriu-se o que acreditava-mos
era um tumor, um abscesso de fácil solução. Infelizmente, mais
tarde descobriu-se que era um tumor cancerígeno muito grande,
muito agressivo, que se tinha desenvolvido num curto espaço de
tempo, e que lhe afetou muito durante 2011 e 2012. No seus
últimos dois anos de vida esteve seriamente afetado pelas
operações, as dores, os tratamentos, e ainda assim estava sempre
em primeira linha, comandando a revolução, sempre consciente dos
problemas fundamentais do povo, da construção do socialismo, dos
problemas importantes no cenário internacional. Ele não descuidou
nenhum frente. Embora é verdade que reduziu o seu ritmo para
atender e manter a dinâmica da revolução bolivariana. Por
exemplo, na campanha eleitoral, ele disse-nos que se sentiu como
um boxeur que sai ao ringue mas com uma mão amarrada. Ele
lutou com uma só mão. E venceu amplamente. Mas de qualquer
maneira ele estava muito afetado durante toda a campanha,
sofrendo dores. Os exames médicos que foram feitos nessa altura
com a mais recente tecnologia, deram como resultado a ausência de
células cancerosas. Nenhuma. No entanto, quando terminaram as
eleições e depois da grande Vitória de 7 de Outubro de 2012, as
dores aumentaram.
12 anúncios de Nicolás Maduro em 28 de Julho de 2013
Como parte da comemoração dos 100 primeiros dias do governo
e a celebração do natalício 59° de Hugo Chávez, o Presidente
Nicolás Maduro anunciou 12 linhas de trabalho para aprofundar a
Revolução Bolivariana nos próximos meses:
1.
Vamos construir um Sistema Completo de Governo
Popular, aprofundar o Governo de Rua.
2.
Iniciar de forma imediata os projectos e obras aprovadas
no Governo de Rua.
3.
Juntar as nossas forças para aprofundar o movimento
pela paz e a vida.
4.
Vamos acelerar urgentemente
economia nacional.
5.
Vamos fortalecer as missões e as grandes missões
bolivarianas.
6.
Vamos fortalecer a Eficiência ou Nada e avançaremos
em força na luta contra a corrupção.
7.
Agosto será o mês para a reconstrução do sistema das
comunas, comunidades. Toca a se organizar!
8.
Acelerar o plano eléctrico para acabar com a sabotagem.
9.
Aprofundar o governo militar de rua.
a recuperação
O mês de Outubro e início de Novembro foram meses com muitas
dores, e quando ele saiu da Venezuela para se submeter a um novo
tratamento, descobriu-se que o tumor canceroso se tinha
reproduzido no mesmo local. Foi quando ele reparou no risco da
cirurgia que lhe iam fazer. Ora bem, então acontece tudo o que já é
conhecido. Ele enfrenta um risco evidente, que foi ter de se operar
pela quarta vez no mesmo sitio. Uma operação muito arriscada, e
então ele decide deixar tudo pronto para qualquer eventualidade.
da
10. Vamos impulsionar uma grande Revolução da cultura,
uma Revolução Comunicacional.
11. Manter a politica internacional de integração.
Consolidar a ALBA, a PETROCARIBE, a UNASUL e a
CELAC.
12. Conformar um bloque político para preparar a grande
vitoria do próximo 8 de Dezembro.
El Viejo Topo 308/ Setembro 2013/ 10
Venezuela
Hugo Chávez estava consciente da gravidade da sua
situação?
Ele nunca falhou na sua intuição. Em todas as operações
anteriores foi com espírito de vitória e seguro de que ia sair
bem. No dia em que ele soube desta quarta operação
conversou com os médicos, ele intuía que era o fim. No
Domingo, 2 de Dezembro ele chamou-me. Eu estava a
revisar os arranjos do novo Panteão de Bolívar, e utilizou
uma chave que tínhamos acordado os dois. Eram más
notícias... Eu não sabia até que ponto, e tentava manter o
otimismo, mas ele disse-me: "Envia-me uma comissão”. E
eu enviei-a para Havana. Foram Diosdado Cabello, Cilia
[esposa de Nicolás Maduro], Rafael Ramirez, e ali já estava
o seu genro Jorge Arriaza . Isso foi, se bem me lembro, nos
dias 3 e 4 de Dezembro. Eles conversaram com ele durante
dois dias. Ele disse tudo o que tinha pensado. Disse que, no
caso dele faltar, que eu me encarregaria de preparar um
chamado a eleições eleitorais, e deixou organizadas muitas
coisas de tipo pessoal, político, muitos detalhes, e ordenou
que a comissão voltasse à Venezuela. Eles chegaram na
manhã do dia 05 de Dezembro, e foi quando recebi a
notícia do que estava para acontecer, a operação e aquilo
que ele havia decidido. Para mim isso foi um dos golpes
mais fortes de que me lembre. Um duro golpe... Saber que
o Comandante estava nessas circunstâncias... Eu acho que
de alguma forma ele estava a enviar-me uma mensagem
para me preparar, para que não recebesse o golpe por
surpresa, para que eu fosse assimilando tudo. Ele sempre
foi muito cuidadoso em tudo. Mandou-me chamar. Eu fui lá
a 5 de Dezembro. Cheguei cerca das oito horas e fiquei ali
com ele até às cinco ou seis da manhã do dia 6, e ele falou
longamente. Testemunha dessa conversa foi Jorge Arreaza,
que tomou nota de tudo. Foi uma conversa muito difícil,
angustiosa, ele continuava a dar-me instruções sobre muitas
coisas. Ia até ao futuro, explicava-me, e depois voltava até
onde tinha-mos ficado. Eu quase não conseguia falar,
estava tão chocado, era como uma despedida. E então ele
decidiu voltar para a Venezuela para explicar isso e muitas
coisas mais, no fim não conseguiu explica-las todas, porque
nós dissemos-lhe que não era necessário. Aterrámos no
aeroporto de Caracas à meia-noite do dia 6 para o dia 7 de
Dezembro, e eu fui no carro com ele para a sua residência
em Miraflores. Íamos conversando, ele continuava a darme instruções, como se nada estivesse a acontecer. Que se
ainda não foi inaugurado isto, que ainda havia aquilo por
fazer... Ele vinha muito motivado, mas as dores eram uma
coisa terrível. No dia 7 ele descansou, embora ainda
sofresse muitas dores. No dia 8 tivemos uma reunião,
estudamos a situação do ponto de vista constitucional, e ele
falou, e disse o que tinha a dizer.
[ E o que ele disse foi: Se algo acontecer, que não me
permita continuar na Presidência da República
Bolivariana da Venezuela, Nicolás Maduro, não só nessa
situação deve concluir o período como estabelece a
Constituição, como também na minha opinião firme e
11/ El Viejo Topo 308/ Setembro 2013
plena, irrevogável, absoluta, total é que nesse cenário, -que
obrigaria a convocar as eleições presidenciais-, vocês escolham
Nicolás Maduro como Presidente da República Bolivariana da
Venezuela.]
Depois ele partiu a fim de ser operado, e num momento da
operação ele quase morre. O povo viveu essa situação com muita
dor.
E a direita?, a direita não parou nem um momento de provocar o
povo. Eles queriam que, no caso de se produzir um desenlace
fatal, o povo sai-se às ruas com loucura, que a Venezuela entrasse
numa espiral de violência. Nós fizemos um trabalho para extrair o
ódio que a direita estava a inocular no povo. Nesas circunstâncias,
e como eu desempenhava dois cargos, como Chanceler e VicePresidente (O presidente Chávez tinha-me nomeado Vicepresidente antes de sair em Outubro), surgiu a proposta de nomear
para Chanceler Elias Jaua, o que ele (Chávez) aprovou
imediatamente, e a partir dai Elias assumiu a Chancelaria e eu a
Vice-Presidência, no meio daquelas circunstâncias tão dolorosas,
com essa incerteza, com momentos de melhoria do Comandante,
com outros muito difíceis que tivemos de enfrentar, e tivemos de
preparar-nos para aquilo que pensamos que nunca iria acontecer.
Até o último segundo desse dia 05 de Março tivemos a esperança
de que ele iria superar essas circunstâncias.
Estamos agora na periferia de Caracas. Numa passadeira há
um grande grupo de pessoas, retidas por um polícia de
trânsito que já avisou que é o carro do Presidente. Mas
Maduro pára e diz ao polícia que deixe passar as pessoas. Um
pouco confuso, o funcionário dá a passagem. Retomamos a
marcha.
A direita estava a preparar o inicio dum processo de
desestabilização económica que terminasse numa desestabilização
social e política. O imperialismo e seus aliados venezuelanos
sempre desejaram acabar com a revolução, e tentaram acabar com
Chávez por todos os meios possíveis: golpe de Estado,
magnicídio, eleições; mas não conseguiram obter nada por
qualquer um deles. E aproveitaram a gravidade do Comandante e
a conjuntura para organizar o caos. E, de fato causaram muito
dano. Ainda estamos a superar os efeitos de uma sabotagem
económica brutal, que é difícil outro país tivesse suportado, com
escassez, especulação, uma guerra económica contra o próprio
país. Uma guerra que eclodiu em Novembro e continuou em
Dezembro, Janeiro, Fevereiro, Março... quando o comandante
Chávez morre e se convocam as eleições, o nível de escassez era
terrível, e produto da sabotagem económica; sabotaram o sistema
eléctrico que em cada país é vulnerável. E utilizaram um conjunto
de mecanismos de guerra psicológica para provocar a raiva, o
ódio do povo. Afrontamos cada um desses elementos dizendo-lhe
a verdade ao povo, convocando-o para a batalha, à mobilização
permanente. A vitória eleitoral que tivemos em 14 de Abril
ocorreu no meio do luto pela tragédia. Um luto paralisante no
meio de uma guerra eléctrica em que eu chegava a um Estado sem
luz e ia-me embora sem ainda ter voltado a luz. Sofremos uma
guerra
Venezuela
completos que nos deixou o Comandante Chávez para a
continuidade da revolução bolivariana.
Temos conseguido neutralizar e derrotar a conspiração da direita.
Agora estamos a estabilizar e consolidar a revolução numa nova
fase. Criando novos mecanismos para aprofundar a construção do
modelo económico socialista, do modelo social que garante a
educação pública gratuita, saúde publica gratuita, direito à
alimentação, que garante o direito ao trabalho, a salários justos...
Uma revolução que garante com o desenvolvimento e a prosperidade
económica o desenvolvimento e a prosperidade social, a igualdade
social, esse é o objectivo do socialismo bolivariano.
O automóvel detém-se à porta da residência do Presidente.
Descemos. Temos quase duas horas de gravação, mas ainda há
muitas coisas por perguntar!, entramos. Numa mesa há
fotografias de Chávez, uma escultura do cantor Ali Primera,
uma imagem de um santo. Maduro aponta para elas
Este é São Bento, um santo negro. E este é o Ali. Em certa medida
Ali construiu, com o seu canto e com o movimento cultural que ele
liderou, os ideais da revolução bolivariana. Ele era um líder popular,
um grande agitador. Ali enchia um estádio quando a esquerda não
conseguia movimentar ninguém, e as pessoas enlouqueciam
animadas, quando ele falava e cantava. Ele cantava sempre o hino
nacional e no meio do hino ele falava com as pessoas.
económica brutal, tivemos de mobilizar o povo mas
obtivemos a vitória.
Foi então quando lançamos uma metodologia de
governo popular que chamamos Governo de Rua. O
objectivo do governo de rua é mobilizar o povo e poder
identificar os problemas fundamentais, comprometendo
os recursos e acções para as suas soluções. Com esta
metodologia que adotamos e recorrendo todo o país, já
aprova-mos nos primeiros cem dias de governo mais de
dois mil projectos surgidos do contacto directo com o
povo. Temos investido nesta jornada do governo de rua,
mais de 16.000 mil milhões de dólares em projectos de
desenvolvimento económico, infra-estruturas, estradas,
habitação, na área agro-industrial, na educação e a
saúde. É uma revolução dentro da revolução. Uma
mudança profunda nos métodos de gestão da revolução
bolivariana, com a construção de uma direção coletiva,
porque substituir no caminho da revolução uma
liderança tão poderosa com tão grande capacidade de
convocatória como a de Chávez, é quase impossível. E
isso só pode ser feito com uma grande força colectiva
cívica e militar. O que tenho feito é isso: activar uma
nova direcção política colectiva da revolução. Temos
activado uma grande força colectiva cívica e militar. As
Forças Armadas, vocês viram hoje, constituem uma
força revolucionária, motivadora da revolução socialista.
Uma força comprometida com o socialismo, antiimperialista,
comprometida
com
a
pátria.
Conscientemente comprometida, disciplinadamente
comprometida. Talvez seja este um dos presentes mais
Chávez não chegou conhecer Ali, mas os militares patriotas
escutavam-no. Que um militar ativo ouvisse Ali era uma ousadia, Ali
era perseguido pelo sistema. Mas foi o primeiro homem da esquerda,
que com o seu canto chegou ao povo. Ele tinha uma personalidade
como a de Chávez.
Com Ali na Residência Presidencial
El Viejo Topo 308/ Setembro 2013/ 12
Venezuela
Fase final da conversa. À esquerda Mauricio Rodríguez , Encarregado de Negócios da Embaixada da Venezuela
em Espanha, que acompanhou El Topo durante toda a jornada
Sentamo-nos para uma última pergunta. São nove da
noite, o dia foi longo. Perguntamos-lhe por Espanha,
pela União Europeia, pela possibilidade de uma possível
aliança que deixe para trás o neocolonialismo em pró da
multipolaridade.
A União Europeia foi uma grande esperança, porque
parecia que surgia um bloco de países capazes de construir
um contrapeso ao poder hegemónico dos Estados Unidos.
Ninguém duvida que os Estados Unidos constituem um
projecto imperial, hegemónico. É um país que tem quase mil
bases militares espalhadas pelo mundo. Ninguém duvida da
vocação imperialista da elite que dirige os Estados Unidos.
Infelizmente, as elites que dirigem a maioria dos governos
da Europa sucumbiram, em termos da sua política externa, a
uma estranha dependência dos Estados Unidos. E é estranha
porque não tem explicação nem económica, nem de tradição
política. As elites que governam a Europa actuam
contracorrente dos interesses reais dos povos da Europa e
dos interesses da humanidade. Têm-no feito recentemente,
ajoelhando-se frente ao governo dos Estados Unidos. No
caso do jovem Snowden é incomparável. O que eles fizeram
com o Presidente Evo Morales, um Chefe de Estado da
América Latina, desesperados por cumprir com o governo
dos Estados Unidos na sua loucura por capturar Snowden
marca um antes e um depois.
Há uma grande luta sobre o que tu chamaste a
multipolaridade, o mundo multipolar, e essa luta implica
uma transição. Toda transição esta feita de avanços e retro-
13/ El Viejo Topo 308/ Setembro 2013
cessos. Às vezes pode parecer que estamos retrocedendo para
um mundo unipolar, quando os Estados Unidos submete países
tão poderosos como os da Europa. Mas o pior é que submete
através do Banco Mundial e do FMI levando-os para uma
política económica de autodestruição. Não deve existir
nenhuma dúvida: A Europa estão a destrui-la desde dentro.
Eles estão destruindo a sua base económica. O seu modelo
social. Estão a leva-la até às portas de uma grave implosão, a
qual pode ser incontrolável. Quanto vai demorar o instante em
que se produzam grandes explosões de massas? Eu não sei.
Ninguém o sabe. Mas a situação é insuportável para os povos.
Os pacotes económicos que estão a impor na grande maioria
dos países europeus são insuportáveis. A América Latina não
os aguentou, explodiu em milhares de pedaços, e surgiu esta
revolução que estamos vivendo numa nova independência.
A aliança natural para um mundo de paz teria que ser
estabelecida entre a Europa e a América Latina. Uma aliança
pelo respeito à democracia, aos direitos humanos, de
intercâmbio cultural, de cooperação para o desenvolvimento
económico, para compartilhar os grandes avanços da ciência
para o bem colectivo, para compartilhar esta bela diversidade
cultural e humana que tem a América Latina, de portas abertas
para a Europa. A América Latina tem provado ser um
continente profundamente amigável. Eles chegaram cá, há mais
de cem anos, enormes contingentes de Espanhóis, Portugueses,
Italianos, aos milhares. Eles chegaram nas décadas dos anos 40
e 50 do século passado. Eles chegaram praticamente sem nada,
e prosperaram aqui. A América Latina é o continente da
esperança, e a Europa devia ser um continente de paz, do
futuro. Oxalá.
Venezuela
Aqui há um ditado que diz que não há mal que por bem
não venha. É possível que o mal do neoliberalismo no
final possa fazer o bem: despertar os povos da Europa,
que viviam no estado de bem-estar esquecendo-se de que
existia o resto do mundo, e possam ver no Sul a
oportunidade de ter lá os seus irmãos. Não nos olhar com
desprezo nem com desconfiança. As revoluções que
ocorreram na América Latina têm de ser vistas com
interesse, com simpatia. Porque nós encontramos
fórmulas perfeitamente válidas para a construção de
sociedades realmente democráticas, educadas, cultas,
livres, verdadeiramente prósperas. Não se compreende
porquê a Europa abandona o seu direito ao
desenvolvimento económico para se entregar nas mãos
do capital financeiro. Pode mais na Europa o capital
financeiro do que os povos e movimentos sociais de
tradição democrática da luta pela igualdade? Acho que
não. Pode o poder financeiro de quatro bancos europeus,
de quatro ladrões, mais do que toda a sociedade?, o que é
que pensa disto a sociedade europeia?, o que é que
pensam disto os intelectuais, as universidades?, o que é
que pensam os militares da Europa?, vão deixar que os
seus países sejam destruídos?, o que é que pensam os
povos?, vão permitir que culmine uma operação de
desmantelamento total da estrutura económica e social?
E qual seria o futuro da Europa?, será a miséria?, será a
emigração?. Estas são perguntas que parecem
catastróficas, mas estamos realmente frente a isso.
Quando se vê a Grécia paralisada três dias, num gesto
desesperado de toda uma sociedade, porque fechou a TV,
porque despediram milhares de funcionários públicos,
porque fazem a sua vontade todos os dias, reduzindo os
salários, as pensões...Será que essa é a mensagem?, será
que é esse o futuro? Após esses pacotes económicos,
como é que se pode vislumbrar uma esperança?.
Eu não tenho nenhuma dúvida de que a Europa vai encontrar o
seu caminho, que vai empreende-lo essa juventude que está agora
desempregada nas ruas, os profissionais a quem lhes estão a
arrebatar os seus direitos, uma classe trabalhadora que retomará as
suas bandeiras históricas, a intelectualidade de esquerda, agitando
as suas bandeiras genuinamente humanistas e de esquerda. Tenho a
certeza absoluta de que a Europa vai construir a sua alternativa.
Cada um na sua forma e à sua maneira. Empurrando em direcção
ao futuro. Porque quem não se atreve a empurrar com força para o
futuro, não tem direito a ele.
Teríamos gostado de perguntar muitas outras coisas: a
relação com a Espanha, especificamente, com a Colômbia, com
os Estados Unidos. Falar sobre os esforços que estão sendo
empreendidos no combate contra a corrupção. As medidas que
estão a ser implementadas para a segurança, enviando
patrulhas militares para os bairros. De como é que se vai
combater a inflação. tantas coisas... Mas já é tarde, e temos que
terminar. Talvez o futuro nos traga a oportunidade de poder
formular todas essas perguntas. Oxalá.
Os Povos não se resignam a ser aniquilados. A Espanha
tem uma gloriosa história de luta pela democracia. A
gloriosa história que levou mesmo a derrotar Napoleão.
Os povos não se resignam a ser colónias, nem ser
vassalos, e menos do capital financeiro. Porque quem
nunca está mal é o capital financeiro que engole os povos
e os países. Mas, não há mal que por bem não venha.
Talvez a prática do neoliberalismo possa acabar num
grande despertar, num grande renascimento da verdadeira
Europa, a Europa da justiça e da liberdade. Da Europa
revolucionária. Porque a ideia das revoluções para
restabelecer a humanidade vem da Europa. A ideia
republicana vem da Revolução Francesa, e foi tomada
pelos libertadores. Meteram-na no laboratório da
mestiçagem latino-americana e tornaram-na numa
revolução autóctone.
A Europa deve retomar as suas bandeiras, aquelas do
verdadeiro humanismo, e encontrar o seu caminho.
El Viejo Topo 308/ Setembro 2013/ 14