Batuque momorável colorido
Transcrição
Batuque momorável colorido
Um Batuque Memorável No Samba Paulistano Carlos Antonio Moreira Gomes Concepção, Pesquisa e Entrevistas Carlos Antonio Moreira Gomes [email protected] Capa Luís Otávio Baron Revisão Celina de Castro Cíntia Moreira Gomes Thaís Queiroz Wanderley Moreira dos Santos Projeto Gráfico e Diagramação Carlos Antonio Moreira Gomes Cíntia Moreira Gomes Luís Otávio Baron Impressão e Acabamento Gráfica Crisan fone (11) 5511-0555 1a. Edição: Maio de 2010. todos os direitos reservados ao Centro Cultural São Paulo Rua Vergueiro, 1000 Paraíso/ São Paulo - SP CEP 01504-000 tel: (11) 3397-4044 2 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano Ia uê ererê aio gombê Com licença do curiandamba, Com licença do curiacuca, Com licença do sinhô moço, Com licença do dono de terá. (Canto 1, O Canto dos Escravos, Memória Eldorado) “A escrita é uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não o saber em si. O saber é uma luz que existe no homem. A herança de tudo aquilo que nossos ancestrais vieram a conhecer e que se encontra latente em tudo o que nos transmitiram, assim como o baobá já existe em potencial em sua semente.” (Tieno Bokar, In. A Tradição Viva, de A. Hampatê Ba. História Geral da África) “Hoje cada um de nós é como o ponto singular de um holograma que, em certa medida, contém todo o planetário que o contém.” (Edgar Morin) A cultura popular tem raízes na terra em que se vive, simboliza o homem e seu entorno, encarna a vontade de enfrentar o futuro sem romper com o lugar, e de ali obter com a continuidade, através da mudança. Seu quadro e seu limite são as relações profundas que se estabelecem entre o homem e o seu meio, mas seu alcance é o mundo. (Milton Santos, A Natureza do Espaço, pág. 327) Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 3 4 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano S U M Á R I O Dedicatória ........................................................................................ 07 Prefácio ............................................................................................. 09 Apresentação .................................................................................... 11 Introdução ......................................................................................... 13 Entrevistas ......................................................................................... 19 Sebastião Lemos ................................................................... 21 Zé Maria .............................................................................. 24 Marco Antonio ..................................................................... 38 Francisco Martins ................................................................. 45 Seu Miguel da Contemporânea ........................................... 47 Mestre Tadeu ....................................................................... 51 Toniquinho Batuqueiro ......................................................... 57 Dona Vera e Seu Arnaldo ..................................................... 65 Mestre Divino ....................................................................... 76 Valdir Cachoeira ................................................................... 85 Fernando Penteado .............................................................. 89 Manézinho ......................................................................... 102 Zulu .................................................................................... 111 Mercadoria ........................................................................ 125 Landão ............................................................................... 134 Mestre Gabi ....................................................................... 141 Seu Carlão .......................................................................... 148 Dona Romilda .................................................................... 156 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 5 S U M Á R I O Albertino ........................................................................... 167 Valdir Cachoeira ............................................................... 174 Toninho Casa Verde ........................................................ 180 Bernadete ......................................................................... 183 Homenagem .................................................................................. 186 Mário Preto ...................................................................... 188 Fontes de Pesquisa ....................................................................... 189 Desdobramentos Batuque Memorável ........................................ 192 Acervo Fotográfico ........................................................................ 196 Espaços do Samba ........................................................................ 207 Agradecimentos ............................................................................. 211 6 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano D E D I C A T Ó R I A Há alguns anos me aproximei desta instituição apenas para ensaiar em seu espaço junto ao grupo de pesquisa de teatro e samba Band’doido. Aos poucos fui conhecendo os projetos e sonhos das pessoas que idealizaram as atuações do Bloco do Beco na comunidade do Jardim Ibirapuera, que tem como principal articulador Luiz Claudio de Souza. Nesses quatro anos de proximidade, minha admiração e respeito só cresceram pela história destas pessoas e desta instituição que anualmente põe na rua um cortejo carnavalesco, desde sua fundação, transformando o cotidiano de tantas famílias, não só no Carnaval, mas durante todo o ano, servindo de ponte entre a comunidade e a expressão artística. É um trabalho insistente de produzir e realizar sonhos desses guerreiros do Bloco do Beco que generosamente investiram na publicação deste livro. E é a eles que dedico esta obra e também a tantos sambistas anônimos e tantos nomes merecedores de terem seus depoimentos registrados, por dedicarem suas vidas ao samba paulistano, dando exemplos de coragem e trazendo alegria ao nosso cotidiano. A vocês meu carinho e respeito! Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 7 8 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano P R E F Á C I O Quando se vê toda a alegria difusa na figura estereotipada do “malandro” sambista, ninguém sabe o sacrifício e as dificuldades que ele passa para realizar seu sonho no carnaval que a todos fascina. Ao buscarmos na fonte a sua história de vida, seja nos folguedos populares ou na escola de samba, na sua “verdade” vem também muita imaginação, mas o importante é o registro desta memória tão esquecida, perdida e ignorada pelos poderes públicos em nosso estado. É muito fácil o acesso as biografias de: Dorival Caymmi, Lupicínio Rodrigues ou Noel Rosa, mas de um paulista? Como Vassourinha (19231942), Henricão (1908-1985) ou Vadico (1910-1962) que completaria o centenário junto com Adoniran e Noel e nem sequer foi lembrado?... Por isso se faz necessário louvar a iniciativa laboriosa e de muito carinho deste jovem humilde da Periferia Sul de São Paulo, Carlos Antonio Moreira Gomes, que merece todo o nosso respeito e muito sucesso no seu projeto. Valeu, mano... Osvaldinho da Cuíca Primeiro Cidadão Samba Paulistano São Paulo, 28 de março de 2010. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 9 10 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano Resgatar histórias e músicas presentes na tradição oral da Velha Guarda do Samba de São Paulo. Foi esse o ponto de partida do projeto Um Batuque Memorável no Samba Paulistano, uma proposta que vai de encontro à vocação do Centro Cultural São Paulo para a pesquisa, concretizada em ações como o Prêmio Pesquisador 2008, e se insere no contexto do Eixo Curatorial de Música para 2010, denominado In/ Ex, que privilegia produções independentes. A P R E S E N T A Ç Ã O Durante seu desenvolvimento, o projeto tornou-se uma iniciativa mais ampla. Uma série de shows gratuitos foi realizada na Sala Adoniran Barbosa ao longo de 2009 e, graças ao envolvimento e ao empenho da equipe da Web Radio do Centro Cultural, foi produzido o documentário encartado no livro. Essa abrangência também só foi possível com a parceria firmada com a Associação Bloco do Beco, estendendo o projeto para a região de M’Boi Mirim, na Zona Sul, com diversas atividades, como rodas de samba, oficinas e mostra de filmes. A partir do objetivo inicial, que já se justificava pela escassez de registros sobre a trajetória do samba e sua relação com o carnaval na capital paulista, Carlos Gomes voltou-se aos protagonistas dessa história. No entanto, ao invés de tomá-los como fonte para formar uma narrativa linear, optou por dar voz a esses personagens, assumindo a fragmentação de seus depoimentos como elemento constitutivo dessa trajetória. O que há de mais contundente nas entrevistas que se seguem não é a exaltação pura e simples do samba de São Paulo, mas a capacidade de revelar, por meio de um fenômeno cultural brasileiro que mobiliza milhões de pessoas, o quão diversificado pode ser o samba e o carnaval, com sua riqueza de elementos musicais e visuais, muitas vezes esquecidos ou abafados. Nesse sentido, este livro/DVD tende a se desdobrar em outros projetos, servindo ainda de valiosa fonte para pesquisadores. Em outras palavras, Um Batuque Memorável no Samba Paulistano não fala só do samba e do carnaval de São Paulo, de certa maneira atenta também para a necessidade de olharmos nossa própria história. Curadoria de Música Centro Cultural São Paulo Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 11 12 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano O Começo Um dia chuvoso no Samba da Vela fez com que alguns músicos não comparecessem. O público também estava reduzido. Mesmo assim, a Casa de Cultura Santo Amaro, ali na Avenida João Dias, estava com uma boa lotação, algo em torno de sessenta pessoas, naquela tradicional roda de samba de compositores que se reuniam toda segunda-feira. Paqüera, um dos fundadores do movimento, improvisou uma noite diferenciada daquelas em que os compositores cantavam junto ao público acompanhado pelas cópias das letras, para uma noite de contação de histórias do samba. Ele lembrava sambas que nunca foram gravados e contava alguma história do compositor da música. Eram lembranças da infância e juventude junto aos sambistas antigos, alguns nem vivos, entre músicas que aprendeu da tradição oral. Aquilo foi um presente para poucos privilegiados que deixaram o conforto de casa numa noite chuvosa para um conforto e deleite coletivo que ainda não vivi igual. Houve ainda um fato que me chamou a atenção: toda a platéia estava encurvada, de olhos enfeitiçados prestando atenção a qualquer palavra e gesto de Paqüera. Uma noite registrada nas memórias daquelas sessenta pessoas. Então tive um desejo de registrar tudo que pudesse ser tão precioso no samba paulistano, como se uma ingenuidade tomasse conta de mim. Surgiu o edital Prêmio Pesquisador 2008 e inscrevi o projeto “Um Batuque Memorável no Samba Paulistano”. Bom, seria possível iniciar alguma coisa. A pesquisa foi realizada entre agosto de 2008 e agosto de 2009 e teve desdobramentos e proporções nada previstas. Tinha como primeiro objetivo resgatar histórias e músicas presentes na tradição oral da Velha Guarda do Samba. Porém, no decorrer do processo, os caminhos foram em outra direção e se concentraram nas histórias de vida e de samba das personalidades da velha guarda - interlocutores desta pesquisa. Ao refletir sobre uma das hipóteses levantadas no início deste projeto - de que os depoimentos poderiam acrescentar outras visões, versões, acontecimentos e problemáticas - percebeu-se, durante a pesquisa de campo, que havia em cada interlocutor um universo de diversidade em relação à história e à evolução do samba paulistano. Essa diversidade tem tais personalidades como Um Batuque Memorável no Samba Paulistano I N T R O D U Ç Ã O 13 I N T R O D U Ç Ã O testemunhas oculares de um mesmo fato, mas com perspectivas e percepções diversas, o que dá ao testemunho uma singularidade própria. Também não é pretensão contar a história do samba e sim a história destas pessoas no samba. Os fatos ocorridos e relatados por quem presenciou ou não, são como uma série de películas. Há uma seleção das imagens e cortes que são efetuados para compor um filme. Isto confere um movimento à memória viva que está em constante processo. Neste sentido, não se tem a pretensão de traçar aqui toda a verdade a respeito do samba paulistano e sim coletar informações, percepções, sensações experimentadas por aquelas e aqueles que fazem parte do samba na cidade de São Paulo. É essa multiplicidade que interessa neste trabalho. Por sua vez, a leitura deste material dará ao leitor a possibilidade de selecionar seus próprios quadros na montagem de outro filme. O leitor torna-se cúmplice deste trabalho ao criar sua própria interpretação dos depoimentos lidos: outra história será construída. Assim, este material é um elemento vivo feito de memórias ativadas. Ele permite trazer a imagem de uma colcha de retalhos, mosaicos de memórias: um misto de complementaridade, de contradição e de esclarecimento. São memórias vivas que tem o samba vivido como elemento principal. Os Entrevistados O livro é composto por 22 entrevistas tendo entre os entrevistados dois moradores do bairro das imediações da avenida Tiradentes e sambistas veteranos que construíram suas histórias junto ao carnaval paulistano, testemunhando a evolução que este tem passado desde meados dos anos 40. Em determinado momento, a história do samba paulistano se confundiu com a própria história do carnaval da cidade, o que fica explícito à medida que os depoimentos se concluem. A preparação para as entrevistas contou com estudos bibliográficos e audiovisuais a respeito do samba paulistano; da história de São Paulo; das visitas às rodas de samba; de conversas informais com sambistas. No que se refere às entrevistas, não houve de fato uma escolha dos entrevistados, visto que todos os encontros eram dig- 14 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano nos de registro. Entretanto, os critérios para a escolha do interlocutor foram: 1. A pessoa que dedicou mais de 25 anos de vida ao samba; 2. Prévia conversa antes da entrevista; 3. Disponibilidade de participação nesta pesquisa. I N T R O D U Ç Ã O Infelizmente, muitas pessoas ficaram de fora. Isto demonstra a necessidade de incentivar e de multiplicar trabalhos deste tipo em nome de uma história que não pode se perder. Outro fato que ao longo do processo chamou atenção foi o altíssimo número de entrevistados do sexo masculino. Não se trata de falha na pesquisa, mas de circunstância. A importância da mulher no samba não há de ser discutida em termos de quantidade de entrevistadas ou não, pois sua relevância é tão grande quanto a masculina. Ambos os gêneros protagonizaram os fatos que hoje compõem a história do samba na cidade de São Paulo. A Memória Durante as transcrições das entrevistas, acontecimentos que pareciam irrelevantes tornaram-se fundamentais para compreensão da narrativa. Foi na pesquisa de campo que eu pude compreender o sentido e a importância de se trabalhar com a memória, pois como afirma Walter Benjamin (1987): articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem (p. 222-232). A memória enquanto reconstrução, não só da história do samba, mas do imaginário em torno de uma época, nunca pode ser individualizada, pois está sempre em um contexto e em uma relação do coletivo. Portanto, a memória individual é sempre social. Perceber isto por meio do samba não é uma tarefa das mais difíceis, já que tal maniUm Batuque Memorável no Samba Paulistano 15 I N T R O D U Ç Ã O 16 festação se dá necessariamente no coletivo. Quando dona Romilda, uma das interlocutoras desta pesquisa, narra suas primeiras lembranças com o samba, ela se recorda da umbigada realizada na Casa Verde, que contava com a participação da sua mãe, de outras mulheres vindas do interior e de outras pessoas que a cada ano ficavam sabendo do evento realizado no final da década de 30. Segundo a entrevistada, esse evento deve ter acontecido durante uns quatro anos. A leitura desta entrevista pode nos incitar o uso da imaginação acerca da dança, das mulheres, de como era o bairro, enfim, das diferentes relações e valores da época. Neste sentido, as entrevistas formam um mosaico de depoimentos, reflexões e fatos que possibilitaram criar uma leitura temporal e espacial da história do samba na capital paulista. O leitor torna-se-á um criador a partir das relações que fará no decorrer da leitura. Registrar depoimentos e histórias pessoais, narrativa restrita ao núcleo que a viveu e nem sempre presente na história oficial, pode acrescentar e abrir novos horizontes, revendo um lado pouco conhecido ou desconhecido da história em análise. Assim, estas transcrições não pretendem ser uma leitura sobre a história do samba paulistano, mas um elo de comunicação entre o próprio sambista e o leitor. Por isso, o texto apresentado não é uma interpretação do pensamento e vida dos entrevistados, mas o próprio depoimento deles. A interpretação estará a cargo do leitor, tornado cúmplice do trabalho. Todas as entrevistas aqui contidas são transcrições rigorosamente aprovadas e assinadas pelos interlocutores que leram, corrigiram e por vezes, sem perder a fidelidade e lealdade ao depoimento gravado, complementaram com o objetivo de tornar o universo tratado mais próximo do leitor. Quanto a ordem das entrevistas, apresentam-se conforme a data em que foram realizadas. A seguir está o resultado de visitas e meses de pesquisa que geraram registros em áudio, fotos e vídeos. Com intuito de enriquecer a compreensão e complementar as imagens criadas, além deste livro e DVD, foi disponibilizado para o Acervo de Multimeios do Centro Cultural São Paulo estes outros registros que em seus conteúdos apresentam momentos como ensaios de escolas de samba, festas, encontros, shows, gravações de CDs e rodas, embora não tenham sido feitos por Um Batuque Memorável no Samba Paulistano profissionais, na maioria das vezes quem capitou imagens foi o próprio pesquisador, têm alta riqueza de conteúdo, razão pela qual foram disponibilizadas, podendo ser encontradas com o mesmo título desta pesquisa. I N T R O D U Ç Ã O Os Desdobramentos Documentário que acompanha o livro A partir do contato com os sambistas surgiu a possibilidade de criar um material áudio visual proposto pela equipe da Web Radio TV do Centro Cultural São Paulo, coordenada por Márcio Yonamine. O resultado foi o DVD que acompanha este livro. É um documentário com entrevistas e imagens de sambistas que se apresentaram nos meses de maio, novembro e dezembro de 2009, com depoimentos e imagens dos shows, marcando um segundo momento da pesquisa. Houve uma parceria entre Centro Cultural São Paulo e a Associação Bloco do Beco, ao realizarem uma sequência de shows na sala Adoniran Barbosa e no bairro sede da instituição parceira, o Jardim Ibirapuera. Esta parceria possibilitou parte dos recursos para a publicação deste livro e DVD. Hot site Batuque Memorável Foi criado também um hot site que registrou passo a passo toda a pesquisa, onde também é possível baixar o livro e o DVD, podendo ser acessada pelo endereço eletrônico: http://www.centrocultural.sp.gov.br/batuque/ Este trabalho expressa um desejo de que as particularidades presentes na memória das pessoas, que são os sustentáculos do samba paulistano, permaneçam vivas da mesma forma que a musicalidade se encontra ainda hoje nas rodas de samba e no carnaval. Boa leitura! Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 17 18 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano SEBASTIÃO LEMOS jozé maria MARCO ANTONIO francisco martins SEU MIGUEL DA CONTEMPORâNEA mestre tadeu SEU TONIQUINHO BATUQUEIRO seu arnaldo guedes DONA VERA GUEDES mestre divino VALDIR CACHOEIRA fernando penteado SEU MANÉZINHO zulu SEU MERCADORIA landão MESTRE GABI seu carlão DONA ROMILDA seu albertino VALDIR CACHOEIRA toninho casa verde BERNADETE MáRIO PRETO entrevistas 20 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano SEBASTIÃO LEMOS Sr. Sebastião Lemos, nasceu no dia 13 de maio de 1951, em Queluz – SP, antigo morador do Bom Retiro e zelador da Igreja de São Galvão, na Av. Tiradentes. Entrevista realizada no dia 24 de setembro de 2008. CARLOS: O senhor mora aqui há muito tempo? Acompanhou os desfiles de carnavais que aconteceram aqui na Avenida Tiradentes? SENHOR TIÃO: Bom, eu moro aqui no bairro há 40 anos. Acompanhei um bom momento do carnaval. Foram bons momentos e ruins também. CARLOS: Conta um pouquinho destes momentos. SENHOR TIÃO: Tinha muito assalto, muitas brigas, desavenças, enfim, assassinatos. Teve um ano que assassinaram quatro pessoas numa noite só. A maior parte foram momentos bons. E um momento bom que o público admirava era quando entrava a escola de samba. Tinha muita escola de samba boa: momento de alegria. CARLOS: E todo ano o senhor vinha assistir? SENHOR TIÃO: Eu moro aqui há 40 anos e não tinha como não assistir. Eu moro nessa próxima rua, descendo à direita. Eu me criei praticamente aqui no bairro. CARLOS: O senhor veio de onde? SENHOR TIÃO: Eu sou do Vale do Paraíba, divisa do Rio de Janeiro com São Paulo, Queluz. É um lugar bastante pequeno, distante, pouca gente ouviu falar dessa cidade. CARLOS: E o senhor chegou a desfilar? SENHOR TIÃO: Não. Nunca, eu só assistia. Eu só desfilei quando estava no exército, desfile de 7 Setembro quando ainda era aqui. O último ano foi em 1972 . CARLOS: Tinha alguma escola pela qual o senhor torcia mais? Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 21 S E B A S T I Ã O L E M O S 22 SENHOR TIÃO: Gaviões da Fiel. Sou corinthiano. CARLOS: Conta de algum desfile que o senhor viu e marcou. SENHOR TIÃO: Eu acredito que foi um dos desfiles da escola de samba da Vai-Vai, aquela moça que apareceu nua, não sei se foi na Vai-Vai, mas acho que foi. Não só eu, mas a avenida todinha. Foi a primeira vez que apareceu uma mulher nua num desfile. Depois tornou-se normal. CARLOS: Aquilo chocou? SENHOR TIÃO: Todo mundo no bairro, não fui só eu, todo mundo que estava na arquibancada. Foi bonito inclusive porque nunca tinha visto aquilo, nunca tinha sido mostrado. CARLOS: O senhor lembra que ano foi isso? SENHOR TIÃO: Não lembro se foi em 86 ou 88. CARLOS: O senhor lembra como eram os preparativos, antes de começar os desfiles? SENHOR TIÃO: Os preparativos ficavam naquela parte (da avenida), embaixo, e terminava lá em cima, subindo a Rua São Caetano, como se fosse hoje lá no sambódromo. Era a mesma coisa, só que era fechada. A avenida era totalmente fechada com a arquibancada. CARLOS: Lembra alguma história que o senhor presenciou? O senhor disse que tinha bastante assalto, tinha briga, teve alguma que o senhor presenciou? SENHOR TIÃO: O que mais me marcou foi uma briga que teve da torcida organizada de Santos, da escola de Santos, que vinha desfilar aqui. CARLOS: X-9 ou outra escola? SENHOR TIÃO: Não lembro. Alguns componentes brigaram na preparação. Bastante gente viu e foi um corre-corre total. Não sei se era a X-9, brigaram bastante, tanto que depois não vieram mais desfilar aqui. Eu só vinha para cá porque gostava de apreciar. Participar do carnaval eu não gosto, gosto de ver, mas participar não. Foi um momento bom. CARLOS: O senhor já foi ao sambódromo? SENHOR TIÃO: Nunca fui. Já passei na porta, na Marginal, mas nunca fui. CARLOS: O senhor acha que o carnaval indo para lá ficou mais difícil de ver? SENHOR TIÃO: Ficou mais difícil, por ser uma zona mais dispersiva, Um Batuque Memorável no Samba Paulistano mais afastada, enfim. CARLOS: E roda de samba o senhor ia muito? Como era? SENHOR TIÃO: Nunca fui. Não gosto. Quando eu era solteiro eu gostava muito dos bailes da 24 de Maio, no Paulistano da Glória, mas só para assistir, nunca para dançar. Eu ia porque era solteiro, ia fazer o quê? Eu não gosto muito de aglomeração. Gosto de ficar com os amigos, beber uma cerveja, jogar bola. Joguei bola na Maria Zélia, no Brás. Acabava de jogar, ia para casa, não ficava naquela rodinha. CARLOS: O senhor viu aqui crescer? SENHOR TIÃO: Sim, vim para aqui garotinho. CARLOS: Agradeço muito pela conversa. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano S E B A S T I Ã O L E M O S 23 ZÉ MARIA Senhor José Maria Dias nasceu no dia 21 de junho de 1947, em Jacutinga – MG. É Assistente de Gestão Pública. Entrevista realizada no dia 29 de setembro de 2008. CARLOS: Conte um pouquinho da sua história no samba. ZÉ MARIA: Comecei no samba ainda moleque. Com 17 anos saí na minha primeira escola, a Unidos do Peruche. Saía na bateria porque eu tinha facilidade de pegar a música rapidamente. Na época não havia divulgação do samba do Rio, e em São Paulo menos ainda. Antes de começar o ensaio ou no intervalo eu começava a cantar meus sambas estranhos. Quando o pessoal me perguntava que samba era aquele eu respondia que era do Rio. Eu tinha um radinho velho e quando dava umas dez da noite ele chiava. Não sei de que maneira que eu descobri, mas conseguia sintonizar as eliminatórias dos sambas do Rio de Janeiro. Então, eu aprendia o samba, até o que não ganhava eu aprendi a cantar, e era daí que eu subia para a quadra e começava a tocar meus sons e cantar os sambas da Portela, do Salgueiro. Depois começava o ensaio e eu ia para a bateria. Um dia o cantor oficial da Peruche, Antonio Rosa, se desentendeu com a diretoria, naquela época já estávamos no Morro do Chapéu. A escola não tinha mais cantor, então o Carlão, que era Presidente, me chamou para ocupar esse lugar. Eu estava no meio da bateria e por essa eu não esperava. Chamaram-me no palanque e quando eu subi fui anunciado como o mais novo intérprete. Naquela hora eu quis sair correndo dali. CARLOS: Ninguém tinha falado com você? ZÉ MARIA: Não, foi sem anestesia! Não teve jeito, então peguei o microfone pela primeira vez na minha vida e saí cantando, sei lá de que maneira, mas na época não tinha aquela coisa de cavaquinho, violão e 24 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano Z É M aquele aparato todo. E assim eu comecei. Foi com o samba de Geraldo Filme, chamado Tradições e Festas de Pirapora. CARLOS: Que estreia! ZÉ MARIA: Fui para a avenida com este samba que cantei. Depois deste vieram outros e mais outros, depois vieram os primeiros festivais de samba de quadra e eu tinha mania de moleque, de mudar a música já gravada ou música de sucesso. Eu trocava a letra para mexer com alguém, só para sacanear, sem saber que isso também fazia parte da criatividade, um dom. Bem, isso passou e não percebi, mais tarde eu me meti a besta e fiz um samba. Foi o primeiro festival de samba de quadra de São Paulo. Eu achava que havia feito alguma coisa e mostrei para o jornalista Julio César, do Jornal Notícias Populares, que antigamente tinha uma coluna de samba e era meu vizinho. Ele gostou tanto que disse que ia levar para o Festival, mesmo sem eu querer. Resumindo a coisa, ele tomou a folha de mim e fez minha inscrição. Na época tinha o B Lobo, o Pinherão e outros compositores, grupos que na época tinham nome, não tenho certeza se era Sambrasa. Em meio as feras, quando falava que o Zé Maria havia feito o samba, era só gargalhada. Tinha também o Carlão. CARLOS: O Carlão do Peruche? ZÉ MARIA: Sim, o Carlão do Peruche, que era presidente. Ele fez um negócio que para a época era inédito. O corpo de jurados era formado por pianistas e maestros. Os candidatos estavam cantando, até que chegou minha vez. Fui lá tremendo, abri a boca, fiz a minha e ganhei. Primeiro samba, primeira vitória. Era Tristeza de Sambista. Nem eu e nem o pessoal que perdeu acreditou, acharam um desaforo por ser meu primeiro samba. Então, tomei gosto pela coisa e fui escrevendo. CARLOS: E isso foi em que ano? ZÉ MARIA: Não sei, agora você me pegou. Acho que em 79, por aí! CARLOS: Mas você já tinha o nome como puxador, não é? ZÉ MARIA: Mais ou menos, estava no início da coisa. CARLOS: Os desfiles já eram na São João? ZÉ MARIA: Sim. Eu cantei embaixo do Viaduto do Chá e não era microfone assim com fio, era num tripé, parado, e a escola passando na sua frente. Aquelas cornetinhas, som mesmo, o som era tremendo - e ai de quem atravessasse! Comecei novo! Era assim o desfile: descia Um Batuque Memorável no Samba Paulistano A R I A 25 Z É M A R I A 26 a São João e terminava na Praça da Bandeira, ali era a apoteose. O Carlão montou um grupo de samba, eu acho que foi a primeira ala show. Não existia isso em escola nenhuma. A primeira ala show foi da Peruche. Eram 15 ritmistas e isso foi até manchete de jornal. Não me recordo em que época foi, mas lembro que foi no Anhangabaú e fomos como convidados. Eram três cabrochas e uma delas viria a ser minha esposa, com quem tenho dois filhos. Arrebentamos o Anhangabaú, foi uma batucada, mas só os “bambambans” iam. Tenho quase certeza de que foi a primeira ala show aqui em São Paulo. CARLOS: E por quanto tempo esta ala show existiu? ZÉ MARIA: Teve bastante show. Com esse grupo começamos a ensinar alguns alunos da Faculdade Largo São Francisco. CARLOS: De Direito? ZÉ MARIA: Isso. Ensinamos a tocar tamborim, surdo, ensinamos as meninas a sambar, e tinha o Carlão, o Chita (já falecido) e o Moacir, que hoje toca um senhor bandolim, antes ele tocava só tamborim, hoje o velho toca até banjo. Nós íamos dar aula na faculdade, mas nessa época os estudantes não tinham acesso às escolas. Havia o acesso, mas fazer parte da escola de samba era meio pejorativo. O pessoal achava que só tinha malandro e vagabundo, o que não era verdade. Então, era assim que funcionava, tinha aquele preconceito e essa era a visão que se tinha do samba. Ainda bem que mudou e nós temos é que agradecer aos estudantes. Eles que começaram a levar para a sociedade e para a elite que a escola de samba não era só malandragem. Eu acredito que naquela época a coisa era mais pura. Hoje o samba está comercializado. Algumas escolas estão perdendo a essência. Na minha visão são pessoas bem intencionadas, formadas e tudo mais, mas às vezes a assessoria não é boa, ou aquele que toma a frente, numa questão de... Como que eu posso colocar? Tem um termo certinho que agora não me vem à mente, mas vamos colocar no popular: “Acabam se achando”. Mesmo não tendo conhecimento de causa, não quer ser questionado. CARLOS: É bom ouvir vocês contando sobre um carnaval que eu e minha geração só conhece por fotos, relatos. Conta um pouco das tradições e do que você acha que está se perdendo. ZÉ MARIA: Vamos começar pela fantasia. Tudo bem, hoje houve essa Um Batuque Memorável no Samba Paulistano Z É M evolução, as roupas estão um pouco mais caras, mas eu penso assim: aquelas pessoas que a diretoria de uma escola tem o conhecimento de que ajudaram a fazer aquilo, vieram lá debaixo, tomaram pancada de polícia, deveriam que ter um respeito maior. Independente daquele que parou no tempo, que não adquiriu uma cultura até dentro do próprio samba mesmo, tem que ser respeitado. Não vou citar nomes, mas tem gente de escola que chegou a dizer que seria bom se o pessoal da velha guarda sumisse para não deixar má influência para os novatos. É o pessoal do meio, sabe de onde saiu essa pérola? Já tem consciência disso? CARLOS: A frase é tão forte quanto à de São Paulo ser o “túmulo do samba”. ZÉ MARIA: Exatamente, ele não só soltou essa pérola como também agiu de acordo com o que ele falou. Fez com que as pessoas se afastassem, se sentissem humilhadas, como cheguei a ver nessa escola. Para dizer a verdade, já vi pessoas da história da escola que não foram embora, mas se sujeitaram a ficar passando pano no chão, carregando uma caixa de cerveja nas costas, arrumando a mesa. Aquilo me irritava. Pessoas que podem não saber colocar o português direitinho e tal, mas têm conhecimento sim, mas que eram podadas ao expor suas ideias. Infelizmente. Tem esse lado, por exemplo, a escolha de samba-enredo, tinha escola, a Peruche era uma delas, que não tinha disputa. E outras escolas também, o mais velho era o compositor que fazia o samba que ia para a avenida, como o Paulistinha da Nenê. Na Peruche era o B Lobo e o Geraldo Filme, todo ano faziam samba. Não havia disputa porque não precisava. Depois, quando as coisas começaram a mudar, como aconteceu comigo, fiz um samba de quadra e me arrisquei a fazer um samba-enredo, e a coisa se tornou mais ousada, cresceu até chegar na disputa. Só que hoje, o critério do samba-enredo é estranho. É aquilo, de repente o cara consegue levar dois ônibus para uma quadra e muitas vezes o samba dele é o escolhido. Eu acho que isso é a melhor torcida e não o melhor samba. Muitas vezes a música não funciona na avenida. A gente tem uma visão mais ou menos de como se desenvolve o samba-enredo, com sinopse, uma linha para seguir e os sambas que ganham normalmente. Agora, para quem acompanha, poxa, ganhou o samba daquele jeito porque era o melhor. Quando Um Batuque Memorável no Samba Paulistano A R I A 27 Z É M A R I A 28 vai para o disco e você pega aquela letra que foi cantada na quadra e vai acompanhar vê que está tudo mudado. Não era o melhor samba? Se mudasse uma vírgula, uma frase, tudo bem, mas você vê samba que está totalmente descaracterizado daquilo que foi apresentado. É aquela coisa que eu não sei explicar. É algo que acontece direto. Isso já aborrece a comunidade. Eu já presenciei uma escola que ia sair com 3.000 componentes, aliás, 4.200. A escola saiu suando com 2.000, porque não deu samba que a comunidade queria. CARLOS: Que forte essa comunidade! Não é qualquer uma que ...! ZÉ MARIA: Não é não. E você ouvia os comentários “Não vou sair, minha família não vai, que palhaçada!”. E continua acontecendo isso. A gente percebe que é folia, e é a folia quem está ganhando. Quem perde é o carnaval de São Paulo. CARLOS: Você se lembra da primeira roda de samba que participou? ZÉ MARIA: Lembro-me da primeira que eu fui, mas não como componente de samba. CARLOS: A primeira roda de samba da sua vida. ZÉ MARIA: A primeira roda de samba da minha vida foi na Praça da Sé, eu me lembro. As escolas na época que saiam com uns 800 componentes, era uma escola grande. Para a época era muita gente. Fiquei bem em frente da Catedral. Era o período da repressão e os militares com aquela sede de pegar os desavisados, pegaram um monte. Eu me lembro de ter ficado até um pouco assustado com a truculência, mas era a época. Deu uma vontade de participar, eu não queria ficar de fora, não queria ficar nas cordas, queria cair para dentro. Na época eu estudava em um colégio na Casa Verde, não que eu pudesse pagar, quem pagava eram os meus patrões, pois eu não tinha condições. Quando falei que ia para a escola de samba, fui muito criticado, até na rua onde eu morava, no bairro do Peruche. Na época eu tocava em fanfarra no colégio. E era conhecido como “Zé Maria da Fanfarra”. CARLOS: O que você tocava? ZÉ MARIA: Percussão e sopro. Fui promovido no colégio para auxiliar de instrutor. Virei o “neguinho pó de arroz”, era o neguinho que falava difícil. Andava bem arrumadinho, era um neguinho doce. Lá vou eu para a escola de samba, que era o boom da época, o Peruchão, que continua sendo e vai ser daí para melhor. Aí desci no Peruche. Eu Um Batuque Memorável no Samba Paulistano Z É M fui muito macho, pois era um tal de neguinho apontar, dar risada. E fui todo preparado para falar o que eu queria tocar. Fui para a fila e quando chegou a minha vez, o Gilberto Bonga, o diretor da bateria da época, perguntou o que eu tocava. Ele era negrão peso pesado, CMTC1, bem humorado, sociável ao extremo. Ele me olhou e respondi que ia tocar “quicaquicaquica”2 (risos). Fiz minha inscrição, coloquei minha fotografia. Nem acreditava onde eu tinha ido parar, mesmo assim fui. CARLOS: E tinha testes? ZÉ MARIA: Que nada! Jogaram-me no meio dos leões. Disfarçando para arrumar o instrumento, deixei o pessoal sair tocando enquanto tentava ver algum instrumento parecido com o meu para tocar igual. Na hora peguei a batida e fui, e modéstia parte, fiquei um bom ritmista. CARLOS: Tinha um bom ouvido! ZÉ MARIA: E a bronca de perseguição pelo fato de ser moleque. Existia um folclore que todo baterista de escola de samba tinha que ser negão. Negão não tocava tamborim, tinha que tocar coisa pesada. E eu cheguei ao meio termo. Se fosse moleque tinha que sair de passista, bateria não, esta era para nego velho. Só tinha três moleques na bateria: eu, Chiquinho, que tocou com Benito de Paula, era filho de uma figura folclórica do Peruche, o Catimbau, e um menino que se chamava Antonio Carlos. Eu nunca mais vi esse rapaz. A gente era perseguido 25 horas por dia. CARLOS: E a perseguição fora da escola como é que era? ZÉ MARIA: A época era do tipo que não podia fazer batucada numa esquina. CARLOS: Na década de 60? ZÉ MARIA: Não, não podia. A polícia vinha e arrebentava mesmo. Tanto é que o Peruche teve problemas sérios na época da repressão. Eu mesmo saí na Folha da Tarde como falecido. Eu fui baleado pela polícia e saiu na Folha da Tarde como manchete, foi uma semana de manchete de jornal. Na verdade eles invadiram a quadra da Peruche. Foram duas rodadas. Hoje eu conto isso e acho até graça. Na ocasião, tinha um rapazinho contando, como se ele tivesse participado, então, eu fiquei encostado ouvindo os 15 minutos de fama dele. Eu não falei nada, é A R I A 1 CMTC - Companhia Municipal de Transportes Coletivos, usado com gíria para descrever homenzarrões. 2 Não conseguiu dizer o nome do instrumento, mas era tamborim. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 29 Z É M A R I A 30 claro. Deixei o rapaz contar que foi assim e assado. Com certeza ele não tinha nem nascido, aconteceu em 70, e eu só dando risada, juntou plateia em volta do cara... Foi assim: cheguei ao Morro do Chapéu por volta de umas quatro horas e estava tendo uma festa muito grande no Ginásio do Ibirapuera, era a Noite dos Mestres-Sala, uma festa muito bonita. Eu estava meio brigado com a Peruche por causa de uma gravação. Contei para São Paulo inteira que eu iria aparecer na televisão. Ensaiei com os Originais do Samba e em cima da hora me tiraram da parada. Foi um negócio que ficou engasgado. Eu ainda estava meio afastado e não fui nessa festa. Eu tinha uma namoradinha no morro. Fui para a casa dela, depois cismei de ir para a quadra. Estava o Moacir, que toca bandolim, no barzinho. Comecei a conversar com ele: “Vamos fazer um samba.” Ele pegou um instrumento, um tamborim, e eu fiquei cantando. Então, apareceram uns três garotinhos, com no máximo 13 ou 14 anos de idade, pediram instrumento e também tocaram. Havia um microfone ligado: “Vamos subir no palanque, tá tudo ligado”. Acho que nós tínhamos cantado metade do samba. Daqui a pouco ouvi um barulho de carro, eram muitos carros, todas as viaturas da PM. Entraram chutando a porta da quadra e só estava eu, o Moacyr e esses três garotinhos. Já entraram atirando para tudo que era canto, metralhando as cornetinhas do som. O primeiro tiro que foi dado pegou perto do meu rosto, voou até madeira. A molecada correu cada um para um lado, eu não sabia o que fazer, tive que ficar parado. Um tenente pediu para que eu descesse do palanque e corresse, só que quando ele falou isso eu já estava subindo a escada, aí terminei de subir. Ele metralhou o aparelho de som e falou para eu descer e sair correndo. Eu sabia que se eu saísse correndo não daria certo. Com muito medo eu pensei: “Vou sair, mas correr eu não vou”. Fizeram um corredor polonês. Um dos PMs se aproximou com o cacetete na mão e um revólver na outra. Tentou acertar meu rosto com o cacetete por duas vezes, errou e ainda se desequilibrou causando riso nos colegas. Isto o irritou profundamente. Ele então deu ordem para sair andando e atirou na minha perna. “Joga esse neguinho no camburão” - disseram. Eu fui saindo de fininho enquanto eles arrombaram a sala de instrumentos e metralharam tudo, jogaram bomba na geladeira. O Moacyr já era da Polícia Civil na época, mas era só motorista. Hoje o Um Batuque Memorável no Samba Paulistano Z É M motorista é policial, na época ele era só piloto. Ele se identificou para o policial, o mandaram sair. Metralharam tudo. Não ficou nada inteiro! Eu já estava com a perna furada saindo, mas o PM que me deu o tiro falou: “Joga ele num camburão aí”. Eu resisti, e mesmo com a arma apontada para mim disse: “Já tomei um tiro mesmo, se eu entrar aí vocês irão me levar para um canto qualquer e...” Se eu tivesse entrado, eu não estaria aqui falando. Fui andando sem olhar para trás. Na hora, uma distância de 25 metros parecia 25 quilômetros, pois eu andava e andava e não chegava à esquina. Naquele trecho do morro você não via nem passarinho na rua. Fui para casa da minha namorada, que chorou quando viu a minha perna cheia de sangue. Na quadra, o couro comeu. O que tinha para estragar eles atiraram mesmo. Passaram uns minutos lá e saíram que nem uns doidos nas viaturas. Só então o povo veio. Eu não me recordo se foi o Moacyr que veio me socorrer querendo me levar para o hospital. “Nada de pronto-socorro, cheio de polícia lá e eu com a minha perna baleada, eu quero ir lá para o Ibirapuera”, disse. Trouxeram-me para o ginásio, estupidamente cheio, cheguei com minha perna furada. Na portaria estava cheio de PM e eu sem convite fui entrando “Cadê o convite?” “Que convite, olha a situação da minha perna.” Eles não entendiam nada e eu fui entrando até chegar no palanque oficial. Estava o Prefeito e não sei quem lá. Pedi para chamar o Carlão, ele veio: “O que é isso, rapaz?” “Os PMs entraram na quadra e acabaram com tudo, atiraram em mim, atiraram nos meninos também.” Um dos meninos parece que... CARLOS: Morreu? ZÉ MARIA: Parece. Isso eu não posso afirmar, dizem que sim. O Carlão foi ao microfone: “Gente, eu tenho um rapaz baleado, então se tem uma autoridade, por favor, tome conhecimento do que está acontecendo...”. Acabei com a festa do Ibirapuera, mas eu não pensei que estava causando um mal maior. Todo mundo para quadra, um monte de gente, jornalistas, curiosos, enfim, lotou a quadra para ver o estrago. Voltaram em dobro e aí foi triste. Até então, quando era eu, os três moleques e o Moacyr, deram uma aliviada. Cercaram o quarteirão inteiro. Tiro, bomba, mas a época era deles, não é? Essa segunda rodada na quadra foi dura. Tem gente com sequelas até hoje, por exemplo, um que perdeu a vista. Foi terrível. Invadiram e eu Um Batuque Memorável no Samba Paulistano A R I A 31 Z É M A R I A 32 ainda baleado. E essa minha menina estava grávida. Então, eu escutei um grito: “Eles estão voltando!” Mas ninguém imaginou que fossem os policiais. Chegaram jogando bomba em cima do que restou do cercado. Eu tentando pegar a mão dela e ela grávida, aquele tanto de gente, ela escapou da minha mão. Muita fumaça, era bomba de efeito moral, e naquele bolo de gente, para mim ela tinha corrido para dentro da sala dos instrumentos. Eu consegui chegar lá, entrei e foi a pior coisa que eu fiz. Graças a Deus ela não estava lá. Ela tinha conseguido sair pela cerca de arame numa brechinha. Eu estive no quartinho dos instrumentos, outra tortura. Deitado no chão com balas rasgando as paredes, bombas no telhado. Aquela gritaria, neguinho desmaiando e começaram a gritar que era para sair todo mundo. “Eu já tô ferrado mesmo eu não vou sair não.” Falaram: “Vamos sair! Vamos sair!” Eu estava perto da porta! Nisso, saiu um tal de Celsão, que era também da bateria do Peruche. Tomou um tiro no olho e caiu na minha frente. Quando eu vi o rosto dele ensanguentado, pensei que ele já estava morto. Um dos PMs com revólver na mão, metendo a borracha em mim. Fiquei muitos anos com as marcas. Não sei o que houve no meio da quadra que chamou a atenção dos policias que estavam ali na sala para arrebentar e eu consegui sair pelo canto da parede e pulei o muro. Sabe essas casas que tem até hoje, rua de cima e rua de baixo, eu pulei para rua de baixo. Aquela fumaceira e aquele desespero, nem vi a altura. O que me salvou foi o varal, machuquei só a parte do braço. Era o depósito do empório que tinha lá. Bati na porta e ninguém abria, meti a mão na porta e entrei. Era um depósito de garrafas. Eles invadiram casas, não era só na quadra não. Foi um negócio terrível! Eu fui empilhando as caixas na porta, não tinha como neguinho entrar, só derrubando a parede. Sentei e fiquei ouvindo: tiro, gritaria, sirene, terror, bomba, tiro e pneus cantando. Fiquei ali até sossegar tudo. Interessante que tinha hora que parava e daqui a pouco barulho de viatura de novo, sirene e tiro outra vez. Isso foi até clarear o dia. 1970. Ouvi uma conversa: “Fulano está machucado, e agora?” “Eles já foram embora mesmo?”, perguntei. Tirei as caixas da porta e saí. CARLOS: Quem era o prefeito na época? ZÉ MARIA: Boa pergunta, eu sei que o secretario municipal de segurança, era o Fleury, ele foi à quadra pessoalmente. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano Z É M CARLOS: Fazer o que? Foi atirar? ZÉ MARIA: Investigar. Falou que ia fazer e acontecer. Depois sofreu um acidente. CARLOS: Ele? ZÉ MARIA: Morreu. Foi nessa época mesmo. Estava perto do carnaval e as escolas se uniram para arrumar instrumentos para gente. Instrumentos dos mais coloridos. CARLOS: Bonito as escolas se unirem. ZÉ MARIA: Muito bonito. São coisas que não tem como esquecer. Mas foram meses de terror, sem nem sair de casa. Uma vez eu fui colocar a lata de lixo na calçada e tinha uma viatura. O policial de lá de dentro gritou: “Você está morto, neguinho!” Tentou me agarrar e eu corri pra dentro de casa. Ainda bem que não invadiram minha casa. Não dormi. Fiquei um bom tempo abalado. Quando atiraram em mim, nem fui ao pronto-socorro, fui numa farmácia de um conhecido nosso. Ainda bem que não pegou o osso, mas passou, pegou de um lado e saiu de outro. Foi isso, foi terror, sei lá. Com tudo, apesar dos pesares, o samba era uma coisa tão família. No carnaval, antes de chegar meia noite, a gente punha a fantasia e andava pelo bairro. O pessoal andando e todo mundo: “Ai que bonito!”. Era diferente. CARLOS: Era para mostrar a fantasia? ZÉ MARIA: Era muito legal, muito legal! Hoje não. Eu penso que existia mais união. Não se tinha esses recursos. O povo era mais unido, mais família, mais a vila. Hoje não se tem mais bandeira. As pessoas saem em dez escolas ao mesmo tempo, não se desfila em nenhuma, e ainda bate no peito. O que eles chamam de quilombo ainda tem na Nenê e no Peruche. É a minha escola agora, voltei para casa. Quem me aguentou lá, vai ter que me aturar até não sei quando. CARLOS: E você puxa lá? ZÉ MARIA: Não, só sou compositor. CARLOS: Queria te pedir pra cantar “Tristeza de sambista”. ZÉ MARIA: É o primeiro samba, então não tenho vergonha nenhuma, até me orgulho. Falava assim: A R I A “Nos dias de hoje não existe mais sentimento/ Se conto os meus problemas/ uns choram comigo e outros riem por dentro/ Essa é Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 33 Z É M A R I A a minha tristeza/ vai até sexta-feira chegar/ Ai na calada da noite vou ao Peruche me desabafar/ Canto sambas-enredo e partido alto para variar/ O dia já vem chegando é hora de me mandar/ O dia já vem chegando é hora de me mandar/ O dia já vem chegando é hora de me mandar/ Bom dia minha amiga Tereza esquente uma água pra eu me lavar/ Trabalhei a noite inteira só quero comer e depois me deitar”. Mentiroso, vai para farra diz que trabalhou a noite inteira. Foi meu primeiro samba. CARLOS: Qual lembrança no samba que te marcou muito? ZÉ MARIA: Uma vez fiquei muito aborrecido com o Geraldo Filme. É um samba que está história do samba de São Paulo: “Tradições e Festas de Pirapora” e eu fui o intérprete ofical. Eu estava na Bela Vista, pois o pessoal da Vai-Vai tem qualidade mesmo. É verdade, quando eles cismam de juntar os músicos e fazer aquela apresentação de sambas inéditos, revelando compositores, cantores, como tem toda terça-feira na Vai-Vai, fica um negócio muito bonito, de qualidade mesmo. Na época, já tinha esse encontro dos compositores. Eu ia para lá ouvir coisa boa, cantar uma coisa minha inédita, pois sempre fui muito bem tratado por lá. Quando eu cheguei tinha uma roda de jornalistas entrevistando o Geraldo Filme. Eram muitas perguntas e ele veio falar deste samba que ficou na história. Perguntaram para ele quem tinha sido o intérprete. Ele ficou pensantivo e falou um nome que não era o meu. Então pedi licença e lembrei que tinha sido eu. Ele era um pouco orgulhoso, não gostava de dividir holofotes e falou: “Me desculpa, a gente fica assim, muita coisa na cabeça, me perdoe”. Fui obrigado a ir lá e falar porque realmente tive a felicidade de ter cantado esse samba que ficou na história. Outro também, que é “Chamado aos Heróis da Independência”. Chegou dar problema por causa da repressão. O que marcou para mim foi o trabalho com estes dois sambas. O que deu um brilho foi um samba que eu gravei para Barroca (Zona Sul), que a Globo abraçou. Foi então que eu fiquei mais conhecido até, porque eles colocavam só em horário nobre. Entrava na hora do almoço, na novela das sete, das oito. Põe Nenê, põe não sei quem, daqui a pouco o Zé Maria. Houve até um elogio do Kubrusly dizendo que esse samba foi feito para mim. 34 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano Z É M Muitos acham que eu fui também um saltimbanco de escola de samba, não é bem assim. Foi por contrato. As escolas que eu migrei foram o Peruche e Camisa Verde. Três anos com a Barroca, depois fui para o Japão em 71, Império do Cambuci, Paulistano da Gloria, enfim muitas escolas, mas contrato. A única escola que eu migrei foi o Camisa Verde, o resto foi trabalho. CARLOS: Você foi para o Japão fazer samba? ZÉ MARIA: Fazer show. Seis meses, voltei e fiquei um tempinho no Brasil e depois mais seis meses lá. CARLOS: Você tocava e cantava? ZÉ MARIA: Tocava e cantava. A banda era eclética, nós fazíamos samba, pop americano, música brasileira, música latina e japonesa também. Cantei em japonês! CARLOS: Tem outra história muito engraçada que gostaria de registrar? ZÉ MARIA: Tem várias, São Paulo e Rio de Janeiro. Eu fui contratado para interpretar, como dizia o grande Jamelão, puxar não, interpretar o samba. Foi de uma escola de samba aqui do Morumbi. Essa eu posso contar o milagre e o santo que não tem problema. Eu estava na porta da secretaria com a diretoria e falaram: “Olha o Carioca aí. Olha Carioca, esse aqui é nosso intérprete”. O Carioca olhou para mim, só estendeu a mão e nem olhou direito para minha cara e foi andando. Já ficou uma marca meio estranha. Bem, achei que era o jeito dele, tudo bem. Fiquei até um pouco sem graça, viram o que ele fez, a pose dele, até aí tudo bem. Daqui a pouco um falou: “Zé Maria, vamos lá atrás do palco que o cara vai cantar o samba dele”. Subiu o artista, o Carioca. O Tatuzinho aqui da Vai-Vai fez o cavaco, também contratado na época. Cantou. Realmente o samba era muito bonito mesmo. A bateria era de delirar. Os concorrentes estavam com carinhas tristes. Uma coisa que eu nunca fiz até hoje foi chegar num lugar e pedir para cantar. Eu não gosto. Eu gosto de ir num lugar e ver o pessoal cantar, mas não gosto de ficar pedindo. Nesse dia eu pedi para cantar logo em seguida. O cara desceu do palco e o pessoal: “Aí, Carioca, belo samba”. Eu subi, chamei o carinha do cavaquinho que era meu compadre e eu cantei outro samba. A quadra parou. Acabei arrumando a maior confusão lá. Quando eu desci, veio a diretoria e perguntou: “Meu, que samba é esse? O cara cantou um samba igual”. Eu respondi: “É da mangueira Um Batuque Memorável no Samba Paulistano A R I A 35 Z É M A R I A 1800 e bolinha”. Até hoje o cara está correndo. Mudou umas coisinhas da letra e a melodia 80% Mangueira. Fugiu-me o nome do samba agora é... “Um Cântico à Natureza”. Se você procurar, vai achar com esse título. É lindo o samba posso passar um pedacinho só para você ver? “Brilhou no céu o sol, oh que beleza/ Vem contemplar a natureza/ Vem abrasar a imensidão, imensidão... / Onde na pesca ou na plantação/ Pedras preciosas ou mineração / Rios, cachoeiras e cascatas/ Frutos, pássaros e matas / Enobrecem a nação/ Oh lugar... Oh lugar... / Tudo que se planta dá/ Terra igual a esta não há/ Imenso torrão de natureza incomum/ Onde envaidece qualquer um/ Praias e flores inspiram amores/ E o petróleo te deu mais vida / Solo de vultos imortais / Direi teu nome e não esquecerão jamais/ Oh pátria querida/ De natureza tão sutil/ Tens belezas mil/ Isto é Brasil... Isto é Brasil... Isto é Brasil...” É lindo. Uma poesia, uma coisa maravilhosa! Nossa, deu maior rebu na escola. Ganhou outro samba, e do Carioca nunca mais tive notícias. Essa é uma das tantas. Rio de Janeiro, 75. Fui embora para lá e cheguei ali na Portela. Lá tem a torre dos compositores e ia ter disputa de samba-enredo. No Rio de Janeiro não é como São Paulo, lá a coisa é pegada mesmo, de vida ou de morte. Também com aquele dinheirão que eles ganham tem que ser mesmo por aí. Subiu um grupo, veio outro, cantou, desceu, subiu outro. Só que o cara do cavaquinho do segundo grupo que já tinha cantado ficou e não desceu. Os caras com aquela febre, com aquela sede de mostrar o trabalho, nem viram que o baixinho estava lá com o cavaquinho. Um compositor sarado catou o microfone: “Aí comunidade!” Grito de guerra e: “Chora cavaco!”. Ele ameaçava cantar e olhava para trás e viu o cara no cavaquinho: “Chora cavaquinho!” E nada. Mandou chorar de novo, e nada. Então, ele percebeu que era o seu rival que permanecia na torre, quando o pegou pelo colarinho e o jogou encima de uma mesa. As pernas da mesa não aguentaram o peso, só amorteceu. E o povo: “Joga! Joga!” Era tragicômico. Eu o vi levantar, estava mancando um pouquinho, mas não quebrou nada, só o cavaquinho. 36 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano Z É M Peruche também tem. As pessoas contam de quando saíram com o tema Carlos Gomes, muito bonito. As alegorias mesmo eram feitas de jornal. Papier Maché veio um pouco depois, antes era mais o gesso pintado. O pessoal estava atrasado para o desfile, foram para a Av. São João mas esqueceram a alegoria do Carlos Gomes na quadra. O tema da escola ficou lá. E agora? Na época não tinha facilidade de entrega rápida. Voltaram para o Peruche, mas precisavam de um veículo para levar a alegoria. Chegaram num bar nem sei de que maneira e tinha um cara, um tal de Manézinho, velho conhecido do bairro. Ele tinha um caminhãozinho velho, mas gostava de “chutar” um pouquinho: “Não, ele não, mas não tem outro, meu?”. Foram conversar: “A alegoria do Peruche, toma cuidado para dirigir.” “Tomo cuidado, deixa comigo!” Quando ele passou embaixo de uma árvore, decapitou o Carlos Gomes. E o pessoal gritando: “Pára, pára!”, para pegar a cabeça. Quando chegaram na São João, não tinha cola. Pegaram um cabo de vassoura e enterraram no tronco do Carlos Gomes e colocaram a cabeça dele. E durante o desfile o povo: “Vai, vai, vai!”. Está indo, o samba comendo e um gritando: “A cabeça!” “O que? A cabeça?” “A cabeça virou!” então, colocavam a cabeça na direção certa. E foi assim até o final do desfile. Deu um trabalho! Tinha uma escola nova que estava que se chamava “Alegria, Alegria”. E o pessoal sabendo que estava Zeca da Casa Verde, Zelão, Jordão do Salgueiro, Ideval e Talismã ninguém queria concorrer com samba nessa escola. “Fazer o que lá? Poxa, Zelão, Zeca da Casa Verde e Jordão do Salgueiro?” Eu já pensei: “Eu vou, se eu apanhar será de gente grande, agora se eu bater, bati em gente grande. Vou lá aprender!” Igual a um professor que eu tive, professor Osvaldo Rossi. Ele falava: “Zé Maria, se for discutir com alguém, tenha essa percepção: se a pessoa sabe mais do que você, discuta, mesmo você perdendo a discussão, você estará aprendendo.” Eu tenho isso comigo. “Que nada, eu vou mesmo!” Fui e ganhei. CARLOS: Muito obrigado pelo depoimento! Um Batuque Memorável no Samba Paulistano A R I A 37 MARCO ANTONIO Sr. Marco Antonio de Freitas nasceu no dia 18 de junho de 1950 na cidade de São Paulo – SP. É aposentado. Entrevista realizada no dia 06 de novembro de 2008. Iniciou a conversa cantando o samba-enredo O Dia Que O Cacique Rodou A Baiana Ai Ó, da Nenê de Vila Matilde, de 1985. “Quando o cacique rodou a baiana/ O juruma vestiu a camisa, gravata e paletó/Mas o branco soberano/ Só explorando/ Até que o índio disse ó/ Ó ó ó/ Até que o índio disse ó/ Macobeba/ No rádio e televisão/ Destrói a arte/ E a imaginação/ Negro também quer/ Poder falar alto/ Rodar a baiana/ Chegar no planalto/ Hoje para orgulho de nossa nação/ Negros e brancos e índios são irmãos/ Reivindicando seus direitos/ Se unindo em mutirão!/ Oh! meu senhor.../ Devolva minhas terras/ Por favor nosso canto e dança/ Desponta nossa alegria/ Driblando a inflação/ É o nosso dia-a-dia.” MARCO ANTONIO: 1985, Nenê de Vila Matilde, Campeã do Carnaval de São Paulo e foi para o Rio de Janeiro. CARLOS: Com este samba? MARCO ANTONIO: Foi com este samba enredo. CARLOS: Foi a primeira escola paulista a ir para o Rio... MARCO ANTONIO: Foi a primeira e única porque depois que a Nenê foi em 85, nenhuma outra escola, pelo que eu soube, foi desfilar. Foi uma festa muito bonita. No desfile das campeãs do Rio, uma semana depois do carnaval. Ficou na memória de todos aqueles matildenses que foram. Nesta viagem foi o pessoal da Vila Matilde e quem não 38 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano M era da escola também pode ir. Gente da Camisa também vestiu azul e branco. Foi uma festa muito bonita. CARLOS: Vira uma integração, perde essa coisa de competição, de quem vai ganhar, isso e aquilo. MARCO ANTONIO: A competição dura apenas aqueles 60 minutos na avenida. Depois disso tudo passa, prevalece a parte maior que é o samba. Sem a divisão, sem aquele excesso de vaidade: o que vale é o todo. CARLOS: A música Primavera você fez para o CD Júnior do Percuhe Convida Vozes Paulistas? MARCO ANTONIO: Não, essa música é antiga. Eu a compus há mais de 20 anos. Ela é de 80, talvez um pouco antes. As coisas acontecem comigo assim, costumo dizer que acidentalmente. O filme do Seu Nenê, curta metragem, que eu participei, estávamos gravando e no intervalo eu estava cantado o Azul e Branco, o produtor gostou e perguntou se poderia gravar. “Essa aí pode fazer parte da trilha sonora.” Não acreditei muito, mas para a minha felicidade realmente aconteceu. Só que se passaram alguns anos e o Quinteto em Branco e Preto quis gravar Primavera, mas eles foram à União dos Estudantes e assistiram aquele curta metragem, ouviram o samba. “Poxa, Marco e aquele samba lá do curta metragem...” Aí eles gravaram o Azul e Branco e deixaram para lá a Primavera. O Júnior, quando foi fazer esse CD, ouviu Primavera, gostou e resolveu gravar. CARLOS: Conta um pouco de você. MARCO ANTONIO: A minha história não tem nada de especial. Nasci aqui em São Paulo, morei em Santos, passei uns tempos no Rio de Janeiro e depois voltei a São Paulo. No samba fora daqui eu participava como folião e gostava de desfile de escola de samba, bloco. O meu ingresso no samba de São Paulo foi a partir de 1973, quando fui convidado a dançar como mestre-sala na Mocidade Alegre. Lembro que naquele ano eu nem imaginava um dia dançar aqui. Tinha um carnaval lá no Rio, com a Imperatriz Leopoldinense, mas ela não era essa escola que a gente vê hoje, era uma escola simples. Hoje que o carnaval tornou-se essa ostentação, o desfile antes era bem mais simples. Fui convidado pelo Seu Juarez da Cruz para dançar de mestresala na Mocidade Alegre. Fui num ensaio de domingo, a convite de um Um Batuque Memorável no Samba Paulistano A R C O A N T O N I O 39 M A R C O A N T O N I O 40 amigo que trabalha no Fórum de São Paulo. Fui para conhecer, sem intenção de desfilar nem nada. Tem uma brincadeira que eles fazem lá, numa roda em que o povo dança. Eu dancei e os caras gostaram. E de mestre-sala eu sabia também, tinha aprendido a dançar no Rio. Naquela época, o mestre-sala da Mocidade era o filho do Solano Trindade, o Solaninho. Acabei ficando no lugar dele. Lá dancei por dois anos, em 73 e 74, sendo que em 73 a Mocidade foi tricampeã. Só que nunca havia tirado dez no quesito mestre-sala e porta-bandeira e fui o primeiro na escola a tirar nota máxima, mas como sempre gostei de escrever, compor, fazer meus rabiscos, eu falei: “já que vou ficar na escola de samba, não quero ser mestre-sala, quero fazer parte da ala de compositores”. Fui conversando com o pessoal, mostrando algumas músicas e me aceitaram. No início me queriam como mestre-sala. Em 74 fiz as duas coisas, mas depois optei pela ala dos compositores, o que gosto mais. CARLOS: Você ficou na Mocidade até quando? MARCO ANTONIO: Fiquei até 1984. CARLOS: Aí você vai para a Nenê e ganha o samba enredo? MARCO ANTONIO: Eu estava concorrendo com samba enredo na Mocidade Alegre, o título era até Made in Brazil, uma sátira ao sistema de exportação. E as pessoas diziam que aquele seria o samba do carnaval, mas não sei por que a diretoria resolveu mudar a forma do enredo de sátira para algo mais sério. Eu não gostei muito e saí do concurso, mas isto não queria dizer que sairia da Mocidade. Só que neste mesmo ano, eu tinha um amigo na seguradora, o Paulinho, que me pediu para escrever um samba para disputar na Nenê de Vila Matilde. Cheguei em casa, escrevi um samba e mandei para ele, mas sem pretensão alguma. Num belo dia, estou passando pelo centro da cidade quando um amigo disse que o pessoal estava cantando meu samba na Nenê de Vila Matilde. Ele me disse que se eu fosse defender o samba na semifinal e na final, fatalmente ganharia. Estava naquele caso de samba na Mocidade que não deu certo, fui. Defendi o samba que acabou empatando com outro, do meu amigo da Salgueiro, Mazinho Xerife. Como empatou, juntamos o samba e fomos para a Sapucaí. Esta foi a história de como Marco Antonio chegou em 1985 à Nenê de Vila Matilde. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano M O Seu Nenê me convidou para participar dos ensaios, para cantar o samba na quadra. Aí a coisa começou a complicar porque eu fazia parte da ala dos compositores da Mocidade. Participei de alguns ensaios da Nenê. Eu não ia desfilar nesta escola, mas um pouquinho antes do carnaval veio um outro recado do Seu Nenê dizendo que eu iria cantar junto com o Armando. O Armando da Mangueira era o puxador oficial. Cantei e a Nenê foi campeã. Nunca mais voltei para a Mocidade Alegre. CARLOS: Esta saída foi tranquila? MARCO ANTONIO: Foi, porque eu também não sou pessoa de ficar criando clima. Eu simplesmente não voltei mais para a Mocidade Alegre. Foi muito bom para mim, pois lá eu consegui desenvolver muitos trabalhos como compositor e na parte de harmonia. Depois de alguns anos passei a cuidar da ala dos compositores. Até hoje faço várias coisinhas de que gosto. Na Nenê de Vila Matilde eu fico à vontade e canto na avenida há vários anos. CARLOS: E desfilando como passista? MARCO ANTONIO: Não. Sempre na ala de compositores, algumas vezes ajudei na harmonia. Há mais de 15 anos. CARLOS: Você nunca mais dançou na avenida? MARCO ANTONIO: Só cantando mesmo. Sou apoio musical junto com o Baby e ano passado com o Royce. É o que gosto de fazer, embora eu saiba dançar, o que gosto mais é de compor e fingir que canto. Gostar de samba eu sempre gostei, desde criança. Eu ouvia de tudo. Gostava de Ataulfo Alves. Ontem eu estava com um amigo, o Lucas Pinto, lembrando de quando a Clementina de Jesus lançou seu primeiro disco produzido pelo Hermínio Bello de Carvalho. CARLOS: O Rosas de Ouro? MARCO ANTONIO: Este mesmo. Lembro que eu estava com 12 ou 13 anos de idade. Entrei na loja com meu pai, era o meu aniversário e eu podia escolher um disco, pois sempre gostei de música. Naquela hora estava tocando Clementina de Jesus. A voz era estranha, mas eu gostei. CARLOS: Você se lembra da primeira roda de samba que participou? MARCO ANTONIO: Ah, não lembro, eu assistia tantas reuniões de samba... Era tudo muito simples, nada de sofisticação. As brincadeiras nós fazíamos em casa com umas panelas, um cavaquinho e um violão. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano A R C O A N T O N I O 41 M A R C O A N T O N I O 42 Todos cantavam, as pessoas tinham prazer nisso. Eu gostava tanto de Ataulfo Alves e suas Pastoras que fundei a Velha Guarda Musical da Nenê, que nada mais é do que Marco Antonio e suas Pastoras. Não gosto de complicar muito não porque samba é uma coisa simples que a gente não deve complicar. CARLOS: Conta como foi a formação da Velha Guarda Musical? MARCO ANTONIO: Tudo começou quando eu participei do Festival do Samba de Quadra de São Paulo. Fui convidado até pelo Tobias da VaiVai. Eu não queria muito participar desse negócio de festival. “Canta uma música que fale de São Paulo, da Vila Matilde.” Peguei um samba da Vila Matilde e passei para a comissão organizadora, então veio a resposta de que meu samba havia sido classificado. Eu estava em férias, na praia, e quando cheguei em casa estava o recado no celular pedindo para eu ir a São Paulo ensaiar o samba no estúdio. Perguntei ao meu amigo Vado se ele faria uma parceria para me ajudar, aí ele sugeriu colocar umas mulheres. Cheguei lá na quadra e pedi ao presidente, o Betinho, uma indicação e ele apontou umas senhoras, eram baianas. Conheci a Ciete, a Áurea, a Luzia e a Irene. Dei uma injeção de ânimo nelas e fomos cantar. A primeira apresentação foi em um bar em Santana, o Consulado da Cerveja ou do Samba. No camarim comecei a cantar e elas aprenderam o samba. Fomos para o Festival, o pessoal do Quinteto também estava. Para minha felicidade acabei ganhando, deu até empate. Chegamos em duas músicas com o primeiro lugar, a minha e a música do Maurílio e do Chapinha do Samba da Vela. CARLOS: O Não é Só Garoa? MARCO ANTONIO: Isso. Assim foi o início. Era Marco Antonio e as Pastoras. Depois, naquele ano tinha apresentação do dia do samba e a Nenê não tinha quem mandar. Mais uma vez me pediram para ir ao programa do Evaristo, com as Pastoras. Fui e todo mundo gostou. Estava lá o empresário da Velha Guarda da Portela, o Paulinho, que gostou também e me convidou para cantar em um show da Velha Guarda da Portela, no Sesc Santo André. Fizemos a apresentação e foi muito boa. Isso foi em 2003. Este foi o samba que ganhou no samba de quadra. CARLOS: Qual o samba que você mais gosta de cantar? MARCO ANTONIO: Têm vários, mas tem sambas que não costumo Um Batuque Memorável no Samba Paulistano M cantar. Tem um que eu gosto e dificilmente canto em roda de samba. Gosto de variar, tem aqueles sambas de desabafo e também de dor de cotovelo. CARLOS: E a ideia dos Os Cinco Sentidos do Samba Paulista? MARCO ANTONIO: Os Cinco Sentidos. Eu fui convidado juntamente com Osvaldinho da Cuíca, Ideval, Silvo Modesto, Anselmo Fiote e o Osvaldinho Babão, em 2006, no Sesc Vila Mariana, na semana do Carnaval. Tanto é que na sexta feira cantei no show e saí para cantar na avenida. Foi um show muito gostoso e muito bonito. Até surpreendeu. A casa ficou cheia e no dia do desfile conseguimos lotar o Sesc. Fizemos há uns dias atrás no Sesc São Carlos. CARLOS: Você contou que passou por Santos, São Paulo e Rio. MARCO ANTONIO: Ah, sim. Eu sempre falo assim: nunca faça comparações. No Rio de Janeiro é uma tradição que vem dos tataravôs. O samba de São Paulo posso falar do que acompanho, de 1972 para cá. O samba daqui cresceu muito, não só em termos de carnaval, de avenida, no geral, porque para o negro, uns 40 anos atrás, não havia muito espaço. A partir da década de 80, quando veio o movimento do pagode a exemplo do Fundo de Quintal e estas coisas todas, despertou aqui em São Paulo a participação dos jovens e surgiram vários conjuntos. São situações diferentes. Santos tem grandes compositores e cantores. Se eu fosse fazer uma aproximação de Santos seria com Rio de Janeiro, porque lá o pessoal gosta muito da arte, da música. Não existe o espaço como existe em São Paulo. Aqui você consegue divulgar. Aqui é o lugar para você mostrar sua arte. CARLOS: E em Santos, você era X-9? MARCO ANTONIO: Não, eu era Império do Samba, que não existe mais, do amigo e falecido Dráuzio. Eu sou filho de militar, então sair em escola de samba era complicado. Hoje as escolas de samba viraram empresas. Carnaval era brincadeira, você ia à escola para se divertir nas férias. E não tinha essa pompa toda que as escolas têm hoje, aquelas obrigações. Eu gosto de escola de samba para me divertir. Vou à Nenê, mas não fico com aquela responsabilidade, tenho apenas que participar com alegria. A Nenê é assim, o povo gosta da escola, a gente vai, se diverte, conversa e discute com o presidente. Uma coisa bem à vontade, sem clima tenso de ensaio, de obrigação, e vamos para fazer Um Batuque Memorável no Samba Paulistano A R C O A N T O N I O 43 M A R C O A N T O N I O 44 obrigação, quando percebemos, estamos nos divertindo. CARLOS: Você pegou os desfiles da São João? MARCO ANTONIO: Eu peguei. Desfilei por dois ou três anos lá. Em 78 acho que já foi para a Tiradentes. Na São João era bom. O calor humano, a arquibancada, o povo bem próximo. Era tudo bem simples, com menos gente. As escolas que competiam eram Mocidade, VaiVai, Camisa Verde e Nenê, que estava passando por uma fase difícil. Depois veio a Tiradentes. Também havia o calor humano, mas aquelas arquibancadas pré-montadas atrapalhavam o trânsito de São Paulo. CARLOS: O Carnaval atrapalhava São Paulo ou São Paulo atrapalhava o Carnaval? MARCO ANTONIO: São Paulo não pode parar, não é? Tinha a Apoteose que começava numa terça-feira, só que não tinha tempo determinado. Uma vez a Nenê foi desfilar era quase meio-dia da quarta-feira. Quando tinha Apoteose, eu não ia. Aconteciam várias coisas na Tiradentes porque o povo estava mais junto. Não é como agora no Sambódromo que o povo fica lá na arquibancada. Hoje é um espetáculo. O interessante era isso, a participação. Aconteciam vários fatos pitorescos. Quando a escola ia entrar o pessoal invadia e tinha que tirar. Não tinha tempo, cada escola fazia seu tempo, não tinha organização. Hoje está organizado até demais, até mesmo pelo número de componentes. Na São João as escolas eram menores, já na Tiradentes elas começaram a crescer e tomar um formato diferente, e hoje as escolas têm um visual como as do Rio de Janeiro, mas o carnaval, que era uma coisa maior em São Paulo, está muito restrito ao desfile das escolas de samba. Parece que acabou. É só isso. Seria bom se o carnaval tivesse outras coisas, como blocos, foliões na rua brincando, se o carnaval é uma coisa do povo, o povo tem que ficar mais à vontade, não tem que pagar tanto para assistir. Tinha desfile de escola de samba que fazia parte do carnaval, hoje quando se fala em carnaval, é desfile da escola de samba. Está completamente errado. Inverteu tudo. CARLOS: Quero agradecer a gentileza de ter concedido este depoimento. Obrigado. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano FRANCISCO MARTINS Sr. Francisco Martins é um antigo morador da Rua Frei Antonio Santana Galvão, travessa da Avenida Tiradentes. Nasceu no dia 01 de dezembro de 1949, em São Paulo - SP. É aposentado. Entrevista realizada no dia 27 de novembro de 2008. CARLOS: Seu Francisco, conte das suas lembranças na época do Carnaval na Tiradentes. FRANCISCO: Como eu estava contando a você, eu não acompanhava muito. Dava uma olhada eventualmente, só via a bagunça que o pessoal fazia aqui na rua. Ficava um chiqueiro, as pessoas tinham até relação sexual na rua. Era um transtorno. Depois fizeram o sambódromo. Foi tudo para lá e encerrou aqui, mas eu não acompanhava, só via a parte de concentração porque não tinha arquibancada, só um portão de isolamento. Minha mãe levava minhas filhas, minha esposa. Meu pai nem ia. É pouca coisa que tenho para falar, porque eu realmente não acompanhava, ia de curiosidade, via um pouco e ia embora, passava outra escola, via só o começinho. Onde tinha antes as arquibancadas, era tudo organizadinho. Tinha até um colega que uma vez participou, tinha um lugar que servia salgadinho, refrigerante, bebida. Era bom, só que causava muito transtorno para a gente que morava aqui. Para os moradores o acesso era complicado, você não conseguia chegar até a rua. CARLOS: De carro ou a pé? FRANCISCO: De carro. CARLOS: E o que o senhor achava das fantasias e o que ficou na memória das coisas que você via? FRANCISCO: Fantasias e carros alegóricos. Isso é sempre bacana, bem feitinho e com bastante detalhe. Dependia do tema que eles escolhiam. Eu achava bem feito. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 45 F R A N C I S C O M A R T I N S 46 CARLOS: Quando o senhor via o carnaval feito naquela época, que era tudo aqui próximo da sua casa, tinha impressão de que ele ia crescer tanto e virar essa coisa toda que é hoje? FRANCISCO: Não, inclusive minha filha é jornalista, trabalha na Gazeta FM, e há anos que ela cobre o carnaval no sambódromo. Ela conta que não tem nada a ver com o que era aqui. CARLOS: Já chegou a ir ao sambódromo? FRANCISCO: Não, mas ela já. Esse ano ela não foi. Ano passado ela estava lá. Levei-a de carro. Tinha que fazer as matérias para colocar nos intervalos de música, ela e mais dois jornalistas. CARLOS: Tem alguma história que o senhor viu e acha bacana contar? FRANCISCO: Não, infelizmente não tenho mesmo, fora a sujeira que ficava aqui. CARLOS: E demorava muito para limpar a sujeira? FRANCISCO: Não. Até que eles limpavam rápido. A arquibancada ficava até certo tempo, até desmontar. Ficava um trânsito na avenida. Aí eles fizeram o sambódromo. Não tinha mais condições de ter desfile de escola de samba aqui na avenida, não tinha como. O que eu tenho na memória é isso. CARLOS: Mas, tem uma lembrança boa? FRANCISCO: Era legal porque era pertinho. Andava meio quarteirão já estava ali ou ficava aqui vendo pela televisão, pois já era veiculado. CARLOS: E como que era ver uma coisa que acontecia tão perto pela televisão? FRANCISCO: Legal, mas muito barulho, você não dormia. CARLOS: Nem de dia e nem de noite? FRANCISCO: Não, porque era direto. De dia era o negócio de bloco, a noite era escola de samba e depois era o desfile das vencedoras. Até acabar era praticamente uma semana. CARLOS: Era de terça? FRANCISCO: Era de sábado, domingo, segunda e terça. Depois sempre tinha no domingo o desfile das campeãs e na terça encerrava. CARLOS: Muito obrigado! Um Batuque Memorável no Samba Paulistano SEU MIGUEL DA CONTEMPORÂNEA Sr. Miguel Fasanelli nasceu no dia 29 de setembro de 1932, em São Paulo - SP e faleceu no dia 02 de março de 2009. Entrevista realizada no dia 10 de dezembro de 2008. CARLOS: Estou aqui com o senhor Miguel Fasanelli. SEU MIGUEL: Na loja Contemporânea, há 55 anos instalada à Rua General Osório, lidando com o samba. CARLOS: Qual a idade do senhor? SEU MIGUEL: 76 anos. CARLOS: O Sr. nasceu em São Paulo? SEU MIGUEL: Nasci em São Paulo, no bairro do Cambuci, descendente de italianos. CARLOS: Como começou essa aventura com os instrumentos? SEU MIGUEL: Quando nós começamos não tinha samba em São Paulo. O que tinha era cordão e bloco. Conjunto de samba não tinha nenhum, então chegou em São Paulo Luis Carlos Paraná, Aberlado Figueiredo, com Pedro. No Rio de Janeiro tinha muito conjunto de samba, então vieram dois, três conjuntos para São Paulo para fazer a noitada com eles. Eles tocavam aqui até meia-noite. Uma hora da manhã, iam para casa dormir. Quando era de manhã, eles vinham aqui, pegavam o pandeiro, o tamborim e começava o samba aqui dentro e o pessoal ia aglomerando e começava a sambar, e cada vez mais gente. Então, no sábado começamos a fazer um sambinha, Martinho da Vila, Xangô da Mangueira, às vezes Clara Nunes com o Conjunto Nosso Samba e começava um sambão para todo mundo que gostava. A única casa de samba que tinha aqui era a nossa. Aí começou em outros bares e casas noturnas que se interessaram, foram levando estes e formando outros grupos de samba. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 47 S E U M I G U E L D A C O N T E M P O R Â N E A 48 CARLOS: Isso em que ano? SEU MIGUEL: Isso vai por volta de 72. Aí começaram a fazer escola de samba. Como nós consertávamos instrumentos e eles não tinham dinheiro, vinham concertar aqui. A Polícia Federal amassava instrumentos e eles traziam para nós. No fim de semana eles passavam uma taça na rua e recolhiam uma moeda da época. Era equivalente à cinco ou dez reais hoje e vinha aqui para comprar um instrumento. Gastava uns 50 reais e pagava dez. O resto pagava em samba. Isso foi até vir a verba para escolas de samba e eles começaram a comprar direitinho, e daí é como hoje. Nós fazemos samba, pagode, fazemos o chorinho, há muito tempo. CARLOS: Essa programação é a de sábado? SEU MIGUEL: De sábado. O chorinho começa às 9 horas e o samba começa umas 11 horas e vai, depois vai para a rua, vai para o bar, para todo lugar. CARLOS: Eu li na biografia do Osvaldinho que teve uma participação aqui na construção dos instrumentos. SEU MIGUEL: Ele comprava aqui. Aquele tempo ele era militar. CARLOS: E aqui passaram muitos sambistas? SEU MIGUEL: Por aqui passaram todos os sambistas: Cartola, Nelson Cavaquinho, Monsueto, Silas de Oliveira, Almir Guineto, Xangô, Zeca Pagodinho, Conjunto Nosso Samba, dentre outros. Os conjuntos que vinham tocar em São Paulo vinham tocar aqui. CARLOS: E os sambistas de São Paulo? SEU MIGUEL: Também vinham para cá, mas São Paulo ainda não era famoso, eles estavam começando naquela época. Aqui tinha o Carlão do Peruche, Seu Nenê, o Inocêncio, o Lagrila, o Geraldo Filme e o Osvaldinho. Eram da velha guarda do samba daqui de São Paulo. CARLOS: E era tudo improvisado? SEU MIGUEL: Era tudo improvisado. Chegavam aqui e faziam a roda mesmo. Clara Nunes vinha junto com Nosso Samba e ficava aqui dia e noite. A Beth Carvalho e Alcione, também. Praticamente iniciamos o samba, não fizemos o samba, o samba já estava feito. Nós iniciamos para eles virem tocar aqui dentro: Luis Pretinho, Talismã, Jangada, Geraldo Filme e Zeca da Casa Verde. Todos eles passaram aqui. CARLOS: E o senhor acompanhava os desfiles? Um Batuque Memorável no Samba Paulistano S E U SEU MIGUEL: Acompanhava, ia viajar com eles para o Guarujá e São Vicente. Eu gostava demais, ia mais para o Guarujá, só beber, depois voltava. De manhã levantava e abria a loja. CARLOS: E o senhor acompanhava essas viagens com o Geraldo e o Plínio Marcos? SEU MIGUEL: Eu não acompanhei, mas eles viviam aqui. CARLOS: Como era o show que eles faziam? SEU MIGUEL: Não era baile, era show, tocavam aquelas músicas da época mesmo, samba enredo. Eles não saíam daqui, tocavam aqui. Depois começamos a fazer no meio da rua, faziam o choro e o samba. É só você olhar aqui as fotos (neste momento Seu Miguel mostrou as fotos ). Pode ver que tivemos Alcione e Jamelão. CARLOS: A maioria do Rio? SEU MIGUEL: Era do Rio e de São Paulo. CARLOS: Paulinho da Viola. SEU MIGUEL: A Magali (mostra a foto) hoje canta no SESC. Paulão, Zeca Pagodinho, a Vivi que ainda está cantando no Rio, Ari Ferreira, Donga, César Paulinho que é pai do Paulinho da Viola, Tia Délia, Odete Miranda, Binho Sete Cordas que morreu agora, Vando do Bandolim, Jacob e Sombrinha. CARLOS: Bar o senhor nunca teve? SEU MIGUEL: Não. CARLOS: Então, a noite paulistana, começava aqui na Contemporânea. Aqui passava o bonde? SEU MIGUEL: Passava. CARLOS: Quando começou a Contemporânea ainda tinha bonde? SEU MIGUEL: Tinha. CARLOS: E quando foi fundada a Contemporânea? SEU MIGUEL: Em 1953. CARLOS: E o que o senhor acha do samba hoje em São Paulo, desde lá até hoje? SEU MIGUEL: 100%. Hoje você vê qualquer bar, qualquer bairro tem dois que fazem samba e antigamente não tinha. Começaram a fazer samba e a formar conjuntos na época em Pinheiros, na Vila Madalena e na Vila Mariana. Agora em todo lugar tem um samba. CARLOS: E o carnaval, desde a São João? O que o senhor acha que teve Um Batuque Memorável no Samba Paulistano M I G U E L D A C O N T E M P O R Â N E A 49 S E U M I G U E L D A C O N T E M P O R Â N E A 50 de diferença? SEU MIGUEL: Perdeu muito. Eles começaram com luxo e carnaval não é isso. O passista, o carnavalesco, eles sambavam na rua. Hoje colocaram nos carros alegóricos, desculpa a palavra, mulher pelada, homossexual, tudo em cima dos carros. O pessoal que sai nunca conheceu carnaval, vão só para se divertir na avenida. CARLOS: Está complicado! SEU MIGUEL: Falo porque vejo isso daí, e é verdade. Os verdadeiros carnavalescos que apanhavam da polícia e tudo, ninguém lembra direito. Eram eles que faziam carnaval em São Paulo. CARLOS: Qual foi a melhor época que o senhor acha do carnaval em São Paulo? SEU MIGUEL: Na época em que o carnavalesco dançava na rua. A melhor época que eu acho era a da São João e Anhangabaú. CARLOS: Quero agradecer a sua gentileza. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano MESTRE TADEU Sr. Antonio Carlos Tadeu de Souza, Mestre Tadeu, nasceu no dia 13 de fevereiro de 1951, em São Paulo - SP. É funcionário público. Entrevista realizada no dia 10 de dezembro de 2008. CARLOS: Tadeu há 30 anos como mestre da Bateria da Vai-Vai. TADEU: 36. CARLOS: Meu Deus, eu tirando seis anos. TADEU: Tirar seis anos não dá. CARLOS: Não pode. TADEU: Tem que pagar. CARLOS: É Antonio Carlos... TADEU: Tadeu de Souza. CARLOS: Tem quantos anos? TADEU: 57. CARLOS: É de São Paulo mesmo? TADEU: Paulista, paulistano, aqui da capital. CARLOS: Qual bairro? TADEU: Liberdade. CARLOS: E sempre com samba? TADEU: Sempre com o samba. CARLOS: Como começou sua história no samba? TADEU: Minha família toda era de sambista. Minha mãe era sambista, eu sou oriundo da Escola de Samba Lavapés. CARLOS: E você se lembra da primeira roda de samba que participou? TADEU: Entrei no samba desde quando nasci, com seis anos, minha mãe já me levava. Ela costurava, fazia as fantasias da alas das baianas da Escola de Samba do Lavapés. A gente deu sequência. CARLOS: Então, você foi da Lavapés por um tempo? Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 51 M E S T R E T A D E U 52 TADEU: Comecei lá em 67, 68. Cheguei na Vai-Vai na década de 70, quando ainda era cordão. Em 72 virou escola de samba. Cheguei à bateria em 73 e estou até hoje. CARLOS: Você é justamente um grande mestre de bateria. TADEU: É, porque você ficar 36 anos à frente de uma bateria não é mole, não. Nunca interrompi esses 36 anos. Com bastante saúde que Deus me deu. Graças a Deus estou tocando. Tive vários sucessos. Agradeço a Escola de Samba Vai-Vai que me deu tudo isso, essa projeção toda que eu cheguei foi graças a ela. CARLOS: Você pegou um pouco do desfile na São João? TADEU: Comecei no Anhangabaú. Desfilava de lá e ia até a São João. Depois inverteram. São João e descia o Anhangabaú. Aí ficou só Avenida São João. CARLOS: E quais são as lembranças que você tem dessa época? TADEU: São épocas diferentes porque naquele tempo não existia verba para escolas de samba. A gente saía pelas casas pedindo auxílio para o povo e depois colocava o cordão na rua ou a escola de samba. Não existia verba. E é uma coisa muito engraçada, nos anos de 68, 69 e 70 a comunidade branca não queria fazer parte da escola de samba. Eles tinham vergonha, era o tempo da ditadura. Quem saía em escola de samba era considerado maloqueiro, bagunceiro, que é o contrário de hoje, todo mundo quer sair na escola. Todo mundo quer ter status, aparecer na televisão, falar com o governador, falar com o presidente, falar com o empresário, mas naquela época ninguém queria. Então, os negros sofreram mais. O samba, as pessoas gostando ou não, ele não tem cor, mas é oriundo da raça negra. CARLOS: Você pegou praticamente três épocas: Centro, Tiradentes e sambódromo. Você consegue falar um pouco sobre como foi passar por essas épocas, as principais diferenças, se melhorou, se você acha que perdeu. TADEU: Melhorou. Com verba você consegue fazer um espetáculo maior. Hoje os carros alegóricos são maiores. Você tem a mesma competição com outra entidade, mas perdeu-se aquilo que é mais importante, que é a raiz e a cultura do samba paulistano. Perdeu-se o samba no pé, que não se vê mais. Uma ou outra escola tem samba no pé, as outras não têm. Hoje a escola é um tipo de blocão. Sai todo Um Batuque Memorável no Samba Paulistano mundo na primeira ala cantando, mas samba nenhum você vê no pé. É o que está acontecendo. Então, daquela época para cá, perdemos muito, perdemos qualidade, perdemos tradição. Hoje o carnaval é para turista e empresário, você não vê mais a festa ser para o sambista que não tem dinheiro para pagar ingresso. Deixou aquilo que era cultura, hoje é só financeiro. CARLOS: Qual o nome da sua mãe? TADEU: Minha mãe é Maria, Dona Maria Pé de Papel. CARLOS: E ela fazia fantasias? TADEU: Para a ala das baianas da escola do Lavapés. CARLOS: Conta das suas lembranças das costuras. O que você lembra? TADEU: Eu lembro que minha casa ficava sempre cheia. Tinha uma mulata que se chamava Jacira e elas ficavam um tempo, ficavam uma semana na máquina, dormiam na máquina. Acordavam para terminar as roupas das baianas. Faziam por prazer, porque gostavam. Tinham orgulho de costurar para a ala das baianas, da qual faziam parte. CARLOS: Isto uma semana direto, antes da saída na rua? TADEU: E elas estavam metendo bronca nas máquinas. CARLOS: Muitas visitas, então a casa sempre cheia. TADEU: Muito cheia. CARLOS: Muita roda de samba? TADEU: Muita roda de samba. Era muito gostoso, um carnaval diferente. Era um carnaval que você sabia o que era carnaval, até porque o carnaval era de três dias, depois vinha a quarta-feira de cinzas. CARLOS: E como eram os desfiles? TADEU: Naquela época a escola era montada na Rua Direita. Tinha o Paulistano da Glória, o Camisa Verde e Branco, o Vai-Vai, depois surgiu o Fio de Ouro que era de pessoas oriundas do Vai-Vai. Formaram um bloco e as cores eram azul, branco e ouro. Era todo pessoal dissidente do Vai-Vai, tanto que acabou, não virou. CARLOS: Voltaram para a Vai-Vai ou não? TADEU: Não, acabou. Só sobrou a Vai-Vai. CARLOS: E quando um cordão encontrava o outro? TADEU: Beijavam as bandeiras, mas depois virava festa. Não tinha guerra, não. A guerra era só no dia do desfile. Aquela coisa, “eu vou ganhar”, “você vai ganhar”. Era um carnaval mais sadio, um carnaval Um Batuque Memorável no Samba Paulistano M E S T R E T A D E U 53 M E S T R E T A D E U 54 mais gostoso, mais popular, direto para o componente, direto para o povo. Tanto que não tinha nem arquibancada, era nas cordas, o povo participava. CARLOS: Era mais próximo. TADEU: Mais próximo. CARLOS: E o povo podia entrar também nos cordões? TADEU: Podia entrar, porque era só nas cordas. CARLOS: Quando mudou para a Tiradentes como foi para você? TADEU: Da São João para a Tiradentes? CARLOS: É. O que você se lembra dessa época? TADEU: A Tiradentes ampliou um pouco mais o carnaval. O carnaval começou a crescer. Era outra dinâmica, pois os carros alegóricos eram maiores, porque na São João eles eram pequenos. Na Tiradentes eles já cresceram. São três fases até chegar ao sambódromo que virou esse gigante que é hoje em dia. CARLOS: A Vai-Vai foi a primeira escola que saiu com uma mulher nua? TADEU: Praticamente, sim. CARLOS: E que repercussão trouxe isso na época? TADEU: Naquela época era o seguinte, as mulheres não tiravam a roupa toda porque era o fim da ditadura. As pessoas tinham vergonha, eram reprimidas. A Vai-Vai foi a primeira escola na qual mulheres saíram sem roupa. CARLOS: Eu entrevistei um morador da Tiradentes e ele me disse que uma das coisas que mais o marcou em todos os anos que assistiu aos desfiles na Tiradentes foi quando ele viu essa mulher nua. Segundo ele foi um impacto, causou uma coisa muito forte nele e em todo mundo. Ninguém tinha visto uma mulher nua em um desfile e aquilo foi impacto para toda a sociedade que acompanhou isso. TADEU: As pessoas ficaram surpresas com o carnaval da Tiradentes, aí simplesmente acabou. O Jânio Quadros plantou umas árvores, construiu um viaduto, já para não ter mais, aí veio a Erundina e conseguimos o sambódromo. CARLOS: E nessa época chegaram a desfilar mesmo com viaduto, árvore? TADEU: Quando ele colocou o viaduto, não desfilava mais. Já tinha acabado mesmo com o carnaval. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano CARLOS: Essa mulher nua você sabe o nome dela? TADEU: Nem lembro! CARLOS: E como foi seu contato com os outros sambistas. Quem foi para você uma grande figura do samba? TADEU: Olha, sou muito acostumado a falar no pavilhão. Acho que acima da bandeira não há ninguém. O Pavilhão da entidade foi fundado em primeiro de janeiro de 1930. Hoje existe o presente, mas só o passado que construiu, que sofreu para existir o carnaval até hoje. CARLOS: Você acha que o respeito que o Pavilhão tem hoje é o mesmo de quando você começou? TADEU: Mudou muito. As pessoas não têm mais amor à bandeira. Hoje é tudo pago. Todo mundo recebe. Deixou de amar mais a bandeira, o carnaval, o pavilhão da escola. CARLOS: E Pato N’água? TADEU: Não conheci. CARLOS: Mas a fama dele? TADEU: Foi um grande apitador. CARLOS: Qual foi o desfile que mais te marcou? TADEU: Têm tantos. Os três primeiros títulos da Vai-Vai como Escola de Samba. Agora, eu acho que o carnaval deste ano foi um grande carnaval, uma surpresa. Ninguém esperava. A gente ali naquela avenida passando aquela mensagem e a arquibancada toda já sentia que a gente ia rumo à disputa. O samba-enredo “Noel, Noel, Noel” também foi um grande carnaval. Tivemos grandes carnavais. CARLOS: Eu te vi no ensaio e achei bonita a forma como você atua com a bateria. Tem uma disciplina e uma responsabilidade. Teve alguém que chegou atrasado e você não deixou pegar baqueta. Ali não se fuma, ali não se bebe. TADEU: É, tem que ter uma disciplina, se você não consegue colocar disciplina na bateria que é o coração da escola, vira uma bagunça. Apesar de sermos todos amigos, a hora do ensaio é hora do ensaio. Se você confundir as coisas... CARLOS: Fala um pouco do samba paulista. Do que você acha que o samba paulistano é feito, das coisas que foram feitas, das pessoas que representam o samba paulistano. TADEU: O samba paulistano está “cariocado”. Tudo que o pessoal faz Um Batuque Memorável no Samba Paulistano M E S T R E T A D E U 55 M E S T R E T A D E U 56 lá, eles querem fazer aqui. E a tradição do carnaval paulistano está sendo esquecida. A Vai-Vai é uma escola que ainda continua com a sua cultura paulistana. Eu estou na bateria há 36 anos e o ritmo da bateria é paulistano. Não entrei nessa de “cariocada”. Então, sou criticado por muitos mestres porque sou o único que não cedeu. Acho que precisa ter a nossa cara paulista, nós nascemos em São Paulo e não no Rio de Janeiro. Enquanto eu tiver saúde, vou manter a bateria com a cara de São Paulo. CARLOS: Como foi sua entrada na bateria? TADEU: Eu estava como ritmista. Chegou um determinado tempo que o Mestre Feijoada, já falecido, sumiu. A escola precisava ensaiar, então tinham dois grupos da Vai-Vai, um de show, que fazia roda de samba e tinha o meu. Os caras achavam que eu tinha que assumir. Não tinha quem assumisse a bateria. Fui lá e tô aqui até hoje. Mostrei ao que vim. Você sofre injustiças dentro da escola de samba, tem horas que você fica glorioso. Você está lá no topo, no pedestal e tem horas que você está no meio. Então, tem aquela coisa: quando dá tudo certo você tem valor, mas quando dá errado, não presta. O samba é um pouco ingrato. A gente tem que tomar cuidado. Por tudo que você fez, todos esses anos, as pessoas só se importam com o presente. Sou o único mestre de Bateria de São Paulo que tem um busto na frente da sede da escola. Esse negócio de homenagear a pessoa depois de morto não interessa. Recebi a homenagem em vida. Fico muito orgulhoso e muito contente pelo valor que eles me deram. CARLOS: Agradeço a você pelo papo. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano TONIQUINHO BATUQUEIRO Sr. Antonio Messias de Campos, Toniquinho Batuqueiro, nasceu no dia 25 de fevereiro de 1929 em Piracicaba – SP. É aposentado. Entrevista realizada no dia 16 de dezebro de 2008. TONIQUINHO: Meu nome é Antonio Messias, nasci em Piracicaba, bairro de Pau Queimado, aos 25 de fevereiro de 1929. Quando eu não era funcionário fazia de tudo um pouco. Trabalhei de pedreiro. Vim para São Paulo em 1939. CARLOS: Como era a vida em Piracicaba? Tinha os sambas? O senhor participava? TONIQUINHO: Lá os mais velhos iam e me levavam. Eu participava de tudo. Samba de bumbo, carnaval, no caso. Naquela época, dez pessoas juntas cantando era gente pra caramba. CARLOS: E como eram as festas? TONIQUINHO: Era igual ao carnaval de hoje. Só que menos gente participando do grupo. Tinha muita alegria. A moçada cantando e tocando na rua. A turma dos Turunas. Acho que era Turunas. “Minha embaixada chegou, deixa meu povo passar, meu povo pede licença...” CARLOS: O que significou a sua vinda para São Paulo? TONIQUINHO: Era muita novidade, saí do meio do mato e vim para o meio dessa cidade, cheia de gente, cheia de casa alta, tudo grandão. A primeira vinda de lá para cá eu morei na Avenida Angélica. Não tinha esses prédios altos ainda, o único prédio que tinha era o Martinelli, ele não subiu e nem desceu, continua na mesma altura. CARLOS: O que o senhor lembra do samba dessa época? TONIQUINHO: O ritmo é normal, não mudou nada. Houve mudanças de andamento. É a mesma coisa, gandaia é gandaia. Todo mundo faz Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 57 T O N I Q U I N H O B A T U Q U E I R O 58 o que sabe e o que pode! Tinha os porões em toda São Paulo. Você ia num lugar, sei lá onde, você morava em porão. Você ia na Casa Verde, morava no porão, vinha na Santa Cecília morava no porão. Quem morava na cidade morava em porão. Os cordões você ia encontrar na Baixada do Glicério, outro bairro que é pobre. Ia encontrar na Florêncio de Abreu, ia encontrar o Formosa, cordão Formosa. Era o que tinha em São Paulo. Para o Jabaquara se você chegasse na Praça da Árvore tinha que voltar porque era mato. Só tinha a igrejinha de São Judas e pronto. Vila Matilde, não se falava, era do Largo Sete para cá. Do Largo São Bento você ia até a Casa Verde de bonde, da Praça Centenário você seguia a pé até o Peruche. Esta era a São Paulo de antigamente. CARLOS: As rodas aconteciam todos os dias? TONIQUINHO: As que eu ia eram de sábado, dentro do porão. Os caras afastavam as mesas, cadeiras, criado-mudo, tiravam o que tinha no quarto, ficava um salãozinho feito de cimento e jogavam pó de serra para ficar liso. E dançavam ali. A noite inteira tinha samba. Se não tivesse samba não era noite. Os músicos paravam para respirar e tomavam alguma coisinha, voltavam a tocar e assim iam até amanhecer o dia. CARLOS: O senhor chegou a São Paulo e começou a trabalhar como engraxate? TONIQUINHO: Sim, engraxate. Antigamente, aos sábados e domingos, a molecada pegava uma caixinha de engraxar e ia para as ruas engraxar sapatos. No meu caso, ia para a Inhaúma, na Casa Verde, perto da igreja. Assim, juntava um dinheirinho para ir ao cinema, fazer bonito com as meninas, comprava pipoca, essas coisas. Não era profissão. Era negro, era branco, todo mundo engraxava. Quando dava mais ou menos sete horas, voltava para casa, tomava banho, trocava de roupa e quem ia para a gandaia ia, quem ia namorar também ia e daí por diante. Não era pejorativo ser engraxate, era o quebra galho. Tinha negro que trabalhava que não tinha condução e pegava emprestado com o amigo para pegar o bonde, que custava de 200 réis para cima. Chegando à praça pegava a caixa, botava no lugar e chamava o freguês para tirar o barro. “Vamos tirar o barro aí, mestre?” O mestre chegava, você cobrava 400 réis e limpava o sapato dele. Nessas alturas a roda estava formada e você ia para dentro dela correr o chapéu, daí alguém Um Batuque Memorável no Samba Paulistano caía numa rasteira diferente, de costas, de qualquer lado, e a polícia chegava para acabar com a roda. Quando a polícia chegava, mandava desfazer dando as cacetadas, sem educação nenhuma. Aqueles que tinham medo de polícia saíam correndo. Todo dia era a mesma coisa. Cada um cantava, sambava e a vida seguia. CARLOS: Estou supondo que cada um vinha de um lugar e acabavam cantando coisas diferentes. TONIQUINHO: Isso daí é simples, ninguém perguntava se eu vinha de Piracicaba, mas eu cantava samba de lá, e daí vinha um que cantava outro, e outro. Ali o couro comia. O cara chega, canta e todo mundo canta. Aprendiam-se as músicas. Não contava historinha. Música “X”, música “X”. Isso aí é besteira. CARLOS: E ali você fez muitas amizades com os engraxates? TONIQUINHO: Conheci São Paulo inteiro através da Praça da Sé. Se você era gandaieiro, estava na gandaia. Não tinha coisa de valentia, se você era valente, eu também era. Valente com valente não briga. Se brigar, morre um. Então, não morria ninguém. Porque o pessoal do deixa disso entrava no meio. São Paulo todinho, Casa Verde, Penha, Lapa, Sumaré, Jabaquara, vinham para o Centro ver o Lavapés, Camisa, Vai-vai, Campos Elíseos. Os Cordões ficavam se preparando um mês antes de chegar fevereiro e aí já era época de Carnaval. T O N I Q U I N H O B A T U Q U E I R O “As sete da manhã tô trabalhando,/ Às onze horas paro para almoçar,/ Faço economia o ano inteiro quando chega fevereiro/ Pago para ninguém me incomodar!” A Lavapés era escola de samba e tinha o Genésio que era o apitador e o que tocava trombone que era muito bom. O trombone vinha no meio da bateria, harmonizando. Ficava todo mundo com a boca aberta. No Vai-Vai era Pato N’água, o maior sambador e apitador de todos os tempos, ele sambava assoprando o apito. No Camisa era o Claudionor que tocava Clarim, ele anunciava a saída do Camisa ali da Conselheiro Brotero e ia embora pela São João. No Campos Elíseos destacava o Odilon que era o homem da baliza, um dos maiores de São Paulo. Foi a única morte durante o carnaval, ali no Largo da Banana, de Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 59 T O N I Q U I N H O B A T U Q U E I R O 60 esquina com a Alameda Olga. Eu ia chegando lá e falaram: “Foi ali, foi ali!” “Que foi?” “Deram o tiro no Odilon ali!” Na Peruche tinha a tal de Guga que sambava muito bem. CARLOS: E as rodas de tiririca? TONIQUINHO: Tiririca, na verdade, é uma mata daninha, um matinho verde. Tiririca é um grupo que não é bem capoeira. É capoeira só que não segue aquela linha. É a mesma coisa, não muda nada, só o nome dos golpes. E a nossa capoeira aqui era batida na mão e a roda ia rodear. Dois homens sambando na roda, com golpes rasteiros e o batuque de engraxate de lado. Existe o “cair” e o “ir ao chão”. Cair é cair de maduro, tomou, caiu. Quando o cara sai do golpe do adversário, vai ao chão, faz ali umas graças com o corpo e fica de novo em pé, para atacar ou ser atacado. Quando o cara cai, se machuca e sangra. O povão chamava a polícia que vinha e espalhava a roda. E assim, ia até o dia amanhecer quando a polícia não levava a gente preso. CARLOS: O senhor jogava tiririca ou só tocava? TONIQUINHO: Meu forte era ficar no ritmo. Quando a polícia ia embora, o samba voltava. Então, entrava o segundo e o terceiro time, que éramos nós, os moleques, e aí a tiririca era mais leve. Quando voltavam os nego véio e a roda ficava pesada, a gente ficava só no ritmo. CARLOS: Quem era muito forte? TONIQUINHO: Eram muitos. Pato N’água era exímio. Tinha o Negro Zimba, Negro Café, Negro Louco, Oliveira, Guardinha Boca Larga, Mineiro do Rádio, Zinho, um tal de Manja Balão e muitos outros. CARLOS: O senhor acompanhou o samba rural feito em São Paulo? TONIQUINHO: Aqui em São Paulo todo samba é rural porque é feito na periferia. Samba rural que você quer dizer é o samba do interior? CARLOS: Isso. TONIQUINHO: Você pega inúmeros modos de falar aqui. Quando você vem para São Paulo você perde o modo, o sistema do lugar. Por exemplo, eu fiz uma música agora que foi do jeito da minha terra. “Quem planta cói, quem qué colhê semeia. Avisa a turma que vai tê samba na aldeia. Carreiro, carro, vai buscar meu boi de guia, saindo daqui agora, chega no raiar do dia.” Um Batuque Memorável no Samba Paulistano Botando uma cozinha de fundo e vai cantando direitinho... CARLOS: O senhor tem uma voz linda e uma alegria cantando. TONIQUINHO: Eu não canto querendo ser cantor. Tanto é que vieram aqui ontem, eu passei a música para eles pensando que eles iam pegar cantores para aprimorar a música e gravar, mas eles me querem cantando. CARLOS: Então, vai ter um CD novo? TONIQUINHO: Eles dizem que sim, mas são tantas as promessas. O que der para mim está bom. Vai sair o CD, estão dizendo que vai sair. CARLOS: Uma época o senhor foi morar no Rio de Janeiro. TONIQUINHO: Fui, quando terminou a guerra. Voltei para São Paulo em 45 e fui para o Rio de volta, com a chegada dos expedicionários. Depois voltei ao Rio novamente em 1950, para trabalhar numa demolição, Grande Palace Hotel, na rua Almirante Barroso, esquina com a Rio Branco, meio quarteirão do Tabuleiro da Baiana. Nunca gostei do Rio. CARLOS: O senhor foi à rodas de samba lá? TONIQUINHO: Não, no Rio sou devagar. Eu não ia entrar na roda, no embalo daqueles caras. Eles tinham um embalo diferente. Primeiro, eu quero ver bem como é que é, para poder entrar na brincadeira, senão não entro. Eu via os caras cantando no microfone e eu só olhando. Não sabia o que estava acontecendo, queria pegar o sistema de lá. É o mesmo samba, mas a batida do Rio era diferente de São Paulo. CARLOS: Hoje está tudo diferente ou o senhor acha que está tudo igual? TONIQUINHO: O mal de São Paulo foi igualar tanto. Bateu no Rio, bateu em São Paulo ou em qualquer outro estado aí, alguns deles até tem diferença, mas todo mundo segue a pegada do Rio. Já viu a zorra que eles fazem na avenida? E a passagem da bateria? Som alto pra caramba, trezentas pessoas na bateria. Aquele montão de gente. A meu ver é muito alto, muita gente tocando, não tem como ouvir porque é muito som. O samba hoje não tem mais povo, não tem mais pegada. Eles contam uma história, botam a letra na melodia. Faz um ritmo de avenida e põe uma melodia boa. Batuque é para se ouvir. Antigamente no carnaval eram de cinco a dez por cento de cada ala numa bateria, por exemplo, se tivesse quatro alas, tinha quarenta pessoas. Como as escolas de São Paulo não tinham ala, não tinham Um Batuque Memorável no Samba Paulistano T O N I Q U I N H O B A T U Q U E I R O 61 T O N I Q U I N H O B A T U Q U E I R O 62 formação de escola de samba, colocavam dez ou quinze pessoas no ritmo, mas pessoas que tinham intimidade com o instrumento e com o canto. Naquela época, a bateria acompanhava o canto, hoje o canto acompanha a bateria. As letras das músicas atingiam o povo, hoje o cara canta, a escola passa e você não sabe o que o cara cantou. Dizem que é cultura. CARLOS: O senhor acompanhou o samba em diversas fases do carnaval: São João, Anhangabaú, Tiradentes. Conta um pouco. TONIQUINHO: Antes os pontos de aglomeração eram no Parque da Água Branca, paralela com a Rua Monte Alegre. Mudaram de nome várias vezes, hoje é Avenida Francisco Matarazzo. Dali foi para a Praça da Bandeira, de lá para o Ibirapuera. Daí foi São João que terminava no Vale do Anhangabaú. Da São João voltou para o Vale do Anhangabaú, então foi para a Tiradentes e da Tiradentes para o Sambódromo. Aglomeração é o seguinte: a escola não tinha mais que cem pessoas, talvez até menos. Ninguém gostava de andar fantasiado no meio da rua. E não tinha condução. Condução era bonde. Aí diziam: “Nós vamos à Praça não sei o quê!” Iam. A escola que ganhava recebia um troféu. Na Penha tinha um doutor que botou dinheiro na taça e quem ganhasse levava. Aí depois você ouvia: “Nós ganhamos em tal local.” E outro: “Nós ganhamos em tal.” Todo mundo ganhava, ninguém perdia. “Vocês ganharam porque nós não estávamos lá, senão perdiam.” Tinha esses pontos de divergência. Um ganhava na Lapa, outro na Penha, outro na São João e por aí vai. Os donos das padarias de bairro promoviam a festa e os vizinhos ajudavam na promoção e ele convidava as escolas para se apresentarem e promover a padaria dele. E assim, cada bairro fazia um, como a Léia da UESP faz hoje, só que oficialmente. O carnaval ficava movimentado e cada escola ia para um lugar. Na Vila Maria ia para Guarulhos, Peruche para um lugar mais próximo. Todo mundo era campeão. Ao longo de todo o Carnaval que eu vivi foi assim, depois em 1968 organizou-se. Aí entram na organização Nenê, Pé Rachado, Mulata, Carlão do Peruche, Evaristo de Carvalho, Dito Caipira da Vila Maria, Mala, Dona Eunice, junto com o prefeito Faria Lima. Outros podem falar melhor desta parte. CARLOS: E como eram os encontros dos grupos no Centro? TONIQUINHO: Passavam tocando. Tinha uma escola no palanque Um Batuque Memorável no Samba Paulistano tocando, esperava a escola terminar, recebia as palmas e quando ela saía você entrava com a sua escola. Por exemplo, no Braço Politeama, da Estação do Brás, a escola que passasse por lá, ganhava ou perdia. Por lá passava Nenê de Vila Matilde, Império do Cambuci, uma porção de escolas. Passava e ganhava e chegava ao Centro e dizia: “Nós ganhamos lá na Estação Brás”. CARLOS: O senhor ajudou a fundar várias escolas. TONIQUINHO: Ajudei bastante em muitas fundações, mas nunca fiquei parado em lugar algum. Nunca fui subordinado à escola. Ajudei na fundação do Peruche, na Império do Cambuci, Unidos de Vila Maria. No Rosas de Ouro, fiz o primeiro samba. Muita gente foi para lá porque o samba era meu. Ao mesmo tempo em que eu fundei o Meninos Lá de Casa, o Pé Rachado fundava a Barroca Zona Sul. No mesmo ano. Ele ficou em primeiro e eu fiquei em segundo, no Carnaval da Lapa, no terceiro grupo da UESP - União das Escolas de Samba. CARLOS: Tem algum momento do carnaval que foi muito bom e o senhor não esquece? TONIQUINHO: Todos os momentos foram bons, sem tirar nenhum. Só chegava a chorar quando terminava o carnaval. Terminava o carnaval antigamente tinha que ir à igreja rezar. Não podia nem pensar na quarta-feira de cinzas! Sempre gostei de carnaval, de ritmo. Todos os momentos foram agradáveis. CARLOS: O senhor teve uma experiência com o teatro. Conte um pouco. TONIQUINHO: Em 1969, 1970. Tinha uma voz me chamando. Um tal de Plínio Marcos. Eu estava sentado aí e ouvi a chamada no ar. Marcaram um programa do “Oi, geeente!”, como é que é o nome do apresentador? Não lembro. Tinha que cantar no programa. O Plínio me abriu o caminho. O programa era de 15 minutos dele e quinze minutos do outro. Aí chama o Zeca. Cantava rápido. Depois o Geraldo. Depois Toniquinho. Saía daqui cedo para estar na rádio às 6 horas da manhã. Sem condução. Zeca morava lá no Peruche e dizia: “tem que sair muito cedo!” E o Plínio: “você não quer trabalhar não, porra?!” Zeca: “eu canto porque eu gosto de cantar!” Plínio: “pois a partir de hoje tem que chegar na hora certa.” “Eu não venho e falo mais: não tenho dinheiro para condução!” O Geraldo vivia no centrão e era mais fácil. “Para mim Um Batuque Memorável no Samba Paulistano T O N I Q U I N H O B A T U Q U E I R O 63 T O N I Q U I N H O B A T U Q U E I R O 64 dá!” “Então vem você!” Daqui a pouco surgiu o “Arena Conta Zumbi”, fiquei conhecendo o Zé Keti, que eu já conhecia de vista. Ele entrou no meio, fazendo uma graça com a gente ali, cantando samba, aí o Plínio escreveu outra peça, não lembro o nome. Quem ensaiava tudo era o Wilson de Moraes. Fizemos no Teatro de Arena uma temporada, fizemos TBC, fizemos Teatro São Pedro, fora as casas particulares. . CARLOS: Sempre tinha sambas na peça? TONIQUINHO: No cinema, antes de começar o pianista tocava piano, dizia ele, não sei se era verdade. Quando chegava na hora de passar o filme, encerrava o pianista. Então, nós cantávamos nas peças do Plínio. Cada um tocando com seu instrumento antes de começar a peça. Quando começava a peça, a casa estava cheia de gente, daí ele mandava começar. CARLOS: Depois vocês voltaram com a história do samba. TONIQUINHO: “Na Quebrada do Mundaréu”. CARLOS: Quero agradecer muito a sua entrevista. TONIQUINHO: Eu, Toniquinho Batuqueiro, assumo toda a responsabilidade do que está escrito neste papel. Eu dei a entrevista pessoalmente. Assumo a responsabilidade do que eu disse. Quem tiver alguma coisa para dizer, fale comigo. Questione comigo, se houver questão. Todo mundo tem mania de contar do que viu. Isso que eu contei é a pura realidade. E só. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano DONA VERA E SEU ARNALDO D. Vera Lúcia Guedes, nasceu no dia 29 de outubro de 1951, em Mogi das Cruzes – SP. É instrumentadora de buco-maxilo. Sr. Arnaldo Guedes nasceu no dia 20 de abril de 1950, Rio de Janeiro – RJ. É aposentado. Casados desde 1972. Entrevista realizada dia 17 de dezembro de 2008. CARLOS: Qual a sua idade? ARNALDO: 58 anos. CARLOS: Nasceu onde? ARNALDO: Nasci no Rio de Janeiro, mas fui criado em São Paulo. CARLOS: Veio para cá com quantos anos? ARNALDO: Seis, sete anos de idade. CARLOS: Você sempre morou aqui no Jabaquara? ARNALDO: Não, não, eu morei em Guarulhos e fui criado na Zona Leste. Moramos um ano, um ano e meio lá e depois fomos para a Zona Leste, lá pro Itaim Paulista em 1958 e saímos de lá em 82. Então, nos mudamos para o Jabaquara e estamos aqui até hoje. CARLOS: Sua profissão? ARNALDO: Bom, estou aposentado, mas nos últimos 24 anos, metroviário. Eu trabalhava na área de usinagem. Fazíamos toda a parte de componentes, manutenção para reposição de peça, construção, desenvolvimento de peça e área técnica de manutenção. CARLOS: Um mecânico de metrô? ARNALDO: Não, usinador. São pessoas que trabalham com máquinas operatrizes, fresa, retífica e torno. Era um pouco mais complexo. Mecânico é o que atua direto na troca de equipamentos, revisão, essas coisas. CARLOS: Esta conversa é para você contar um pouco da sua história no samba. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 65 S E U A R N A L D O E D O N A V E R A 66 ARNALDO: Nós, o povo negro, tudo nos foi passado pela oralidade. Então, é preciso que se tenha documentação para registrar, senão tudo se perde, cada um conta de um jeito e as coisas vão se perdendo. CARLOS: Podia começar falando da sua história no samba. ARNALDO: Bom, eu sou pioneiro na família. Não sei se por ter nascido no Rio, mas eu sempre gostei. Comecei realmente a atuar em Escola de Samba em 1963, na Unidos de Vila Maria como passista, aos 13 anos. Primeiro fui ritmista, saí na bateria. Passei a ser mestre-sala. Depois, comecei com alguns amigos a ir para Rio Claro, onde eles tinham uma escola de samba. Fomos em 30 pessoas, colegas e moças: a nossa turminha. Devido à diferença da batucada, nós fizemos uma reunião e resolvemos que iríamos formar uma bateria dentro daquela já existente, mas também não deu certo porque era muito diferente. Fomos a um ensaio e precisava de alguém para ficar na frente para reger, e foi a primeira vez que eu fiquei na frente de uma bateria. CARLOS: E qual era o nome da escola? ARNALDO: Tamoio. Unidos do Tamoio de Rio Claro. Ela deve existir até hoje, eu perdi o contato, mas deve existir. E era interessante porque essa escola, como o pessoal mesmo lá falava, era a escola dos negros pobres. Tinha outra que era dos negros mais elitizados, com um poder aquisitivo maior, que era a José do Patrocínio. As duas dentro do Carnaval eram rivais. Então, começamos a engrenar a bateria do jeito deles com nosso jeito, e do nosso jeito com o jeito deles. Ficou super legal, ficou diferente, com breque, intervenções. Na época, as escolas de samba de Rio Claro também iam para Santa Gertrudes e outra cidade que não me ocorre agora. Conseguimos ganhar o Carnaval das outras cidades também. Em um ano ganhamos em três lugares diferentes. Tricampeões. Ficamos lá até 73. No ano seguinte, o Mercadoria, famoso diretor de harmonia, e mais algumas pessoas que moravam no mesmo bairro que eu, resolveram fundar uma escola e me convidaram. CARLOS: Na Zona Leste? ARNALDO: Na Zona Leste. CARLOS: Quantas vezes o senhor viajava para Rio Claro? ARNALDO: A gente ia mais na época de Carnaval. CARLOS: Ficava aqui e viajava? Um Batuque Memorável no Samba Paulistano S E U ARNALDO: Não, ficávamos lá. Quando fui convidado para fazer parte da fundação da Primeira do Itaim Paulista com o Mercadoria, o Oscar Miguel, o Raimundo de Souza que é falecido, o Rubinho, o Zezé, Deleu e mais algumas outras pessoas, em 74, na época, só tinha a Nenê de Vila Matilde para o nosso lado, não tinha nenhuma outra escola. Então, fundamos esta que tomou uma força muito grande, porque não tinha outro divertimento. No segundo ano, fomos campeões no grupo em que estávamos. Chegamos ao que seria hoje o grupo de acesso. Tinha uma comunidade muito forte, a escola era só de operários. Eu tinha amigos que saíam na bateria que eu dirigia, e esculpiam, construíam alegoria, faziam tudo ali. Éramos uma revolução dentro do samba, com diferenciais que a gente não encontrava em outras escolas. E o mais importante é que todo mundo era amigo e tinha uma facilidade de comunicação. No ano de 75, eu ganhei o apito de prata de São Paulo por causa da bateria, era o segundo melhor. O concurso foi promovido pela Secretaria de Esportes, Turismo e Fomento. Ganhou em primeiro lugar, o falecido Feijoada, o apito de ouro. O Feijoada era considerado o melhor da época. O Mestre Binha, que vinha de uma escola nova, a Barroca Zona Sul, ganhou o apito de bronze. Faleceu algum tempo atrás, era filho do também falecido Pé Rachado, que era presidente da Vai-Vai. Fiquei lá até o ano de 82. Depois fui convidado pelo próprio Mercadoria e pelo senhor Eduardo Basílio para dirigir a bateria do Rosas de Ouro, mas na mesma época que era para eu ter assumido a bateria, eu entrei no metrô e fiquei entre a cruz e a espada. Eu tinha dois filhos pequenos, então dei prioridade para o trabalho. Trabalhava à noite e acabei ficando na harmonia de 82 até 98. Tive a felicidade de estar presente em todos os campeonatos que o Rosas ganhou. Foi fantástica essa permanência. CARLOS: Você foi ritmista na Vila Maria? ARNALDO: Isso. Depois mestre-sala. CARLOS: E tem a prova de fogo, não é? Como foi? ARNALDO: Hoje está um pouco mais fácil. As escolas oferecem treinamento. Naquele tempo você chegava, falava com o mestre. Ele perguntava: “O que você toca?” “Ah, eu toco caixa”. Ele te dava uma caixa para tocar. Parava toda a bateria e você tocava sozinho. Ou você tocava ou então não tocava. Era o Mestre Batucada, um dos poucos Um Batuque Memorável no Samba Paulistano A R N A L D O E D O N A V E R A 67 S E U A R N A L D O E D O N A V E R A 68 brancos que dirigia bateria na época. Eu não tenho certeza, mas parece que é vivo, ainda hoje. E passei pela prova de fogo, fiquei na bateria. Foi por sorte também. CARLOS: Virou mestre. ARNALDO: É, depois de alguns anos. Primeiro fui passista, depois ritmista, depois mestre-sala na Unidos de Vila Maria. Em casa tenho dois mestres-sala. Os dois premiados. Aquele é o troféu do Diário Popular. CARLOS: Você estava falando da Itaim. Qual foi o motivo que você saiu de lá? ARNALDO: Pode-se dizer que aquela era uma escola do povo, pelo povo e para o povo. Não tinha muita grana, tudo que se fazia lá era feito por nós mesmos, inclusive não tínhamos nem carnavalesco. Tínhamos um amigo que era professor, dava uma ideia para o enredo, apresentava-o e desenvolvíamos. O pessoal confeccionava a própria fantasia. Era um carnaval muito mais romântico sem esse envolvimento mercadológico. Hoje as pessoas não têm esse vínculo com as escolas. Ganhou “Acadêmicos Não Sei Do Que”, então vai todo mundo para lá. Antes, o pessoal era muito ligado um ao outro, por laços de amizade e em pról da própria escola. Saí de lá por divergências com o presidente. Quando chegava o carnaval a gente tirava férias e alguns ficavam trabalhando, confeccionando fantasia, chapéus, aquela coisa toda. Um dia eu discuti com ele, estava todo mundo trabalhando, nós fazíamos vaquinha para fazer o almoço e ele estava no bar jogando baralho. Fiquei louco da vida e discuti com ele. Acabou o carnaval e eu acabei saindo. Ele achava que estava certo porque era o presidente, e eu achava que ele como presidente tinha que estar junto. Saí por esse motivo, e desgostoso, pois eu era fundador, mas não teve jeito. Eu me divergia com ele, então, era melhor sair. Fui para o Rosas, fui ficando até chegar a diretor geral, o presidente de harmonia, como era chamado lá. CARLOS: E a Itaim, ficou quanto tempo? ARNALDO: A Itaim foi até agora, 2002, 2003. Depois de alguns anos cheguei a ter enredo lá. CARLOS: Você lembra do samba? ARNALDO: Ah, não vou lembrar, Infelizmente. É que vai passando e já Um Batuque Memorável no Samba Paulistano S E U entra com outro samba, outro ano, acaba esquecendo. CARLOS: O samba enredo tem sido difícil ficar na memória também. ARNALDO: É que mudou muito a linha de samba. Tem samba de vinte anos atrás que é cantado como se fosse atual, tinha uma melodia bonita, uma letra marcante, só que no decorrer do tempo e da própria necessidade da organização de desfile, hoje está tudo mudando: meio marchado, samba curto, com refrão e dois refrões fortíssimos. A função da escola é desfilar. Antigamente era muito mais compassado, com ritmo, dava para fazer sambas mais compridos, com uma poética muito maior. Hoje a necessidade transformou o desfile em outra coisa. Apesar de ter crescido muito, o carnaval em São Paulo perdeu um pouco do romantismo. CARLOS: Esse romantismo que você fala, em algumas letras, a gente tem um pouco dessa imagem. ARNALDO: Hoje, veja bem, nós temos os chefes de ala que são muito diferentes do que era naquela época. Hoje as fantasias são fabricadas, antigamente eram montadas, feito a mão, de bordar lantejoula, de colocar a unha. As pessoas que iam naquela ala, tinham a obrigação, bordavam a sua própria fantasia ou ensinava outro colega, outro componente, outro amigo a bordar também. Esse tipo de romantismo se perdeu, hoje você compra pela internet, já começa por aí. As pessoas não têm muito vínculo. Tem uma meia dúzia de malucos iguais a mim que ficam o ano inteiro frequentando, mas é minoria. Então, o romantismo hoje é você sair numa escola de samba, mas sair é fácil. A grande maioria que procura uma escola de samba hoje não conhece ninguém. Vai lá, escolhe a fantasia. “Quanto é?” “X”! Divide em quantas vezes quiser, paga no cartão, cheque pré-datado, faz boleto e à vista tem desconto. Perdeu-se o vínculo. Esse ano vai para a Vai-Vai, ano que vem vai para a X-9, depois à Mocidade. Era uma grande família, todo mundo se conhecia, sabia o nome do pai, sabia o nome da mãe. As escolas cresceram muito. Antigamente uma escola com 700 pessoas era de grande porte, hoje as baterias têm 400 pessoas. As escolas têm 2.500, 3.000 pessoas. É uma coisa impressionante. CARLOS: E os desfiles, você chegou a pegar... ARNALDO: Peguei Anhangabaú, o primeiro, peguei São João, peguei Tiradentes, que saudade! Acho que na boca da maior parte dos Um Batuque Memorável no Samba Paulistano A R N A L D O E D O N A V E R A 69 S E U A R N A L D O E D O N A V E R A 70 sambistas a Tiradentes foi o auge, tinha a terça-feira gorda. Aquilo era excepcional, apoteose. As escolas chegavam completas, tinha desfile oficial e depois desfilava o campeão da apoteose, aí já era uma coisa mais despretensiosa, não tinha aquela rigidez toda de desfile, uma coisa muita mais leve, uma coisa solta. CARLOS: Meio São João? ARNALDO: São João, não. Não é isso. Era outro desfile. Estava com saudade disso aí, porque era um desfile muito leve, solto e alegre, então colocava tudo para fora. Durante o campeonato, tinha de cumprir uma série de regras, não pode isso, não pode aquilo, mas não, isso já passou. CARLOS: O desfile dos desejos. ARNALDO: Era excepcional. Era fantástico. A gente se divertia muito. Às vezes o campeão da apoteose era muito diferente do campeão oficial. O oficial nem importava, o importante era a Apoteose. CARLOS: Procurei algumas pessoas na Avenida Tiradentes para falar um pouco dos desfiles daquela época. Foi muito difícil encontrá-las. Queria saber dos moradores o que significava aquilo para eles. ARNALDO: Eu não tenho nem ideia. Acredito que deveríamos atrapalhar. Quando era na São João, não tinha cobrança de ingresso, não tinha arquibancada, era corda, e o público participava mais na São João. A arquibancada começou na Tiradentes, sempre teve. No começo era gratuito e depois começou a cobrança até por conta da estrutura. CARLOS: Teve um morador que ficou muito impressionado com uma mulher que saiu nua. ARNALDO: Foi na Camisa Verde. CARLOS: Ele achava que era Vai-Vai e outra pessoa também falou que era Vai-Vai. ARNALDO: O Camisa saiu com o enredo que falava da natureza. Vinha uma cascata e uma mulher lindíssima caracterizada de índia, tomando banho na Cascata, se bem que o carro era 4mx4m, hoje é de 40m. Foi uma revolução. CARLOS: Você quer contar alguma história? ARNALDO: Eu nunca desfilei na Vai-Vai. Meu filho foi campeão algumas vezes por lá. Apesar de nunca ter desfilado na Vai-Vai, eu tinha muitos amigos que eram de lá. Eu gostava de tocar caixa. Saí da Zona Leste Um Batuque Memorável no Samba Paulistano S E U com um amigo, Louzaninho, o filho do Louzá que foi apitador do VaiVai. No Vai-Vai guardavam-se os instrumentos em frente onde é hoje a sede da UESP, logicamente a cidade não era do mesmo jeito. Não havia aquele viaduto na 13 de Maio. Tinha o Cordão Vai-Vai, sob a regência do Mestre Feijoada e tinha o Cordão Fio de Ouro, subia um e vinha o outro. Tinha o repenique, ou repelique, como alguns falam, que era usado para o primeiro racha para chamar o samba. Numa dessas vezes peguei um tarol, que é mais fininho e repica mais. Ele estava bem afinado, com a esteira, o bordon que é tipo aquela corda de violão. Acabei de pegar e chegou um cara querendo pegar também. Encheu o saco. Conclusão, final do samba, o mestre fez o sinal para o breque. E o cara lá, “me deixa pegar”, e eu não querendo deixar. Fizemos o breque, todos prestando atenção no samba. O Mestre Feijoada tinha feito sinal para parar e sozinho eu chamei o samba de volta. Naquele tempo a gente falava “dar a mão para bolo”, ou seja, você levava baquetada. Não tive dúvida, coloquei o talabarte no pescoço do cara e saí andando. Foi ele quem apanhou. Depois de muitos anos, lembrei e contei para o Feijoada, que morreu de dar risada. CARLOS: Você lembra da primeira roda de samba que você foi? ARNALDO: Naquela época você não tinha necessidade de um medalhão para lotar uma quadra. As rodas de samba eram feitas pela ala de compositores da escola, das oito da noite até às quatro da manhã. Cantava todos os sambas da escola e de outras escolas de São Paulo e do Rio de Janeiro, mas também não tinha a concorrência que tem hoje. Hoje tem samba em tudo quanto é lugar. Quem queria ouvir samba tinha que ir para uma escola de samba. A primeira que me lembro é a própria Peruche, mas da região que eu morava era a Nenê de Vila Matilde. Outra coisa, para ingressar numa ala de compositores você passava por uma peneira. A pessoa tinha que fazer um samba de quadra, samba de exaltação para a escola, e num dia determinado apresentava o samba, que passava pelo crivo dos mais velhos. Era comum ouvir: “Está bom, volta ano que vem!” CARLOS: Qual o desfile que mais te emocionou? ARNALDO: Todo desfile é uma emoção, mas um dos primeiros que mais me marcou foi na Itaim, fizemos o enredo Menino dos Palmares. Os destaques eram todos de lá, não tinha destaques como hoje que Um Batuque Memorável no Samba Paulistano A R N A L D O E D O N A V E R A 71 S E U A R N A L D O E D O N A V E R A 72 gastam fortunas. Era confeccionada à mão e nós fomos campeões com este enredo. Era a história de um livro infantil, se eu não me engano o autor é Leandro Dupret, chamava-se Menino dos Palmares. A história de um casal, onde era uma princesa africana trazida para o Brasil, como escrava, e ele também na mesma fazenda. Eles se conheceram, mas devido às tradições africanas ela foi prometida a outro e como a família não concordava, eles fugiram. Foi a primeira vez que a comissão de frente fugiu do tradicional que era terno, fraque, cartola, chapéu panamá, e saiu vestida do que denominados de embaixadores africanos. Eles estavam vestidos com uma túnica florida, um cocar de samambaia. Foi tocante pela simplicidade do enredo e pelo resultado. Teve outro do Rosas em que o carnavalesco vestiu todo mundo em tons de rosa. Era um mar de rosas, muito bonito. Emocionante. CARLOS: O apitador foi até que ano? ARNALDO: Acho que até década de 80. CARLOS: Então, você foi apitador. ARNALDO: Fui. Apitador. Depois foi mudando para diretor e depois mestre, mas naquela época as baterias eram muito menores, então você conseguia apitar e você dirigia a bateria com um sinal sonoro, chamado de breque. Hoje o pessoal usa muito sinal. Dentro da bateria tem mais quatro ou cinco auxiliares reproduzindo o gesto do diretor que está lá na frente. Uma bateria com 300 ou 400 pessoas fica meio difícil só o apito, naquela época não. CARLOS: Como é a tua relação com as escolas? ARNALDO: Ótima. CARLOS: Você continua no Rosas de Ouro?. ARNALDO: Sou da direção de harmonia da Camisa Verde. Depois, na Rosas, tive uma divergência também. Como não sou remunerado e não tenho carteira assinada com nenhuma escola de samba, eu me reservo o direito de ser, no mínimo, respeitado. Saí do Rosas de Ouro e fui para a Mocidade Alegre. Era uma escola que vinha, desfilava bem e não assustava. Junto com a presidente, Helaine, que me deu carta branca para trabalhar, comecei a incutir nas pessoas que nós podíamos. No ano de 99 tivemos problemas com a alegoria que não entrou. No ano seguinte virei diretor de harmonia da escola e já chegamos ao segundo lugar com a X-9, mas perdemos no desempate e ficamos com o terceiro. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano S E U Foi quando começaram a acreditar no nosso trabalho. Saí de lá com a escola vice-campeã. A presidente Helaine entregou o cargo, doente já, e eu, presidente da harmonia, cargo de confiança do presidente, entreguei junto com ela. Hoje a Mocidade é isso aí. Tem um pouquinho do meu dedo lá. Por isso que eu digo que a minha relação com as escolas é ótima. Eu entro e saio e sou muito bem recebido. Não só eu, como toda a minha família. CARLOS: Hoje é Camisa? ARNALDO: Hoje ela caiu, está no acesso, e eu estou na Harmonia. Minha mulher é chefe da ala das baianas. Estamos trabalhando para o Camisa voltar para o lugar dele. Falta um pouco de auto-afirmação. Uma escola de muita tradição. A Mocidade levou quatro anos para se firmar. Estamos tentando também no Camisa. CARLOS: A sua esposa sempre foi do samba? ARNALDO: Não, quando nos casamos ela não era. Hoje é considerada uma das melhores chefes de baianas de São Paulo. Por eu ser do Rio de Janeiro, temos muitas amizades lá, então vamos aos cursos, palestras. Hoje a família toda participa, até os netos. Seu Arnaldo mostrou suas fotos e reportagens e sua esposa, Dona Vera, participou da conversa. DONA VERA: Na época da Tiradentes eu levava meus filhos para assistir ao desfile, o Arnaldo estava trabalhando pelo Rosas de Ouro. Meu filho demonstrou interesse em participar e quando ele fez 14 anos, já estava treinando o samba que se aprendia na escola com um grande mestresala chamado Jorge Luís. Um dia ele me disse que estava doente, mas eu não acreditei. Ele dizia que meu filho seria um dos grandes mestressala de São Paulo. No mesmo ano em que ele morreu meu filho ganhou o primeiro prêmio como melhor mestre-sala de São Paulo. Jorge Luís não desfilou porque estava muito doente. Ele morreu com 20 e poucos anos, foi muito triste. Jorge Luís foi um dos melhores mestres-sala que o Rosas de Ouro teve. Eu me orgulhei muito quando meu filho foi dançar pela Império Serrano em homenagem a ele. A gente tem que agradecer mesmo aqueles que se foram, pois eles deixaram um belo trabalho. O samba deixou muita coisa maravilhosa. Hoje não temos grandes harmonias, grandes passistas. Nós temos cópias. O carnavalesco tem um sonho. A gente vive no sonho dele, Um Batuque Memorável no Samba Paulistano A R N A L D O E D O N A V E R A 73 S E U A R N A L D O E D O N A V E R A 74 é um arco-íris. Ele põe várias das cores, várias das histórias e só ele entende. Vamos revelar o sonho do carnavalesco. Você não sabe a história que ele vai trazer para você, mas você vai fazer. ARNALDO: A montagem final está na cabeça dele. Nós presenciamos casos, não causos, de escolas de samba que se propuseram a falar de religião. É coisa complicada. É perigoso, segundo mãe e pai de santo, tem que pedir licença ao santo, se pode usar aquela vestimenta, se pode falar tal palavra, se pode vir tal imagem representada no carro. No desfile das campeãs, acho que em 94, um carro da Peruche foi até o meio da avenida, parou e ficou no box da bateria. DONA VERA: Meu marido era da harmonia da Rosas e da coordenação da Liga e eu estava com o Pavilhão (do Peruche) porque meu filho ia ser o segundo mestre-sala dela. Eu vinha vestida de boina jogada de lado, com uma roupa preta e um pano africano. Eu estava andando, pois queria ver toda a escola e tinha aquele santo, o Tranca Rua, o Exu. Até então estava tudo certo. De repente passa o diretor de carnaval perguntando quem tinha mandado colocar aquele homem (alegoria) na frente, e dando ordem para que ele fosse o terceiro carro e que trouxessem o carro de Xangô no lugar dele. Todo mundo botou a mão na cabeça pedindo para que ele não fizesse isso. ARNALDO: E a noite estava maravilhosa! DONA VERA: Estava muito calor, o Arnaldo saiu no Rosas, e eu e meu filho íamos sair no Peruche. Na verdade saímos em várias escolas. ARNALDO: Foi então que trocaram o carro. DONA VERA: E começou uma ventania, tão forte que não tinha onde se segurar. E o vento arrebentando as alegorias da escola, o povo tentando segurar tudo. De repente veio a chuva forte que durou cerca de alguns minutos, mas foi aquela tempestade que não tinha onde se segurar nem esconder. Foi ali que comecei a conhecer a figura. Ele vinha lá de baixo e quando chegou à porta, pronto para entrar, todo mundo passou e ele ficou. Quando o carro chegou ao portal, ele virava para todo lado, menos em direção a avenida. Tentavam empurrar para a outra direção e ele não ia. Exu não vai desfilar e não desfilou. Acabou o desfile, acabou a chuva. Fomos empurrar o carro para trás e ele foi lindo da vida para a concentração, sem nenhuma dificuldade. ARNALDO: Foi o segundo ano do Anhembi. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano S E U DONA VERA: Ela não foi desclassificada. Ficou em quinto lugar e ia para o Desfile das Campeãs. ARNALDO: E aí o carro desceu na frente. DONA VERA: Levaram-no para passear. Andaram com ele na avenida todinha. Todo mundo dizia que era o carro de Exu. ARNALDO: Arrumaram a caixa de direção à tarde inteira. Ele entrou na frente para o desfile, mas só conseguiram levá-lo até o meio, no recuo da bateria, a muito custo, pois ele não andava em linha reta. DONA VERA: Você precisava ver. Eu não desfilei para ver o que estava acontecendo. São Paulo inteira estava esperando. ARNALDO: O carro estava lindo. DONA VERA: Lindo, lindo. O carnaval para mim é uma história e eu vivo dentro dela. Existem muitas histórias, nós vivemos numa festa mística. Eu não sei quem esta lá dentro e você esquece quem você é. Em 60 minutos você se transforma. Esquece que tem problemas, quem é teu parceiro, tua parceira, quem é seu amigo, quem é você. Quando acorda e olha para trás, já passou, já desfilou. CARLOS: Obrigado. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano A R N A L D O E D O N A V E R A 75 MESTRE DIVINO Sr. Valdevino Batista da Silva, Mestre Divino, nasceu no dia 31 de maio de 1950, em Salvador – BA. É Calceteiro. Entrevista realizada no dia 06 de fevereiro de 2009. CARLOS: Qual o seu nome? DIVINO: Meu nome é Valdevino Batista da Silva. Todo Batista tem que ter Silva, Alves ou Ferreira. Eu gosto de tocar, sou batuqueiro. A batucada tem estilo e a bateria tem padrão. Então, a gente prefere estilo à padronização. Você ensina criança, adolescente e melhor idade, tudo o que a pessoa consegue mentalizar em questão de ritmo: pode ser corda, teclado ou sopro. O que você imaginar fica mentalizado com noção de compasso e de tempo. Pode ser quem quer que seja: adulto ou criança. Conversamos meia hora e depois a pessoa faz aquilo (o som) com a boca. A partir do momento que ela fizer com a boca, ela mentaliza e será automática a coordenação motora. Quando ela errar, para e relembra com a boca. Então, volta para a mão. Você nunca tocou, mas, se você passar dez minutos aqui, vai embora pensando no caso. O primeiro passo é mentalizar. Vira e mexe tem show, apresentação, um bate papo com pessoas que não são do samba e no final da apresentação está todo mundo fazendo uma batucada com a boca e uma batucada com as mãos. A pessoa pode, através disso, ter um norte, ter uma referência de onde ela quer chegar. A batucada é assim: ela tem seis estilos para serem tocados. A bateria é no máximo uma coisa, ela é padrão. Não tem como fugir daquilo. Tem um monte de reportagens falando da corte, da batucada, bateria, rainha da bateria. Quem tem que aparecer é quem está tocando. Você coloca lá a atriz Fulana de Tal, aquele esplendor! Você coloca dez na frente e 76 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano quem está dando o som fica em segundo plano. Aqui a gente coloca logo na frente as crianças, os adolescentes, a melhor idade, as moças e as senhoras. O neto tocando com a avó, o pai tocando com o filho, o filho com os primos, o vizinho com os vizinhos. As pessoas vêm de lá do outro lado da cidade, da Grande São Paulo. Tudo na batucada é tarol, tarolzinho e caixa de guerra. Cada estilo que você tocar tem que ter bumbo com surdo, surdo com surdo, bumbo com bumbo, um surdo de quarta e um de quinta. CARLOS: Como um de quarta e um de quinta? DIVINO: Na batucada tem isto. Bom, vamos fazer um estilo normal (faz com a boca). Se ele fizer com a boca ele vai estar com a coordenação motora lá (faz outros com a boca). Tem pessoas que confundem tudo (faz com a boca). Não tem nada a ver um negócio com o outro. Você entendeu a diferença de bateria para uma batucada? Uma batucada(faz com a boca). Uma bateria (faz com a boca). Não tem nada a ver uma coisa com outra. Até entendo como as pessoas conseguem chegar nisso (faz com a boca). Tem pessoas com um nível de conhecimento que passam tudo errado para os outros. Nada contra, mas cada um na sua. Agora, falar que “eu tenho a batucada!”, isso daí já era! Quantos sambas você conhece que têm batuqueiro? Um monte, mas um monte mesmo. A origem disso daí é o mesmo caso da baiana dentro da história do samba. Seja qual for o enredo, futurista, histórico, ficção tem que ter a baiana, por quê? Tudo começou por onde? Os primeiros negros escravos desceram onde? Na Bahia. No primeiro batuque, quem cozinhou os restos dos porcos que deu na feijoada? Então, por que tem baiana? Para não perder as origens. Com o tempo isso vai se perdendo por outras pessoas que se acham donas do curral e também porque tem um monte que não se valoriza. Seja você, faça o que você sabe bem. Trombe com as ideias que não são. Não seja empregado de ninguém, logicamente, se você é um atelier de barracão, de aramagem, então você é um profissional, tem que ganhar porque está trabalhando, mas jamais pode perder a essência do samba, da escola. Tem um pessoal que quer dar diploma para a gente. E a minha origem na escola de samba é com a seresta. Se eu fosse puxar pelo meu pai seria música caipira. Gosto até hoje de música caipira e não perco no domingo a Inezita Barroso na TV Cultura, Um Batuque Memorável no Samba Paulistano M E S T R E D I V I N O 77 M E S T R E D I V I N O 78 um Rolando Boldrin, não perco um Ensaio na TV Cultura, e nas TVs tudo passa e o samba vai ficando. Quem garantia que o Timbalada ia sumir? Aquele som que eles deram uma sugada na escola de samba, que não era aquilo, eles sabem que não. Eu tenho participação no samba da Bahia de 30 ou 40 anos atrás. Ninguém fala como é. É como se fossem os criadores. Puxou alguma coisa de escola de samba com o Carlinhos Brown, nem sei onde ele está, mas passou e nós vamos continuar. Dias atrás teve um evento aí que eu chamei de “INSS do Samba”. Para, meu! Quem não tem histórico e não respeita o próprio passado é a mesma coisa que não respeitar a avó, o pai, a mãe. Quem não tem passado, vai ter futuro duvidoso. Há outros interesses que acabam achatando quem realmente sabe que tem história. Escola de samba não é alegoria e fantasia. Escola de samba é canto, evolução, harmonia, melodia, bateria, batucada, ritmo e percussão. Não tem outra coisa. CARLOS: Qual sua idade? DIVINO: 60 anos. CARLOS: Nasceu em São Paulo? DIVINO: Nasci na Bahia, mas quando me mudei para cá, eu tinha 6 anos. CARLOS: De que cidade? DIVINO: Salvador. Meu pai é de Salvador e minha mãe de Olinda, Pernambuco. Meu pai era um negão de 1,80 e minha mãe, uma branca de 1,76. Tenho sangue de branco e de negro, mas sou negro. É aquela história, passou das 18:00, meu amigo, não venha contar história. E a gente sente na pele como é: tudo o que é de negro duro e branco pobre é mais difícil para o negro duro. CARLOS: Qual a sua profissão? DIVINO: Sou funcionário público municipal, minha origem é calceteiro, que trabalha com asfalto e com paralelepípedo. Eu já tenho idade para me aposentar, mas eu não quero. Aposentar para não ganhar nada, prefiro trabalhar e ganhar pelo menos o necessário, mesmo achando que não é o que mereço, mas é melhor do que o INSS da vida. CARLOS: Como foi o seu início no samba? DIVINO: Meus irmãos eram seresteiros e ouviam de tudo que você possa imaginar. Eu sou pai de 13 filhos da mesma mulher. Meus filhos Um Batuque Memorável no Samba Paulistano todos gostam de samba. Se eu tivesse que puxar meu pai, seria música caipira, mas eu não gosto de música sertaneja. Gosto de música caipira, aquela original com violinha, a popular, a da fazenda, da boca do mato. O único lugar em que todo mundo é igual é no ensaio da escola de samba, em uma concentração, em um cortejo, em desfile. Ali você tem doutor, advogado, político, malando, prostituta, vagabundo, pessoas com alto nível de estudo, médico, cirurgião. O único momento em que todo mundo é igual é em um ensaio de escola de samba, concentração ou desfile. Acabou? Acabou! De bateria e batucada, de cada dez, 9,5 é bateria. Uma batucada tem 19 tipos de instrumento, uma bateria tem 12: primeiro, segunda e terceira, repenique, tamborim, chocalho, agogô, cuíca, prato, de vez em quando, se você procurar, tem algum cara fazendo a quinta, mas às vezes ele nem sabe. A batucada é diferente, ela tem 19 instrumentos de várias medidas para dar uma tirada de som que, no fim, dá um conjunto da obra, que ao ouvir, você fala: “Que afinação!” Muita gente gosta do que a gente faz, de como a gente é ou de como passamos para eles. Como também tem muitos que não gostam. Tem gente que odeia o jeito que eu falo, mas é um festival de mentiroso. Qualquer peça eu toco, eu monto e desmonto, eu sei. Muitos têm medo de falar para não se indispor com alguém. Poxa, tem quadro lá na Globo que eu fico só vendo. Ali deveria aparecer quem toca. Às vezes está até estourando a mão, e só vai estourar a mão quem não aparece no ensaio e não criou resistência na pele. Até o carnaval você tem 40 ensaios. Não gosto quando a mão está sangrando e os caras comentam: “Está dando o sangue mesmo!” Nem sabem o porquê. Uma coisa que eu odeio é o comentarista da Globo, não dá. Queria mandar um fiscal dizer que não precisa comentar, deixa a gente passar. Os caras não sabem nada. Aí, colocam um sambista lá que fica com medo de dizer alguma coisa e perder o emprego. A gente não consegue ver três minutos de desfile. “Cala a boca, mulher!” “Cala a boca, cara!” Pelo amor de Deus! CARLOS: Você lembra da primeira roda de samba que você foi? DIVINO: A primeira roda de samba que eu fui era assim: terrão, não tinha asfalto. Antigamente, a gente tinha manteiga, hoje em dia é que tem a margarina, meio sebosa. A manteiga vinha numa latinha pequena, tinha a proteção de alumínio e a tampa. Todas as bexigas Um Batuque Memorável no Samba Paulistano M E S T R E D I V I N O 79 M E S T R E D I V I N O 80 estouradas eu guardava. Quando acabava a manteiga, eu cortava o forro e esticava a bexiga em cima e pedia para o meu irmão amarrar o cordão. Beira de campo. Nós montamos, com latão de carbureto, latinhas de manteiga, chocalhos de rolha e tamborins. Minha primeira roda de samba foi lá em um bairro entre Artur Alvim e Vila Ré. Era tão bom que a gente cabulava aula para nadar. A maldade que tinha era roubar fruta na chácara. O que é roda de samba hoje era seresta de antigamente. Meus pais não deixavam, mas, quando eles dormiam, a gente abria a veneziana devagarzinho e pá, atrás dos meus irmãos. Ainda meus irmãos falavam: “E o café?” Ainda tinha a manha de ir à casa dos amigos fazer litro de café e misturar com pinga. Amanhecia o dia sabendo que ia apanhar. Apanhei muito. Meu pai era assim, fazia qualquer coisa, não falava nada. Chegávamos eu e meus irmãos, ele não falava nada. Eu tomava banho, tomava café e quando entrava debaixo da coberta ele ia lá. “Levanta!” Cinta de couro cru. “E você não vai dormir.” Ia varrer quintal, catar papel, alumínio, engraxar sapato, fazer carreto na feira, ia ajudar minha mãe. Era tempo do filão, não tinha bengala nem pãozinho, era filão e broa. CARLOS: Conta alguma passagem inesquecível. DIVINO: A maior vergonha que eu passei na minha vida foi na Nenê de Vila Matilde. Eu fui jogado do palco para baixo e metade da batucada no Clube Tietê, pois a Nenê fazia batucada. Hoje, posso falar, de conhecimento, que não fazem mais. A outra metade ficou na quadra. Dava um breque e eu fazia um solo (fez com a boca). Eu fiz o tulugundum? Não fiz. Passei batido. Um me pegou no braço. Outro pegou no outro, me viraram de cabeça, me jogaram do palco para baixo e todo mundo rindo da minha cara. Que vergonha! Pus aquilo na cabeça. Subi lá e falei: “Vocês aprenderam, não é?” Não faltei em mais nenhum ensaio. Deus é justo: era o segundo desfile do Anhangabaú e adivinha o que aconteceu? A malacacheta de todo mundo estourou. Adivinha qual ficou inteira? A minha. Adivinha o que eu fiz? Sentei o pau. Foi ali que começaram a me ver com outros olhos. Isso era no tempo em que a gente levava baquetada. Quem vinha desfilar, agredia. Era negro bom de rodo, bom de cabeçada, bom de murro, mas também não tinha covardia. “Vai para a roda, vai brigar.”Ficava ali aquela meia hora, acabou não tinha mais continuação com inimizades. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano Eu sou do tempo em que mulher que dava à luz ficava de quarentena e recém nascido enfaixado e depois não tinha problema na espinha. O samba, por ser uma referência, a pessoa não aprende só a tocar, mas a socializar, a conviver. Se for mal educado, vai aprender a ter educação - a gente tenta tornar a criança inteligente e não esperta. Aqui toca criança, adolescente e melhor idade. Todos juntos e se respeitando. Eu gosto mais de tocar do que de dirigir, pois eu tocando, eu passo para as pessoas. Agora, ficar na frente dando ordem não rola. Eu tiro um barato quando estou na frente. E não gosto de tocar um instrumento só. Na noite passada, eu toquei tarol, malacacheta, chocalho e surdo centralizador. Eu tinha uma bolha aqui e hoje de manhã eu tirei. Se ela surgir, não estoura, pois aí arde. Esta daqui foi feita na terça-feira, parece que não. Ou aquela velha coisa que o pessoal não acredita. Tem pessoas brancas que a pele é mais fina, ou não é tão grossa quanto a de um negro, ou alguém que é pedreiro, carregou concreto, fez trabalho braçal ou já toca há muito tempo. Antes de tocar, vai ao banheiro urinar e urina na mão, depois você lava e vai lá tocar. Isto é sério. O que é a urina? Urina é coisa expelida que não pode ficar no corpo, justamente a parte áspera. Vai lá, fica um, dois minutos e lava a mão para o outro não pegar de tabela na sua urina! Tem pessoas que chegam aqui para vir tocar e dizem: “Toco surdo!” Não meu, o princípio da coisa tem um caminho. Tem que aprender, dar valor, tem que tocar chocalho. Chega cara aqui dizendo que toca tudo. “Toca chocalho?” Se não toca, não toca nada. Pode bater tudo, mas não toca. Se você aprender a balançar o braço balanceado, meio acelerado, tem a coordenação motora necessária porque você vai trabalhar toda a musculatura do braço e do ombro. E você vai se familiarizar e pegar o tino enquanto o andamento está sendo tocado (faz com a boca). Daí, você vai partir para outra coisa (ensina-me a fazer o som das batidas na boca e, posteriormente nos joelhos). Tudo tem que mentalizar. Fizemos aqui um minuto. Você vai embora fazendo no carro. Duvido que não vá (faz com a boca), daí com todos os estilos. CARLOS: Você contou das rodas de samba no campinho. Depois, você continuou fazendo instrumentos? Um Batuque Memorável no Samba Paulistano M E S T R E D I V I N O 81 M E S T R E D I V I N O 82 DIVINO: Eu fui fazendo. Tenho instrumento que tem mais de quarenta anos. CARLOS: Estão aqui? DIVINO: Tem três pandeiros. Um para samba enredo, um para partido alto e outro que é para som de seresta. São sons diferentes. CARLOS: Toca aí. DIVINO: Este pandeiro aqui é relíquia (toca). Este já é completamente diferente (toca). CARLOS: Partido alto. DIVINO: E este outro (toca e canta o samba-enredo da Escola de Samba Imperial). Quem virava, dentro da batucada, era a frigideira. O tamborim vinha tocando o telecoteco na marcação. Enquanto um fazia uma coisa, o outro fazia outra (neste momento, Divino, chama o Alan para mostrar a combinação. Enquanto um fazia uma parte, outro fazia outra e em um dado momento os sons se misturaram) Só que quem virava tudo era a coitada. Tem a coitada e a coitadinha (toca a frigideira maior). E a coitadinha junto (toca a frigideira menor). E isso foi levado para o tamborim (demonstra). Esse daqui é o tarol, mas tem o tarolzinho que é menor que este aqui. E você tem seis maneiras de tirar o som dele, dentro da batucada (demonstra as seis). E, para cada uma, você tem que ter uma tirada de som de terceira e de quarta, pois a quarta dá base para a terceira. Cada estilo deste você tem que tocar de uma maneira, tem uma afinação. Por isso que eu digo, batucada e bateria. A mão esquerda tem que ser mais usada (toca). Todo mundo pensa que só tem uma mão (toca). CARLOS: Queria que você contasse das escolas que você passou e dos desfiles. DIVINO: De 68 até 81 eu fiquei na Nenê, depois, onze anos de Camisa Verde; dois anos de Peruche; dois Carnavais na Leandro; três meses na Vila Maria; vinte e nove dias na Império da Casa Verde, logo quando começou. Aqui estou desde a fundação como batuqueiro. Eu sou do tempo do apitador, na época em que, na batucada, tinha até clarim (faz com a boca). Depois, o apitador passou a ser diretor de bateria; diminui o negócio da batucada e hoje são todos mestres de bateria. Você olha a bateria com 200 e você vê lá dez caras. Acho ridículo! Um levanta a mão e grita: “Agora”. E quando é o cara que está tocando levanta a Um Batuque Memorável no Samba Paulistano mão e grita: “Agora”. Isso está demonstrando que a bateria não está bem ensaiada, que você não ensaiou direito, que tentou fazer e não conseguiu ou que você tem muitos amigos, trutas, camaradas, manos e irmãos. Se tiver a oportunidade de vir, venha na batucada para eu te provar o que estou falando. Todas as pessoas, sendo crianças ou avós, cantam o samba de cabo a rabo. Pode soltar sozinho que ela vai. A questão de ter um indivíduo lá na frente que sou eu é uma questão só: quem canta, dança, quem canta e dança, se empolga. E se quem canta, dança, se empolga e toca, faz o negócio ferver. Todo mundo sabe que aqui, quando para a batucada, continua com a boca. Fica todo mundo cantando e a batucada com a boca. A pessoa que toca tem que ser expansiva, tem que ser alegre, estar livre, leve e solta. Ela pode estar louca, muito louca, dopada de ritmo, de percussão, transpassada, na vibração, porque é uma escola de samba. Quantas senhoras que vem aqui começam a tocar? Daí começa a melhorar a circulação, parte da musculatura. Vem aí e melhora. Tem um rapaz que é cobrador de lotação, ele escorregou da perua, veio um carro e passou por cima do braço. Foi internado e fez cirurgia. Ele era batuqueiro com a gente aqui. Quando ele voltou com o braço esquerdo livre, voltou chorando. “É, não dá mais”. “Não dá mais o quê? Morreu? Estou vendo você aqui, como não dá?” Ele estava falando isso no meio de um monte de gente. Falei: “Vem cá, vamos fazer um exercício”. Ele fez a cirurgia na mão direita e estava tocando com a mão esquerda. A dele foi fratura exposta. Agora tirou e só está com o dedo engessado. Como está tocando com uma mão só, tem que deixar esta mão para cima para dar apoio. “Mas não dá!” “Lógico que dá!” Pegou o chocalho, apoiou com a mão aqui (demonstra) e foi treinar, e o ensaio rolando. Daqui a pouco fui ver e o braço dele que parecia estar jogado ao vento, estava um pouco para cima. Depois quase colocou a mão no ombro. Terminou o ensaio e quando ele voltou, já conseguia mais, por incrível que pareça. O tato já havia voltado, a coordenação de punho, de cotovelo. Tem que pensar positivo e envolver aquilo com o seu físico, caso contrário, daqui a pouco você estará um bagaço. Eu tenho um menino aí que ele tem um problema neurológico. Ele foi criado lá na favela. Tudo o que você manda fazer ele faz. Pode ser ruim, ele faz. A polícia chegou lá: “Onde está a boca?” Ele levou a Um Batuque Memorável no Samba Paulistano M E S T R E D I V I N O 83 M E S T R E D I V I N O 84 polícia lá. Inocentemente. Ontem eu fiquei bravo com ele; por quê? Estava saindo do banheiro e estava entrando um dos menininhos e ele atrás do moleque com o dedo em riste na nuca dele: “Pá, pá, pá, pá!” Aquilo me atravessou. Levei-o longe e dei aquela lavada nele. Em um garoto desses você não vai bater, já falei com a mãe: “Toma conta porque corre risco”. Ele não tem noção. A mãe dele tem um problema físico e não consegue correr atrás. Fiquei uns dez minutos na orelha dele, explicando quantas vezes ele viu dentro da escola qualquer pessoa, componente ou qualquer outra pessoa, inclusive eu, ter este tipo de procedência? Quantas vezes alguém da escola ensinou coisa ruim para ele fazer? Só sei que ele chorou um monte ali. “Eu vou embora.” “Então, vá com Deus!” CARLOS: Obrigado, Mestre Divino. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano VALDIR CACHOEIRA Sr. Valdir Cachoeira nasceu no dia 11 de março de 1954, em São Paulo – SP. É funcionário público. Entrevista realizada dia 07 demarço de 2009 após apresentação no CEU Guarapiranga. CARLOS: Valdir Cachoeira, sambista da Rosas de Ouro, da Velha Guarda. Qual sua idade? VALDIR: Eu tenho 54 anos, dia 11 de março eu faço 55. Vai ter feriado no mundo, se o mundo não fizer, eu faço feriado. CARLOS: Faremos juntos! VALDIR: Nasceu uma historinha da escola de samba, bem na periferia, bem no fundo, não tínhamos quadra. Eu era muito ligado a Rosas de Ouro, desde criança, desde moleque. E a gente entrou na área dos compositores, fizemos alguns trabalhos lá. A idade chegou, a gente cansou, a gente está assim, cansado, não é? Muita luta, muita briga. Briga no bom sentido.Eu sempre queria que o samba tivesse total harmonia. Você é um garoto, só quer ficar na escola. Eu percebo no pessoal de hoje: não tem mais bandeira. Você sai em uma escola, amanhã sai em outra, depois vai para outra. Está tudo bem. O importante é que o samba não é só no carnaval. O samba é uma música nossa, muito divulgada lá fora. E São Paulo também faz samba. Como o Júnior do Peruche, ele foi fazer um projeto e nos convidou. Com muita satisfação estamos aprendendo com essa meninada, o grupo Na Boca do Beco, uma rapaziada muito boa do samba. Apesar da idade, aprendemos muito com eles, o ensaio e o respeito ao público. O público é a coisa mais importante, não é o artista. É gente operária, trabalhador. Gosto de fazer um samba. Eu estou terminando um samba que é assim: Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 85 V A L D I R C A C H O E I R A 86 “O samba não nasceu em um arranha céu,/ A arte não nasceu em um arranha céu,/ Ela nasce na rua,/ Chegou, entrou e vou descansar nos buracos da lua/ A arte não nasceu na rua/ Não nasceu no computador, na faculdade.” E a coisa mais triste do samba é quando você perde um parceiro. Eu quero deixar registrado dois grandes amigos, Seu Miguel da Contemporânea e Seu Juarez da Cruz, lá da Mocidade Alegre. Apesar de eu não ser da Mocidade, eu sempre ia lá cantar meus sambas e meus pagodes. Aprendi muito com eles. Só que a vida continua, não tem jeito. Então, você quer deixar uma obra registrada para as pessoas ou então, essa criançada (que tinha assistido a apresentação) que esteve com a gente, é um publiquinho importante. O respeito, o carinho, o brincar, aquela brincadeira sadia de ouvir as músicas. Isso vai continuando, vai passando e graças a Deus nós temos oportunidade de passar isso para o pessoal. É a cultura nossa. Eu já peguei o tempo duro do samba, quando a gente fazia samba nos porões da Barra Funda. CARLOS: E como era? VALDIR: Era o seguinte: ninguém queria o samba. Samba é de preto, samba é de escravo. Igual a feijoada lá na Inglaterra tem um restaurante que é assim, só cabem 80 pessoas. Lá só faz feijoada, lá em Liverpool. Todo mundo come, os japoneses, os árabes. O samba é o samba. Não tenho nada contra nada hoje, gosto de todo ritmo brasileiro. Gosto muito de ouvir música de fora, muita gente gravou músicas nossas. Ivan Lins, o Sivuca, que é um cantor nordestino, ele teve que tocar sambão com a sanfoninha dele na Inglaterra, viajava a Europa toda. Naná Vasconcelos, o maior percursionista do mundo, toca com a orquestra sinfônica da Alemanha, ele só vem para o Brasil para ensinar a pessoa a tocar lá. Ele não gosta que fale a palavra batuqueiro, é músico, percussão. O Stanley George, que é um menino novo, ele toca jazz, levou o garoto da comunidade de Padre Miguel, foram tocar. Tem um grupo chamado Chicago que tem dois brasileiros tocando. No samba o que vale é isso, onde tiver de ir, a gente vai. Você ia num programa de calouro cantar um samba da noite, um samba-rock. O que é samba-rock? O samba rock é o samba da Um Batuque Memorável no Samba Paulistano periferia e hoje no Japão tem gente com academia de samba-rock. Só que muita gente no Brasil não sabe disso, você procura ler, se não souber chama alguém que saiba ler o que está escrito. Jackson do Pandeiro, o artista que inventou o samba rock, mas quem inventou o samba rock foi Jorge Ben. Não, não foi o Jorge Ben, foi Jackson do Pandeiro. “Meu samba vem cá no tamborim”. Por exemplo, o Martinho da Vila, na Suíça cantava Asa Branca, ele não toca forró, mas o pessoal pediu “Asa Branca”, tem que cantar. O filho do meu ex-patrão me encontrou lá em Nova York, o pai dele mandou dinheiro e ele veio tocar pandeiro com a gente na firma e começou a ganhar dinheiro tocando pandeiro lá na estação. Passava no metrô e botava uma malinha, arrumou dinheiro, terminou de pagar os estudos dele. Depois chegou aqui aprendendo a tocar cavaquinho, violão, mas ele tocava era pandeiro. O Instituto Butantã me dá um cientista, um dos maiores compositores. “Ronda” é da Maria Bethânia? Não é da Maria Bethânia, é do Paulo Vanzolini, senhor de idade, gente boa pra caramba, amigo. “Chorei, não procurei entender todos viram, fingiram, pena de mim não precisava.” CARLOS: Você se lembra da primeira roda de samba que você foi ? VALDIR: Lembro, foi no SOBECA, Sociedade Beneficente da Cachoeirinha. Você tinha que improvisar um samba. O primeiro que eu fiz: “Minha mãe é de Madureira lá do beco do samba/ Sou Valdir da Cachoeira...”. E cada um fazendo uma parte, você tinha que se apresentar na mesa da roda de samba, você não podia cantar música de artista famoso, você tinha que se apresentar com o seu samba. Zézinho do Banjo era quem tocava Talismã. Você sentava-se à mesa, aqueles velhos ali - os caras faziam sambas que nunca foram gravados - faziam samba na hora, tiravam um barato na hora. Não tinha pagode, tinha samba partido alto. Um entrava com um improviso, fazia um verso para você. Não sai da roda, fica ali, tinha que continuar rimando. Tinha pessoas em volta e a bebida vinha, nego pagava, cantava um refrão de uma música para tomar uma cerveja, sem violência. A gente pegou essa época aí. CARLOS: Em que ano mais ou menos? VALDIR: Anos 60. Tinha 14, 15 anos. Minha avó morava na Marquês de Itu e era cozinheira do Mackenzie. Eu só ia para a casa da minha avó se Um Batuque Memorável no Samba Paulistano V A L D I R C A C H O E I R A 87 V A L D I R C A C H O E I R A 88 eu passasse de ano. Não tinha presente, presente era passar o final de ano na cidade. Você pegou Seven-Up? CARLOS: Não. VALDIR: Seven-Up era tipo uma soda. Então, você curtia a madrugada, por exemplo, se eu ia numa roda de samba: “Eu conheço a sua avó. Você não é neto da dona Márcia da Silva?” Minha avó trabalhava de madrugada na faculdade e naquela época os estudantes eram zoeira. Eles saíam do Mackenzie para a Maria Antonia e a noite em alta boêmia. Tinha festa, eram os irmãos do Cauby Peixoto, o Moacyr e o Araquen, eles arrumaram um na Gurgel, você ia lá e tocava violão. Eu cheguei a ver Maísa Monjardim. Era bonita, ela cantava na rua mesmo e era uma mulher de dinheiro, família Matarazzo. Via Zé Maria, Nelson Gonçalves, cheguei a ver Agostinho dos Santos. Na rodoviária em São Paulo, que era na marginal Tietê, você via. Hoje você não vê mais artista da classe de compositores. Não tem mais aqueles artistas, hoje o advogado do artista é o empresário e o divulgador. No mundo do disco um divulgador era aquele cara que ia às rádios e tocava sua música. Você já ouviu falar no Seu Miguel da Contemporânea? CARLOS: Eu o entrevistei. VALDIR: Um dia eu fui lá. “Esse aqui é meu filho!” Ele levou o Zeca Pagodinho lá no começo de carreira. Esses dias o Zeca foi ao Olímpia e passou lá, levou uma hora tocando. Estou doente, não fui ao enterro. Só quero aquela imagem do sorriso dele. Ele sabia do meu aniversário, me deu um tamborim, um pandeiro. Tem uma foto, vou sentir falta dele, mas a vida continua. CARLOS: Fez um show lindo, viu? VALDIR: Obrigado, cara. CARLOS: Todos dizem que sua voz é uma coisa que... VALDIR: Obrigado. CARLOS: Eu adoro ouvir! Um Batuque Memorável no Samba Paulistano FERNANDO PENTEADO Sr. Fernando Penteado nasceu no dia 26 de fevereiro de 1947, em São Paulo – SP. É jornalista. Entrevista realizada no dia 09 de março de 2009. CARLOS: Conta um pouco sobre a sua história junto ao samba. FERNANDO: Eu comecei no samba já no ventre da minha mãe, graças a Deus sou de pai, avô e avó sambistas. Meu avô foi um grande zabumbeiro-mor. Hoje, você tem os diretores de bateria, mas na época de 1910, 20 era zabumbeiro-mor de Pirapora. Era assim: “Vamos ao samba em tal lugar.” “Quem é o zabumbeiro?” Aí sabia se o samba era bom. Tem um samba que o Geraldo Filme canta: Fredericão na zabumba fazia a terra tremer. Era o meu avô. Nasci no meio de tudo isso. Dia 26 de fevereiro de 1947, terça-feira de carnaval, no tempo de parteira, no centro do Bixiga. Não tive outra escolha a não ser sambista e Vai-Vai! E criei meus filhos da mesma maneira, com esse cheiro e com esse som. Meu avô fazia parte da turma do Sardinha. Vai-Vai foi fundada por cinco famílias: 1) O Henricão, Henrique Ferreira da Costa, o primeiro Rei Momo negro que tivemos, um grande artista e primeiro compositor da Vai-Vai em 1928; 2) o Fredericão, da família Penteado; 3) Seu Lourival de Almeida, o Seu Loro, da família Almeida; 4) Seu Livinho, grande apitador, quem fazia o samba; 5) e o Seu Sardinha, líder de todos eles. Aglutinavam-se e tocavam na beira do campo do time de futebol Cai-Cai - jogar bola não jogavam nada, eram uns pernas de pau, mas faziam a batucada. Na formação da Vai-Vai, cada um deu a sua contribuição no que era melhor. No caso Henricão, foi no primeiro samba, eu quase o visualizo. Precisavam de um pavilhão, de um símbolo. E meu avô Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 89 F E R N A N D O P E N T E A D O 90 montou o símbolo, não as cores, mas a coroa com o ramo de café. As cores foram uma sátira às cores do Cai-Cai, que eram branco e preto. Então, eles fizeram preto e branco. Nossa família sempre foi muito ligada à cultura. Meu avô trabalhou na lavoura de Amparo. Ele idealizou a coroa, mas não a coroa por causa do Brasil Império, mas o formato da Coroa sim. Naquela época, até o final da década de 60, hoje na Bahia ainda é muito comum e aqui perdemos um pouco disso, nós negros nos chamávamos de Rei, por quê? Porque muitos negros que aqui vieram eram reis. Se fomos reis lá e somos reis aqui, por que não uma coroa para representar a negritude do Bixiga? Então, veio a ideia da coroa. O ramo do café porque todas eram quituteiras e trabalhavam com os barões do café na Paulista. Quando tinha uma festa, o barão não trazia o buffet. Ele chamava a quituteira, e minha avó era uma das grandes quituteiras, Maria Magdalena Penteado. Tinha um glamour ser quituteira. Os barões do café assinavam o Livro de Ouro. Meu avô foi o mentor do pavilhão da Vai-Vai. Hoje, a minha filha é a primeira porta-bandeira da Vai-Vai, bisneta dele e carrega o pavilhão que o bisavô criou. O Seu Loro fez toda a documentação da Vai-Vai. Um fez samba, outro idealizou o pavilhão e o Seu Loro cuidou da documentação. Fui criado no meio do samba e graças a Deus não tive chance de ir para outro lado. Eu fui batizado em Pirapora. A gente ia muito à Pirapora naqueles caminhões tipo pau-de-arara. Quando nós chegamos ao Brasil como escravos, história que todos sabem, a primeira coisa que os donos faziam era separar nossas famílias. Não deixavam famílias ou negros da mesma tribo seguirem juntos. Isto era para dificultar as fugas. Quando ia embora, o negro levava alguma coisa, rasgava algum pano e ia embora com aquele pano e dali para frente, você cultuava aquele pano amarelo. Constituía outra família, mas continuava com aquele pano. Vão 200, 300 anos. O Santo, Bom Jesus de Pirapora, foi achado por escravos no dia 06 de agosto de 1725, história parecida com a de Nossa Senhora Aparecida. Colocaram aquela estátua num lugar dali e a lavoura do local começou a prosperar. Então, eles atribuíram à estátua. Isso correu Brasil afora. Então, vinham senhores pedir para suas fazendas prosperarem também. Tinha que vir a pé, e quem os traziam eram os escravos. Por isso que tinha os Um Batuque Memorável no Samba Paulistano barracões, onde os escravos dormiam e faziam as comidas para os senhores. Cada um trazia sua cozinheira. As famílias começaram a se encontrar, pois começaram a achar o paninho da mesma cor. Hoje, o paninho amarelo que estamos pegando como exemplo, para nós é o pavilhão. Por isso que as escolas têm seus pavilhões. Hoje, quando chega a Vai-Vai, chega a Nação Alvinegra. Então, se você está procurando alguma coisa: “o Vai-Vai está ali”; “O da Camisa está lá”. No batuque já se reunia o pessoal do paninho amarelo, do paninho preto. Começou-se a fazer batuque contra batuque. Eu vi o batuque de Pirapora, eu vi o Henricão, eu vi Geraldo Filme, Toniquinho Batuqueiro, Seu Carlão do Peruche. Fui crescendo no meio deles, aquele garoto que sempre andou com os mais velhos. Meu pai também me trazia para isso, sempre no meio do samba. Se você for à UESP, tem uma foto bem grande do Carnaval no Anhangabaú em que desfila debaixo do Viaduto do Chá a bateria dos Acadêmicos do Tatuapé. No primeiro plano, tem dois negros conversando, meu pai e meu tio. A gente sempre esteve no meio, não só como sambista, mas como direção. Eu acompanhava meu velho. Tanto que, nas primeiras lembranças que eu tinha do prédio Martinelli, ficávamos eu, Nelsinho Macalé, Beto (da Vila Matilde, sobrinho do Seu Nenê, está na Velha Guarda) e bem pequenininho, menor que a gente, até dávamos uns petelecos nele, o Nelsinho Crescibeni, que é o presidente da FESEC hoje, era o único branquinho. Ficávamos ali vendo a reunião e lá estava Pé Rachado, Seu Inocêncio, Madrinha Eunice, Mala, Sinval, Carlão do Peruche, a grande casta nobre do samba estava ali. A gente ficava ali esperando eles mandarem comprar cigarro porque a gente ficava com o troco. Tinha aquele elevador do Martinelli que era precário e a gente subia treze andares de escada para ficar com 10 centavos. Eu sempre gostei de bastidores. Participei do nascedouro da UESP, da FESEC, da Liga. Só não participei, agora, da Superliga. Participei da AMESPBEESP e sempre procurando dar uma contribuição. Na época de cordão, década de 60, eu me meti a fazer enredo. Chegou um casal de branquinhos na Vai-Vai, Caio e Bia, em 1967, 68. Eles eram universitários. Branco naquela época na Escola de Samba era difícil. Vieram na escola para desfilar, mas acabaram se entregando e se integrando com a gente. Começaram a dar um formato na organização Um Batuque Memorável no Samba Paulistano F E R N A N D O P E N T E A D O 91 F E R N A N D O P E N T E A D O 92 da escola. Eram colegas na época, hoje são casados, têm filhos e netos. Eu participava das festas da comunidade negra que meu pai e meu tio faziam - o Baile da Bonequinha do Café, era como se fosse a “Miss Brasil”. Acontecia em um clube chamado 220. Elegiam a negra mais bonita. Eu participava, mas não como deveria, era moleque, daí eu escrevi um enredo: “Negros, Bandeirantes e o Progresso!” Fui às bibliotecas pesquisar. Entreguei para este Caio, pois ele estava organizando. Ele levou, depois veio: “quero conversar com você. Poxa, você tão ‘assim’, sua família, e você vem falar de bandeirantes? Poxa, os bandeirantes eram os que mais perseguiam os negros.” Ele começou a me contar a história. “Caramba! Como é que este branco sabe mais que eu de negro?” Passei uma vergonha. Aí ele mostrou que bandeirante prendia negro, cortava orelha e vendia. Comecei a estudar, fui às bibliotecas da vida. Então, comecei a ver a nossa história. Fui mudando minha história: sou sambista, mas com outra visão de ser negro. Foi um branco quem me deu isso, que me chamou à atenção. Então, eu estou na minha escola, batendo bumbo e surge uma tal de “Mocidade Alegre”. Nem era Mocidade Alegre, era o Bloco Pegue e Pague. Era o nome de um supermercado onde o senhor Juarez, açougueiro, fornecia carne. Então, eu passei a ter contato com o Senhor Juarez, isto em 71. Eu achava engraçado, porque toda escola tinha duas cores: preto e branco, verde e branco, azul e branco. Passava o Preto e Branco e todo mundo sabia: é a Vai-vai. A Mocidade usava o verde e vermelho, usou também o branco e verde, o vermelho e branco. E isso era permitido, você podia usar o branco, o prata para poder enriquecer. Ele fazia uma festa na Mocidade que era a festa da Choradeira. Ele me intrigava na avenida, pois todos os presidentes corriam e estavam no início da escola, no fim da escola. O Seu Juarez me chamava a atenção porque ele ia à frente de sua escola, muito bem trajado, com sua esposa. “Por que nossos presidentes não vêm assim?” A Vai-Vai não disputava com Mocidade, pois eram só três cordões na época: nós, Camisa e Fio de Ouro. Houve época em que tinha mais cordões. Nas reuniões, eu ficava ligado no senhor Juarez, pois eu via nele um diferencial. Chegava à UESP e ele punha a prestação da escola de samba dele. Ninguém mais punha. E nas festas da Mocidade, ele chamava seus sambistas pelo nome e falava a história do samba. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano Comecei a me espelhar nele. Primeiro, eu levei um puxão de orelha por olhar a cultura do negro sem o lado do sambista, depois, eu fui olhar o negro na parte do samba. O que hoje eu sei de regulamento de samba, eu devo ao falecido Juarez. No Vai-Vai, teve o Henricão em 28, depois o Tino, o Guariba nas décadas de 30 e 40. Alguém vinha e fazia o samba. Nós não tínhamos compositores fixos. De 50 para 60, teve uma estagnação do samba e se cantava os sambas que faziam sucesso para cantar na rua. Até que na década de 60 chegou no Vai-Vai um barbeiro que se dizia carioca e começou a fazer enredo e samba. Eu: “Esse carioca fazendo samba!” Fez grandes enredos, grandes sambas. Ele ganhou samba em 71. Eu e Vonei descobrimos o Zé Di que falou: “fiz um samba queria levar na Vai-Vai”. “Canta aí”. Ele cantou: “Valeu o sacrifício dos Andradas/ Ó meu Brasil segue a parte/ Olha o futuro lhe espera/ Ninguém segura esse (...)”. Levamos ele na Vai-Vai. O Carioca já estava com o samba. “Mas o samba é este aqui!”, e ficou uma coisa bem agitada. Falei: “Mas o samba é aquele lá do Zé Di.” Foi um sucesso nacional, o primeiro samba de enredo paulista que entrou nas paradas de sucesso, no Chacrinha e ganhou o Carnaval. Em 72, houve a mudança da Vai-Vai, foi no Terceiro Simpósio do Samba. O primeiro foi no Rio e o segundo em Campos, no Estado do Rio, capitaneado por Juarez da Cruz, ele é de lá. O terceiro foi em Santos. Neste simpósio, tinha concurso de melhor passista, o Dinei e a Edna Negão ganharam. Lá ficou acordado que, como só tinha três cordões, por que não virar escola de samba? Vai-Vai não tinha know how para virar escola de samba. O Camisa já desfilava como escola de samba e era nossa grande rival. Em 72, tivemos que virar escola de samba. Já em 71, tinha disputa de samba-enredo, tinha o Carioca, o Zé Di e eu, o abelhudo. Eu fiz um samba-enredo: “150 anos de Independência”. Cantei em casa e acharam bonito. No dia da escolha, fui à um bar e cantei o samba, mas faltava chegar o samba do Zé Di e do Carioca. Ia ter uma disputa. Eu tinha esquecido as letras e falei: “Vou buscar as letras!” Tinha deixado na casa da Néia, que ficava na Rua Santo Antônio. Quando cheguei, já estavam cantando a música do Zé Di. Eu falei: “Vou cantar a minha!” “Não, nós já escolhemos a do Zé Di”, “mas vocês nem ouviram a minha”. “Ouvimos sim, lá no bar”. O que eu fiz com o Carioca fizeram comigo. Aí tudo bem. Cantamos o Um Batuque Memorável no Samba Paulistano F E R N A N D O P E N T E A D O 93 F E R N A N D O P E N T E A D O 94 samba do Zé Di. A Ala de Compositores da Vai-Vai já começa a ganhar corpo. Em 73, vem Osvaldinho da Cuíca e em 74 ela se torna oficial. Por essa minha insistência, desde 71 me deram a carteirinha nº 01 da Ala dos Compositores, mas o compositor número 1 é o Henricão, 1928. Começaram a aparecer os primeiros carnavalescos acadêmicos. Seu Zulésio, Dona Maria Aparecida. Eles tinham aquele conceito de cor, aquelas falas acadêmicas e precisavam fazer a interlocução entre eles e o pessoal. Criou-se o diretor de carnaval para fazer esta interação, então eu passei a ser o diretor de carnaval da Vai-Vai. Eu sempre me relacionando com o samba, fazendo samba enredo. Saía de passista em ala de passo marcado. Sou do tempo que tinha de ser sambista mesmo para entrar numa roda, tinha que sair na perna. Eles punham garrafas no meio da roda, quantas garrafas você derrubasse era o tanto de cerveja que você tinha que pagar. Tinha que provar que era sambista. Se errava, já vinha: “Põe a mão aí que você vacilou/ Eu quero bate na mão do vacilador!” Tinha roda de pagode dos versadores e eu ia lá, chegava na hora, não saía nada: “põe a mão aí.” Eu era muito xereta, mas era assim com Silvio Modesto, Murilão, Jangada, Geraldo Filme, Osvaldinho da Cuíca, Aruá da Mangueira, B Lobo, Talismã, Almir Guineto e o Penteado. A gente não queria saber e apanhava mesmo. Isso era formação de sambista. Quando um pavilhão de uma escola de samba se dirigia a você era porque você realmente era considerado um sambista. Hoje, saem dando pavilhão para todo mundo beijar. Não. Só beijava o pavilhão quem ela considerava sambista, para a outra pessoa só se fazia uma vênia. Davam o pavilhão para o outro e para mim só fazia uma vênia. Falei: “um dia vão me dar para beijar”. Eu quero que isso volte. Hoje as coisas são assim: eu oriento minha filha para não dar o pavilhão para qualquer um, mas infelizmente ela é sozinha contra uma cultura que está aí. Mas eu paguei muita cerveja! Hoje eu vejo essa molecada cumprimentando aí e penso que isso é nosso. Quando um sambista chegava na roda e ia te cumprimentar, primeiro ele fazia tudo o que sabia de pernada e depois ele dava a mão e aí você fazia a sua também. A nossa cultura se perde e isso é nosso. Eu sou de uma época que para você mandar, você tinha que saber fazer. O diretor de harmonia era o que mandava. Então, Um Batuque Memorável no Samba Paulistano “Baterista, para de fazer que está errado. É isto aqui!” e tinha que fazer. “Está cantando errado. É assim!” E tinha que cantar. Ele ensaiava com as passistas e tinha que rebolar junto com elas. Ele era o diretor de harmonia. Ele era galgado na vivência do samba, ele foi diretor de ala e era passista. Ele já passou por tudo. O bom diretor de ala era reconhecido não só na Vai-Vai, na Camisa, mas por todas as escolas. Um grande diretor de harmonia é o Zulu, hoje ele é o locutor oficial que conta as notas na apuração. A escola toda o conhecia e o respeitava. Se ele falasse “não vai entrar”, não entrava. Diretor de harmonia da época tinha autoridade até em outras escolas. O samba tinha mais respeito e o presidente era mais respeitado. Tínhamos respeito pela pessoa do Pé Rachado, Seu Inocêncio, Seu Carlão do Peruche, Madrinha Eunice da Lavapés. Uma vez, nós estávamos fazendo uma farra, algazarra mesmo, de jovem, em um bar da São João. Aí veio o Seu Inocêncio. “O que vocês estão fazendo aí?” Tirou todo mundo de lá. O seu Inocêncio do Camisa Verde foi dentro do bar, ver se estava tudo certo, e, depois, todos juntos, andando. Entregou a gente na mão do Pé Rachado. “Olha, estavam fazendo bagunça”. Uma vez, em 76, chegou um compositor e perguntou para mim se íamos fazer um samba sobre o Solano Trindade, pois a Raquel Trindade havia trazido o enredo. Ele pediu para fazer o samba e eu falei: “Posso entregar a sinopse para você, mas a regra é fazer um samba exaltação para ver se dá” e ele foi embora. Depois eu perguntei onde ele estava para entregar a sinopse, mas ele já tinha ido. E eu falei aquele negócio para ele brincando. Na quarta-feira seguinte, o Alemão, falecido também, chegou para mim: “Penteado, vai lá no bar da Odete e veja o samba que estão cantando lá!” Fui lá, ouvi, um samba bonito e estavam cantando: “Quem nunca viu o samba amanhecer/ Vai no Bixiga para ver/ Vai no Bixiga para ver...” Aí o Geraldo Filme falou para mim: “Gostou do samba?” Eu falei: “Não!” “Você não me mandou fazer um samba?” “É, eu mandei, mas você fez um hino, não um samba!” Eu fiz uma brincadeira e ele levou a sério. O Geraldo Filme foi cassado pelo DOPS. Ele era do Peruche e já naquela época era muito respeitado. Ele era uma espécie de embaixador. Tinha passaporte VIP, cidadão do samba. Ele era uma instituição. Não se falava “veio o cara de tal escola”, se falava “veio Geraldo Filme”. Na Um Batuque Memorável no Samba Paulistano F E R N A N D O P E N T E A D O 95 F E R N A N D O P E N T E A D O 96 época, o Geraldo foi preso, o delegado era o Tuma, e soltou-o: “Não, eu te conheço. Você não pode ficar mais no Peruche e não faça mais samba, não se movimente muito”. Ele foi preso porque fez um samba que dizia assim: “Chamados heróis da Independência/ (...) Índio saindo da mata/ Negros quebrando as correntes (...)”, em pleno AI-5. Então, ele saiu e veio para a Vai-Vai. Ele chegava onde queria, mas ele tinha uma namorada aqui no Bixiga, ficou ali com a gente. Sempre o vi em Pirapora. Quando a Vai-Vai virou escola de samba, ele foi o primeiro diretor cultural da escola e quando ele falou de fazer o samba, pois tinha trabalhado com o Solano no teatro, eu falei para ele da regra, mas falei brincando. Ele fez o “Tradição”. Hoje, têm firmas que fazem o samba enredo. Graças a Deus na Vai-Vai não, já tentaram, mas não. CARLOS: Conta sobre a Embaixada. FERNANDO: A Embaixada do Samba foi fundada em 1996 por cinco pessoas, dentre oitenta nomes. Tenho orgulho de ser um dos cinco, assim como Gabi, Paulão, Hélio Bagunça e Toniquinho Batuqueiro, que tiveram a incumbência de encontrar os outros. Falei para o Gabi: “Nós somos embaixadores? Embaixador é última homenagem que o sambista recebe em vida”. Daqui para lá, ele já é uma instituição, ele não é Vai-Vai, não é Camisa.” A nossa voz, a Voz do Embaixador, é a voz oficial do Samba. Tem que ter cuidado ao escolher. Fiquei encostado na parede, Paulão e Gabi concordando comigo. Seu Juarez, Seu Carlão do Peruche, Seu Nenê e a gente lá. Não somos mais que eles. Então criamos o Embaixador Mestre: são os deuses. A gente não se via naquilo e trouxemos o Osvaldinho da Cuíca e as mulheres. Hoje, estamos com 52 Embaixadores. É gratificante ser reconhecido pelo que fiz, mas não me torna superior ou mais sambista. A Mocidade Alegre, todo ano em sua festa, homenageava um sambista. Em 86, eu fui agraciado como Sambista Imortal. Eu tinha brigado com um pessoal da minha escola, Seu Chiclé e não sei mais quem. Teve eleição. Fiz uma chapa. “Vai ser o Seu Chiclé!” “Por que?” “Porque não tem outro.” “Tem a mim. Tem que ter eleição.” Teve a eleição e eu perdi. Seu Chiclé chegou lá. “Vai-Vai tem eleição. Foi a vontade da maioria.” Não é que eu perdia, eu fazia pelo estatuto. Perdia eleição, mas estava lá. Sempre fui diretor de carnaval. Nesse ano, eu fui homenageado pela Mocidade Alegre, fui Um Batuque Memorável no Samba Paulistano lá com a melhor roupinha e com a minha esposa. Eu lá, triste. Quando as outras pessoas vão receber homenagem, a escola toda está lá e eu aqui sozinho. Toda hora anunciavam: o sambista hoje homenageado é o Fernando Penteado. Veio escola de samba de Santos com o Muniz. Então, o Seu Juarez disse: “Fernando Penteado faça o favor!” Ele falou, falou. Lembro e me arrepio. Para coroar abriram o portão e minha escola inteira lá. Seu Chiclé veio falar: “a briga é nossa e não da VaiVai!”. Esse ano também, na Festa do Chope da escola, o Thobias subiu no palco e falou do homenageado e eu não sabia que era eu. Só caiu a ficha quando ele falou: “Quando eu cheguei na Vai-Vai, eu precisei usar um terno e eu não tinha, então usei o terno dele.” Eu estava tão distraído e minha família toda ali na frente. Minha filha já ia por causa do Pavilhão, mas foi minha irmã, meus filhos e minha esposa. Quando ele falava isso, tinha um banner enrolado no teto e caiu o banner. Era uma foto minha. Foi um momento único! O pessoal fez fila para me cumprimentar aquele moleque xereta que ganhou palmada na mão e derrubou garrafa de cerveja pra caramba. Essa é a história que eu gostaria que muitos sambistas tivessem, mas daí para frente, a estrutura mudou: você compra a fantasia pela internet. Uma vez, de sacanagem, mandaram um cara vir falar comigo porque ele estava com uma dúvida: queria saber como ele fazia para sair de diretor de harmonia. Eu sou veterano, 62 anos de idade, mas com a cabeça de hoje. Há outras qualificações para diretor de harmonia que trabalha com informática, diretores de escrivaninha, que hoje tem que ter, mas na Avenida? Eu costumo dizer que a fusão do italiano com o africano não deu certo porque o negro não gosta de festa e o italiano também não gosta. O negro não gosta de comer, o italiano também não. O negro fala baixinho, o italiano também. Você acha que isso ia dar certo? E as duas raças são matriarcais. No Brasil, a raça negra é matriarcal e a italiana também. O samba é matriarcal. Graças a essas mulheres que trabalhavam nas cozinhas e como quituteiras é que tinha dinheiro para a família. O homem não tinha dinheiro porque não tinha emprego. Na era do Getúlio Vargas, é que se abre a repartição pública para ele trabalhar. A mulher é quem sustentava a casa. A mulher negra sempre Um Batuque Memorável no Samba Paulistano F E R N A N D O P E N T E A D O 97 F E R N A N D O P E N T E A D O 98 trabalhou. A Vai-Vai tem um mundo de negão e mais a mulher! Tem a esposa do Tobias, Dona Joana, Jona Odete, Dona Olímpia, precursoras. Dona Odete se casou com 13 anos de idade para se emancipar, para sair na escola. Casou-se com o Genésio Baíga, grande sambista da escola. Ela está hoje com 86 anos, com seus filhos, netos e tataranetos na escola. Ela faz parte do grupo musical da Vai-Vai. Minha história é esta, sempre trabalhando muito em pról, na barra da calça e na barra da saia. Fui observar os sambistas, Jangada, falecido. Quando gente velha fala de amigo, só fala de quem já foi, não é? Eu ficava no meio deles, vendo-os fazer samba; Jangada, Toniquinho Batuqueiro, B Lobo, Talismã, Geraldo Filme, Armando da Mangueira e o Penteado xereta. Quando foi para fazer o samba do Geraldo, sobre o Solano Trindade, o Jangada: “Menino, vem cá, vai fazer um samba comigo!” Eu não dormi, fazer samba com o Jangada! Mas quem ganhou foi o Geraldo Filme. Antigamente, tinha a coisa de o sambista ser analfabeto, semianalfabeto, e tinha no regulamento um negócio de não levar muito a sério a letra do samba, por causa disso. Aquilo me incomodava muito e descobri que incomodava também ao Jangada. Depois de uma discussão destas, ele fez um samba assim: “Resta ao povo exaltado, o Fausto que o tempo amanheceu” Por fim, conseguimos tirar isto. O sambista não deve ser esse analfabeto, pois tem essa coisa de dizer que é negro e é cultura de segundo plano. Uma vez, eu e o presidente da Liga, o Mercadoria fomos discutir finanças com o cara que era presidente financeiro da COSIPA. A gente tirava a maquininha Sharp de R$ 1,00 e ele aquelas HP. Fazia aquele monte de números. Eu ficava louco com aquilo. Não entendia nada. Comprei aquela maquininha, eu queria aprender. Aí levei e senti o olhar dele assustado. Então, íamos falar de marketing com o diretor de marketing. Nós não sabíamos administrar. Até que um dia fomos discutir o sambódromo. Quem foi? Eu, Mercadoria. Enfim, perdemos muito por não ter gente preparada para discutir aquilo. No lugar de chegar uma pessoa preparada, chegava eu. O samba perdeu muito, ele embranqueceu aí. Não sabíamos administrar. O branco chegou administrando e tomando. Como ele não sabia tocar bumbo, nós ficamos tocando bumbo e estamos dormindo até hoje. Não sou contra a presença do branco. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano O samba foi crescendo e eu não aguento mais ouvir que o samba está crescendo. Ele vai explodir. Todo ano falam disso. O que não cresce é a administração. Este ano foi o desfile mais perfeito que a gente conseguiu. Surpresa de ver Tom Maior, Pérola Negra, Tucuruvi e a Mancha Verde, escolas que dizem que não disputam título. Foi uma grata satisfação ver o chamado “carnaval da superação”, porque não tínhamos dinheiro, tivemos que nos virar. Só que a administração é de 20 anos atrás, eles continuam nos tratando com frieza. Quer dizer, nós crescemos! Mas eles não. Continuam dando a mesma divisão. Tanto que nos disseram um dia: “Vocês estão vestindo mais do que podem, por que vocês ficam teimando? Eu não pedi para vocês vestirem”. Os números crescem para eles, mas não para nós. Eu vivi toda esta administração, desde o Martinelli para cá. Fui para o Anhembi com o Mercadoria. Formamos a primeira Coordenação Técnica de Carnaval do Anhembi. Hoje, não tem mais. O carnaval era administrado por sambistas. Porque o governo Federal investia no Rio, Bahia e Pernambuco e não em São Paulo? Em uma viagem, encontrei o Ministro e perguntei. Ele me explicou: “Em São Paulo, a renda per capita vem de turismo de negócios e não do lazer, como no Rio ou Bahia.” “Mas isto está errado!” “É, mas o dinheiro está lá e ninguém foi buscar!” F E R N A N D O P E N T E A D O Esta entrevista foi realizada no Centro Cultural São Paulo e no espaço em que estávamos, próximo ao núcleo da Web Radio TV, um dos funcionários, Márcio Yonamine, que muitas vezes me perguntou sobre o apitador Pato N’água, passou e o chamei para apresentá-lo ao Sr. Fernando. CARLOS: Este daqui é o Márcio. Ele trabalha com cinema e se interessou pela história do Pato N’água. FERNANDO: Nessa história, eu falo assim: “Eu saí na bateria do Pato N’Água”. “Saiu nada, você nem é batuqueiro.” “Saí, sim! Sou xereta.” “Em que ano?” “Em 63!” Daí eles vão olhar. “Saiu nada, não tem seu nome lá!” “Saí carregando a sacola de jornal, mas eu saí”. Antigamente no samba, o instrumento não tinha tarraxa e você vai ouvindo e esquentando o couro no jornal. Se rasgava, rasgava ali. Um dia, o Pato Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 99 F E R N A N D O P E N T E A D O 100 N’Água não estava e, quando ele não estava, todo mundo pegava um instrumento para tocar. MÁRCIO: Ele não deixava? FERNANDO: Não. E nós tínhamos medo. Ele era bravo pra caramba. Eu tinha uns 12 ou 14 anos e estava tocando também. Vi que o pessoal ia deixando os instrumentos e eu lá, tocando. E ele chegou e disse: “Continua tocando. Você não é batuqueiro, neguinho?” Ele me deixou tocando e foi para o Bar da Petisco. “Não para de tocar enquanto eu não mandar!” E eu fiquei tocando, não parei de tocar. E ele do bar: “Você está parando!” E eu tinha que tocar. O pessoal ficou pelos cantos rindo. Ele falou: “Pode parar. Você vai sair na minha bateria.” Chegou no dia, me deu a roupa e tudo, mais a sacola de jornal. “Olha o jornal!” E eu saia correndo atrás. Nós saíamos do Bixiga e íamos desfilar no Ibirapuera. E ia a pé: subia a Brigadeiro. Dava uma volta no Ginásio tocando e eu com a sacola de jornal. Tive que arrumar jornal durante o desfile. Foi minha passagem única na bateria e eu nunca mais quis saber de Pato N’Água. Ele merece toda a atenção, porque foi um grande ritmista, um grande passista e um dos mais respeitados malandros que São Paulo já teve. Batia em todo mundo. Para você ser respeitado, tinha que saber brigar e dar pernada. Antigamente, tinha uma brincadeira assim: Chegava um e ficava: “tumba, moleque, tumba.” Alguém ia cair. “Tumba, tumba, tumba” anunciava alguém que chegou à roda e tinha dado mancada. Ia ser derrubado. Quando você chegava e sabia que tinha dado mancada, já ia se preparando, pois ia um jogando na roda, jogando até que ficassem os dois ali, porque você não fugia. Você podia apanhar, mas não fugia. Eu tive uma briga com Hélio Bagunça. “O Hélio falou que vai quebrar a sua cara.” Montaram a roda. “Ele vai quebrar a minha cara mesmo”. Abriram a roda, pernada para lá, para cá. Eu ia apanhar, seria um trator, mas eu encarei. Não fugi. Pensei: “Não vou nem encostar a mão nele.” Eu fui para a roda. Fizeram a roda. Quando viram ele, parou tudo. Aí o Hélio falou: “Desse dia em diante, você vai ser meu amigo.” Fiquei com passagem livre na Barra Funda, porque você não podia sair do Bixiga para ir até lá. São Paulo era demarcada. Passou ali da Barra Funda, neguinho do Bixiga saía correndo. Passei a ser protegido do Hélio e eu ia à Barra Funda. Assim como os protegidos do Pato N’Água Um Batuque Memorável no Samba Paulistano vinham para o Bixiga. Tinha um dia, a segunda-feira, que era território livre, a negada podia ir para qualquer lado da cidade. Dia em que íamos acender velas na Igreja dos Enforcados, na Liberdade. Na segundafeira, era negro de tudo quanto era lado. Segunda era o dia das almas. Esta é a história do Penteado, um sambista comum. Adoro meu pavilhão. Sou Vai-Vai. Sambista de pai, mãe, tio, avô e bisavô. Minha família toda é do samba. Minha mulher é chefe de ala, minha filha de outra ala, meu filho faz parte da ala dos jovens, minha filha é portabandeira, minha irmã é a chefe de ala mais antiga do Brasil, se fosse no Rio, ela estaria no pedestal. Ela dirige a Ala da Vai-Vai do Amanhã, desde 1968. Hoje, ela está dirigindo netos daqueles que já saíram na ala. Ela tem 72 anos e 66 na Vai-Vai. CARLOS: Muito obrigado! Um Batuque Memorável no Samba Paulistano F E R N A N D O P E N T E A D O 101 MANÉZINHO Sr. José Lino dos Reis nasceu no dia 24 de janeiro de 1937, em Conceição da Aparecida – MG. É aposentado. Entrevista realizada no dia 19 de março de 2009. CARLOS: Manézinho, conte um pouco da sua história no samba. MANÉZINHO: Cheguei em São Paulo em 1947, na rua Santa Eudóxia, Casa Verde, Parque Peruche, e ali começou a minha passagem pelo samba paulistano. Fui morar com a minha avó e de frente morava Seu Dionísio Barbosa, fundador do Camisa Verde e Branco. Ele sempre brincava com a criançada e eu ficava só observando aquele bloquinho na rua Santa Eudóxia. Então, eu resolvi perguntar a ele o que era aquela brincadeira e tive a resposta de que era uma escola de samba. Perguntei se não tinha baliza e então Seu Dionísio pediu que eu fosse até o Cordão Barra Funda, que lá eu veria 20, 30. Eu fiquei pensando, pois baliza que eu conheço é do Rio de Janeiro, o elemento que dança com a porta-bandeira, a dança da gente ali é balizar. Tem o Bicho-Solto, Delegado, Laurindo, aquela raça todinha de grandes mestres-sala, balizas do samba carioca, mas em São Paulo não tinha essas coisas, paulista não conhecia isso. Então, resolvi ver esse negócio na Barra Funda, chegando lá vi os caras jogando porrete para cima, caindo para lá e para cá. E cadê os balizas? Baliza que eu conheço é aquela figura que vem com a porta-bandeira, no maior charme, com leque, saudando na frente da bateria. Esse é o baliza. Seu Dionísio disse que isso era coisa de veado, mas continuei na minha. Depois de muitos anos indo e vindo do Rio, surgiu essa escola de samba Unidos do Parque Peruche. Lá na Santa Eudóxia também tinha uma outra escola chamada Unidos da Casa Verde. O negócio do samba era muito movimentado, tinha um tal salão também, uma 102 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano gafieira chamada Estrela do Peruche, tinha o Ponte Preta, perto daqui tinha outro, tinha a Chácara do Samba, essas rodas com a malandragem do samba. Tinha gente de família que não chegava porque tinha medo. Se sabia que você era de uma escola de samba, nego se benzia: “Cruz Credo. Papo com esse cara não, ele é de escola de samba.” Se você é de uma repartição, qualquer coisa: “fica de olho nele que ele é de escola de samba”. Agora o samba mudou o nome, chama-se cultura popular brasileira. Aquilo lá era para malandragem, e eu fui criado no meio. Surgiu essa escola de samba do Peruche e perguntei ao presidente, Carlos Alberto Caetano, se eu poderia sair de baliza com a portabandeira chamada Janete Santos, grande porta-bandeira. O Peruche tinha a bandeira e tinha o estandarte que usava nos cordões, então comecei a dançar e a ensaiar com ela. Comecei pela função de mestresala pela Unidos do Peruche, que ninguém conhecia aqui em São Paulo. Aí o Peruche desceu para Santos; naquela época quem desfilava em Santos era Unidos do Parque Peruche, Nenê de Vila Matilde, Lavapés e vinham duas escolas de samba de Campinas Ubirajara e Voz do Morro. Tinha um jornalista lá em Santos que quando viu a minha figura dançando, em uma avenida frente à bateria do Unidos do Peruche, ele comentou: “Olha, esse pessoal de São Paulo da Peruche está trazendo profissionais contratados do Rio de Janeiro. O mestre-sala e a portabandeira são de lá.” O jornalista era J. Muniz Jr. Foi na Escola do Peruche que eu lancei mestre-sala e portabandeira. Tinha as batalhas de confete que hoje não existem mais, cujas escolas participavam no Centro da Cidade. Nós pegávamos o bonde na Casa Verde, descíamos no Largo São Bento, entrávamos na Rua Quintino Bocaiuva e na Rua Direita. Íamos lá para Praça João Mendes e encontrávamos com outras escolas de samba. Encontrava com o Cordão Vai-Vai, encontrava com o Cordão Camisa Verde, encontrava com o Cordão Paulistano da Glória, que também era dali. Tinha uma escola de samba que se chamava Rosas Negras, da Vila Mariana, Garotos do Itaim e Lavapés. Essas escolas participavam desse evento no centro da Cidade. Paravam ali na Prainha, faziam aquela roda de samba, vinha um bom passista daquela outra, dava uma pernada no outro, aquele negócio todinho, que eles chamam agora de tiririca. Para com esse negócio de tiririca. Eu participava disso. Era só para gente Um Batuque Memorável no Samba Paulistano M A N É Z I N H O 103 M A N É Z I N H O 104 bamba e falo os nomes de todos que estavam comigo: o Besilongo, o Pato N’água do Vai-Vai, o Dimas de Almeida do Peruche; o Cabo Roque Santos: eram todos gente bamba mesmo, não é essa coisa que está agora de escola de samba em que qualquer um é mestre daqui, diretor de não sei do quê. Vinha na frente da bateria uma figura que se chamava rumbeira. Coração de Bronze, uma escola da Vila Madalena, tinha uma que não era brincadeira, uma tal de Dirce Bacana, Coração de Bronze, do Macalé. Ah, e a Vila Maria que eu me esqueci de falar, uma escola que eu respeito muito, é antiga pra chuchu, também, uma das mais antigas da Zona Norte. Essa Vila Maria tinha os melhores tamborins, tinha o apitador, um tal de Batucada, branco, branquinho até. Ter gente branca no samba era difícil. Os tamborins respeitadíssimos. E no Peruche tinha uma mulher que cantava, a primeiras intérprete de samba-enredo que eu vi na minha vida, chamava-se Ivonete. Ela saiu do Peruche e fundou o Acadêmicos do Peruche. Morreu há dois anos. Havia recebido o título de Embaixatriz. Merecido, merecido mesmo. Então, para vir numa escola de samba o cara tinha que ser bom de briga mesmo. Não tinha essa conversinha. Agora eu vejo que para sair na frente de uma bateria tem que malhar. Malhar o quê! Vai lá, sapateia, escreve o samba no terreiro. Tem que escrever no pé, escrever o nome, assinar. Hoje não tem mais isso. CARLOS: Como era isso? MANÉZINHO: A pessoa sapateando, escrevia seu nome, chamava o outro. Eu conheço paulista pelo sambar, porque ele olha logo no pé. Você tem que olhar é para cima. A gingada. Não tem esse negócio aqui. Não tem mais cabrochas na escola de samba. Não tem mais pastora. Acabou tudo. Não tem passista, não tem ritmista: virou cultura. Eu queria que a televisão, quando tivesse o carnaval, lá na concentração, quando eles pegam essas mulheres quase nuas para sair nestas revistas, que eles fossem na minha escola, entrassem na ala das baianas, e fizessem perguntas para elas como: que ela foi no passado? Alí que está a nata do samba. Pergunte a ela o que ela foi no samba. Alí tem uma porta-bandeira, uma pastora, uma ritmista e uma rumbeira. Na ala das baianas tem o grosso do samba, mas eles vão procurar essas mulheres para sair nuas. Vai na bateria, fala com Um Batuque Memorável no Samba Paulistano um ritmista daqueles que eles chamam de batuqueiro. Eles não falam com uma porta-bandeira sobre os problemas delas. Cada um tem um problema no samba. Todos têm problemas, mas não, eles vão mostrar na televisão essa mulher falando que malhou na academia, pelo amor de Deus! Só o que eu quero é batalhar para mostrar esse povo que sofre o ano todinho. Esse outro povo não, só aparece na hora do carnaval, não é? Tem uma porta-bandeira minha aqui, chama-se Nilza, e ela, em uma época estava com uma filha na mesa, morta e mesmo assim, ela veio desfilar. Em 68, perdi minha mãe também e ia desfilar no Peruche. Ela dizia que o luto era no coração. Fiz minha obrigação e vim para a folia. As lágrimas não deixam nódia, ela dizia. Infelizmente, a mídia, nem quer saber desse negócio. A mídia quer o cara da televisão que vem na escola, vai desfilar aqui, vai desfilar lá. Se você está na mídia vai desfilar em todas, mas eu sendo Embaixador do Samba, eu entro na VaiVai, no Camisa, no Peruche, entro em todas as escolas, não interessa o grupo, seja o 1, 2, especial, todos. Se eu cismar de entrar em uma, eu entro. Tenho direito, sou Embaixador, represento o samba. Agora esse povo aí? Malhar? Chega o carnaval e perde toda a coisa do sambista. O samba caminhou para isto. Era de maloqueiro, era de marginal. E agora? Responde. De quem é esse samba aí? Trabalhou o ano inteiro na televisão, tem a mídia dele lá, e se ele der um espaçozinho para mim? Para o sambista. Eles não dão. O samba foi por outro caminho. CARLOS: Como era essa batalha dos confetes? MANÉZINHO: A escola não tinha dinheiro. Aí faltando três, quatro meses, saíamos pelas ruas lá no Centro da cidade: São João, Avenida Ipiranga, Praça Clóvis, Praça da Sé, Ponta da Praia, e fazíamos aquela batucada. Um bando de sambista, com a bandeira e pedindo ao público, de bar em bar, a escola passava e eles botavam a ajuda. Aí encontrava com outra escola e isso era interessante, não tinha briga, não tinha nada, era batalha de confetes. Bom, naquela época também não tinha torcida de futebol, não é? Encontrava outra escola, cumprimentava, baixava o ritmo para outra passar. Eu ia para a Praça da Sé, Praça Clóvis, os bons sambistas estavam ali. Faziam aquela roda de sambista, bota pernada no outro, derrubava, o povo incrementava, tomava um negócio ali e ia embora. A polícia chegava e prendia, levava todo Um Batuque Memorável no Samba Paulistano M A N É Z I N H O 105 M A N É Z I N H O 106 mundo. Eu fui preso por várias vezes, me levaram lá para a Central. Talvez você não saiba onde era, sabe? Era na Rua Boa Vista. Presta atenção: tem o Pátio do Colégio, que tem o museu. Lá era a Central da Polícia e ali era a Guarda Civil. Levavam você e te deixavam lá. Você tinha que dar tantas gramas de sangue para ser liberado. “Você vai sair só na quarta-feira de cinzas”, diziam. Eles faziam com a gente, com o sambista, só com o pessoal da escola de samba. Eu doei sangue várias vezes para ir embora. Saía de lá um trapo. Quando eu voltava, entrava na Santa Ifigênia, tinha aquela igreja de santo que eu ia descansar para poder ir embora para casa. O sambista era muito perseguido, qualquer coisinha a polícia caía em cima. Agora, qualquer um quer sair na escola de samba, doutor, sei lá o que, advogado quer vir tocando cuíca, a filha do deputado para porta-bandeira, o neto do vereador para a bateria. Naquela época, ninguém queria fazer essas coisas não, ninguém vinha. Logo no início, quando começou a televisão, me convidaram para dançar com a porta-bandeira, no Canal 4. Ali conheci vários elementos: Sérgio Cabral, Benjamin Catan, Geórgia Gomide, Juca de Oliveira, Paulo Autran. Conheci todos esses personagens e a Geórgia Gomide dançava comigo. Ela fazia o papel de porta-bandeira, chamava-se “Requiém por um Tamborim”, que era do falecido, esse da “Navalha”, Plínio Marcos, que arranjou muita coisa para mim. Tinha o Teatro de Alumínio, na Praça da Bandeira, onde participei de algumas peças. Participei do Aída de Verdi, do filme do Juca de Oliveira, “Jogo da Vida e da Morte”, com Odete Lara e outros, Talismã e um monte de gente do samba. Foi a última coisa que eu fiz no samba, assim pelo negócio artístico. Trabalhei na Rádio Nacional quando era na Rua das Palmeiras. Eu era passista na Rádio Nacional com o falecido Jorge Costa. Tinha a escola dele e eu fazia aquele “Ronda dos Bairros”. Eu tocava tamborim, era passista deles e tinha as cabrochas. Fazia várias apresentações, viajava para o interior. Reveillon, não tem mais. Toda passagem de ano eles nos chamavam. O Denner chamava. Têm outros, o Raí, o Chocolate, o Noite Ilustrada, esses caras montavam um negócio assim: precisa-se de tantos passistas, vamos lá. CARLOS: E como era? Vocês iam às casas? MANÉZINHO: É, fazíamos o show para a passagem de ano, com o Um Batuque Memorável no Samba Paulistano pessoal do samba. Seis homens, seis mulheres, ritmistas, era muito bacana. Fim de ano e Natal também. A gente vivia disso. Fiz isso em 58, 59, 60. Aí parou. Fazia esses negócios em casas no Pacaembu, Brooklin, Jardim América. Vou te contar uma passagem: Nós fomos à casa de uma pessoa, no Pacaembu. Você conhece o Benny Goldman? Ele estava aqui no Brasil e fomos fazer um show. O dono da casa falou: “esse pessoal de escola de samba aí, cuidado, são um perigo, eles já amarraram todos os talheres.” A gente passava cada vexame. Toquei com Benny Goldman e Samy Davis Jr. E tinha um pessoal do Teatro de Alumínio, na Praça da Bandeira, Solano Trindade, Jean Turi. Eu não fui à França com eles porque eu era pequeno. O passista tinha que ter 1,90, não era essas coisas pequenininhas não. O passista era só no gingado. O verdadeiro passista é alto, então aparecia vestindo a roupa: paletó, jaquetão, chapéu de aba gold. A malandragem do samba era essa, só no gingado, virava prá lá e prá cá. Lembro-me do César Romero, quase dois metros de altura, Roberto Grande, Tijolo do Salgueiro, Ministro da Cuíca, Boca de Ouro do Pandeiro, e muitos outros. Esses eram passistas. A porta-bandeira que passou na minha mão, que eu ensaiei, que eu indiquei, estas não se curvam. Para você ver, uma portabandeira que vem de um lugar, vem com o pavilhão, vem com a cabeça para cima. Ela se impõe. Você pode dizer: “aquela ali é do Mané. Ela para e fica”. Agora veja esta se curvando. O quê? Ela está trazendo o Pavilhão, como ela vai se curvar? Eles que têm que se curvar para ela! Ensaiaram as coisas erradas. Eu fico olhando, não foi isso que eu trouxe para dentro de São Paulo. O Evaristo de Carvalho sabe tudo da minha vida. Eu moro na rua de cima da dele, na Casa Verde, no Parque Peruche. Ele entrou no samba por intermédio meu, quando não tinha Liga de Escola de Samba nem nada. Ali na Praça Julio Mesquita, ímos eu, Seu Carlão, Xangô da Vila Maria, Pitucha do Paulistano da Glória, Dona Eunice da Lavapés e Seu Inocêncio daqui. Dei a ideia de fundarmos uma união das escolas de samba e chamei o Evaristo para escrever. Já que é jornalista, escreve. Gosto de falar dos verdadeiros baluartes. Muitos já morreram, meu ex-cunhado Geraldo Filme já morreu. O Penteado está vivo, chegou Um Batuque Memorável no Samba Paulistano M A N É Z I N H O 107 M A N É Z I N H O 108 depois. Tem um menino aí que nunca falam muito dele, mas estava desde o começo. Era branquinho, mas estava no meio, o Germano Mathias. Desde o início participava das batalhas de confete, era bom de perna. Ele sempre estava no meio. Tem uma grande passista que é do Peruche, era Sandália de Prata, a Laurinha do Peruche. Ela merece uma faixa de Embaixatriz do Samba, pois foi uma grande passista. Teve uma porta-bandeira esse ano, a Vera, lá no Anhembi, ela estava trabalhando na pista, organizando: foi uma porta-bandeira. Põe ela ali no camarote. A câmera não foi lá. A Vera era do Unidos do Bom Retiro, mas participou da Peruche, da Rosas de Ouro, de várias escolas. Tem a Cida que era da Unidos da Casa Verde, uma grande porta-bandeira. Saiu na Ala das Baianas sabe de onde? Da Vai-Vai. Tem a Sueli, primeira porta-bandeira mirim, está lá na Ala das Baianas da Vai-Vai. Essa é a mágoa que eu tenho do samba, eles não dão valor. Dá um ingresso para essas pessoas. Já vi gente implorando para entrar lá, porque não tem condições. “Oi, Manézinho”. “Vem, você entra comigo. Me dá a mão”. “Quem é esse, aí?” “Não interessa! É um grande sambista. Se não fosse ele você não estaria trabalhando aqui”. Nessa época de Carnaval eles deveriam aparecer. Vai lá, fala com sicrano. Tem muita gente lá na Vila Maria, João Orlando, Dito Caipira e Tiana. Fiquei conhecendo agora o presidente de lá, Sérginho. Figura muito bacana. Apresentaram para mim. “Eu sei da sua vida”. “Você sabe?” “Você saía lá do Parque Peruche para ensinar porta-bandeira aqui”. “E quem era o mestre-sala?” “Guru”. “E quem era a porta-bandeira?” “A Tiana”, o primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira que existiu na Vila Maria. Eu quem os ensaiou. CARLOS: Antigamente só saía a porta-estandarte? MANÉZINHO: Não. Porta-estandarte saía nos cordões. A escola de samba tinha estandarte e porta-bandeira. A porta-bandeira vinha sozinha. CARLOS: Mas os balizas ficavam ao redor da porta-estandarte. MANÉZINHO: Não. Eles vinham na frente. CARLOS: É que você falou do balizar. MANÉZINHO: Não. Balizar era no Rio de Janeiro. Balizar era o modo, a elegância. Então, eles falavam que o mestre-sala vinha balizando a porta-bandeira. É o gesto. Então, você tem que dar o braço à ela, Um Batuque Memorável no Samba Paulistano apresentá-la a quem está cantando, volta ao centro. Eu peço licença a todos os Orixás: M A N É Z I N H O “Ô, ô, ô/ Ô, ô, a/ Saravá meu povo/ Salve todos os Orixás/ Venho de Angola/ Sou Rei da magia/ Minha terra muito longe/ Meu Congá é na Bahia.” Aí eu danço. Essa é a verdadeira coisa do mestre-sala e portabandeira. Aquele negócio de beijação (no pavilhão), aquele que você nem sabe quem é, cheio de batom, nada disso. Pavilhão você só oferece para um grande autoridade do samba, de outra escola, aí você apresenta o Pavilhão para ele. Não pode beijar qualquer um que chega aí, um destaque num sei de onde. Não, pavilhão tem que ter muito respeito. Apanhei da polícia, fui preso por causa disso. Eu estava lá, não sou historiador. Sou da época em que o Faria Lima oficializou o carnaval lá no Parque Ibirapuera. Eu fico me perguntando: essa tal de “mestraiada”, onde é que eles estavam quando o carnaval foi oficializado lá no Ibirapuera? Veio a Vila Isabel com grande mestre-sala também. Quanta gente falou que é baluarte, que é não sei o quê, que é bacharel do samba. Ele não estava lá. Foi Faria Lima quem oficializou o carnaval paulista, em 68. A primeira campeã do carnaval paulistano chama-se Nenê de Vila Matilde, escola que eu respeito muito. Uma vez fui dançar em Pirassununga, terra da cachaça. Eu e a Vera. Nós fomos almoçar e quando chegamos no restaurante os caras falando, os mestres-sala de lá: “É, a escola adversária está trazendo de São Paulo um tal de Manézinho e uma tal de Vera’ “E você de onde é?” “Eu sou de todo lugar, meu”. “Mas quem é você?” “Eu vou desfilar em uma escola de samba que você falou aí.” “Você é o Manézinho?” “Não, sou não.” E ficou falando aquelas coisas todas. Nós chegamos lá. Eu sou assim, eu vou dançar num lugar, o primeiro lugar que eu olho é o chão. Naquela época a gente dançava com sapatos Luiz XV. Poderia ser o enredo que fosse, ele vinha de Luiz XV, por isso que eles falavam que era veado, pois o casal vinha de peruca. E era aquela elegância. Lá, a rua era de paralelepípedo, e o Luiz XV com isso é um perigo, pois você bate o pé, escorrega e cai. Aí entramos lá, molhamos os pés. Deixamos os sapatos, eles só olhando. Todo mundo que entrava, caía, mas nós Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 109 M A N É Z I N H O 110 entramos e dançamos. Perguntaram-nos como fizemos para não cair e respondemos que enquanto eles estavam falando da gente, estávamos molhando os pés. Tem muita manha. CARLOS: Então foi uma grande novidade quando você trouxe o mestresala. MANÉZINHO: Foi na primeira escola de São Paulo que se chama Unidos do Parque Peruche e eu tenho o título de “Mestre dos Mestres-Sala de São Paulo”. quem me deu foi Xangô da Mangueira, Mano Décio, Natal da Portela, Delegado da Mngueira, Noel Canelinha do Império Serrano. Este último era o maior adversário do Delegado. E ao Delegado, meu maior respeito, meu professor. CARLOS: Unidos do Parque Peruche não é a mesma do Acadêmicos do Peruche? Acadêmicos é a da Dona Ivonete? MANÉZINHO: Da Ivonete era o Acadêmicos. E ainda tinha Unidos da Casa Verde que era mais antigo do que o Peruche e o Ritmos do Morro que é mais antigo ainda. Tem tanta agremiação extinta, ali era o berço do samba de São Paulo. Na Zona Norte, a mais antiga era a Vila Maria. CARLOS: E o Largo da Banana nessa história toda? MANÉZINHO: Lá tinha um chafariz. Era o largo de gente bamba. Tinha o Salão Campos Elísios, eu ia lá para participar da malandragem. Eu era menor e trabalhava na fábrica de guarda-chuva, o primeiro serviço que arrumei, na rua dos Americanos, em frente ao Conhaque Palhinha. Eu escapava para ir ao Largo da Banana ver os bambas: Inocêncio, Simplício, Chico Pinga e Mariano, eram caras respeitados. Eu, ainda moleque, entrei e tinha um cara que era “bamba pra caramba”, o Boi Lambeu. Ele me chamou e foi assim que entrei na roda. Eu ameacei tirar o chapéu, coloquei na cara dele e passei a perna derrubando-o. Fiquei fugido por uns três meses. Depois ele se tornou meu amigo, mas era uma manha danada. Tinha outras coisas que usávamos no samba, a navalha. Você pegava aqui no lenço e colocava a navalha no meio (demonstra). Isto aqui em São Paulo, por isso que eu digo, samba era para malandro. Otário não vinha, tinha medo. Agora chega aí, diretor não sei do quê, mestre não sei do quê. Agora é tudo cultura, cultura popular. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano ZULU Sr. Antonio Pereira da Silva Neto nasceu no dia 17 de outubro de 1948, em São Paulo – SP. É técnico em radiodiagnóstico. Entrevista realizada no dia 21 de março de 2009. CARLOS: Conta um pouco da sua trajetória no samba. ZULU: Não foi fácil, Carlos. Primeiramente, boa tarde. Desejo uma boa sorte para você. Que você consiga fazer seu trabalho com tempo. Não é mole trabalhar com o povo do samba, um povo meio que é mal humorado, mas gente fina, de bom coração. Talvez mal humorado até por causa das cacetadas da vida. Você pergunta e eu respondo e vamos trocando informações. Porque eu aprendi de graça e eu tenho que passar de graça. Então, a gente vai deixar algum legado para a rapaziada no futuro. CARLOS: Você nasceu em que ano? ZULU: Eu nasci em 17/10/1948, às 19h35min, na Rua Bela Cintra, na Maternidade São Paulo. Até porque era a única maternidade que tinha. Fechou. É a situação que esta aí. Fecha-se escola e hospital, mas tem muita coisa que não fecha, mas deixa isso por conta da obra do acaso. CARLOS: E você sempre morou na Barra Funda? ZULU: Ah sim, sempre morei na Barra Funda e, como já recebi muitos convites para ir para lá, para cá, não sei para onde, para escolas de samba dentro de São Paulo, sempre disse: não adianta eu ir para escola A, B ou C, que meu umbigo está enterrado na Barra Funda, um bairro que eu gosto. Sei que um dia eu vou sair de lá, mas enquanto eu puder vou ficar. Tudo o que eu tenho gosto e conquistei foi dentro da Barra Funda. Então, é um bairro que está dentro do meu coração. CARLOS: E você se lembra da primeira roda de samba que você viu ou Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 111 Z U L U participou? ZULU: Eu me lembro da primeira roda de samba porque a minha falecida madrinha alisava cabelo na Rua Camarajibe. Hoje em dia, é cabeleireira, naquela época era alisadeira, o negócio era bem diferente. E descendo alí, saía no Largo da Banana, só que, como eu era moleque, sentava e ficava olhando a rapaziada da época que era o Inocêncio, o próprio Seu Nenê, Seu João de Melo. Essas pessoas de que eu me lembro ficavam cantando, versando, tocando. Era maravilhoso aquilo e, dali, após o trabalho, eles formavam uma roda e aquele samba bonito, as mulheres também participavam no canto, e eu molequinho ficava vendo aquilo e falava: “O povo é animado”. Trabalhavam o dia todo ali. Onde é o Memorial da América Latina hoje, era o pátio da estrada de ferro, onde chegava todo alimento, cereais. Tudo vinha do interior e parava ali. O pessoal trabalhava, dava um duro danado de dia, de noite e tinha disposição para ir para o samba ainda. Era fantástico. Coisas que, nos dias de hoje, a gente não vê mais. Perdemos muito terreno neste aspecto. CARLOS: Você acompanhou isso por muitos anos? ZULU: Foi a base da minha formação. A Camisa Verde e Branco é de 1914, mas teve um hiato, problemas políticos, guerra, Presidente da República, Seu Getúlio Vargas se metendo no meio. Teve que parar porque confundiram tudo. Os integralistas usavam faixa verde, mas não tem nada a ver. Hoje, cada um usa a roupa que quer. Eu cresci sob a bandeira do Campos Elíseos, era um dos grandes cordões carnavalescos que havia na época. Eu sou da época do cordão - estou meio que rodado - e no Campos Elíseos, um cordão muito forte, houve uma dissidência em que o Seu Inocêncio saiu e resolveu falar com Seu Dionísio e reativar a Camisa Verde e Branco. No Campos Elíseos, no auge, eu me recordo que minha família, papai, madrinha, titio, o povo todo ia dançar lá. Tinha um grande baile e tinha um grande cordão. Embora meu pai e meu tio morassem na Zona Leste, saíram da Nenê de Vila Matilde, mas é outra história. CARLOS: Como foi a sua chegada no samba? ZULU: Em 1960, faz um pouquinho de tempo. Eu estava estudando num colégio interno e tive que sair da Barra Funda com quatro anos de idade. Eu estava em Jundiaí, depois, tive que sair de lá e estudar 112 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano Z U L U no Educandário Dom Duarte. Eu vejo meus filhos hoje e percebo que nenhum deles puxou nem um terço, graças a Deus. Eu voltei para o colégio interno e nas férias eu vinha. A Camisa ensaiava ali na Rua Conselheiro Brotero e eu ia, meio que escondidinho. Minha madrinha era muito austera, pegava muito no pé. Não que ela não gostasse, ela gostava, mas não queria aquilo para gente, eu ia assim mesmo, mas não saía ainda. A primeira saída minha foi em 63 ou 64, foi até escondido. A primeira vez que fui ao ensaio, me deixaram dormir para fora de casa. Era uma coisa complicada, mas eu vejo que eles tinham razão porque senão como é que eu poderia ter estudado? Eu fui chegando, fui trabalhando, fui crescendo. Na minha época, o melhor presidente que eu vi chamava-se Carlos Alberto Tobias, parceiro, só isso, era o cara. A gente cresceu ali. O pai dele também era linha dura. A mãe, sem comentários, era o amor, amor mesmo. A gente estava sempre ali, era um desvio e ela deixava o chicote estalar no lombo da gente, é lógico, tomava conta de tudo, aconselhava muito. Eu fui crescendo nesse ambiente. Em 62, saí do colégio interno e fiquei de vez. Eu trabalhava no barracão e fui aprendendo. Eu não cheguei de graça e também, graças a Deus, não precisei puxar o saco de ninguém, muito pelo contrário, levei foi é muito esporro do Seu Inocêncio e, hoje, eu vejo que ele estava certo. Antes dele fazer o passamento, vivi uma das minhas maiores emoções, infelizmente, nestas circuntâncias. Ele me chamou e me colocou responsável para ajudar a dirigir a escola dele. Ele me falou: “Meu filho vai ser o presidente e vocês dois vão trabalhar juntos”. Para mim, foi uma... Eu fiquei uma semana com disenteria. Que responsabilidade! Tem pessoas que são insubstituíveis, mas se Deus colocou no meu caminho... Ele disse que estava me observando faz tempo, se bem que eu era daquela turma que se diz do chifre furado, digo: eu sempre levei as coisas a sério, principalmente da escola de samba. CARLOS: Como você trabalhava na Escola de Samba nessa época? ZULU: Eu comecei no barracão. Aprendi muito com um cara que veio do Rio de Janeiro, o Senhor Octávio da Silva, mais conhecido como Talismã. Ele me ensinou muito, me deu a oportunidade de trabalhar no barracão. Comecei servindo água para o pessoal que trabalhava. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 113 Z U L U Um dia ele falou para mim: “Você vai começar a pregar os preguinhos”. Tinha uma caixa grande de madeira com toda a numeração dos pregos, então eu ficava separando os pregos. Isso é bom para você aprender, porque não podemos desperdiçar material. Fui passando por todas as etapas de barracão e ele me ensinando. Isso me deu um suporte muito grande, porque não é só você mandar, e se o cara que você mandar souber muito mais do que você? Você não vai mais poder mandar. Você vai ter que obedecer. O Seu Inocêncio fez a gente ir para biblioteca pegar as coleções, aprender a pesquisar para poder extrair enredo, a parte literária da coisa. Eu sempre fui péssimo em desenho, mas você tem que ter a noção do que você está vendo ali. E nós aprendíamos. Isto foi de 65 a 67. Depois, eu voltei a estudar de novo. “Um baita negão desses sendo office-boy? Tem que estudar”, disse ele. Fui estudar. Dentro do samba, você passa por várias etapas. Eu passei por várias até chegar ao ponto em que eu cheguei, cheguei com conhecimento, cheguei com saber. Não é aquele negócio de você falar, “mas é isso, isso,” aquele monte de abobrinha, totalmente errado. Aquelas pessoas com um pouco mais de conhecimento sempre me respeitam porque eu sempre as respeitei. Tem alguns mestres aí que eu devoto muito, Seu Inocêncio é um, Seu Sebastião do Amaral, que é o Pé Rachado, ex-presidente da Vai-Vai, Seu Zezinho, do Morro da Casa Verde, o falecido Mala, do Acadêmicos do Tatuapé, Seu Geraldo Filme, Osmar César de Carvalho, e tem duas pessoas do Rio, uma veio quando eu era muito moleque, o Rubens Confeti, da Rádio Nacional do Rio, e outra, o Delegado, quando eu estive na Mangueira, fazendo um estágio. Aprendi muito lá. Então, é aquele negócio, a gente nunca fala quem é a gente. Eu prefiro não falar. Eu prefiro ser um cara mais comedido. Às vezes, você está na roda e você ouve tanta coisa. Não é aquilo, não é? Mas derrubar os outros em cena nunca é bom. CARLOS: Conta dos estágios no samba. ZULU: Dentro dos estágios, quando eu saí na ala de passo marcado, nós não tínhamos tudo pronto. Hoje em dia, você entra nessas lojas que vendem materiais para o carnaval, já vem tudo preparado, é só você pegar um revólver com cola quente e botar um aplique ali. Se você der uma linha e uma agulha na mão do sujeito, ele não vai saber, eu aprendi, eu já vinha do pregar o botão na sua roupa mesmo. Dentro da 114 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano Z U L U escola de samba eu fui aprendendo a bordar, hoje, está muito cômodo, compra-se pela internet, corta, manda o revólver e está tudo pronto. A sensibilidade, o amor que se perdeu nisso. Eu me recordo que na ala do passo marcado, na ala do falecido Zé Carlos, a gente sentava e bordava a roupa. Então, mudou muito. Seu Inocêncio ensinava a gente a sambar. Tinha lá o quadrado que você tinha que sambar uma hora, uma hora e meia, sem tirar o pé do chão, imagina como ficavam suas pernas. CARLOS: E você passou por isso? ZULU: Passei por isso, pois eu não sabia o que estavam preparando para mim. Tive o prazer de conhecer o Pato N’Água, trabalhando no Camisa Verde, hoje o pessoal fala de batucada no Corinthians, no campo de futebol, eu vi o Pato N’Água comandando a batucada no parque São Jorge em 1959, 60, 61 e 62. Conheci o Nezão, Nelson Primo, Bifinha, esse povo trabalhando na bateria da Camisa. Conheci o José Porfírio, negão com 2 metros de altura, mais conhecido como Ticão, um grande caixeiro da nossa escola, ele ensinou e nós aprendemos. Foi mestre porque mestre é quem ensina, mestre não é o sujeito que está à frente da bateria. O responsável atual da bateria da Camisa Verde, um dia, quis fazer teste comigo: “Mas você está tocando surdo à moda do cordão”. “Mas foi isso que eu aprendi. Então, você sabe que eu não sou trouxa!”. Por isso que eu digo que para mandar tem que saber. Colocava todo mundo sentadinho lá, todo mundo ia tocando e não gostava que o outro ficasse rindo, não! Está todo mundo aprendendo, porque você vai rir do outro? Passei por lá, tive meu aprendizado. Ouvíamos falar de bloco. Seu Inocêncio não gostava, mas nós formamos o “Bloco do Bom Proceder” e saímos em um sábado de carnaval, só que, no sábado de carnaval, é dia de encourar instrumento, hoje, se você mandar um cara encourar instrumento, ele vai se embananar todo porque já vem tudo pronto, é só colocar lá, até na hora de apertar as borboletas, tem gente que faz errado e estraga os instrumentos. No entanto, na nossa época, colocava o couro no aro, deixava tudo prontinho para quando secar, afinar, e à noite tinha que estar pronto, mas não íamos, íamos para o samba. Saía da Barra Funda com 50, 60 pessoas. Voltávamos com 5.000, era um horror de gente. O homem punha a mão na cabeça e, como eu era uma das vítimas Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 115 Z U L U dele, ficava meio longe porque tomava bronca. Mas aquilo era a nossa diversão porque domingo era a vera, não podia vacilar, tinha que ir para dentro com tudo. Passava a noite encourando instrumento, cantando o samba, todo mundo animado. O que havia no passado? O respeito, a dedicação, como se fosse uma família. Nos dias de hoje, é muito difícil, há muito interesse. Às vezes, por causa de um cargo, o cara deixa de ser seu amigo. Não é isso? Escola de samba é formada por várias pessoas, não importa o que as pessoas têm: o conhecimento cultural, o grau financeiro, a etnia. O que importa é que ela venha de uma família. Quando você vê um amigo, cumprimenta, pelo menos, um boa tarde ou boa noite. Isso faz parte da boa educação na escola de samba. Eu sou contra esta palavra Secretaria da Educação. Tem que ser Secretaria de Atividade Sócio-Cultural, porque você põe seu filho lá para aprender o saber e conviver, para criar uma nova sociedade. Educação vem de casa. Governo nenhum educa, muito pelo contrário, deseduca. Dentro da escola de samba, tem que continuar o seguimento de família. Você vai encontrar de tudo lá dentro, mas cada um segue a linha que quer desde que não vá atrapalhar a instituição e nem atrapalhar o seu próximo, foi essa minha prioridade. Depois disso, dentro do próprio bloco tinha o movimento e Tobias falou: “Vai se preparando que você vai ser o diretor de harmonia da escola”. Eu já sabia que era uma bucha. “Eu quero me preocupar com o negócio de harmonia nada, eu quero folia”, mas tudo bem, já era do bloco e cantava também. Passei pela ala de canto. Até porque, na minha época, eu tive aula de canto na escola, fiz parte do canto orfeônico, daí em diante, saí da ala e veio o Delegado. Eu já estava trabalhando na harmonia com o pessoal. Alí, a coisa é esquisita. O bom harmonista trabalha para a escola, e não faz a escola trabalhar para ele. Você tem sua vida particular, você trabalha oito horas por dia, você trabalha mais oito para escola. Não é só procurando visibilidade, tem que ter a cabeça no lugar, e graças a Deus, eu sempre tive a minha, sempre procurando aprender, olhando o Manézinho, grande mestresala. Depois o Delegado me ensinou. A nossa quadra era descoberta, um calorão danado, e eu lá: “Não, repete! Repete! Repeteee!!!” E eu tive que repetir. Hoje, eu tenho condições de conversar com o 116 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano Z U L U responsável pela bateria e com o cara que é mestre-sala. Na minha época, tinha ala de evolução e ala de passo marcado. São duas coisas distintas e hoje você tem mais ala supostamente de evolução porque, infelizmente, o desfile da escola de samba virou uma coisa mais comercial que espontânea. Formam uma fila, distância, não sei o quê. Você não vê mais um grande passista. Hoje em dia o que está operando no carnaval de São Paulo? Aqui vai uma crítica contundente, escola de samba substituiu rainha de bateria e madrinha de bateria por mulheres que não são da comunidade. Fazer aqueles trejeitos que elas fazem, até eu faço. Quero saber se realmente sabe o bê-a-bá da história. Não sabe, se apertar não sabe. Mas a grande mídia, não é? Eu acho que este negócio está totalmente errado, tem muitas pessoas na sua comunidade, não precisa buscar em agência, em televisão, em canto algum. Dê oportunidade para seu povo trabalhar. Isso eu tive, graças a Deus. Tem que valorizar a tua comunidade e a tua comunidade é sequência da tua família, aonde sua mãe vai levar o seu filho e o filho, o filho dele. Eu sou do tempo das pastoras, de grandes passistas formadas dentro da escola. Escola de samba não é só madrinha, é um todo. Desde a comissão de frente até o último integrante, até o povo da velha guarda que merece respeito e o recebe. Isto é um protesto meu. Eu também já fui mocidade e hoje não sou mais, quer dizer que não vale mais nada? O tempo passou e acabou? E o conhecimento? Tem que priorizar isso. Eu ainda estou com alguma coisinha, não sei o motivo, obra de Deus. Tem muitos companheiros que já vi que estão de fora. Quero deixar bem claro: não existe filho sem pai, eles merecem respeito, seja de que escola for. Isso não interessa. Não são respeitados, nem politicamente, nem nas agremiações. Quando respeitam um pouquinho, acham que estão fazendo muito, mas o cara dedicou a vida àquilo! Ele tem que ter o espaço dele sim. Todos os componentes têm que ter. Não só a madrinha de bateria. Fulana está lá na mídia, acabou carnaval. Hoje é 21 de março, você ouve falar em carnaval? E as supostas madrinhas estão cuidando da vida delas. Elas vão lá ver se o povo da comunidade está precisando de alguma coisa? E quando se fala em colaborar com a comunidade saem metendo a boca por aí, como já vi. Então, não vá: compra o bilhete e senta. Este ano, eu não saí na minha escola, mas arrumei o ingresso Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 117 Z U L U e fui ver o desfile. É duro pra caramba, mas não tem problema, fui lá torcer por ela. Não importa quem dirige. Não há tanta formação igual a que eu tive. Graças a Deus, eu peguei muita gente boa. Fui harmonia da escola. CARLOS: Conta um pouco como foi o seu trabalho de harmonia dentro da escola. ZULU: Difícil. Ali, é complicado porque você vai se relacionar com todos os outros departamentos da escola. A responsabilidade é grande, tem que pensar muito, tem que ter o conhecimento. Hoje, o carnavalesco impõe e o povo diz amém! É só o presidente dizer amém, você vai ser obrigado a dizer também. Vai bater de frente com o carnavalesco? Tem presidente que deixa a desejar. O presidente que eu citei, o Tobias, e eu, que era responsável de conduzir a escola, tivemos uma formação sim. Vamos sentar e vamos conversar de igual, mas o cara falou: “Não é assim que a gente quer. É assim que nossa escola funciona, assim nosso povo gosta”. O gosto do povo, não o teu ou o meu. Dentro da harmonia, tem que ter um bom jogo de cintura, tem que ser pai, padrinho, padrasto e carrasco. Você tem que ter um bom mandatário. Graças a Deus, eu tive o Tobias. Nós tínhamos até um sistema de trabalho que deu certo para nós da Camisa Verde. Fantasias: tínhamos que fiscalizar tudo, saber número de componentes. Entrei em tantos lares na minha vida! Graças a Deus, sempre com respeito. Sentava no meu velho fusca, que já não está mais comigo, às seis, sete da manhã, ou no carro de outro amigo, e voltava meia-noite, uma da manhã. Comia um lanche rápido no almoço. Fazia o levantamento de tudo o que comprou ou não comprou para a escola não sofrer sanções, como hoje se escuta. “Comprou e não pagou”, não havia. Se você ficasse com um nó desses, ficava complicado. Depois, você ia aos ensaios, tinha que se relacionar com os componentes. O componente da escola tem que saber, tem que conhecer quem é o harmonia, o chefe de ala tem que saber. Não adianta nada você chegar para o cara e pedir canto, evolução e tal. É mole! Mas é mole para quem sabe, quem não sabe, é complicado. Quando você chega para o cara e, depois, “quem é este cara que eu nunca vi em lugar algum?” Você tem que interagir com o chefe de ala para que o chefe de ala repasse para os integrantes da ala, quem é o cara que vai conduzir tudo aquilo e quem são os assessores 118 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano Z U L U dele. Tem que estar afinadíssimo com tudo. Isto é o trabalho de uma boa harmonia. Eu trabalhei com dez harmonias na Camisa Verde. Para mim, foram os melhores que eu vi. Eu trabalhei com alguns que foram meus responsáveis. Depois, eu fui responsável deles e foram vinte anos de felicidade com essa turma. Daquela turma se tiver quatro vivos é muita coisa. O nosso objetivo sim, Camisa Verde e Branco, para dentro dos adversários. Eles não sabiam como conseguíamos conduzir aquele montão de gente com dez pessoas, mas nós fazíamos. Tirávamos de letra, com os pés nas costas. Hoje, as pessoas se apegam muito na nota. Lá atrás, não. Nós nos apegávamos ao trabalho, observávamos as falhas, conversávamos com o presidente da escola. Ele explicava e nós éramos obrigados a corrigir tudo aquilo para que, no próximo, não ocorresse o mesmo erro. Hoje em dia, você é até limado por causa da nota. A harmonia é o trabalho a médio e longo prazo, não o trabalho para dar resultado a curto prazo. Sou da época que o presidente da harmonia da Camisa Verde fazia a avaliação da escola. Eu tenho competência para isso. Hoje em dia, é o carnavalesco quem faz. Não tenho nada contra, até porque quando fui diretor técnico dentro da Liga, por quinze anos eu tentei formar uma associação dos carnavalescos para que fossem formados dentro de São Paulo e não onerasse tanto as escolas, mas eu não fui bem recebido porque falaram que eu queria tomar conta do samba de São Paulo. Não tenho nada contra, muito pelo contrário, acho um trabalho digno, são pessoas dignas e colocam a cabeça deles à disposição daquilo. Tem muitas escolas que não merecem o carnavalesco que têm. Nesse aprendizado, desde a costura de tudo o que você possa imaginar nós aprendíamos a fazer com muito amor, porque você podia se deparar numa situação daquela: “Eu não sei fazer isso!” “Calma, querida!” Você pega agulha dela e mostra o que deve ser feito. Você vai lidar com todo o tipo de gente. O respeito em primeiro lugar, com quem quer que seja. Você faz vários ensaios e tem que sair com seu plano de vôo pronto. Hoje, tem ensaio técnico? Eu sou responsável por isso, saiu da minha mão dentro da Liga. Ensaio já diz, é ensaio. Aparar as arestas e tirar os defeitos. Não é você achar que aquilo já Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 119 Z U L U é apresentação, pois ela está por vir. O pessoal acha que tem que ser aquilo lá. Não é nem mais ensaio, é desfile técnico. Eu encontrei o Robson e ele me falou: “Você é o culpado disso!” “É, fazer o que, não é, Robson?” Quando fica bonito todo mundo é pai. Quando é feio, o pai é um só. CARLOS: Quando você trouxe ou começou com os ensaios técnicos? ZULU: Isso foi por volta de 99. CARLOS: Antes não tinha? ZULU: Antes não tinha. Cada escola ensaiava no seu bairro, no seu reduto, não tinha isso. Tanto que eu sofri muito quando voltei para a Camisa Verde, porque ensaiava naquela avenida, no portão dela o couro comia. CARLOS: Na Avenida Norma? ZULU: Isso, isso. E agora não, agora nós temos que ir lá para o... O que eu fiz? Meu Deus! Que caca! Eu era o responsável e apresentei o projeto, agora estou vendo a direção de tudo isto. Eu estive lá olhando. “Cara, o que é isto?” Tanto que um amigo meu, que trabalhava comigo no Anhembi, apareceu lá também e disse: “Aí, o pai da criança!” CARLOS: O ensaio técnico é uma grande desorganização? ZULU: Infelizmente. Eu primo sempre pela boa organização. O pessoal pergunta: “Como conseguia fazer isso na rua?” Cada chefe de ala conhecia o seu rebanho, nós vamos fazer isso aqui e pronto. Armava e ia embora. Dentro desse trabalho de harmonia, já tinha feito a armação da escola, já tinha apresentado ao presidente, ao carnavalesco: “Vou fazer a numeração das alas para a hora de armar. Você é a ala catorze e eu sou ala quinze”. Por isso, nunca tivemos problemas. Hoje, compositor é ala. Não é ala, compositor é apoio ao canto. Os caras exigem: “Compositor tem que cantar”. Não. Compositor tem que apoiar. Uma vez eu tive que pegar no pé de um colega, pois ele disse: “Diretor de Harmonia não pode interagir no meio do desfile com o componente”. Falei: “Só do lado de fora? Então, não precisa”. Diretor de harmonia não vai dar bronca na hora de transmitir ânimo, força, determinação. O cara que mexe com escola de samba tem que saber, principalmente o cara da harmonia, quantos componentes têm, o plano de vôo da escola repassado para os meus companheiros. Deu 120 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano Z U L U certo? Glória a Deus! Deu errado? Bato a mão no peito, nunca fujo da minha responsabilidade. Esse negócio de jogar seu companheiro no fogo? Jamais! Acabou o carnaval, tem que fazer uma reunião de avaliação com o presidente. O Tobias era uma pessoa com muita coerência. Assim, a gente foi fazendo uma grande escola durante dez anos. Não foi mole, mas nós estivemos ali. Nós perdíamos o carnaval, mas não perdíamos a pose. Quando alguém pensava que a Camisa estava morta era igual ao Jason da “Sexta-feira 13”, voltava mais nervoso ainda! E nós fomos colhendo os frutos, pois nós tínhamos um planejamento, a nossa proposta era ousada. Dentro desse trabalho de harmonia é muito gratificante e eu aprendi muito, inclusive o relacionamento com o ser humano. Considero-me uma pessoa vitoriosa e prestei um grande trabalho para minha associação. Um grande espelho na minha vida em termos de harmonia foi o Pé Rachado da Vai-Vai. Eu vi esse cara coordenando o cordão no Bixiga com sabedoria, interagindo com todos os componentes, com vigor, por isso que a Vai-Vai está ai, firme e grande. CARLOS: Você me fez refletir sobre a questão da tradição. O que da tradição se transformou e ganhou outra cara? Ou o que se deturpou e foi para outro lado? O seu depoimento contribui muito, pois traz um exemplo disto. Outra coisa é que durante esta pesquisa, fui às escolas para entender a dinâmica dos ensaios. Chamou-me a atenção que, nas grandes escolas, o chefe de ala tem muito da postura de mandar, gritar e de até brigar. Em outra escola, uma menor, a Imperial do Mestre Divino, por exemplo, era completamente diferente. Tinha um prazer das pessoas estarem lá, das fantasias que eram feitas ali, desde a gravação do CD, tudo em família, praticamente. ZULU: Para você ver que eu não te contei nenhuma mentira. O Seu Inocêncio indicou a mim e um parceiro que está vivo, o José Carlos Gordinho. Nós vamos discutir com Mazinho, Seu Nenê, Casado, Chiclé? Poxa, os caras estão mil anos à nossa frente. Aí, Seu Juarez chegou e falou: “Deixa eu ver se os ‘filhos do Inocêncio’ estão afiados!” Ele tinha tudo, mas não sabia que nós também gostávamos de pesquisar. Não estávamos de laranja na parada. Mal sabíamos que Seu Inocêncio estava nos preparando para sermos dirigentes. O Robson me falou: “Você foi o último dos caras que foram preparados para ser dirigente!” Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 121 Z U L U O cara que está de fora te observa, você não se observa. É quando falo que o pessoal da harmonia deixa muito a desejar. Hoje, tem escola que tem trinta, quarenta harmonias. Acho isso um absurdo, se é algo levado a sério não precisa de tanta gente. Você tem que ter chefe de ala e você vai conversar com ele. Exemplo, a maioria do povo mora em bairros distantes e vem para as escolas do centro da cidade, vem para o samba. Tem um cara que é o líder no bairro dele e, quando ele vem, traz a turma dele. É muito mais fácil você interagir com ele e ele com o povo dele. Mal sabe ele que pode estar se preparando para amanhã ser um harmonia. Assim funciona, então, não adianta botar um cara gritando. Até porque, hoje em dia, as fantasias vai ter que pagar, vai dispor do seu recurso, a escola não te dá nada e, se te tratarem bem, você volta sempre e periga agregar mais pessoas. No entanto, se não tratarem bem, fica na lembrança, amigo, o dinheiro é meu. Está aqui para ser achincalhado, tomar bronca? Saiba se posicionar. Agora, tem algumas coisas aí que você mesmo andou e viu. Dentro de uma escola de samba, o diretor de harmonia é fator preponderante. Teve até um presidente que eu não vou citar o nome, mas quando sair este trabalho, alguém vai ler, e ele vai se tocar. Ele falou que harmonia não tem importância alguma dentro da escola. Quando me falaram isto me deu vontade de chorar. A coisa está ruim mesmo, como é que um cara desse pode ser presidente? É incompetente. O Seu Inocêncio antes do ensaio geral reunia toda a harmonia, entrava na salinha, fechava a porta e dizia assim: “Eu já terminei a minha parte com a escola, alegoria pronta, destaque e pá, pá, pá. Agora, é a parte de vocês, harmonia que tem que ser feita”. Quer melhor que isso? A gente ficava um olhando o outro e quando saía de lá, saía como louco, cada um com sua responsa. A responsa tinha sido jogada no peito de cada um, naquela salinha. “Só vou falar com vocês depois do resultado do carnaval!” Aí, você escuta um presidente falando numa reunião, na frente de todo mundo, que harmonia não manda nada. Será que eu aprendi tudo errado? Será que Seu Inocêncio me ensinou tudo errado? A hora que ele ler isso daí, vai saber que a mensagem é para ele. Um dia, talvez, eu te conto quem é. Depois disso, eu fui assumindo alguns cargos dentro da escola, às vezes, até me desentendi com alguns amigos, mas tudo dentro 122 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano Z U L U do respeito. Fui presidente do conselho da escola, depois voltei para harmonia, trabalhei no barracão. Eu sinto muita falta do Tobias. O Tobias é o fundador e o idealizador da Liga das Escolas de Samba. Hoje, estão tentando fundar outra coisa, que para mim não vale, essas pessoas chegaram depois e pegaram o arroz, o feijão e carne mastigados. É cômodo, é fácil querer destruir o que está pronto. Por isso que você falou que o ensaio geral está desorganizado. Em casa que não tem comando e não tem ordem, vai faltar o pão. Isto é o que aprendemos na nossa escola, com nossos antepassados. Sinto falta, sim, de cada um daqueles com quem conversei. O Tobias falece, fica a Magali e eu fui galgando outros cargos dentro da escola até chegar a diretor geral e da última vez, diretor de carnaval, que também é outra bucha quando você pega gente que não entende nada. Pode estar do jeito que está, mas a minha escola é essa. CARLOS: No Bloco do Bom Proceder, vocês saíam nas ruas no sábado? ZULU: Era diversão. Naquela época, o desfile era mais descontraído. Hoje, tem que cumprir tempo. Quando nós tínhamos esse bloco era para ir para gandaia. Eu não quero saber de nada, hoje é carnaval! Nós arrecadávamos dinheiro. Aquele montão de gente, era só alegria. CARLOS: Você falou que foi do Cordão Campos Elíseos? ZULU: Não. Eu não fui. Eu vi o cordão, mas fiz parte da ala jovem dessa instituição. CARLOS: Pode contar um pouco como era, o que você via? ZULU: Havia uma mulher que comandava aquilo, chamava-se Dona Neide, a mulher era um problema. Se você ia sambar, você tinha que ter um lenço para por nas costas da moça porque transpirava a mão. Tinha uma coisa muito importante: o baile de carnaval, baile de salão, que hoje não tem. Baile de carnaval era uma coisa com decência, com postura não é esse negócio pervertido que está aí, não. Lá, havia matinê, a coisa mais linda do mundo. Lá, no Campos, eu vi baile de carnaval muito bom, baile tradicional da ala jovem, depois que virou escola de samba, eu trabalhei um pouco para eles, mas não saí lá, não. Cheguei a pegar com o Senhor Inocêncio os instrumentos da Camisa emprestados. Tomei uma dura! Mas os caras não conseguiram colocar a escola na rua. Voltei com o rabinho entre as pernas. Ouvi o que devia e o que não devia do Seu Inocêncio. Ele falou: “eu já sabia que ia Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 123 Z U L U acontecer isso”. Pela experiência dele, eu tinha que ouvir. Agora, se você me perguntar de que dissidências foram algumas escolas, eu te falo: Tom Maior foi uma dissidência dentro da Camisa Verde, fundada pelo Seu Hélio Bagunça, Aníbal e Marcos, eram integrantes da Camisa Verde. Houve uma reunião, parece que não saiu bem um negócio, eu não me metia naquilo, saíram fora e formaram a Tom Maior. A Rosas de Ouro foi dissidência dentro dos Campos Elíseos. Os fundadores foram Zelão Engraxate, Zelão da Losa, Nego, Azul. Eu vi o Lavapés, uma senhora escola de samba, mas infelizmente, paciência. Tudo tem seu tempo e sua época. Chegar ao topo é uma coisa, manter-se lá é outra. Agora, o carro-chefe da tradição desse negócio de carnaval chama-se Nenê de Vila Matilde, Vai-Vai, Camisa Verde e Branco e Unidos do Peruche. Eu cresci vendo esse povo. Os outros vieram depois. Estão fazendo um trabalho que agrada, temos que respeitar também. Agora se você não cuidar, a carruagem vem e atropela. Outros acabaram. Campos Elíseos acabou, sumiu, dissolveuse tudo, não existe mais. Paulistano da Glória era um senhor cordão, depois virou escola de samba, acabou com tudo também. Tinha o salão de baile e nesse, eu cheguei a dançar. A minha geração vem depois da geração do Seu Inocêncio. Essa turma aí e a minha, o que nós vamos passar para a geração futura? A minha preocupação é esta, porque do jeito que vai, eu não sei aonde isso vai parar. Eu não estou gostando do que vejo. Eu vejo alguns interessados. Será que a maioria está interessada? São eles que vão ter que provar. Até porque, dos títulos de cordão, 54, do Centenário de São Paulo, 68, 69, 70, depois mais nove como escola de samba e um título do Grupo 1 que eu não estava mais mas do grupo especial, eu ganhei todos com os meus companheiros. Então, você tem uma história de vida prestada ao samba. Será que quem está mandando lá tem? As pessoas podem até omitir, mas a história nunca! 124 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano MERCADORIA Senhor Raimundo Pereira da Silva nasceu no dia 22 de março de 1943, em São Raimundo Nonato – PI. Entrevista realizada no dia 24 de março de 2009. CARLOS: Senhor Mercadoria, conta um pouco da sua trajetória no samba. MERCADORIA: Meu nome de batismo é Raimundo Pereira da Silva. Sou piauiense de São Raimundo Nonato, nasci em 22 de março e acabei de fazer 66 anos. Cheguei aqui em São Paulo com cinco anos de idade, no ano de 1948 e, bom, posso dizer que sou paulista. Entrei no colégio em 1952, em um seminário, pois eu iria ser padre. Estudei na Escola Salesiana São José, em Campinas. Fiquei lá por dois anos, de 1952 a 1954, então eu vim passar as férias em São Paulo. Era o ano do 4º centenário da cidade, cuja festa seria no Vale do Anhangabaú, e naquele dia estava se apresentando uma escola de samba do Rio, a Salgueiro. Eu nunca me esqueço, tinha uma ala de passo marcado e quando vi fiquei encantado. Não voltei mais para o seminário e coloquei na cabeça que não queria mais ser padre, queria fazer outro tipo de coisa na vida. Acho que foi neste momento que eu virei sambista. Comecei a procurar alguma coisa ligada não só a escola de samba, mas também relacionada à música, pois queria conhecer um pouco mais deste universo e vivia participando de escolas de músicas para aprender mais, principalmente percussão. No entanto, isto você não aprende a não ser com músico profissional, pois percussão boa você aprende na escola de samba, na bateria. Em 1959 conheci uma pessoa que depois virou meu parente, pois casei com a cunhada dele. Esse amigo me levou para conhecer uma escola, não digo que foi a primeira, mas oficialmente sim. Foi lá na Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 125 M E R C A D O R I A 126 favela do Vergueiro que conheci a escola de samba Rosas Negras. Digo oficialmente porque antes desta, conheci as duas escolas de samba do bairro da Vila Maria. Elas faziam os desfiles lá e eu andei participando. Nessa época já existia a unidos da Vila Maria. Se não me engano, ela era de 1954, mas eu me interessei mesmo pela Vergueiro, pela Rosas Negras, apesar de não ter durado muito tempo. Uma escola com vários elementos, vários sambistas, tanto é que foi da Rosas Negras que saiu a Império do Cambuci, por volta de 1961. O Sinval e o Tarcisão, ambos da Rosas, foram para a Cambuci e eu fui também. A escola ainda estava sendo fundada ainda, o Nelson Crescibeni era o presidente e fundador. Eu fiquei na Império, isso em 1963. Tinha também o Seu Beto, da Mocidade Alegre, que era compositor e a Império foi o início da minha carreira. Lá eu aprendi a tocar todos os instrumentos de percussão com o Mestre Rubinho, grande batucador. Dessa escola saíram vários nomes famosos do samba que fundaram outras escolas depois. Hoje é fácil um ritmista chegar na Escola de Samba e já sair tocando, mas naquela época não, para você tocar um instrumento precisava primeiro saber encourá-lo. Eu queria tocar caixa, mas era daquelas caixas antigas, do período da borboleta, Seu Rubinho me disse, então, para montar meu instrumento e aprontá-lo para tocar. Fiquei três dias coçando a cabeça, não tinha a menor ideia de como fazer aquilo. Depois dos três dias, ele me chamou e disse que só ia me ensinar uma vez, depois disso eu deveria me virar. Então, pegou o couro e colocou na água, antigamente falava bordão, mas agora falase couro, aí cortou e molhou. No final da tarde, ele me chamou para ensinar a encourar. Pegou o arco, a colher, dobrou e enfaixou. Aí ele desmanchou tudo e disse: “Agora faça você!” Demorei umas cinco horas para montar, mas montei. Eu peguei tanto gosto na coisa, que toda vez que tinha um instrumento para encourar, eu ajudava. Outra coisa que aprendi, e demorou um tempão, foi afinar instrumento, quem me ensinou foi o Toniquinho Batuqueiro. Acho que fiquei uns dez anos na Império, com grandes carnavais, grandes sambistas. Em meados de 72 eu saí da Império e tive uma passagem muito rápida pela Nenê. Já em 1973 eu frequentava a UESP. Nesse ano me tornei diretor dela. Aí comecei a carreira de dirigente de associações, e em 74 fui fundador da Escola de Samba Primeira do Um Batuque Memorável no Samba Paulistano Itaim Paulista, escrevi o enredo desta escola, Menino dos Palmares. Fui carnavalesco, aderecista e fomos campeões do Carnaval no Grupo 3, na Avenida São João. O enredo era muito bom, baseado num livro da Isa, mas não me recordo o sobrenome. Foi o primeiro livro de uma escritora e jornalista que se tornou enredo no Brasil. Grandes pessoas nos ajudaram a fazer esse desfile. Dona Elina Facio, a costureira, fez tudo de graça para a escola. O Vasco, que trabalhava na Folha de São Paulo e era editor internacional da Gazeta, também se interessou pelo enredo. O Derly Marques, que ainda está vivo, era fotógrafo também da Folha. Essas pessoas nos ajudaram muito. Em 74 passei a ajudar na organização do Carnaval em São Paulo, na época em que saiu da São João e veio para a Tiradentes, pela Secretaria de Fomento e Turismo, que cuidava do Carnaval Dona Maria Aparecida trabalhava pela Secretaria e fui indicado pela UESP a tornar-me coordenador. Durante muitos anos essa mulher mandava no carnaval de São Paulo. A Secretaria ficava no prédio da Câmara, aí veio para o Anhembi, que passou a tomar conta do Carnaval. Naquela época, nós fazíamos muitos desfiles nos bairros. A UESP chegou a fazer 20 bairros. Era muito bonito, entre 77 e 78 quando o Carnaval estava começando a ganhar corpo, não como carnaval profissional, mas como carnaval organizado, com todas as regras. O Jangada preparou o regulamento, era um jornalista carioca radicado em São Paulo, fez muitos sambas para a Mocidade Alegre, trabalhou na Folha, foi parceiro do Talismã. Participamos de todas as modificações que o Carnaval de São Paulo passou até hoje, nós participamos. Em 1979 fui convidado por uma outra escola de samba. Não era grande na época, mas era respeitada. Era a Rosas de Ouro. O Jangada era o diretor de harmonia da Rosas, mas ele tinha que voltar para o Rio, e na época o irmão do presidente me convidou para ir pra lá. Eu não queria ir, pois tinha uma política racial muito forte. Diziam que a Rosas de Ouro era uma escola racista, não aceitava negros, e eu não estava me sentindo a vontade. CARLOS: Era uma escola só de brancos? Como era? MERCADORIA: Na época as pessoas diziam que a Rosas era uma escola de brancos, racistas, não era de negros, era uma escola elitizada, mas isso não era verdade, tanto que o diretor de bateria na época era o Um Batuque Memorável no Samba Paulistano M E R C A D O R I A 127 M E R C A D O R I A 128 Lagrila, e mais negro que ele era impossível. Convenceram-me em 1980 e eu fui para lá. O carnaval de São Paulo já estava se transformando. O Camisa veio de um tetra campeonato e na minha opinião, um dos mais bonitos de São Paulo; veio com “Narainã”, “Acima de Tudo uma Mulher”, sambas de Ideval e outros parceiros. O samba de São Paulo vai tomando um rumo diferente com grandes enredos, grandes composições, grandes desfiles na Tiradentes, muito bem forrada de iluminação. O som começou a mudar, não era mais a corneta, era a caixa. O samba começou a tomar outro impulso. Em 1980 a Mocidade ganhou o carnaval, um desfile maravilhoso, e assim foi evoluindo. Na época, também fui fundador da atual FESEC, que antigamente chamava-se FESEAC. Começamos a trabalhar sobre o critério de julgamento que existe hoje. A TV Cultura se interessava em fazer imagens do carnaval de São Paulo, até transmitiu, na década de 80. Em meados de 81, 82 a Vai-Vai estava numa pujança muito grande em sua caminhada. Já em 1983 a Rosas de Ouro começou a mudar o Carnaval. Ela foi campeã em 83 e no ano seguinte houve a primeira grande transformação. A Rosas levantou os carros e colocou movimentos muito rústicos, antes inexistentes. Os carros para a época eram gigantes, com oito metros de altura. Hoje nós temos alegorias de 15 metros. A Rosas surpreendeu todo mundo, ganhou da Camisa Verde por diferença de meio ponto. Neste ano o Ideval não fez samba para a Camisa, fez para a Rosas e virou hino da Academia do Largo São Francisco: “Lá no Largo São Francisco/ bem no centro da cidade/ dia 11 de agosto/ inaugurada a faculdade...”. Virou samba antológico da faculdade e a partir daí as escolas começaram a investir nos desfiles e as mudanças começaram a ficar significativas. Houve melhor preparação dos ensaios e já pudemos ver resultados em 1985, com a ida da Nenê para o Rio de Janeiro para participar do Desfile das Campeãs. Naquela época foi feito um convênio com a RIOTUR para que a escola campeã de São Paulo fosse participar do desfile no Rio. Foi uma disputa muito grande, até hoje muitas pessoas não concordam com a ida da Nenê, porque na época o Betinho era presidente da UESP. Era seu último ano, e os participantes da Vai-Vai e Rosas de Ouro não concordaram com aquele campeonato. As duas escolas estavam empatadas, mas o último quesito, no final Um Batuque Memorável no Samba Paulistano da apuração, era o item que nem a Vai-Vai nem a Rosas perdiam para ninguém, de jeito nenhum: a fantasia. Na época, a fantasia da Nenê realmente não tinha condições. Esta escola sempre teve grande bateria, grande samba no pé, mas fantasia não. E as duas tiraram notas baixíssimas: oito. Já a Nenê tirou dez, o que a fez ser campeã do desfile. Ela ganhou e foi para o Rio. Ela tem a primazia de ser a primeira escola paulista a desfilar em um sambódromo. Na Rosas de Ouro estava tudo pronto, todo o material para viajar, pois sabiam que não perderiam este carnaval para ninguém, seria a Tricampeã do carnaval de São Paulo, mas o registro da história está lá, deu Nenê. De certa forma isto ajudou, pois o carnaval ganhou corpo, ficou mais consistente. Então, a TV começou a se interessar, mas aí houve a cisão. Em 1986 foi criada a Liga. A UESP sempre teve o crédito de ter uma quantidade muito grande de escolas de samba, na época existiam 115 escolas filiadas. Escolas do Grupo 1, 2, 3, mas todas as votações tinham o mesmo peso de voto. Todas as vezes que se votava alguma coisa para o Grupo 1, perdia-se, porque o peso do voto era 95 contra dez. Os presidentes foram ficando revoltados, então foi criado um movimento para que o peso de nota do Grupo 1, valesse por dez. Neste movimento estávamos eu, Tobias da Camisa, Fernando Penteado e o Betinho. Então, você teria dez escolas, o que daria cem pontos, contra cem do lado de lá, mas não aceitaram. São fatos que não estão registrados, mas é a realidade. “Vocês não querem? Não”. Então, começou a ideia de se fazer uma Liga aqui em São Paulo, mas ainda tentamos manter a coisa em pé. Em 86 o Jânio Quadros foi eleito prefeito de São Paulo e a primeira conversa dele é de que não haveria carnaval. Logo após a eleição, chegou um grupo de empresários portugueses na UESP, queria comprar o carnaval e mudar o desfile da Tiradentes, pois eles iam fazer o sambódromo. A ideia era fazer onde fica o Parque Villa-Lobos, aí foi aquela discussão, muda, muda, vende, vende, faz, não faz. Graças a Deus não vendeu, mas essa discussão de vender ou não reforçou a tese da Liga. O desfile do Grupo 1 era no domingo e o do Grupo 2 no sábado, mas para fugir da concorrência do Rio, os empresários queriam que o Grupo 1 fosse no sábado e o 2 no domingo. Fizeram a proposta financeira. Propusemos que eles dessem algo em torno do que seria Um Batuque Memorável no Samba Paulistano M E R C A D O R I A 129 M E R C A D O R I A 130 hoje R$ 100.000,00 para o Grupo 1 e R$ 80.000,00 para o Grupo 2, em reunião feita na UESP, mas o Grupo 2 não aceitou, só aceitariam se fosse divido por igual. Quem levantou este movimento do Grupo 2 foram o Leandro e o Divino, e neste dia foi fundada a LIGA. Nós quatro saímos da rua e ficamos no paredão, conversando: eu, Betinho, Tobias e Fernando Penteado. Foi quando chegou a notícia de que o Grupo 2 só aceitaria se o Grupo 1 fosse com este valor: estava fundada a Liga. O documento de assinatura da criação da Liga foi feito no Prédio da Federação Paulista de Futebol, num caderno. Todo mundo assinou, até a Nenê, só que a assinatura foi do Betinho, e não do Seu Nenê. Na hora da apuração, que passava na televisão, nós estávamos dando ciência de que a partir daquele momento existia a Liga. Seu Nenê disse que a Nenê não participaria, pois o Betinho não tinha autorização para assinar o documento, tanto que se pode ver no Estatuto da Liga que são dez escolas de samba. Dez ou doze, e a Nenê não está na lista. O Betinho participou de toda a movimentação. As primeiras reuniões da Liga foram feitas no Peruche e o finado Juarez foi o primeiro presidente. Desde 87 o carnaval vem acontecendo com as grandes escolas se aprimorando cada vez mais: os anos de 88, 89 e 90 sediaram grandes desfiles. A Tiradentes foi tirada dos desfiles não pelo metrô, como sempre alegaram, mas pelo crescimento, pelo tráfego intenso, o Jânio construiu uma passarela e quando isso aconteceu ele matou as escolas de samba. A ideia do sambódromo em São Paulo foi crescendo a cada ano, foram vistos vários lugares, até pensou-se em levar o carnaval para Interlagos ou para o espaço que os portugueses sugeriram, o Parque Villa Lobos. Eduardo Basílio, presidente da Rosas de Ouro, lembrou do espaço no Anhembi, onde hoje tem o sambódromo e que era um estacionamento de carretas. Então, se iniciou o movimento para que fosse feito ali. O espaço era grande. Na época, a Erundina era a prefeita e quando estavam discutindo o projeto entrou a parte política, pois era ano de eleição para presidente e o Lula era candidato. A maioria dos vereadores só aprovaria o projeto do sambódromo se alguma parte daquilo fosse dado para o Maurício de Souza, para fazer o Parque da Mônica, que trabalhou na campanha do Lula. Houve uma briga danada, mas depois de muita discussão, conseguiu-se tirar o parque do projeto. Teve que ser aprovada uma lei, pois aquela área Um Batuque Memorável no Samba Paulistano era VIP e nestes lugares não se pode construir prédio algum. O projeto que o Niemayer fez não é o que está hoje alí, era bem mais amplo. Para você ter uma ideia, ele tem uma cúpula que cobre toda a pista e arquibancada. Na época era um milagre para fazer, hoje nem se fala, seria um negócio fantástico: um pé direito de 40 metros e a cúpula de acrílico. A Philips montou para o sambódromo a mesma iluminação que tinha montado para as Olimpíadas de Barcelona, tanto que o pessoal do Rio reclama dizendo que vira dia de tão claro. A iluminação de São Paulo é um negócio terrível, muito claro. Nos anos de 90, 91 foi uma loucura, tivemos muita chuva, mas tudo isso valeu a pena. Hoje está até fácil trabalhar no Carnaval de São Paulo, em termos de organização, não deve mais para ninguém. Os desfiles são muito bem organizados, não tem mais atrasos. Muitas pessoas lutaram por este carnaval. O Geraldo Filme foi um batalhador, os presidentes da época ajudaram muito também, o Seu Inocêncio, Seu Nenê, Mala, Dona Eunice, Sinval, Seu Zézinho do Morro da Casa Verde, Basílio, Juarez, Carlão do Peruche, Valtinho do Peruche e Tobias. Hoje as escolas têm uma casa, uma sede, mas isso aconteceu depois de muito esforço, de muita luta. A criação da FESEC ajudou também no carnaval do interior, se bem que tem cidade que tem carnaval tão grandioso quanto o da capital. CARLOS: Por que você deu graças a Deus por não ter vendido o carnaval para os portugueses? MERCADORIA: Descobrimos, depois de alguns meses, que eram uns picaretas. Eles fecharam negócio com o Jânio e não cumpriram, deu problema sério. Os caras não iam fazer nada. CARLOS: Quando uma escola da UESP passa para o outro Grupo, ela entra para a Liga? MERCADORIA: É o processo natural. O regulamento do Carnaval diz que tem de subir duas escolas do Grupo de acesso. Hoje existe mais uma associação, a Superliga. A escola que vem da UESP só tem que escolher onde ela vai ficar, Liga ou Superliga, não é obrigada a se filiar, mas tem que ficar numa destas duas para participar das reuniões. Duas escolas caem para a UESP; este ano caiu uma que é fundadora da Liga, a Tatuapé, mas numa eleição da Liga ela tem que vir votar, ela tem direito a voto. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano M E R C A D O R I A 131 M E R C A D O R I A 132 CARLOS: Qual o momento do carnaval que mais te emocionou? MERCADORIA: Muitas coisas me emocionaram, mas o que mais me marcou não foi nem o campeonato, foi uma tragédia. Eu era diretor da Escola de Samba Primeira do Itaim e nós tínhamos acabado de subir para o Grupo 2, em 1975. Em 74 na São João e em 75 fomos para a Tiradentes. Nós fizemos um enredo que se chamava Festa na Roça, contando a festa junina, mas no tempo de carnaval era muita malandragem e nós não tínhamos ciência. O mesmo pessoal que trabalhou com a gente em 74, trabalhou em 75. Íamos fazer um carnaval simples, mas no topo. Só que tinha uma pessoa, Valdemar Martins, que era o compositor do samba, ele era do morro da Casa Verde. Foi para a Itaim e ganhou o samba lá. “Dia de festa na roça,/ cantamos até sinhá...”. O presidente, Oscar Miguel, um cara de coração fantástico, acreditava em Papai Noel e em Mula sem Cabeça. Esse Valdemar o convenceu de que tinha uma amizade no Rio, que ele traria para São Paulo 110 integrantes da Beija-Flor para desfilar na Itaim Paulista. Oscar disse “Aceito!”. Enquanto isso, a nossa bateria estava ensaiando com apenas três pessoas. Chegado o dia do desfile, a escola pronta para ser campeã de novo, naquela época a escola tinha quase oitocentos integrantes, no bairro não tinha escola de samba, a mais próxima era a Nenê ou a Leandro, que é lá do outro lado. Ficamos esperando a bateria da Beija-Flor, e você sabe o que aconteceu, não é? Não chegou. Foi a pior coisa que eu vi no carnaval. Ver todo aquele povo sentado chorando, quase 800 pessoas chorando. Nós entramos com dez integrantes da bateria. A escola ia ser campeã de novo, mas a partir deste dia começou a acabar, uma escola que hoje poderia ser uma das maiores e um desastre acabou com ela. CARLOS: Por que este apelido? MERCADORIA: O apelido Mercadoria hoje é marca, faz parte do nome Raimundo. Nos anos 70 tinha uma novela que passava aqui em São Paulo que se chamava “A Pequena Órfã”, e o Noite Ilustrada tinha um personagem. Fazia muito frio em São Paulo, e eu estudava à noite. Eu usava um gorro que fechava a orelha e o personagem do Noite Ilustrada usava um idêntico. Um dia cheguei à sala de aula, eu estava fazendo o ginásio lá no Carandiru, a professora de geografia olhava para minha cara e dava risada, e os alunos perguntaram: “Ô professora, o Um Batuque Memorável no Samba Paulistano que aconteceu?” “Ele parece o Mercadoria”, respondeu. Não precisou falar duas vezes, 40 pessoas dentro da sala. Depois ela explicou que o personagem do Noite chamava Mercadoria. No começo eu ficava meio bravo, mas agora não. Onde se for no carnaval em São Paulo só me conhecem por Mercadoria. CARLOS: Muito obrigado. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano M E R C A D O R I A 133 LANDÃO Sr. Orlando Balbino da Silva nasceu no dia 11 de setembro de 1946, em São Paulo – SP. É aposentado. Entrevista realizada no dia 26 de março de 2009. CARLOS: Senhor Orlando, mais conhecido como Landão. Nome de batismo? LANDÃO: Orlando Balbino da Silva. CARLOS: Nasceu? LANDÃO: Em São Paulo, Bela Vista, Rua Frei Caneca, Maternidade de São Paulo. Dia 11 de setembro de 1946, estou com 62, vou fazer 63. CARLOS: Deve ter história para contar! Como começou a sua vida no samba? LANDÃO: É engraçado. O destino prepara a caminhada da gente, das pessoas, e comigo não foi diferente. Mamãe era da Bela Vista, nasceu lá e foi rainha do bloco no cordão da Saracura, na época. Eu nasci na Rua Frei Caneca, no ano de 1946, como acabei de dizer, e em 1949 quando a Nenê estava sendo fundada, eu fui para Vila Matilde. Papai voltou para Vila Matilde e eu já tinha perdido a mamãe. Ele casou novamente. Cresci na Rua José Mascarenhas, que fica no Largo do Peixe, vendo aquelas bancadas, as tiriricas. Fui crescendo com aquilo, e está no sangue, porque mamãe era da Vai-Vai e antes era Saracura. E eu sou Nenê “doente”, junto do meu compadre Albertino Alves de Souza, o Beto, um dos maiores sambistas que conheci e conheço até hoje. A gente começou a ter amizade, ele era sobrinho do Seu Nenê, e quando tinha 11 para 12 anos ele me chamou para desfilar na escola. “Eu vou!” Ele me levou com os amigos, Walter, Wagner, todos os sobrinhos do Seu Nenê. Desde o ano de 1958 até hoje desfilei na Nenê de Vila Matilde. Nesse trajeto aconteceram muitas passagens pitorescas que 134 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano a gente lembra e dá risada. Papai não gostava, tinha medo, na época o samba era marginalizado, era perseguido. Minha madrasta e minhas irmãs ficavam com medo porque eu ia escondido. Quando eu pedia dinheiro ao papai para desfilar, ele não dava. Então, o que eu fazia? Juntava lata, vidro e vendia. E para não voltar para casa fantasiado eu tirava a fantasia no meio da rua e vestia minha roupa. Colocava a fantasia num plástico, fazia um buraco num quintal baldio e enterrava. No outro dia tirava e passava a minha fantasia. A mãe do meu compadre ajudava a lavar e passar, sabendo que eu estava escondido. Depois de um tempo, papai: “Num teve jeito, você está desfilando lá?” “Eu estou!” Começou em 1958 minha paixão pela escola de samba, batucada, passista, a ginga das cabrochas, as baianas, era tudo de bom. Na época, a batucada da Nenê era uma batucada que você se envolvia sem querer de tão boa que ela era, aquilo contagiava a gente. Antes de começar a desfilar eu chorava por vê-los no ônibus indo embora. Uma agonia. Chegava em casa chorando. “O que foi?” “Nada!” Tudo por causa da escola de samba. Hoje eu me considero um sambista realizado por causa da Vila Matilde, e por conta do Albertino Alves de Souza, parceiro, amigo, companheiro, sambista de primeira qualidade; aprendi muita coisa com ele no samba, e até hoje a gente conversa. Fomos aprimorando e a escola de samba crescendo. Quando eu comecei a desfilar, acredito que tinha mais ou menos 120 pessoas na escola, tinha o Paulistinha, grande mestre-sala, intérprete e compositor e Nicolau, grande diretor de bateria. Eu observava tudo isso. De batuqueiro tinha Tibá, Juju, Tio Zé, Ninhão, Charutinho, Geléia, Dercisão, Champlim, Zé Banana, Doce, Mário, Patinho, Pezão, Odair, Alvin, se for falar de todos vamos passar o dia aqui. Tinha a dona Odete, a primeira porta-bandeira da Nenê. Eu observava um pouco de cada um; tocava um pouco de tamborim; aprendi um pouco de repenique. A gente aprendia a cantar, a ser intérprete e muitas vezes seguravámos a roda de samba cantando a noite inteira. Na inauguração do Anhembi fomos para lá, fiquei com braço duro de tanto tocar surdo. Isto aconteceu, também, nos desfiles da São João, na Lapa, na Rua 12 de outubro e no Ibirapuera. É uma história gostosa de falar. Hoje está o samba comercializado, tipo empresa, mas até acho bonito que o carnaval tenha crescido de Um Batuque Memorável no Samba Paulistano L A N D Ã O 135 L A N D Ã O 136 uma forma tão assustadora, porque de repente começaram a surgir alegorias enormes, fantasias bem elaboradas e essas coisas todas que vemos nos desfiles. É bonito, gosto de ver. O carnaval tem que crescer, só não pode perder a originalidade do sambista, o samba no pé, que é o passista, que faz a alegria, aquele sambista que transmite com a brincadeira do seu gingado, com o malandreado e com a coreografia. Dentro da Nenê de Vila Matilde eu fui um pouco de cada coisa: saí na bateria, fui intérprete, varredor de quadra, trabalhei no bar, na portaria, carreguei bloco e ajudei a construir a quadra. A primeira quadra coberta do Brasil chama-se Nenê de Vila Matilde. Por quase trinta anos fui diretor de harmonia e em 1996 fui Rei Momo. Eu tive a felicidade de em 2009 ser o Cidadão Samba do carnaval. Sou um sambista realizado, sou paulistano e defendo o carnaval do meu Estado com unhas e dentes. Para mim, cada carnaval tem seu estilo. Rio de Janeiro tem seu estilo, São Paulo tem o estilo da gente, mas o nosso carnaval pode melhorar cada vez mais, no sentido da união. Até faço um apelo para todas as comunidades carnavalescas que se unam, que não se dividam. O público vai ganhar mais, o carnaval vai ganhar mais se as forças se unirem. Todos os presidentes, todas as escolas de samba, todas as entidades carnavalescas. É um apelo do Landão para vocês presidentes, todos, sem exceção. Sei que eles não vão ouvir o apelo de um sambista, de um pequenino sambista. Quantas escolas nós temos em São Paulo? Eu acho que a briga é dentro da passarela porque anos atrás a gente via o Seu Nenê, o Pé Rachado, o Seu Inocêncio, Seu Carlão, cada um querendo levar o título e tal, mas na hora de fazer a corrente em pról do samba eles estavam sempre alí. O carnaval sofreu repressão: polícia batia. Seu Nenê, Seu Carlão, Seu Inocêncio Tobias, Pé Rachado, Seu Chiclé, depois Seu Juarez, se não fosse esses homens, eu não sei se existiria o carnaval. Eles brigavam por um objetivo só, para o carnaval crescer. Depois veio o grande Robson de Oliveira, que deu um impulso no carnaval e ficou um espetáculo; ele não tinha medo, ia mesmo, não queria saber, queria ver o carnaval. Então, hoje em dia você vê a estrutura da Vila Maria, da Vai-Vai, da Rosas, todas têm que ter uma boa estrutura, mas uma estrutura desse nível. O público ganha, a escola ganha, o carnaval cresce. Aprendi harmonia com o Fernando Penteado, com o Amaral, Um Batuque Memorável no Samba Paulistano sambista de primeira qualidade, com o Zulu, com Otávio Pereira, com essas feras aí. CARLOS: Desta época em que você juntava as latinhas para comprar sua fantasia, quanto, mais ou menos, você gastava pensando num valor equivalente a hoje. LANDÃO: Hoje, depende da fantasia. Custaria uns R$ 100,00. CARLOS: Então, naquela época já era um pouco caro? LANDÃO: Entre R$ 50,00 e R$ 100,00, eu não acho que era caro, não. CARLOS: E a questão de confeccionar a fantasia? LANDÃO: O carnavalesco fazia o desenho, entregava na mão do Seu Nenê, que comprava o pano e contratava a costureira e a gente ajudava. Colaborava para ajudar a escola a pagar. Não era luxo, mas era uma coisa bem uniforme e estava todo mundo com um traje só. CARLOS: O senhor disse que saíam umas 100, 120 pessoas. Quantas tinham na bateria, na batucada? LANDÃO: Na batucada umas 50. Entre 30 e 50 pessoas. CARLOS: As fantasias eram separadas em alas? LANDÃO: Em alas e vinham contando o enredo. A escola já vinha toda separada e cada ala era uma parte do enredo. CARLOS: E o senhor chegou a ver o Cordão da Saracura? LANDÃO: Não. Não lembro porque quando a mamãe morreu eu era pequenininho, eu tinha 4 anos de idade. CARLOS: E a Nenê ia desfilar na 12 de outubro? LANDÃO: A gente desfilava na Vila Esperança, em Santos, em Jundiaí, em Mogi das Cruzes, Poá, Itaquá e Ibirapuera. CARLOS: Essa era a época dos desfiles nos bairros? LANDÃO: Não. Tinha o desfile principal que às vezes era na Lapa, às vezes era na Avenida São Luiz, depois na Quintino Bocaiúva, depois para São João, Tiradentes, Anhangabaú e Anhembi. CARLOS: E teve no Ibirapuera. Foi só no ano do 4º Centenário? LANDÃO: Acho que foi, não estou bem lembrado. CARLOS: E como que seu pai descobriu? LANDÃO: Eu estava com 14 ou 15 anos e já estava trabalhando. Ele não gostou muito, mas já não podia fazer mais nada. Eu já estava vacinado pela Azul e Branco. Na época não era azul e branco, era verde, amarelo, azul, branco, antigamente não tinha muito padrão. Depois Seu Nenê Um Batuque Memorável no Samba Paulistano L A N D Ã O 137 L A N D Ã O 138 foi para o Rio de Janeiro. E a Portela veio em 1970 para batizar a Nenê de Vila Matilde. CARLOS: Como foi isso? LANDÃO: Foi feito na marra. Não tínhamos recursos para pagar pedreiro, essas coisas todas. Nós pusemos a mão na massa, viramos a noite trabalhando e fizemos o batismo. A Portela veio, Seu Nenê era fã do Paulo da Portela, Paulo Benjamin de Oliveira. Ele escolheu como símbolo da escola a águia e as cores azul e branco. No dia da festa, a cimentada que nós tínhamos feito virou farelo. A festa, acho que foi até às 10:00 da manhã. Um pagode que eu nunca vi em São Paulo. Conheci um dos maiores diretores de harmonia do Rio, Mestre Tijolo, hoje é finado, mas grande sambista. Ele veio como chefe da delegação da Portela, que trouxe dois ônibus com passistas, intérpretes, baianas, mestre-sala e porta-bandeira. No ano de 1984, foi a vez do batizado da Harmonia da escola e veio o Mestre Xangô, Xangô da Mangueira, padrinho da Nenê, junto com Leci Brandão que fizeram uma grande festa neste batismo. Já era uma outra festa, a Nenê já estava encaminhada, já estava bem avançada e a gente fez o batismo da harmonia. E a Nenê foi a primeira e única escola de São Paulo a desfilar no rio, na Marquês de Sapucaí, em 1985. A Nenê é isso aí, no chão é complicado, a rapaziada quando pisa no asfalto defende a azul e branco até. CARLOS: A Nenê tem grandes elogios de muitos sambistas quando comentam da bateria. Fala sobre a bateria da Nenê. LANDÃO: Realmente, e tivemos três grandes nomes à frente, três diretores que marcaram sua passagem pela Nenê de Vila Matilde foram o Mestre Nicolau, Mestre Lagrila e Mestre Divino. Tenho muita adimiração pelo Lagrila. Ele foi o único que ganhou dez vezes seguidas como diretor de bateria, em 68, 69 e 70 pela Nenê, em 71, 72 e 73 pela Mocidade Alegre e foi tetra-campeão pela Camisa Verde e Branco de 74 a 77. CARLOS: Qual lembrança de desfile que mais te emociona? LANDÃO: Em 97 foi um desfile autêntico, com o enredo “Narciso Negro”: Um Batuque Memorável no Samba Paulistano “O negro é amor, amor, amor,/ O negro é capaz, é capaz./ O negro é lindo/ Evoluindo sempre mais./ É Manhã,/ Vindos da África exportados sem querer,/ A negritude está em festa/ ‘Nenê’ sou mais você/ Reluziu-se pelos continentes/ Se destacou,/ Se fez presente/ Da cana às minas de ouro/ Sou herança de Zumbi,/ Sou liberdade, sou povo/ (eu sou negro)/ Sou negro, sou arte,/ O estandarte do carnaval/ Sou baluarte da cultura nacional/ Hoje o negro sim,/ No esporte, na cultura/ E na religião/ É o orgulho deste mundo inteiro/ Ademar foi o primeiro/ Rei Pelé, eterno campeão/ Musicalmente temos luz/ Salve Clementina de Jesus/ Um canto livre ecoa pelo ar/ Vaidosa minha ‘Vila” vai passar/ No lago da reflexão/ Espalhando a miscigenação/ É tão sublime, é divinal/ Com sutileza fiz valer meu ideal/ O negro é amor/ (amor, amor)/ O negro é capaz, é capaz./ O negro é lindo,/ Evoluindo sempre mais.” L A N D Ã O Esse enredo tocou a escola, mexeu com a escola: a batucada encaixou, o samba encaixou, a harmonia encaixou, a evolução encaixou, a escola veio redonda, aquilo emocionou e a arquibancada desfilou com a gente. Esse foi o desfile que me deixou mais emocionado. CARLOS: A Nenê foi campeã? LANDÃO: Não, naquele carnaval não fomos campeões. Era um desfile para ser campeã. “É manhã, vindos da África exportamos sem querer, samba aí, a negritude está em festa, ‘Nenê’ sou mais você...”. O pessoal desfilou e bateu no peito, a arquibancada chorando. Festa bonita, empolgação e a poeira comendo. CARLOS: E nos desfiles pelo centro da cidade? LANDÃO: Nunca sofri agressão, Seu Nenê tomava conta da gente, ninguém gostava de perder. Íamos tomar cachaça na praça. CARLOS: Como era eleita a escola campeã? LANDÃO: Era a comissão julgadora. E julgavam a escola que ia melhor, a bateria. Hoje não, o carnaval está padronizado, então cada escola é julgada por três jurados. A comissão se reunia e dava o resultado. Na época que tinha cordão, tinha Vai-Vai, Camisa Verde, Fio de Ouro e outros, a gente da Nenê disputava com quem era escola, como a Lavapés e a Peruche. A Nenê nunca foi cordão, ela sempre foi escola de samba, desde a fundação. Tinha aquela rivalidade, todo mundo queria Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 139 L A N D Ã O 140 ganhar, mas fora isso todos os dirigentes se davam bem, mas disputa é disputa. Vila Matilde é minha casa, pode ser o que for, hoje, moro na zona oeste, mas Vila Matilde é Vila Matilde. CARLOS: Como é alguém ver todo esse crescimento do carnaval, quase um monstro que surge, ter vivido numa época em que desfilavam 100 e hoje desfilam 4.000? LANDÃO: Isso é evolução. Nós fomos campeões em 58, 59, 60, 68, 69 e 70. Nenê de Vila Matilde e Peruche brigavam pelo título. Surgiu Mocidade Alegre em 71 e foi campeã. Ela já veio para ser campeã, não estou lembrado da época exata que passa de cordão para escola de samba; veio a Camisa Verde e Branco, a Vai-Vai e depois veio a Rosas. E foi crescendo, depois veio o Robson de Oliveira presidente da Liga. CARLOS: Isso já na década de 80, no início de 90. LANDÃO: Não. O Robson veio depois. Mocidade Alegre ganhou os três campeonatos, Vai-Vai e Camisa viraram escolas. Passou para São João, Tiradentes, Anhembi com uma estrutura mais sólida, e hoje nós temos um local adequado para desfilar. Robson de Oliveira veio e deu aquele impulso, aplicou tudo no carnaval, então cresce Vila Maria, Império de Casa Verde, inclusive a própria Vai-Vai. Tenho certeza que a Nenê vai sair dessa incômoda situação e ir para o lugar dela. Nenê tem que voltar, a Camisa Verde tem que voltar e a Peruche também, porque são escolas de tradição no carnaval e vão reviver os carnavais que fizeram na São João e Tiradentes. CARLOS: Muito obrigado! LANDÃO: Eu que agradeço. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano MESTRE GABI Sr. Gabriel de Souza Martins nasceu no dia 08 de novembro de 1947, em São Paulo – SP. É desenhista de arquitetura. Entrevista realizada no dia 19 de abril de 2009. CARLOS: Você tem quantos anos? GABI: 61. CARLOS: Está no samba desde? GABI: Desde garoto, mas, efetivamente participando, há uns 30 anos. Até então, eu era folião. Ver desfiles, sair, banda bandalha, banda redonda, só para brincar. Depois, a coisa ficou séria, encarei a cultura com mais seriedade. Comecei a participar da Barroca Zona Sul, como integrante, folião, aí me despertou vontade de fazer um samba. Com alguns amigos, fizemos alguns sambas na Barroca. Ganhamos um samba que foi “75 anos de Imigração Japonesa”. Uma coisa muito bonita porque o japonês não estava integrado ao samba e, a partir dali, se integrou. Naquele ano, vieram japoneses do Japão para sair especialmente na escola. Isto foi em 1983, na Av. Tiradentes. Eu fiz alguns outros sambas, mas não ganhei, pois não é sempre que se ganha, não é sempre que se tem um Zé Carlinhos, amigo nosso da Vai-Vai que ganha sempre. Depois, passei a ser mestre-sala na Barroca até 90. E até 2002, eu e a Vivi, minha esposa, na Camisa Verde, uma bandeira que a gente defende até hoje. Hoje, não saio mais como mestresala, mas estou lá participando, não muito diretamente. Quando era mestre-sala, tinha que estar, hoje, nem tanto. Uma participação mais comedida. CARLOS: Você participou de várias fases do carnaval. São João? GABI: Peguei São João e Anhangabaú. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 141 M E S T R E G A B I 142 CARLOS: Fale um pouco da diferença, porque você participou tanto como folião como integrante. GABI: Era muito gostoso. Tinha aquelas disputas: “eu sou escola tal”, “eu sou escola fulano”, tinha aquelas torcidas, mas nada, além disso. Sem briga, sem nada. Já estive lá na arquibancada, na São João. CARLOS: Então, na São João tinha arquibancada? GABI: Tinha. Eram três tábuas, e se divertia muito lá. “Não, minha escola vai ganhar!” Vinha a Camisa Verde, que ficava desfilando duas horas porque o componente, quando chegava lá na frente, corria para trás e entrava de novo. Isso era Camisa e Vai-Vai. Quando entrava uma na frente da outra podia esperar que era um problema sério. CARLOS: Naquela época você torcia para qual escola? GABI: Não, nessa época eu era o samba, gostava do mais belo, do samba mais bonito. Teve um ano que a Nenê veio com um samba tão bonito. Era a Nenê! Outro ano veio a Camisa Verde, puxa que samba! Quando você é folião, é o samba. Quando comecei a participar mesmo, aí era na Barroca Zona Sul, que era a minha escola. Era não, é até hoje! Eu tenho um carinho muito grande porque foi lá que eu dei meus primeiros passos. Então, a gente jamais deve negar um lugar onde se criou e alçou voo. Torcia muito, hoje ainda torço pela Barroca. Agora, estou sofrendo pela Camisa, que não está muito bem. São duas escolas que eu amo de paixão. Defendi estas duas bandeiras como mestre-sala. Respeito muito as coirmãs, mas essas são escolas que eu brigo por elas. A Barroca teve um problema de evolução, acho que foi ano retrasado, eu entrei na pista brigando com os diretores de harmonia, pois era perigoso cair. Caiu mesmo, por falha de diretores de harmonia que não viam o que acontecia. Eu brigo mesmo por estas duas bandeiras. As outras, enquanto sambista, Embaixador do Samba, você tem uma responsabilidade. Se eu vejo um problema acontecendo na Vai-Vai, eu falo, não importa que não seja a minha escola. A Nenê, como eu sofri vendo a Nenê entrar. CARLOS: Da pista? GABI: Da pista. Como Embaixador e como instrutor de jurados da Liga, eu posso ficar na pista. Então, eu vejo tudo passando na minha frente. Quando eu vejo algo errado, falo, chamo o diretor de harmonia. Tem uma participação mais direta. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano CARLOS: Quando não há desfiles como é a atuação? GABI: Agora? Agora, eu dou aula para mestres-sala e porta-bandeiras, tem uma associação em que sou presidente, a Associação de MestresSala e Porta-Bandeiras e Estandartes do Estado de São Paulo AMESPBEESP. Eu criei esta associação, junto de amigos e amigas em 95, com o propósito de não deixar com que a nossa arte, a de mestresala e porta-bandeira, se perca, pois estava se perdendo. Hoje vejo que a coisa está difícil ainda, para que a tradição da dança não morra. O pessoal quer inventar. Se você assiste “O Lago dos Cisnes”, uma gravação de 1930 e outra de hoje, é lógico que os dançarinos mudaram, mas a dança é a mesma. A mesma coisa é a nossa dança: o mestre-sala é o protetor do pavilhão; a porta-bandeira apresenta o pavilhão com elegância e garbo. Eles querem deturpar, inventar, mudar a dança e colocar outras coisas no meio, por isso que somos resistência. Eu tenho a Tininha, a Gilsa, que, infelizmente, faleceu agora em dezembro, ela era a vice-presidente da associação, o Edney, um mestre-sala veterano, que sai como convidado pela Rosas de Ouro: somos resistência. Ainda tenho a grata satisfação de dar aula para os jurados, então os alunos não podem me desobedecer muito porque senão a nota deles não vai ser muito boa. CARLOS: Qualquer mestre-sala ou qualquer pessoa que queira ser mestre-sala pode ir à associação? GABI: Digamos que você vê um mestre-sala dançando, gosta. “Poxa, eu queria aprender.” Pode ir, sem problema. E não tem problema de idade, de 6 a 80. Tem uma menininha (Rafaela) que sai na Peruche. Ela começou a dançar quando tinha três anos, e saiu numa escola da terceira idade, em São Bernardo do Campo. Hoje, ela é uma portabandeira com nove anos e desfila no Peruche com toda elegância. Vai ser uma grande porta-bandeira, com toda certeza. E tem mestresala e porta-bandeira que começaram com certa idade e, hoje, estão brilhando na passarela. CARLOS: Você lembra da primeira roda de samba que você foi? GABI: Da primeira é difícil. Foram tantas e são tantas. Até porque a gente fazia roda de samba com futebol. CARLOS: Como despertou este desejo de ser mestre-sala? GABI: Não foi assim, um desejo. Eu sempre gostei. Admirava quando Um Batuque Memorável no Samba Paulistano M E S T R E G A B I 143 M E S T R E G A B I 144 via a Analu, que faleceu ano passado, quando ela desfilava alí no Anhangabaú, era uma graça!.. Ela girava como uma pluma. Desfilava no Acadêmicos do Tatuapé. Teve a China da Vai-Vai, que desfilou no Tatuapé, era uma elegância, você não tirava o olho. Tinha o menino, o Hudson, da Mocidade Alegre, mas era aqui na Tiradentes. Na Barroca tinha uma porta-bandeira, Alice, que veio do Império Serrano, eu era passista e ela falou: “Gabi, você tem elegância, tem jeito para ser mestre-sala. Vamos ensaiar”. “Eu acho bonito mesmo!” E comecei a ensaiar com ela. “Você vai sair comigo.” Naquele ano, eu saí com ela. CARLOS: Era o primeiro ou segundo? GABI: Eu estava saindo como segundo. E, para minha surpresa, quando terminou o carnaval, veio a apuração. Mestres-sala e porta-bandeiras da Barroca: só 10, 10, 10. Cheguei lá, “o mestre-sala tirou dez, deixa eu cumprimentar”. “Que nada, foi você quem tirou dez”. “Como?” “O Pé (Rachado) apresentou vocês como o primeiro.” “Como assim?” “Eu tinha tomado umas, o Pé olhou e viu que eu estava meio assim.” Era o Cabeção, o mestre-sala junto com a Bete. O Pé me viu dançando com a Alice e disse que estávamos bem e então, colocou a gente. Naquele tempo, não tinha aquela coisa da plaquinha que mostrava quem era o oficial. era o diretor de harmonia que indicava o primeiro casal. Até hoje, eu não sei o que é sair numa escola sem ser o oficial. Uma vez, eu estava com uma fantasia toda fechada e o costeiro caiu, ficou preso no pescoço, eu quase não saí da avenida, fui puxando, até... E dizendo: “vou desmaiar.” Foi uma loucura. Tive diversos prêmios como o melhor de São Paulo; deram-me um título lá no Rio: Gabi Maravilha e Vivi Maravilha. Eu fazia abertura do carnaval lá. A abertura é feita na quinta-feira, juntamente com as escolas mirins. As escolas mirins de lá, fazem um desfile maravilhoso. Estou querendo fazer em São Paulo, pelo menos, uma escola mirim. Lá têm Mangueira do Amanhã, Império, Portela, todas elas. Aqui, estou querendo fazer uma com alas de todas as escolas, cada escola uma ala e com casais de todas as escolas, casais mirins. O problema maior, que me dá medo, é que você vai mexer com criança. Para isso, você tem que ter pessoas do teu lado conscientes porque mexer com filho dos outros é sério. Dou aula para crianças como presidente da AMESPBEESP na Secretaria de Estado da Cultura para jovens. É uma Um Batuque Memorável no Samba Paulistano responsabilidade, pois aquilo que você fala, transmite, é coisa séria. Você está falando para criança de 5 a 15 anos, tem que medir o que fala. Estou querendo muito fazer esta escola. Se não der para este ano, 2010 ou 2011. E falando de título, não te falei do maior: O Mestre-Sala do Século. Eu e a Vivi por São Paulo, Delegado e a Vilma pelo Rio de Janeiro. Agora, só no outro século. São coisas gratificantes, mas que te dão mais responsabilidade. Um dia fui convidado para fazer parte de um livro, “Heróis Invisíveis”, do Dimenstein. Falaram-me: “Você foi escolhido para representar o samba, pois você dá aula para crianças.” E não é que foi verdade mesmo? No dia do lançamento do livro, teve um coquetel maravilhoso no Museu da Imagem e do Som - MIS e apresentaram aqueles heróis invisíveis. Foram 52 escolhidos, cada um na sua área. Eu lisonjeado, pois, do samba, me escolheram. Festa maravilhosa, com troféu e tudo. É o reconhecimento e isto te deixa com mais vontade de fazer as coisas. Se eu disser que ganhei dinheiro com o samba, não ganhei. Deixei de ganhar. Em 93, nós fomos convidados, eu e a Vivi, para dançar na Vila Isabel. O presidente falou: “Vocês podem vir tranquilamente, U$$ 6.000 para cada um.” “Eu desfilo em São Paulo”. Pegou meu telefone e ligou. Eu pensei: “não vou”. Que eu ia fazer? Os casais de lá eram meus amigos. Como vou fazer isso? Então, deixei de ganhar. CARLOS: Comenta um pouco da evolução do carnaval. GABI: A diferença é que, hoje, você tem tudo on-line, antes, não. Ficávamos o ano inteiro pensando no carnaval, no que ia fazer. Bordando a sua fantasia: “vou por mais uma lantejoula aqui”. Era mais romântico. Hoje, nem vejo a fantasia, quando vejo já está pronta. As pessoas nem têm mais o carinho pela fantasia, hoje, talvez nem dê mais tempo de olhar no espelho. Tem vezes que se pega a fantasia na avenida. Mudou o romantismo. Teve carnaval na Tiradentes, que eu, como mestre-sala, ainda estava no barracão pregando, colocando. E o povo falando: “Gabi, está na hora!” “Espera! Cadê o meu sapato? Roubaram meu sapato!” Agora, você chega lá e olha o carro: “hum, está bonito.” Antigamente você falava em comunidade, pois eram 300 pessoas. Todas do mesmo local e se conheciam. Hoje tem 3.000, você Um Batuque Memorável no Samba Paulistano M E S T R E G A B I 145 M E S T R E G A B I 146 vê fantasiado e pergunta: “De que escola você é?” “Eu sou da minha escola”, é muito diferente. As pessoas da velha guarda que aparecem no desfile são impedidas de entrar, aqueles que fizeram tanto pelo Samba são barrados, por não terem dinheiro para pagar a fantasia. CARLOS: Fale um pouco sobre a Embaixada do Samba Paulista. GABI: Pois bem, porque foi criada a Embaixada do Samba Paulista? O cidadão Samba de São Paulo teve Osvaldinho da Cuíca, depois, Lagrila e Feijoada. Depois, foi tendo uma safra de pessoas que não representavam o samba como ele deveria ser representado. Então, fazia um concurso e ganhava o que fazia mais graça. Em 96, o Robson, presidente da UESP disse: “Quero regularizar o cidadão Samba de São Paulo”. Escolheu cinco pessoas: Fernando Penteado, Hélio Bagunça, Toniquinho Batuqueiro, Paulão da Lapa e eu, convidou-nos para uma reunião na UESP e disse: “Eu queria que vocês disputassem para ver qual vai ser o Cidadão Samba de São Paulo”. Eu falei: “Eu estou fora”. O Penteado: “Eu também estou fora.” O Paulão: “Se vocês estão fora, eu também estou”. Porque o Paulão é o mais novo, depois, vem eu e o Penteado, temos a mesma idade. Não era justo eu e Penteado concorrermos com Toniquinho Batuqueiro e Hélio Bagunça. “Então, vamos fazer o seguinte: este ano vai Toniquinho Batuqueiro. Vocês concordam?” Aí sim, teve peso: Toniquinho Batuqueiro, Cidadão Samba. Chegou o outro ano: “E agora? Hélio Bagunça!” Outro ano: “E agora?” Eu falei: “Eu não vou”. Penteado: “Eu não vou!” Então, falamos: “Vamos fazer o seguinte: vamos formar uma embaixada”. Ela foi formada neste ano mesmo em que ficou o Toniquinho. “Mas só os quatro?” “Vamos então, convidar os cidadãos antigos.” Vieram Lagrila, Osvaldinho e Feijoada, os outros meninos que foram. “E o Seu Nenê? Seu Carlão do Peruche? Seu Juarez?” Aí, deu uma encorpada legal. As reuniões eram uma briga: “Porque eu estava lá, você não estava!” “Eu fiz, você não fez”. “Eu fiz!” Eu, que era mais novo, aprendia. Tinha confusões, mas é tudo saudável, você vai conversando, lembrando. Temos as reuniões para falar do samba, deste momento, do agora que está delicado, que tem Liga e Superliga. CARLOS: O que é preciso para ser Embaixador? GABI: Você precisa ter anos de serviços prestados ao samba. Agora, mudamos um pouco. Antes, você tinha que ser Cidadão Samba Um Batuque Memorável no Samba Paulistano para ser Embaixador. Agora, você precisa ser Embaixador para ser Cidadão Samba. Ou seja, o Cidadão Samba sai da Embaixada. Para ser embaixador, você tem que ter 35 anos de história no samba. Não são 35 anos saindo numa escola, embora tenhamos casos assim na Embaixada, foi uma falha nossa. Nós fomos trazendo as pessoas aleatoriamente, porque estávamos nos sentindo mal. Estamos com 49 embaixadores, mas, atuantes, temos por volta de vinte. Até mesmo porque tem muita gente que está com certa idade, não dá mais para sempre sair de casa. CARLOS: Muito obrigado! Um Batuque Memorável no Samba Paulistano M E S T R E G A B I 147 SEU CARLÃO Sr. Carlos Alberto Caetano nasceu no dia 11 de setembro de 1930, em São Paulo – SP. Ele é aposentado. Entrevista realizada no dia 23 de abril de 2009. SEU CARLÃO: Estou com 78 anos. Nasci na Barra Funda, 11 de setembro de 1930, Rua dos Pirineus, 76. Ali era uma residência do Eduardo Prado, meu pai era motorista dele. Hoje é Alameda Eduardo Prado, na Barra Funda. Eu me recordo, devia ter uns 7 ou 8 anos, era levado pelos meus pais para Pirapora do Bom Jesus. Quando chegava 6 de agosto, iam romarias de tudo quanto era lugar. Quando chegávamos lá, minha mãe ia para a igreja e meu pai me levava para o barracão, onde se jongava. Lembro como se fosse hoje: “Zeca, onde você vai com o menino?” “Eu volto já Maria!” E me levava para o barracão. E nesse barracão se jongava, dormia, acordava, e o pessoal jongando. Nesses anos todos, quando fui conhecer a igreja, eu já estava com meus filhos todos grandes e vi a igreja por dentro. Muitos anos se passaram, eu assíduo frequentador de Pirapora do Bom Jesus, assim como meus pais. Nem sei se meu pai chegou a conhecer a igreja por dentro. Não me lembro, pois ele ia lá para o barracão, aonde se jongava. O jongo para mim é o embrião do samba. Eu me recordo que no barracão fazia levantar poeira, o piso era terra, as imediações eram as margens do Rio Tietê. Separavam-se as senhoras, as meninas e as adolescentes de um lado e assim se processava com os homens do outro lado, e iam jongar. Vinha gente de Tietê, Campinas, Barueri, Piracicaba, e até de Minas Gerais. Hoje fala-se grupo: “vem um grupo de Tietê”. Na época era terno: “vem um terno de Campinas para jongar”. CARLOS: E essa festa durava dias? 148 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano S E U SEU CARLÃO: Sim, dias. Anterior e posterior a 6 de agosto. Hoje, depois de muitos anos, eu quero acreditar que dos negros, alguns iam para dentro da igreja, mas o grosso ia para o barracão. Com o decorrer do tempo, não sei com que prefeito, cortaram todas estas manifestações. Esses costumes foram sumindo e desapareceram. Depois tentaram resgatar, mas não era aquela espontaneidade. No decorrer do tempo, comecei a sair numa escola que se chamava Flor do Bosque. Saíamos ali do Bosque da Saúde, nas imediações da Curva da Morte. CARLOS: O senhor ia com seu pai? SEU CARLÃO: Não, era levado pela rapaziada. Com 9 ou 10 anos, íamos para a batucada. Eu morava por ali, na Rua Andrade Neves. Saí posteriormente na Lavapés e fiquei até 55. Só a deixei por divergências com a direção. Nós carregávamos a Lavapés, na qual Dona Eunice era a presidente. Eu, Jacosinho, Boi Lambeu, Gilbertinho, Genésio, que era o apitador, Chiclé, Motorzinho, que tinha esse nome porque quando tocava um instrumento não parava mais, parecia um motorzinho. Tinha o Mário Gago, Clodoaldo e o irmão dele, Brandãozinho, e muitos outros. Você esteve entrevistando o Tadeu, que é o mestre de Bateria da Vai-Vai, a mãe dele saía com a gente, na ala das baianas. Ele era moleque, garotinho. Ela era conhecida por nome de Maria Pé de Papel. Ela era magrinha e carregava essa alcunha. Muito bem, em 1955, mais uma vez a Lavapés foi campeã. Quem fazia o carnaval na época era a Rádio Record. Uma hora depois que passaram todas as escolas, já se tinha o conhecimento de quem era a campeã. O que a Dona Eunice passou para nós: “Vocês recolham a escola e me aguardem no Largo São Paulo”. É onde hoje passa a Radial Leste, sob a Rua da Glória, e lá tinha um teatro do mesmo nome que o largo. Então ficamos ali aguardando para festejarmos o campeonato. A Dona Eunice foi na Rádio Record, recebeu o prêmio, foi embora com Seu Chico Pinga e não voltou. O Mário Gago que a tinha seguido retornou e falou: “Ela foi embora”. Mas como ela mandou que esperássemos, nós ficamos. Aquela batucada, a Nenê de branco, entrando. Três, quatro, cinco horas. E o Mário insistindo: “ela foi embora com seu Chico Pinga”. “Mas quando ela conversou conosco, ela não mandou segurar a escola aqui?” “Vamos guardar os instrumentos porque ela foi embora.” Mas nós não fomos, ela era a presidente e mandou esperar. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano C A R L Ã O 149 S E U C A R L Ã O 150 Da Lavapés vinha gente de tudo que era lugar, escola pioneira: vinha gente de Campinas, Piracicaba, senhora, sinhozinho, vinham ensaiar na Lavapés. Daí os mais velhos começaram a reclamar: “Não sei como a Dona Eunice deixa a escola na mão dessas crianças irresponsáveis!” Mas nós não éramos irresponsáveis. Sabe o que é coque? Você fecha esses quatro dedos e passa na cabeça. Nossos pais e avós tinham uma técnica com esse coque que vinha direto na sua cabeça e queimava. Os mais velhos que estavam reclamando deram um monte de puxão de orelha, coque e ainda me chamaram de irresponsável. Recolhi a escola e voltamos para a Lavapés revoltados. A sede era na Tamandaré, 90. Recolhemos os instrumentos, nós os irresponsáveis. E os mais velhos falando na nossa cabeça. Então falei para o Genésio: “Não vou sair mais nisso aqui não!” Acharam que eu estava nervoso. Fizeram a festa, logo no domingo, eu não tomei parte. Era ideia minha: “Vou sair na Vai-Vai, vou para bateria da Vai-Vai”. Gilbertinho me acompanhava, Boi Lambeu, Tilico, Rubão, Mirinho, eles já me acompanhavam. “Eu vou para o Vai-Vai!” “Se você vai para o Vai-Vai nós vamos também.” Mas eu estava morando aqui no Parque Peruche. “Vamos tirar uma escola de samba daqui?”, surgiu a ideia. “Não, vamos para Vai-Vai!” Éramos todos ritmistas e tínhamos condições de chegar em qualquer bateria. Começamos a tirar a escola. Criamos a Sociedade Esportiva e Recreativa Beneficiente da Unidos do Peruche. Esse é seu nome original. Hoje tem Grupo Especial, Acesso, Grupo 1, 2. Naquela época tinha 1ª, 2ª e 3ª categoria. Nós saímos como 3ª Categoria, mas com pessoas, ritmistas, pastoras e cabrochas, todos tarimbados. Tinha parado de sair o Rosas Negras, do Paraíso. De lá veio um contingente nosso. Outra parte havia saído da Lavapés. Antes, aqui no Peruche, tinha uma escola por nome Ritmos do Morro, da década de 40. Esse contingente todo passou a sair na Unidos do Peruche. A Peruche já nasceu grande, em 56 foi campeã da 3ª Categoria, passamos para a 2ª; dois anos, 57 e 58, e no terceiro ano estávamos lá, na 1ª Categoria. Dois anos depois, 61, fomos campeões disputando com Lavapés, Vila Maria, Nenê e outras mais. Escola de samba com raízes puras. Vila Matilde crescendo, eles na Zona Leste e nós aqui na Zona Norte. CARLOS: E como veio o barracão? Um Batuque Memorável no Samba Paulistano S E U SEU CARLÃO: Nós tínhamos uma pessoa que gostava muito da Peruche, Paulo Bessiane, mais conhecido como Caqui. Ele tomava conta de um terreno onde se ferrava cavalos, ele era ferreiro. E então, cedeu o lugar para ensaiarmos à noite. De dia a molecada limpava o terreno cheio de estrume de cavalo, porque lá era uma cocheira conhecida por Terreiro do Caqui. Em 65, Doutor Ademar de Barros que era o governador de São Paulo, resolveu levar o Peruche para o 4º Centenário da Guanabara, como um presente de São Paulo para o Rio de Janeiro. A nossa ala dos compositores, B Lobo, Geraldo Filme, Jurandir, Marrom da Cuíca, Cobrinha, e outros, aprontaram um samba para levarmos ao Rio de Janeiro. CARLOS: Que timão, hein! SEU CARLÃO: É. Timão mesmo! C A R L Ã O “Rio de Janeiro/ Gloriosa cidade de São Sebastião/ Rincão Alviçareiro/ Terra de grande Tradição/ Sua natureza de Copacabana a Ilha de Paquetá/ Tem tantas belezas que outra terra não há/ 4º Centenário/ Quatrocentos anos de pendores/ Eis aqui nossa homenagem a um de seus maiores benfeitores/ Salve o herói nacional/ Que saneou a Velha Capital Federal/ No ano de 1904/ Na democracia menina/ Foi que surgiu o precursor da medicina/ Vencendo acusações e preconceitos/ O nobre cientista conseguiu/ Higienizar o coração do Brasil/ São Paulo, sua Glória vem cantar/ Osvaldo Cruz, seu nome na história ficará/ Rio de Janeiro...” Nos quatrocentos anos, foi nossa homenagem de São Paulo para o Rio de Janeiro. Não fomos por fatores alheios, não da Peruche, pois estava pronta: o Governo do Estado de São Paulo nos vestiu e preparou; nós íamos em mil componentes,tenho como provar, tenho documentos. No Rio íamos ficar hospedados no Maracanãzinho. Com o governador Carlos Lacerda, estava tudo certo. Íamos de ônibus, mas de última hora, o Governo do Estado de São Paulo resolveu nos levar de trem. Tínhamos muitas senhoras e crianças. O trem na época era um sacrifício, 12 horas de viagem. Não fomos. Isso nos causou um grande problema, nós oficializamos aqui em São Paulo que Peruche Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 151 S E U C A R L Ã O 152 não ia desfilar devido à viagem ao Rio de Janeiro. “Onde que vamos levar a escola?” Não me lembro o nome, ele é radialista de futebol, fez o carnaval na Avenida Brasil. E na época tinha o carnaval de Rua na Lapa e nós nos oferecemos para levar a escola. Esse carnaval de rua era organizado pelo Cuble de Lojistas da Lapa, no qual meu amigo Jacó, proprietário da loja A Oculista, fazia parte e eu fui falar com ele. “Estou com a escola montada e não tenho para onde levar.” Tinha também o Geraldo, que era relações públicas, Geraldo Citroën, ele tinha um Citroën na época. Ele conseguiu levar a escola para a Avenida Brasil e posteriormente para a Lapa. Inclusive nos levou para fazer Serra Negra ou Mogi, não lembro agora. Assim foi, fomos campeões na Lapa. Ganhamos 65, 66 e 67. A Nenê respondeu em 68, 69 e 70. Porém, a comissão julgadora do carnaval naquele ano foi feita pelo senhor Lucrécio, funcionário da prefeitura. O carnaval da Peruche veio forte apresentando o conto-ficção “O Rei do Café”, do B Lobo. Mostrávamos o esplendor do café em duas fases, no Brasil e no mundo, ascensão e queda. Quando fomos à apuração, o Carlos Roberto da Silva, conhecido como Chita, diretor da Peruche, falou: “Dr Lucrécio é cunhado do seu Nenê. Seu Nenê casou com a irmã dele, dona Tereza.” Então, adivinha quem ganhou? Não é desmerecendo, pois a Nenê sempre foi uma forte candidata. Mas deste caso eu não gostei. CARLOS: Ouvindo vocês a gente percebe que o carnaval mudou muito. SEU CARLÃO: Costumo dizer que carnaval em São Paulo não tem condições. Quem conheceu o Carnaval em São Paulo sabe que isto não é carnaval. Passamos um ano preparando as escolas para 65 minutos. Os coletivos encostam-se nas quadras, quarenta, cinquenta ônibus, às vezes até mais, nos levam para o Anhembi. Nós andamos da Praça Campos de Bagatelli até o local do desfile. Andamos mais que desfilamos. São 65 minutos para passar um contingente de 3.000 pessoas. As nossas coirmãs que têm mais de 3.000 componentes, forçam as alas para passar em doze minutos, mais ou menos. A harmonia vai ter que correr e quando começa a correr vai perder em evolução, harmonia, tudo. Passou a faixa amarela, a segurança do Anhembi empurra. Acabou de desfilar, delicadamente, empurram todo aquele contingente que ainda está vibrando: “Passamos bem!” Vai depender de jurado, dizem que tem conhecimento. Escola de samba Um Batuque Memorável no Samba Paulistano S E U é cultura popular. O contingente, então, entra nos ônibus que voltam para a quadra. Aí eu pergunto: isto é carnaval? Cadê a marchinha de carnaval? Não tem mais. Você morava numa rua e perto tinha um bloco de sujo que vinha brincar carnaval. Onde estão os clubes que faziam os bailes infantis? Os pais vestiam as crianças de pierrô, colombina, palhacinho, etc, e levavam para os clubes como São Paulo, Palmeiras, Juventus, e outros mais. Hoje os clubes não fazem mais. Onde é que está o carnaval? Homem vestido de mulher e vice-versa, hoje não tem mais isso. Nós pagamos impostos, o governo investe nas escolas, poderiam levar as escolas para se apresentarem para o povão. Se você não tiver um determinado poder aquisitivo, no Anhembi você não vai. Tem gente que sai na Escola de Samba porque nós ajudamos a vestir, pois R$ 10,00 faz falta, às vezes a pessoa não tem. Muitos dependem da avó aposentada que cuida do filho, dos netos e até da nora. CARLOS: Seu Carlão, o senhor participou do processo em 1968 com o Prefeito Faria Lima para a regularização do carnaval. SEU CARLÃO: Nós, Mulata do Camisa Verde, Pé Rachado da Vai-Vai, Mala do Acadêmicos do Tatuapé, Nego dos Marujos, eu do Peruche, Dona Eunice do Lavapés, Macalé do Coração de Bronze, Nenê da Vila Matilde, Nico do Brinco de Ouro da Vila Mariana, Xangô da Vila Maria e que me perdoem os outros, pois vai chegando a juventude e dá aquele branco. Nós nos reunimos e não era essa UESP aí não, era outra. Federação das Escolas de Samba, Cordões e Blocos Carnavalescos, com sede no Edifício Martinelli. “Vamos conversar com o prefeito para tentar fazer o carnaval.” Agendávamos, íamos para o Ibirapuera e ficávamos esperando. Escola de samba era pejorativo naquela época. Hoje te dá status. As escolas iam todas para o Centro com taças para arrecadar dinheiro, “ah essas caras vão usar para cachaça”. Hoje seria para tóxico. No entanto, todos nós tínhamos uma meta. Passaram vários prefeitos: “Volta amanhã”. Fizemos vários carnavais e nada da prefeitura nos receber. Um dia sentou o saudoso Faria Lima. Agendamos com ele. “Será mais um que vai dar canseira?” Ele nos recebeu no horário. Uma mesa bem maior que esta. Ele sentado na ponta da mesa. Mala, sentado ao meu lado. “Vocês são os homens do samba em São Paulo?.” Ele nos pegou de calça curta: “Quanto vai me custar o carnaval? Onde será o carnaval? Segurança? Decoração?” Não levamos nada, eu, Sarmento, Um Batuque Memorável no Samba Paulistano C A R L Ã O 153 S E U C A R L Ã O 154 Evaristo, Nenê, Mulata, Pé Rachado. Ele nos deu uma semana e saímos. Uma semana depois nos recebeu. Apresentamos o carnaval para a São João, com arquibancada, dispersão, custo do carnaval, condução para levar e trazer as escolas. Foi a maior vergonha que eu já passei. Ele comentou na primeira reunião que saía na Mangueira. Eu do lado oposto dele falei para o Mala: “É da Mangueira nada, é outro político que quer votos.” Nos recebeu, leu a parte financeira: “Na São João, auto-falante, palanque, decoração, condução. Vamos fazer carnaval!” Chamou o secretário dele, e nós todos alegres, aquela descontração, tomando água e cafézinho. “Vamos fazer carnaval em São Paulo.” Ele se levantou da ponta da mesa e veio até mim. “Eu falei que saía na Mangueira, não é?” Todo mundo falou: “Foi!” E veio na minha direção com a carteirinha da Mangueira. Eu tinha falado baixo. A maior vergonha da minha vida. Ele mostrou a carteirinha para mim, deu um sorriso e eu com uma vergonha tremenda. CARLOS: O que mudou de um ano para o outro? SEU CARLÃO: Decoração. As escolas se formavam entre a Avenida Angélica e a Duque de Caxias em direção ao Anhangabaú. Aquele povão. Corda, toda cercada de corda. As escolas desfilavam dentro das cordas. Elas passavam e dava para ver as senhoras sentadas. Nós dispersávamos ali na Praça da Bandeira. Cada escola recebia uma verba e deixava 5% para a Federação. O mais importante era que o dinheiro vinha diretamente para a Federação que repassava para as escolas de samba. No primeiro dia da Federação, eu, como primeiro tesoureiro, assinei o documento. O Secretário assinou. E quem ia receber esse dinheiro? Eu, Seu Nenê e a finada Dona Tereza, que era esposa dele. Nós fomos receber, era sábado. O banco fechava às 18hs, acho. O dinheiro, por incrível que pareça, numa sacola da Dona Tereza. Eu tinha conta no Banco Noroeste. Trouxe, coloquei na minha conta particular. Chegamos ao banco quase 17hs. O gerente viu três negros com aquela grana. Eles chamaram os caixas para contar o dinheiro na mesa. O Nenê está vivo, pergunte a ele essa história, isso foi no sábado. No domingo, a Dona Eunice foi em casa. “Vim buscar meu dinheiro.” “Está depositado.” “Menino, não brinca, quero meu dinheiro.” “Dona Eunice, está depositado. A senhora foi à reunião, não foi acertado isso?” “Você não recebeu?” “Recebi.” “E onde está depositado?” “Não Um Batuque Memorável no Samba Paulistano S E U tem reunião na quarta-feira? A senhora, eu, seu Nenê, todo mundo vai receber lá.” “Mas eu quero agora”. Passou um sermão em mim. E as escolas foram deixando 5% e foi começando a crescer. Depois veio a Erundina, conseguimos o sambódromo. E sempre querendo mais. De repente, o carnaval ficou preso no Anhembi. Estamos confinados. O carnaval cresceu? Cresceu assustadoramente. Para mim não é carnaval. É uma competição entre nós. Quem vem melhor, quem desenvolve melhor seu tema, sua história. Escola de samba é um teatro ambulante. CARLOS: Sobre as arrecadações que eram feitas pelas escolas no Centro, elas eram feitas com batucada? SEU CARLÃO: Com batucada. Tem fotos das pessoas aí, mas tinha que tomar cuidado. Os mais espertos pegavam. Às vezes mandava alguém seguir e depois ele contava que fulano pôs a mão na taça e depois no bolso. CARLOS: Qual a maior alegria que o samba te deu? SEU CARLÃO: O samba me deu muitas alegrias e tristezas. Meus amigos que já foram e ajudaram a carregar o Peruche: Teixeira, Alencarzinho, Brandão, Chita, Pipoqueiro, Seu Celso, e tantos outros mais. E as mulheres da época: a Vanda do Churrasco, ela vendia churrasco na quadra, a Dona Isabel, a Romilda, a Tera. Que me desculpe a falha, a memória está me traindo, vejo a pessoa na frente e não recordo o nome. Está chegando a juventude. Chegou uma época em que falaram: “Não vou mais sair na nossa escola”. Era da ala de baiana, de outras alas, a porta-bandeira. “Não vai dar para sair mais.” Estavam cansados, com idade avançanda. Então, falei: “Gente, está na hora de fundarmos nossa Velha Guarda”. Fundamos em 1975. “Somos fundadores, raízes, vamos curtir a nossa escola na Velha Guarda.” CARLOS: Seu Carlão. Quero agradecer a gentileza em me receber. SEU CARLÃO: Foi um prazer. Uma escola de samba, quem está nela, sabe que tem seus altos e baixos. O importante é saber que a escola de samba nivela, culturalmente, socialmente, economicamente, politicamente e esportivamente. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano C A R L Ã O 155 DONA ROMILDA Dona Romilda Simões nasceu no dia 12 de abril de 1930, em São Paulo. É costureira. Entrevista realizada no dia 25 de abril de 2009. CARLOS: Onde a senhora nasceu? DONA ROMILDA: Eu nasci no Bom Retiro, em 1930. Fiz agora, em 12 de abril, 79 anos. CARLOS: Qual é a primeira lembrança que a senhora tem do samba ou da roda de samba? DONA ROMILDA: A primeira lembrança que eu tenho é de um samba de roda, de umbigada, mas eu era muito nova, eu tinha mais ou menos meus sete anos. Minha mãe também gostava porque ela tinha nascido numa fazenda lá em Campinas e meu avô, o Seu Pedroso, fazia roda na fazenda. Era o fim da escravidão. Ele preparava uma fogueira perto do bumbo que era para o couro, para afinar. Eles tocavam e as senhoras iam para lá e os homens vinham para cá e davam a umbigada. Eu gostava de ver. Minha mãe levava a gente para assistir porque ela dançou muito, ela dançava bastante. CARLOS: Você lembra até que ano isso aconteceu? DONA ROMILDA: Aconteceu até mais ou menos 1946. CARLOS: Onde era? DONA ROMILDA: Era aqui na Praça Centenário, na Casa Verde, lá em cima. Acontecia uma vez por ano, acho que era no 13 de Maio. Tinha muita senhora idosa que pertenceu a fazenda e estava morando para cá, que ia nesta umbigada. CARLOS: Então, vinha gente de vários lugares? DONA ROMILDA: Não, não vinha muito porque não havia condução. Quem sabia contava ao outro e no próximo ano vinha mais gente. 156 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano D O N A Durou muito pouco, acho que uns três anos mais ou menos. Naquela época a Casa Verde era muito pequenininha e tinha pouca casa, era um bairro que estava surgindo. Em 1937, o meu pai deu sorte no jogo do bicho, comprou um terreno aqui na Casa Verde e nós viemos para cá, porque os senhorios não queriam mais alugar casas para quem tinha filhos. Já nessa época a gente pulava o carnaval. Era criancinha, mas pulava porque antigamente a gente fazia qualquer roupinha. Minha mãe fazia a fantasia de acordo com a música: colombina, pierrot, espanholinha. E nós íamos ao coreto. O prefeito mandava fazer um tablado e as crianças iam brincar. A música vinha das caixas de som que ficavam penduradas nos postes. Eu sempre gostei de samba. Adoro samba. Então, fui crescendo e fui trabalhar em casa de família. Eu era pajem. Meu pai faleceu muito cedo, acho que eu estava com 10 anos, o caçula com oito, minha irmã caçula com seis, e a outra acima de mim estava com 12 para 13. Quando eu estava com 14 precisava ajudar minha mãe, então fui trabalhar em Perdizes. Lá conheci uma família que dançava na matinê, porque a gente era menor e não podia dançar à noite. A matinê começava às três da tarde e terminava às oito. Justamente nesse salão tinha um cordão que saía dos Campos Elíseos, mas a gente não sabia. Depois que fomos pegando amizade, conhecendo as pessoas, nos contaram que o pessoal da noite formava um cordão no carnaval. Minha amiga Olga falou: “vamos lá ver?” “Vamos.” O baile terminava no domingo e a época do carnaval era em fevereiro. Eles começavam o ensaio em janeiro e a gente gostou. Ela falou com a moça que tomava conta de lá que disse assim: “Vocês são menores?”. “Nós somos”. “É, vai ser um pouco difícil porque o juizado não deixa. Vamos ver o que dá pra fazer.” Eu fiquei entusiasmada. A gente sempre ensaiava. Eu contei para a minha mãe no começo, ela não gostou muito, mas eu não ia sozinha, então ela me deixou ir. No primeiro ano não, mas no segundo eu já desfilei porque eu levei o documento da minha irmã. Eu estava com 15 anos, mas ninguém sabia. Eles pegaram o RG e meu nome lá na roleta era Benedita, nome da minha irmã. Então a Dona Cecília deixou, ela era encarregada. Logo fomos convidadas para sair como princesinhas, porque o cordão era Um Batuque Memorável no Samba Paulistano R O M I L D A 157 D O N A R O M I L D A 158 formado por reis, rainhas, condes, princesas, duquesas, marquesas, mas tudo com roupa de época. Era muito lindo. Falei para minha mãe. A gente suou e fez a roupa, porque a gente não ganhava não, tinha que comprar com o nosso dinheiro. CARLOS: E quem fazia? DONA ROMILDA: Eu. Eu aprendi a costurar. Tenho uma tia que eu ia para casa dela e ela era costureira. Então, me ensinou, eu aprendi quando era criança. Minha mãe também sabia um pouco e me explicava. Não sei se você já assistiu algum filme de rei e rainha, a nossa roupa era assim. Eu fazia todas elas. Naquele tempo não era bateria que chamava, era batucada; não era passista, era baliza. Tinha uma conhecida que saía de baliza e eu adorava assistir. Aí eu falei: “eu também vou sair”. Falei com ela e ela disse: “você vai aguentar?” Eu era magrinha, pesava uns 40kg. “Eu vou!”. “Então, vem de noite falar com a Cecília, que saímos eu e você”. Eu fui e ela deixou. Fiquei como baliza no Campos Elíseos, por uns quatro anos. CARLOS: E o que fazia a baliza? DONA ROMILDA: Nós não ficávamos vestidas como crianças e mulheres, usávamos um calção, uma capa enorme e um chapéu muito bonito. Calçávamos tênis e meia, naquela época não se usava sapatos. Era muito bonita a fantasia. A gente dançava, pulava mesmo, dava no pé, era samba no pé. A gente usava uma baliza feita com cabo de vassoura cortado, virava nos dedos da mão, mas virava mesmo. Não sei se você já assistiu na banda dos colégios os desfiles de fanfarra, aquelas meninas que pulam. Só que nós não pulávamos, nós girávamos. Jogávamos assim no ar (demonstra). Tinha os homens que também faziam isso. Mulheres tinham poucas. Eram só três aqui em São Paulo, o resto eram todos homens. CARLOS: Então, a senhora foi uma das poucas mulheres a ser baliza? DONA ROMILDA: É. Eu e a Bastianinha éramos do Cordão Campos Elíseos e a Tininha do Vai-Vai. Quando acabou o Campos Elíseos a Dona Sinhá, o Seu Mulata e diversas pessoas que eram do Campos fizeram renascer o Cordão Camisa Verde e Branco. Me convidaram para sair com eles e eu disse que não ia porque a condução era difícil. Os ônibus e os bondes só começavam a correr ás quatro da manhã. Como eu Um Batuque Memorável no Samba Paulistano D O N A morava na Casa Verde tinha que esperar até cinco horas para voltar. E não tinha trégua, pois tinha que chegar em casa, por a roupa e ir para o serviço. Contei a eles que tinha uma batucada na Casa Verde, no bairro do Parque Peruche, como já tinha bastante gente queríamos tirar uma escola. Naquela época, de escolas de samba já existia a Lavapés, Garotos do Itaim, Brinco de Princera, Coração de Bronze, Nenê de Vila Matilde e outras mais. O Carlão era muito conhecido, entendia muito de samba, tinha vindo da Lavapés e mudado para o bairro da Casa Verde. Ele falou: “Vamos fazer uma escola de samba e registrá-la como Unidos do Parque Peruche.” E foi assim que ela começou a sair. tinha muita gente que dizia: “Vamos, Carlão, vamos firme. Vamos por nossa escola na rua.” Com muita coragem e sacrifício ela foi colocada numa época que não tínhamos ajuda de ninguém. CARLOS: Por que o Cordão Campos Elíseos acabou? DONA ROMILDA: Porque o presidente, Seu Santinho, morreu e a Dona Cecília, a diretora carnavalesca, era uma senhora idosa, não aguentava mais tirar esse cordão. Ele era bonito, era roxo e branco, na época tinha o Vai-Vai, preto e branco, e tinha o Santo Cristal, azul e branco, do Seu Júlio Garita que tinha um salão de baile. Eu também dancei muito neste salão. Neste e em outros, tinha Tangará, Amarelinho e muitos outros. Naquele tempo as pessoas eram selecionadas: tinha o preto tu, trabalhador simples, o preto turututu, mais metido que trabalhava em escritório, e preto sim sinhô, metido a doutor. A pessoa contando ninguém acredita, mas tinha essa divisão. Essas pessoas mais pobres não se vestiam muito bem, só viviam do trabalho. Chegava o domingo e vestia uma roupinha mais ou menos. Era assim, eles saíam e não falavam muito bem, pois a maioria vinha do interior e eles não sabiam se expressar, não é? Então, às vezes a gente até achava graça quando conversava com um moço que era preto tu. Eram muito acanhados. Agora, tinha os outros que já tinha ido à escola, andavam mais arrumadinhos. Esses que eu estou falando eram os pretos turututu. Os negros sim sinhô eram aqueles metidos, nem davam confiança para os que não eram estudados. Bem vestido, bem arrumado e se expressavam bem na hora de falar. Tanto é que a gente saía do salão de baile, íamos para a cidade passear, para namorar. Tinha a Rua Direita Um Batuque Memorável no Samba Paulistano R O M I L D A 159 D O N A R O M I L D A 160 que era dos negro tu, a Patriarca e a Rua São Bento era dos negros sim sinhô. E a gente não entrava na Rua Direita. Aos domingos quando saíamos da matinê, que era aqui na Rua Olga, a gente subia até a Praça Patriarca. O Garitão fazia questão que no cordão dele só fosse de gente estudada, gente bonita. O cordão dele era todo sim sinhô. E o Campos Elíseos também era. Era e não era. CARLOS: Quanto tempo tem o Peruche? DONA ROMILDA: Olha o Peruche está com 56 anos, mas eu acho que ele tem mais. De registro ele tem isso, mas da época do oba-oba, que andava para lá e para cá, para cima e para baixo, correndo de polícia e tudo, ele tem mais. Quem saísse de casa para o samba não prestava, a polícia batia. Qualquer coisinha! Não era errado o que fazíamos. Eles achavam ruim a gente cantar e rir alto. Eles nos paravam, a gente estava de fantasia. Geralmente as mulheres passavam batido, mas nos homens eles batiam. Batiam e levavam. CARLOS: E como era essa ação da polícia? DONA ROMILDA: Geralmente na volta. Era sempre na volta. A gente não queria esperar o bonde, então vínhamos a pé, cantando para distrair. CARLOS: Isto então era depois dos desfiles? DONA ROMILDA: Depois dos desfiles. CARLOS: Como eram os desfiles dos cordões dos Campos Elíseos? DONA ROMILDA: No Cordão dos Campos Elíseos, a gente saía da Alameda Olga. Antes não tinha UESP e nem a Liga. Quem promovia o concurso das escolas de samba e cordões era a Rádio Record. Era sábado, domingo, segunda e terça-feira de carnaval. Eles faziam um concurso de resistência para quem aguentasse dançar. Eu soube que muita gente que tomou parte desse concurso comprava casa, pois dava dinheiro. Para as escolas eles davam taças. Se davam dinheiro eu não sei, porque a gente não sabia disso. A gente queria sair! Para escola de samba tinha a taça pequena, média e grande, porque tinha o primeiro, segundo e terceiro lugar. Nós faziamos a fantasia do jeito que queria, não era a escola que exigia de você sair assim. O concurso era na Avenida Matarazzo, no Parque da Água Branca. Depois foi evoluindo, saiu dali e foi para a Consolação e juntou à Record com a Bandeirantes. Os cordões subiam a Rua Olga, saíam em Perdizes, pegavam a São João Um Batuque Memorável no Samba Paulistano D O N A e iam para a Consolação. Tudo a pé, dançando, cantando e sambando. Naquela época não era como agora que anunciavam: “Vai entrar tal horário!”, “Vai entrar a escola tal!” A escola entrava, tinha aquele palanque que não era muito grande, passava embaixo. Era um atrás do outro. Cantava o samba inteirinho e a turma dançando. Saía, entrava o Vai-Vai atrás, saía, entrava o Camisa. Vinham todas as escolas de samba e não tinha horário para acabar, mas agora tem. Eu sei a música do Vai-Vai, do Campos Elíseos, do Santo Cristal, tudo daquela época. Ficava um cordão parado de um lado e do outro a gente cantando. Era muito bom, assim era o nosso desfile. CARLOS: Como se portava o público? DONA ROMILDA: Ficava vendo, tudo em pé, na calçada. Tinha corda e tinha polícia. A gente ficava no meio da rua. Quando era na Barra Funda o carro passava pelo meio, mas a gente respeitava e respeitavam a gente também. Queríamos sambar. Eu subia aquela Alameda Olga dançando. Era uma beleza! CARLOS: E tinha mais negros do que brancos? DONA ROMILDA: Nos cordões havia mais negros do que brancos. Os brancos tinham medo, receio. Agora isso acabou, mas eles tinham medo. Eles gostavam e iam assistir. Ficavam na beira da calçada olhando, achavam bonito, mas não entravam como entram agora. Era só negro mesmo, branco você podia contar nos dedos. A direção queria que chegasse até umas 200, 250 pessoas, mais do que isso no cordão não, tanto no cordão quanto nas escolas de samba. Cordões eram Campos Elíseos, Vai-Vai, Camisa Verde e Santo Cristal. Não tinha briga, tinha muito respeito. Quando uma porta-estandarte encontrava a outra, as duas dançavam juntas, depois cada uma ia para o seu lado. Com os balizas era a mesma coisa: nós entrávamos com eles, pulávamos, nos abraçávamos e íamos embora. Ganhasse quem ganhasse, não tinha nada além: era na raça. CARLOS: E o Peruche? DONA ROMILDA: O Peruche precisava ser registrado porque não podia continuar do jeito que estava. Eu não tenho muita certeza, mas me parece que quem começou a arrumar o carnaval de São Paulo foi Morais Sarmento, um locutor da Rádio Bandeirantes que gostava muito de escolas de samba e tinha amizade com os presidentes e Um Batuque Memorável no Samba Paulistano R O M I L D A 161 D O N A R O M I L D A 162 componentes. Ele e a Hebe Camargo; ela ajudou a fazer campanha para que a terça-feira fosse feriado. Já o Morais ajudou a fazer a Liga das Escolas para sambarmos sossegados. Na quarta-feira de cinzas já saía nos jornais que tinha ocorrido briga, que a polícia tinha batido. Precisava arrumar mesmo, como foi arrumado. As escolas de samba tinham que ter tudo registrado, com as cores certas. Aí começamos para valer. Tinha ensaios e conseguimos uma quadra, mas antes disso, nós sofremos bastante, porque não havia lugar certo para ensaiar. Conversaram com o prefeito para arrumar um terreno e assim está como é hoje. Apesar de que eu prefiro o antigo ao modelo de agora. CARLOS: Por quê? DONA ROMILDA: Eu gosto mais porque hoje em dia se você tiver dinheiro sai, se não tiver dinheiro fica difícil, antigamente não era assim, a gente comprava com o dinheiro da gente, era barato, agora as fantasias são caras. Eu não aprovo isto não, porque carnaval é 1 hora e 20 ou 40 minutos? CARLOS: Uma hora e 5’. DONA ROMILDA: A pessoa gasta 200, 300 reais. Está certo que é algo muito bonito e tudo mais, mas agora é sofrido para sair em uma escola de samba. O povo fica na vontade, os trabalhadores. Mal dá para a gente comer quanto mais comprar uma fantasia, mas tem gente que faz essa loucura. É fogo. Eu trabalhei muito mesmo para fazer as minhas fantasias e cumprir com minhas obrigações dentro de casa. Minha mãe dizia: “vocês querem sair, vocês saiam, mas primeiro aqui em casa, depois comprem as suas fantasias”. CARLOS: Depois que a senhora se mudou para a Casa Verde, sempre morou nesse local? DONA ROMILDA: Meu pai deixou a gente muito cedo, depois a minha mãe lutou para não perder a casa que ele tinha comprado. Ele não tinha nem terminado de pagar quando morreu e nós éramos crianças. A minha mãe foi logo enfrentar um tanque em casa de família, pois naquele tempo existia essa vantagem. Ela trabalhava de lavadeira e nos levava para ajudar. Não tivemos mordomia, ajudamos. Ela precisou vender nossa casa e comprar outra aqui. Era um quarto e cozinha. Meu pai morreu com câncer na garganta. Um irmão dele veio do interior para morar com a gente. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano D O N A Meu pai era de Salvador e trabalhava na Santa Rosa, em um daqueles armazéns, por volta de 1926. Vinham sacos de arroz e feijão naqueles caminhões. Até hoje os caminhões encostam lá, mas agora vem a máquina e retira a mercadoria. Antigamente os caras tiravam na cabeça, meu pai era um deles, trabalhava na sacaria, por isso que uma época moramos no Bom Retiro, pois era perto da Estação da Luz. Somos cinco, todos nascidos e criados no Bom Retiro. Trabalhamos e nos aposentamos, também, no Bom Retiro: eu, minha irmã e meu irmão. Ele é pintor de casa, mas também saia na Peruche. Era peruchense roxo. Eu já saí um pouco da rota. Saí também na Império, escola que ajudei a fundar. O pessoal se aborrecia na escola e: “Não vou mais!” “Vou em outro lugar, tem um batuquinho. Vou lá”. Chegava naquele batuquinho e arrumava a escola. Quem era? Era gente da Peruche. A mesma coisa foi com a Mocidade, a Rosas e a Império de Casa Verde. O primeiro presidente da Vila Maria chamava-se Nenê. Até a gente confundia: Nenê da Vila Matilde? Não, Nenê da Vila Maria. Quando a Tucuruvi se formou chamou a Peruche, a Explosão e a Imperador do Ipiranga para batizá-los. Aqui na Casa Verde existem muitas escolas de samba e todas tem gente da Peruche. Sou costureira há cinquenta e poucos anos, desde que a Peruche foi fundada. Aqui em casa todas nós costuramos, chegada a época do carnaval, todos aqui em casa éramos só para a máquina. Um rapaz, o Caçata, me procurou um dia dizendo: “Dona Romilda, eu queria falar com a senhora. Eu estou aborrecido com a Peruche, com a diretoria. Não vou mais. Conheço um senhor aí, Seu Chico, ele quer fundar uma escola”. Então, eu disse: “Mas fundar onde uma escola? Aqui na Casa Verde?” “A senhora não quer ir lá para conversar com a gente, para ver como dá para montar a escola?” “Bom, posso ir”. “Eu tenho uma reunião, vai ser no sábado. Nós vamos dar um coquetel e a senhora está convidada para conhecer o presidente da escola”. Chegou o sábado, eu fui lá, meu filho me levou. O presidente sentou-se à mesa conosco. “Estou com vontade de fundar uma escola de samba e a senhora poderia me explicar mais ou menos como é que faz?” CARLOS: Isto foi em que ano? DONA ROMILDA: A escola está com 15 anos, faça as contas, por favor. CARLOS: Foi em 1992, 93. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano R O M I L D A 163 D O N A R O M I L D A 164 DONA ROMILDA: Por aí. No outro domingo teria uma reunião para escolher o presidente. Quem achasse que ele deveria ser o presidente assinaria um livro, quem não concordasse assinaria outro. Eu assinei concordando. Compareceram somente cinco mulheres. O restante era todos homens. Chegado o mês de agosto, veio uma amiga aqui em casa, agosto não, minto, foi em janeiro. Eu assinei o livro e não fui mais lá. Não apareci porque eu era da Peruche. O que eu iria fazer lá? Essa mulher veio aqui faltando 20 dias para o carnaval e me disse: “Romilda, o que você esta fazendo?” “Nada”. Eu não estava costurando. “Você não quer ir comigo até a Império? A costureira deles se enrolou”. Quando cheguei lá havia muitas máquinas que o Chico comprou. Começou bem, comprando um monte de máquinas, mas só havia três costureiras e faltavam 20 dias para o carnaval. A encarregada, uma senhora com o nome de Nair, já falecida, estava lá. Minha amiga que estava conversando com ela disse: “Você não tem uma costureira boa?” Ela respondeu: “Está aqui a costureira”. “A senhora é costureira?” “Sou”. “A senhora sabe costurar fantasia?” “Sei”. “Diz-me uma coisa: Quais são as fantasias essenciais pra escola de samba?” Ela era costureira de televisão, coisa para novela e não tinha prática. “O essencial para uma escola de samba é a bateria, comissão de frente, baiana, mestresala e porta-bandeira e componentes, se não tiver componente não é tão necessário como uma bateria ou porta-bandeira”, eu disse. “Mas é isso que falta!” “Eu não estou acreditando!” “Dona Romilda, pelo amor de Deus, faz pelo menos as blusas das baianas para mim?”, ela implorou. A escola estava começando, era do terceiro grupo, não era como hoje. Então, eu respondi: “Está bem, vamos fazer uma coisa: a senhora manda todas as baianas para a minha casa. Manda-me uma pronta”. Dei-lhe o endereço daqui. Ela mandou blusa e saia. Quando eu cheguei em casa falei para a minha irmã, já falecida: “Fui na Império e elas estavam com as baianas todas por fazer”. E ela respondeu: “Já sei, você mandou tudo para cá!”. “Mandei mesmo! Agora converso com as meninas e elas me ajudam”. Quando terminei as 50 baianas, ela veio aqui. Faltavam 15 dias. “Eu não acredito! 50 baianas prontas!” Ela entrou no meu quarto, estava tudo amontoado, porque quando nós começávamos, nós praticamente não dormíamos. Ficávamos até duas, Um Batuque Memorável no Samba Paulistano D O N A três da manhã acordadas, descansávamos um pouco, tomávamos café, cochilávamos um pouquinho. Nós sabemos qual é a responsabilidade. Faltavam cinco dias, na sexta-feira de carnaval eu liguei para ela. O bom deles é que me mandaram duas máquinas retas, eu tenho uma outra sobrinha que também costura e veio me ajudar. A encarregada me ligou para saber como andavam as coisas e eu disse para ela não se preocupar, pois estava tudo bem. Quando disse que estava tudo pronto ela não acreditou. O presidente era seu Chico e o Seu Pimenta era vicepresidente. Ele veio e nos pagou direitinho. Sabe o que aconteceu? Costurei para a Império dez anos. Quando chegava agosto ele já ligava. A mãe do vice-presidente vinha aqui saber se eu ia costurar: “Dona Romilda, pelo amor de Deus, a senhora não vai me dizer que não vai costurar”. Ela vinha, me pagava, trazia tudo para mim. Nesse primeiro ano eu não saí, mas depois comecei a sair porque insistiram. Tinha toda essa coisa de que a Peruche não saía na Império, mas eles sabiam que eu era costureira, então comecei a desfilar para as duas e continuo até hoje. CARLOS: O desfile da Império deste ano foi bonito. DONA ROMILDA: Foi lindo. Eu achei lindo, mas foi roubado. Passaram a mão na Império. Se eu estivesse com a fita você iria ver. O meu filho organizou a comissão de frente. Ele havia assistido a comissão da Salgueiro e achou muito bonita. Os rapazes eram todos de uma altura só e com o mesmo porte de corpo. Faz 13 anos que ele assistiu a Salgueiro, quando ela veio desfilar no sambódromo de São Paulo. A Império está com 15. Há 13 anos que fui jurada e fui para a avenida, como eu tinha crachá, arrumei um para ele também. Ele, então comentou que se fosse possível, ele iria fazer numa escola de samba uma comissão de frente igualzinha, então ele fez com a Império. Há 13 anos a comissão de frente é a mesma, são sempre os mesmos rapazes que ensaiam. É ele quem vê tudo direitinho, como vai ser o ensaio e coreografia. CARLOS: E a família inteira costura? DONA ROMILDA: No começo eu costurava para a comissão de frente da Império e depois começou a ficar complicado, porque tinha muita fantasia. Então, eu decidi que não as faria mais. A Império já tinha mais de 100 baianas. Há quatro anos que eu não costuro para a Império. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano R O M I L D A 165 D O N A R O M I L D A 166 Costuro apenas para mim. CARLOS: Quero agradecer a gentileza da senhora em me receber e conceder esta entrevista. Falou maravilhas. DONA ROMILDA: O samba é uma coisa muito boa, é bom demais. Traz muita coisa da vida da gente. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano ALBERTINO Senhor Albertino Alves de Souza nasceu no dia 24 de abril de 1947, em São Paulo – SP. É comerciário. Entrevista realizada no dia 01 de maio de 2009. CARLOS: Onde você nasceu? ALBERTINO: Nasci em São Paulo. Meu nome é Albertino Alves de Souza, mais conhecido como Beto do Tamborim. Nasci na Vila Matilde, no Largo do Peixe. Estou mais de 50 anos na escola de samba. Já deixei de sair na Vila Matilde várias vezes. Já saí no Rio de Janeiro, saí na São Carlos, que hoje é a Estácio de Sá, em 1972. Fui convidado por um amigo, Clóvis Messias, para conhecer o carnaval carioca em 1972. Em 1971 fomos tricampeões com a Nenê, aqui em São Paulo. Os caras fizeram uma picaretagem comigo, eu era o primeiro mestre-sala da escola de samba, faltavam 5 minutos para gente sair e eu não tinha fantasia. Então, em 72 eu não saí na escola porque eu estava com raiva. Fui para o Rio de Janeiro, não com o intuito de sair, fui para conhecer o carnaval. Como nessa época eu era um bom passista e dançava bem, acabei saindo na São Carlos, e tinha um amigo meu que desfilava lá, eu o conheci em São Paulo, o Baianinho, aí o pessoal arrumou a roupa e sai de passista. Foi uma experiência que eu nunca tinha tido, saí na Getúlio Vargas, aquilo lotado, fiquei que nem um bobo. Depois voltei para a Nenê, saí na harmonia, já fui diretor, saí em ala e depois tornei a me afastar da escola. Em 77 voltei como diretor de harmonia, o Landão tinha ficado e voltamos para escola em 77. De lá para cá tenho saído sempre. Em 82, ainda na harmonia, eu fui incumbido de segurar o Armando da Mangueira, porque me disseram que ele não podia beber, foi a maior besteira que eu fiz, quando chegou na hora de cantar não Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 167 A L B E R T I N O 168 teve vibração, ele queria beber, devia ter deixado. O Armandinho era da ala dos compositores da Nenê e naquele ano ele ia puxar o samba da escola, vinha ele e o Vanderlei, mas toda a vibração era em cima dele, quando ele tomava uma, explodia. Naquele dia, o samba não explodiu, foi minha culpa. Eu devia ter tido jogo de cintura, mas por causa disso fui acusado de ter perdido o carnaval. Fiquei chateado e voltei para bateria; antes, eu já saía na bateria, sempre toquei tamborim. Eu tocava tamborim na escola, mas nunca na bateria, sempre saí em ala, em outros departamentos, mas na bateria tocava até chegar o carnaval, e quando chegava eu ia para outro departamento. Em 83 saí na bateria e fiquei direto, já tinha meus filhos, eles cresceram e foram todos para a bateria, em 85 nós fomos campeões. Fomos considerados a melhor ala de tamborim de São Paulo, na Nenê de Vila Matilde. Fomos para o Rio de Janeiro desfilar. A Vai-Vai passou a ser escola de samba e deixou de ser cordão e fui convidado, junto do Macalé e Clóvis Messias, para fazer parte da Vai-Vai. O Macalé ficava instruindo o pessoal, dando formação e nós fomos para lá. Continuei na Nenê, tocando tamborim, até 2005. A partir daí não saí mais, porque a escola de samba modificou muito, e como eu não queria entrar em atrito com a diretoria, saí. CARLOS: Qual a diferença de sair em São Paulo e sair no Rio de Janeiro? ALBERTINO: Em 72 a diferença era gritante. Aqui, a gente desfilava no Vale do Anhangabaú. Já no Rio de Janeiro tinha uma passarela do samba, gente para caramba. Então, a diferença era gritante: televisão, o samba era diferente, tinha mais componentes, e continua tendo essa diferença até hoje. São Paulo tem tudo para chegar lá, mas se continuar com essas direções que tem no carnaval de São Paulo, nós não vamos chegar lá nunca. CARLOS: Qual caminho devia trilhar o carnaval de São Paulo? ALBERTINO: Na minha opinião, é o seguinte: organização. Escola de samba tem que ter organização, buscar investimentos. Por exemplo: as escolas de samba têm que se impor ao próprio governo. Não sei se a prefeitura ou ao governo do estado. Precisa se impor, porque lá no Rio, os cara se impuseram e tomaram conta. Na época do carnaval os caras ganham muito dinheiro, se as escolas de samba estão dando lucro, porque eles não vão investir nelas? Esse é o meu ponto de vista. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano CARLOS: Você lembra da primeira roda de samba que você foi? ALBERTINO: A primeira roda de samba que eu fui, foi na Nenê de Vila Matilde. CARLOS: Consegue lembrar-se de como foi? ALBERTINO: Tinha o pessoal da escola de samba, o Jangada, o próprio Carlão do Peruche, o pessoal da antiga. A roda de samba era boa, tinha Paulistinha da Nenê, Macalé e Landão estavam na parada. Essa primeira roda de samba que tivemos, começamos lá na Nenê, quando fizeram a quadra, a primeira coberta de São Paulo. Você vê que a modificação é tanta que em 1970 quando foi feita a quadra, a escola de samba funcionava todo sábado. Hoje em dia, quando o homem já chegou até a lua, a quadra da Vila Matilde não funciona. Pode um negócio desses? CARLOS: Não tem mais roda de samba? ALBERTINO: Não tem nada, escola de samba só tem na época do carnaval. Não tem mais nada lá, os caras fazem uma meia dúzia de festinhas, negócio para garotinho e mais nada. O pessoal da Velha Guarda na escola de samba em São Paulo não existe. Existe sim, esporadicamente, quando precisa e você é obrigado a estar à disposição, porque do contrário, para o samba, esse trabalho não existe mais, morreu. Esse é o meu pensamento. CARLOS: E o senhor lembra o que cantava nas rodas de samba? Hoje na roda de samba, canta-se muito samba do Rio de Janeiro, canta-se pouco o de São Paulo. Sempre foi assim? ALBERTINO: Quando eu falo que cantava muito samba do Rio era porque eu conhecia um cara chamado Xangô da Mangueira. Ele, junto com o Armando, cantava muito partido alto, então eu cantava o partido deles. Os compositores que tinha aqui em São Paulo era o Armando, o Jangada, o Paulistinha, mas a gente cantava muita música desses caras aí. O Xangô chegava, tomava conta e cantava aquele samba “Quando vim de Minas...”, e pegava fogo. Eram esses caras que botavam fogo na roda de samba. CARLOS: E tinha comida na roda de samba? ALBERTINO: Tinha comida, tinha bebida, tinha tudo. CARLOS: Juntava toda a comunidade? ALBERTINO: Naquele tempo, o pessoal fazia aqueles pratos, mas hoje não tem mais esse tipo de encontro. Hoje os caras cantam, mas cantam Um Batuque Memorável no Samba Paulistano A L B E R T I N O 169 A L B E R T I N O 170 samba da rapaziada jovem, eu não vejo numa roda de samba os caras cantarem samba da antiga. CARLOS: Qual era a diferença entre a quantidade de componentes do Rio de Janeiro e de São Paulo? ALBERTINO: Em 70, 71 eram 4.000, 5.000 componentes no Rio de janeiro e em 76, 77 a Portela veio com 7.000 componentes. A bateria tinha 500, tanto é que tinha uma parte que tocava e outra que parava. Eles não conseguiam fazer todas as partes e juntar. Com o tempo foi diminuindo o número de gente, hoje em dia não passa de 4.000. Tinha blocos de 10.000 componentes. Quando cheguei ao Rio eu não conhecia aquele bloco carnavalesco, Cacique, que sai com mais de 10.000. Íamos da zona norte à zona sul. Você via gente chegando de tudo quanto era lugar. CARLOS: O bacana do bloco é que entra todo mundo. ALBERTINO: Lá tinha um local, aquelas barraquinhas. Você comprava as fantasias e escolhia o bloco que queria, colocava a fantasia e ia. Eu fui. CARLOS: Conta um pouquinho da diferença entre Anhangabaú, São João e Tiradentes? ALBERTINO: São lugares que a gente desfilava, Anhangabaú e São João, que não tinha estrutura nenhuma, por exemplo, os carros alegóricos eram de 3m de altura. Quando nós fomos para a Tiradentes montaram arquibancada, as escolas de samba começaram a crescer e os carros alegóricos aumentaram. Foi crescendo a essência. De diretor não cresceu nada. CARLOS: Para você o que significa o sambódromo do Anhembi? ALBERTINO: Uma luta do pessoal da Velha Guarda. Seu Inocêncio, Seu Carlão, seu Nenê, Dona Eunice, gente que tentava organizar o carnaval de São Paulo. Foi a luta deles. CARLOS: Como foi sua aproximação com a escola? ALBERTINO: Eu saí na escola com 3 anos de idade, estou com 62, vê quantos anos que estou na escola. Fui levado por meu tio Nenê. CARLOS: Três anos? Tem alguma lembrança disso? ALBERTINO: Não tenho lembrança alguma. Tem um quadro meu segurando a bandeira. Fui saindo e aprendendo. Aprendi a tocar tamborim com o Rato da Portela, tanto é que a escola foi batizada pela Um Batuque Memorável no Samba Paulistano Portela em 1970. Eu era o primeiro mestre-sala da escola. Tinha 24 ou 25 anos. CARLOS: E como que foi a festa? ALBERTINO: A quadra explodiu, o pessoal da Portela batizou a escola, a X-9 participou da festa, foi legal. Saí em ala como passista em 1967, aí os caras aclamaram que queriam que eu fosse o mestre-sala da escola de samba. Fiquei até 1971, fomos tricampeões. Eu modifiquei tudo em relação ao mestre-sala e teve gente que não gostou. CARLOS: Quem contestou? ALBERTINO: Uns dos que contestou foi o Manézinho. Os caras não botavam fé em mim, acharam que eu não devia ter tirado dez. Fui, tirei e matei os caras do coração, aqui em São Paulo. Aprendi de olhar, eu via no Rio, na Mangueira, e fazia. Faziam na quadra e eu via. Tentava fazer aqui. Eles nunca tinham visto esses passos aqui em São Paulo, foi legal essa passagem. Tinha passo que eu fazia e hoje eu não consigo fazer: eu ficava deitado, caía, ia segurando a porta bandeira, girando, e estourou tudo. Tem que criar, como os caras nunca tinha feito. CARLOS: Como era sua relação com as pessoas que chegavam? Você ensinava? Como você ensinava? ALBERTINO: A porta-bandeira fui eu que trouxe para o samba. No fim eu casei com ela, a Clara, e tivemos uma filha que não sai mais na escola de samba. Estamos todos brigados com a escola. Mas íamos, ela ia até com a chupeta, na escola. O Landão também se espelhou muito na dança, ensinei. Eu e a Clara nos apresentamos juntos: ela de portabandeira e eu de mestre-sala. Fomos ao simpósio em Santos. CARLOS: Como que foi o simpósio? Qual era a importância? ALBERTINO: Eles falaram da importância do samba, tinha autoridades, tinha rodas de samba. Nesse simpósio teve o show do Martinho da Vila. Tem aquele passeio, aquela confraternização que encontra o pessoal de Santos e do Rio. No Rio de Janeiro era a mesma coisa, mas tinha mais algumas autoridades, conhecidas do mundo do samba. Foi legal pra caramba. CARLOS: Como foi desfilar no Rio de Janeiro com a sua escola, a Nenê de Vila Matilde? ALBERTINO: Foi maravilhoso, uma coisa inesquecível. Nós fomos para lá e fizemos o desfile, mas vi que não tinha condições de encarar os caras. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano A L B E R T I N O 171 A L B E R T I N O 172 Foi um desfile bonito, empolgante porque havíamos sido campeões em São Paulo e fomos lá desfilar. Tivemos reforço do pessoal da Portela, foi aquela festa mesmo. Chegamos no Maracanã por volta de 1 hora da tarde e foi festa até na hora de ir embora. A partir de 91, o carnaval foi para o sambódromo, aí as escolas começaram a crescer, os carros alegóricos ficaram maiores, as alas começaram a encher. Mas é o seguinte, tem que começar a organizar a sua diretoria, enquanto não organizar a sua diretoria o carnaval de São Paulo não vai para frente. Tem que exigir dos governantes de São Paulo condições melhores de tratamento. As escolas de São Paulo não têm barracão, é tudo precário. Tem que exigir das autoridades que construam um local adequado para as escolas de samba fazerem suas alegorias, hoje em dia não tem ensaio de ala. Não dá, você não tem um lugar adequado. CARLOS: Qual foi o desfile mais marcante aqui em São Paulo? ALBERTINO: Têm vários. Em 82 foi um desfile invocado, não lembro qual era o enredo, mas foi um desfile bom, um desfile gostoso. Depois foi em 99, quando falamos do negro em samba. A bateria encaixou, foi considerada a melhor bateria de São Paulo, hoje em dia, já não é. Na minha opinião, hoje é a pior bateria de São Paulo. Se a bateria estivesse boa eu estaria lá. É duro ter que aguentar essa. Em 83, eu fui com a bateria, o diretor da bateria era o Divino, levei, toquei tamborim e trouxe aquela rapaziada que também tocava, tocamos também em 84, mas depois o Divino saiu e entrou o Claudemir, aí fomos campeões em 85. Veio o Joãozinho Redenção e o pessoal dele, aí a ala do tamborim da Nenê se firmou e foi considerada a maior ala de tamborim de São Paulo. Tem umas histórias pitorescas. Em 86 nós desfilávamos ainda na Tiradentes. Como a Nenê foi campeã em 85, a bateria estava grande, mais de 300 componentes, a roupa tinha uma meia por baixo e uma túnica por cima. Quando eu olhei para trás e vi um cara com uma folha de jornal na bunda, um Jornal Notícias Populares, falei para tirar. “Vamos tirar isso, cara!” “Sabe como é, não dá para tirar, porque a minha cueca está rasgada.” “Pô, vira a cueca ao contrário!” O cara com um NP bem na bunda, essa foi demais. CARLOS: Como está a sua relação com o samba hoje? Um Batuque Memorável no Samba Paulistano ALBERTINO: Nenhuma. Não tenho relação alguma com o samba, não vou a lugar algum. Não estou nem aí, não quero nem saber, por causa desse tipo de coisa, estou fora da Nenê porque a diretoria de lá é incompetente. Se a diretoria melhorar eu volto, porque lá é a minha casa, mas não desfilo mais. Assisto, tenho um filho que desfila na Império, vou lá prestigiar, mas sair, eu não saio. Eu assisto pela televisão, não vou porque eu não desfilo e sei que vou passar raiva. Posso passar mal do coração e morrer pela escola de samba. Eu morro, mas pelos caras que estão lá, não! Assisto e quando eu vejo a Nenê, eu fico com um olho aberto e outro fechado. CARLOS: Pode me falar o verso de um samba que você gosta muito? ALBERTINO: “Deixe o meu samba te levar, a estrela te guiar.” Este samba é da Mocidade Independente de Padre Miguel, esse samba eu gosto. Enredo de 2008. CARLOS: Quero agradecer a sua gentileza de conceder este depoimento. ALBERTINO: Obrigado. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano A L B E R T I N O 173 VALDIR CACHOEIRA Esta é a segunda entrevista com o Sr. Valdir Cachoeira. Foi concedida no dia 28 de maio de 2009, antes da apresentação na sala Adoniran Barbosa, no CCSP. CARLOS: Gostaria que você começasse contando um pouco da sua história no samba. VALDIR: Está aí. Uma coisa que a gente nunca esperava no samba. A gente queria ver a escola do bairro desfilar na avenida, fazer sucesso. Você não queria ser artista. Você queria desfilar na escola, mostrar aquilo que você aprendeu com os chamados “nego véio”. Aquele pessoal fazendo chorinho e contando a história, passando para gente, para hoje estarmos aqui e repassar para essa rapaziada que está chegando. Na sexta-feira você tem que sair do serviço, ir para casa, às vezes não dá nem tempo de jantar porque a escola vai sair. Aí a mulher está arrumando a fantasia, brigou com você: “Você não vai sair!”. No fim ela brigou e não vai ao carnaval, mas vai à arquibancada porque você é o puxador de samba da escola, você é o diretor de bateria e às vezes você é o mestre-sala, porque o mestre-sala não vai sair com a esposa, ele vai sair com a escola. Então, tem aquele ciúme. Eles brigaram, depois fazem as pazes. No ano que vem a gente sai de novo. Perdemos muita gente boa do samba, como o Zeca da Casa Verde, o Pé Rachado e a Madrinha Eunice. Eu estava na UESP, o diretor da UESP era o Divino. Ela estava chateada lá, e a nossa Escola na Cachoeira Império do Samba ia homenagear a Madrinha Eunice, mas a Madrinha Eunice tinha a Lavapés para desfilar e estava sem puxador de samba. “Aí, como é que eu vou fazer?” Ela só tinha a letra e a melodia gravada 174 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano em uma fita. Poxa, nós vamos homenagear a Madrinha Eunice e ela está aí sem alguém para cantar o samba dela. Celebridade para mim é Bernadete. Está com a gente, ajudando. No Carnaval você faz parte da escola, todo mundo é celebridade. Antigamente você sabia do nome do compositor do samba, hoje, quem é o compositor desse samba? Não sei. Quem será, não é? Antigamente a sua escola podia vir boa, mas a outra foi melhor, e você comentava: “Você viu aquela escola que passou? Aquela bateria?” Tudo evolui. Você tem um espaço que é o Anhembi. Você tinha o Anhangabaú, você tinha a São João, depois veio a Tiradentes e era difícil. O momento que eu mais gosto é o dia de hoje, mas eu não posso esquecer o passado. O compositor quando tinha que dar uma entrevista, a imprensa ia à casa dele, e a casa do compositor era muito humilde, a casa não tinha portão, a mulher dele estava fazendo comida. Ele preparava toda a família para receber, aí o diretor do jornal fala assim: “Não. Não vamos fazer a reportagem aqui!”. Os repórteres comiam pra caramba e iam tirar a fotografia em frente ao Hotel San Rafael, porque para sair no jornal a casa dele não servia, pois o vitrô do banheiro estava quebrado. O gerente do hotel San Rafael ficava olhando, o cara todo de branco, tirando fotografia ali em frente ao San Rafael. E o gerente: “Esse cara não é daqui do hotel”. E o gerente no domingo de carnaval: “Ah, aquele é o puxador da Escola de Samba!” Mas a casa dele não podia ser filmada. Ele guardava aquilo com mágoa, mas ele tinha que aparecer no jornal. O destaque era a Carmem que trabalhava na feira. “Pô, você viu a Carmem no jornal?” O Diretor de Bateria era o jornaleiro, a Comissão de Frente era o pessoal que na hora de tirar o chapéu tinha aquela elegância, mas tudo evolui. Você vê grandes comissões de frente hoje. Coisa bonita, trabalho bem elaborado, mas a luta do passado fez com que se chegasse nisto hoje. Hoje você vê, por exemplo, gente da periferia fazendo balé, indo para Europa. O melhor tempo é o de hoje. Tinha gente que vinha a pé do bairro para desfilar na Avenida São João, se trocava no banheiro do boteco. Ali no Largo do Paissandu, ainda tem aqueles bares antigos, o camarada trocava de roupa porque a escola ia desfilar. Hoje tem o espaço que é o Parque Anhembi, e estou com 55 anos, eu vi e vejo, mas a celebridade era a escola toda. Tinha Um Batuque Memorável no Samba Paulistano V A L D I R C A C H O E I R A 175 V A L D I R C A C H O E I R A 176 gente que se orgulhava de empurrar o carro alegórico; descia uma ala chamada Ala da Merenda, tinha um pão com mortadela e uma tubaína, hoje já se vê profissionais. Isso é muito bom porque dá emprego. A vantagem do carnaval é que gera muitos empregos. Muita gente nova trabalhando, não é? Fazendo as fantasias, porque antigamente o compositor tinha que fazer o enredo, a música e desenhar o figurino. Eu conheci um grande compositor chamado Talismã, na hora em que o bicho pegava, ele falava: “eu vou fazer o arlequim e você faz o pierrô”. Hoje tem artista plástico famoso, gente de teatro. A Mocidade Alegre homenageou Procópio Ferreira, e você, naquela época, para ter acesso ao Procópio Ferreira, só em revista. Então, tive a oportunidade de ver o Procópio Ferreira e a Bibi Ferreira lá no Mocidade Alegre do Seu Juarez, que Deus o tenha. Que sambista não morre, não é? E o samba é o samba. Não é gostar de samba só no carnaval. Eu vejo pessoas da televisão que querem sair em quinze escolas, querem bater o recorde, querem sair no Guinness Book, mas será que têm escola? Tem gente que conseguiu sair em oito, você chega para ela: “Você não tem escola”. Não sabe o enredo da escola, comprou a fantasia mais cara, mas não sabe o enredo. Veterano viu coisas no samba que hoje não se vê, porque hoje, infelizmente, eu ainda vejo gente esconder a fantasia, se trocar na avenida, sair da avenida e esconder a fantasia. A pessoa que sai na mídia é uma e a que estava lá é outra. Ela só foi celebridade ali na avenida. O amor pela escola está acabando. Eu passei pela minha Cachoeira Império do Samba, Brasil Cachoeirinha, que já não existe mais, só na lembrança, e a Rosas de Ouro. O pessoal do Cachoeirinha era muito ligado ao Rosas de Ouro. Você ia concorrer samba na Rosas, ia defender samba para os amigos como, Seu Basílio, Zelão, e outro pessoal, pois a gente procurou se criar junto. Os nego véio, muita gente que já se foi, deixou lembranças, deixou músicas, músicas inéditas que estão lá na gaveta, mas a neta já não quer dar a letra porque: “Meu avô era muito gandaieiro”. Naquela época você não podia divulgar, não tinha espaço, e eu acredito que até hoje não tem esse espaço, não tem uma reunião de sambistas em um programa de televisão. É so game, pegadinha, mulher manga e Um Batuque Memorável no Samba Paulistano melancia. Durante o ano ela não gosta de samba, mas no carnaval ela tem que sair, porque tem que ser a Rainha da Bateria. Dou valor, tudo bem. Tem espaço para ela mas ainda tem aquele pessoal que deixou muita coisa na gaveta. Você vai à casa dos antigos e: “Poxa vida, agora que vocês lembraram de mim?” O pessoal agradece. Meu vizinho, meu compadre, sábado passado, queria ser padrinho de casamento, mas ele falou assim: “Meu sapato está furado!” Aí ele ouviu a música do Toninho Casa Verde e ele foi ser padrinho. Só que não ajoelhou porque o sapato estava furado, mas agradece ao Toninho porque a música dele ajudou. Aumentou a autoestima dele e ele ficava sério. Tudo isso você coloca em samba. Então, o partido alto, a gente aprendeu um pouco de Samba de Breque. O samba de São Paulo não pode ficar resumido somente a dois ou três, tem mais gente. O camarada é enfermeiro, mas é compositor, é bombeiro, mas é compositor, a menina é telefonista, mas ela compõe, então, você tem que juntar esse pessoal. Existem os movimentos. O Júnior do Peruche é um jovem veterano, como diz o Moisés da Rocha, pois ele puxa isso e não desanima. Você está lá no hospital: “Faça uma letra”. Então, a gente se junta para poder mostrar alguma coisa. Muita gente que vai para São Paulo e vai para qualquer lugar tem que mostrar o samba de São Paulo. O carnaval de São Paulo cresceu e não gosto da crítica que diz que o carnaval de São Paulo está se igualando ao do Rio. Não! Tem samba na Bahia, tem samba em Porto Alegre, tem samba no Rio, em Minas. O cantor antigo saía de Minas e ia para o Rio e de lá ele não falava mais de Minas. Aí, eu ouvi a Clara Nunes e ela cantava: “Quando eu vim de Minas...” Pô, legal, falou de Minas, aí tinha gente na televisão falando que a Clara Nunes era carioca. Não! Era mineira. Clara, mineira. Você tem o Geraldo Filme, você tem a Bernadete, o Toninho Casa Verde, o Maurinho da Mazzei, o Deolindo, o Wilson Passarinho, o André Pantera, que estão neste CD: são todos de São Paulo. Você pode fazer um cruzeiro pela Europa, arranjar um financiador e vamos divulgar a música popular brasileira. Não é só música de São Paulo ou do Rio. É procurar resgatar. Tem muita coisa boa, letra, melodia e fita cassete que a família não quer dar. Independente de fazer sucesso, você tem que cantar o seu trabalho. O nosso cachê é o aplauso. É muito importante você, na sua cidade, fazer um trabalho e ser reconhecido Um Batuque Memorável no Samba Paulistano V A L D I R C A C H O E I R A 177 V A L D I R C A C H O E I R A por isso. Teve um final de samba na Cachoeirinha e ficaram dez sambas para a final. Não tinha jeito, os dez eram bons, e se desse um, ia ter uma briga. Em vez de soltar fogos, os caras dariam tiros. Tudo bem, polícia não tinha, porque não dava. Largo do Japonês lotado, duas horas da manhã e não tinha saído a final. Os jurados já tinham ido embora. Quem é que vai dar a final? Alguém tinha que subir lá e dar a final. Reunimo-nos. “Dá o samba do menino, ninguém vai brigar”. Para gente não brigar, fizemos um samba só dos nomes dos que perderam. “Falou meu nome, não é?” Para poder levar o samba para avenida e não acontecer nada. O que tinha no carnaval e que não tem mais hoje, o tocador de prato. O cara para tocar um prato em uma bateria tinha que saber tocar; baliza, baliza era um camarada que usava um pauzinho e jogava para cima, jogava para baixo, escondia e ninguém sabia. Era atração do carnaval, então a gente fez um samba. “Não sou o maior dos mortais desta terra,/ Já fui pierrô de alguns carnavais,/ Baliza da minha escola querida,/ Bate prato, bate forte, às vezes fugindo da morte,/ Eu sou/ Eu sou um velho seresteiro a recordar,/ Canções que não ouço nestes carnavais/ Lamento a minha juventude de outrora,/ Eu confesso para você, não era como agora/ E aí eu vou seguindo a minha sina/ Pelos bares da rotina para poder me embriagar,/ E aí eu vou seguindo a minha sina/ Pelos bares da rotina para poder cantar.” Quando chegou o movimento dos botecos, você cantava um pagode, o dono do boteco dava duas cervejas na mesa. Aí você cantava outro samba e aparecia mais outro, aí você bebia pra caramba e comia, mas tinha que cantar sucesso. “Foi no início do século/ Essa beleza retratante começou ôôô/ Bar e festa e fantasia/ Zé Pereira já reinava na folia/ Vem do Rio de Janeiro/ A primeira escola de samba/ Deixa Falar, Abram alas que a Império vai passar/ Oh, lindas baianas,/ Sorrindo com os pés no chão/ Porta-bandeiras apresentam/ O seu pavilhão/ Madrinha Eunice o seu 178 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano tempo é de Glória/ Na passarela outra vez /Eu só levo história.” Ela não foi com a gente, mas ficou sabendo lá no hospital que ela foi homenageada no Anhembi e que eu puxei o samba da Lavapés no sábado e na segunda nós fomos para o Anhembi. Saiu a família e ela falou: “Eu vou embora contente. Menino, eu não tenho cachê para te dar, mas dou um abraço. Você vai puxar?” Eu falei: “Vou, Madrinha Eunice.” “Eu vou para o hospital”. E foi, não é? São coisas que a gente guarda com o maior carinho. Não me esqueço dos “nego véio”. A velha guarda para mim é a coisa mais importante. Uma baiana falou para mim: “Valdir, quando você entrar numa quadra, você beija o Pavilhão, cumprimenta uma criança e peça a benção para as baianas”. “Mas por que, Nega Véia?” Eu moleque. “Porque a criança vai ser a velha guarda de amanhã e a velha guarda é a última ala da escola”, disse ela. CARLOS: Muito obrigado! Um Batuque Memorável no Samba Paulistano V A L D I R C A C H O E I R A 179 TONINHO CASA VERDE Sr. Antonio Natalício Vieira, Toninho Casa Verde, nasceu no dia 21 de dezembro, em Diamantina – MG. É soldador e aposentado. Entrevista realizada no dia 28 de maio de 2009. CARLOS: Vou começar perguntando sobre sua história no samba. TONINHO: Eu vim de Minas, sou filho de Diamantina, terra de JK e Xica da Silva. Cheguei aqui em São Paulo garoto e fui me criando em roda de samba e carregava na veia aquela coisinha de letra. Venho de uma família de músico, meu pai era violeiro, sanfoneiro e cantador da Festa do Divino, ele que animava a festa, carregava bandeira e entrava nas casas com o Divino Espírito Santo, era muito conhecido. Eu acompanhava aquele pessoal, meus tios e meus primos tocavam violão. Depois cheguei em São Paulo, dei um breque e fui estudar. Passei pelo exército e aí novamente veio a chama. Comecei a escrever e não parei mais, sempre lutando, pois não é fácil arrumar o espaço da gente, é complicado, é uma política lascada, mas eu nunca me preocupei com o nome, eu sempre me preocupei com a arte que me faz bem. Gostava de estar nas minhas rodas e nos botecos. Fui compositor do Camisa Verde e Branco, onde ganhei o nome de Toninho Casa Verde. Sou apaixonado, a música para mim é arroz e feijão. Sem a música não me completo, não existo. CARLOS: Em que ano você veio para São Paulo? TONINHO: Eu vim para São Paulo em 1958. CARLOS: E você pegou desfiles na São João? TONINHO: Eu peguei na Lapa, na época as maiores escolas eram a Nenê de Vila Matilde e Peruche. Elas eram as últimas escolas a desfilar. Era um show de bateria, uma loucura total. CARLOS: Em qual escola você saía? 180 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano TONINHO: Na época, em nenhuma, embora eu morasse no Peruche, depois fui para o Camisa, por intermédio de amigos meus que desfilavam lá. Comecei na Ala dos Compositores, concorri a uns quatro ou cinco sambas e depois parei. CARLOS: Você lembra do seu primeiro samba? TONINHO: Eu lembro do enredo. Naquele ano, a Camisa saiu com a Chanchada Brasileira, cinema nacional. Depois veio o Narainã, um dos maiores sambas de enredo do Camisa, e eu concorri. Depois veio... olha não é fácil você gravar, mas eu concorri a uns cinco sambas lá. CARLOS: Agora tem um samba seu que já é bem famoso, um tal de “Sapato Furado”. TONINHO: Sim. É uma sátira. Eu gosto muito deste estilo, é coisa bem de povo. Não tem papo de intelecto, é sapato furado, é vô num vô, aquele jeito que eu tenho. É a forma de se identificar com mais facilidade. “Eu não vou no seu pagode me sinto até contrariado / Vou falar a verdade não teve castigo / É que meu sapato está furado!” Tem também o “Pagode do Urubu” que eu acho uma letra muito interessante. “Urubu também canta / Não demora para cantar / Mas ele tem o seu dia de gorjeio...” Tem vários nesta linha de sátira. CARLOS: Você começa a cantar o “Sapato Furado” e dá vontade de ouvir mais... TONINHO: “Você sabe muito bem da minha real situação/ Há mais de um ano desemprego/ Não é brincadeira não/ Eu fui no terreiro pedir pro véio reza forte para me ajudar/ E no jogo do búzio o nego falou: tão querendo te afundar/ Eu não vou no seu pagode/ Me sinto até contrariado/ Vou falar a verdade não teve castigo/ É que meu sapato está furado!” CARLOS: Conta para a gente a sua trajetória no Camisa Verde. TONINHO: Eu fui a convite de amigos que já frequentavam a escola e fiquei muito empolgado, maior glória. Pertencer à ala dos compositores da Camisa Verde e Branco, aquilo para mim foi uma injeção, costumo dizer que o meu avião decolou da quadra da Barra Funda. Só que depois eu me afastei do samba-enredo, não só da Camisa, mas do sambaenredo. Fiquei só compondo pagode, a minha sátira que eu gosto. Me identifiquei e fiquei à vontade, porque não tem aquele compromisso, eu componho naturalmente. A inspiração vem, a gente vai sentando o Um Batuque Memorável no Samba Paulistano T O N I N H O C A S A V E R D E 181 T O N I N H O C A S A V E R D E bambu e fazendo o trabalho. CARLOS: Qual foi o seu desfile inesquecível na Camisa? TONINHO: Foi Narainã, quando fomos Tetra. Samba de Ideval, Zelão e Jordão. As alegorias foram muito bonitas, muitas penas e falava de pássaros, no Narainã. Foi o desfile que me arrepiou. Aliás dois, Chanchada Brasileira também. CARLOS: Conta da sua participação no SP em Retalhos. TONINHO: Sou vizinho do Júnior, ele me convidou a participar de seu projeto umas três vezes, mas eu não estava com muita vontade porque eu estava cansado de gravar fitinha, mostrar para produtor e mostrar para cantor. Nunca vivi de música, sou serralheiro até hoje, mas um dia minha mãe falou: “o rapaz veio aí pela terceira vez, custa você ir lá? Uma fita a mais, uma fita a menos vai mudar alguma coisa?” Então, eu fui e estamos reunidos aí até hoje. Temos muita coisa para mostrar ainda. Acredito que o segundo CD vai ser muito mais do que este, porque a gente aprende, e porque o Júnior deu muita força, desenterrou um bocado de gente que estava no anonimato, inclusive eu. CARLOS: Você canta a última música para gente fechar? TONINHO: Vou cantar uma música da Bernadete. Chama-se A Força de um Canto. Esta música eu fiz embaixo do caminhão. “Aí eu canto/ Um novo mundo desperta/ Eu visto a tristeza de alegria/ E faço aquela festa/ Meu canto tem a forma divina de uma oração/ E o povo igualmente na procissão/ Vai me acompanhando, vamos cantando/ Meu canto tem uma dose forte de magia/ A força de dez canhões que só explodem em poesia/ É cantando que eu sinto a presença marcante de Deus/ E cantando bem junto aos meus/ A gente sente que a dor se distancia/ Bambaluê, bambaluá, pega a viola camarada que é hora de cantar.” 182 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano BERNADETE D. Maria Bernadete Raimundo nasceu no dia 24 de janeiro de 1951, em São Paulo – SP. É cantora. Entrevista realizada no dia 28 de maio de 2009. CARLOS: Queria começar ouvindo um pouco da sua história no samba. BERNADETE: Minha história no samba difere um pouquinho das outras porque comecei na escola, que ainda funciona. Ela é pequenininha. Sou devota a ela, a Império Lapeano. Da Império Lapeano, fui convidada a migrar para a Peruche. Estava na Império, e era o último ano da Tiradentes, eles gravaram uma fitinha. A intérprete oficial da Unidos do Peruche era a Eliana de Lima, ela estava grávida, com a agenda lotada de shows e não conseguia dar conta dos dois lados. Então, me fizeram o convite para realizar os ensaios nas ausências dela. A princípio eu achei que era um trote, porque ninguém me conhecia, como é que de repente me chamam para fazer parte de uma escola assim, de grande nome, sem que eu conhecesse os participantes e sem ninguém me conhecer? A surpresa foi essa, e eles tinham a tal fita que gravaram na Tiradentes. Eu fui lá para ver se era verdade e era, sim. Para mim foi uma surpresa incrível, foi como se eu tivesse ganhado na loteria, sabe lá o que é sair de uma Império Lapeano e ir para uma Unidos do Peruche? E eu nem sabia que a surpresa seria maior ainda. Fiz os ensaios, algumas apresentações, junto com a Eliana, e no dia do desfile oficial, 10 de fevereiro de 1991, ela foi para o hospital. Era o dia do desfile e eu estava cantando na minha escola, fiquei até de manhã vendo as outras escolas. Fui a primeira mulher a cantar no Anhembi. A primeira escola foi a minha, nós inauguramos o Anhembi, e eu fiquei até de manhã. “Meu compromisso é a noite e não é tanto compromisso assim”, pensei. Depois fui para casa, dormi e a Eliana foi Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 183 B E R N A D E T E para o hospital. Acordei com a minha mãe batendo na porta do meu quarto: “Vai dar no rádio”. Peguei o rádio, sonolenta. Então, ouvi: “A Eliana foi para o hospital, e agora? Quem vai levar o samba da Unidos do Peruche?” Parei, fiquei com a respiração presa de tanto susto, mas ao mesmo tempo falei: “Mãe, calma aí, vamos dar um tempo, não são burros. Eles não vão jogar uma escola dessa na minha mão, eles não me conhecem direito. Estou ensaiando há um mês e meio só, não é assim. Insegurança para eles, por uma pessoa nada a ver com a escola.” Doce ilusão. Cheguei na Unidos do Peruche no horário marcado. Estava todo mundo me esperando. Colocaram-me num quartinho e falaram: “É você que vai para a avenida”. Resumindo a história, fui para a Avenida! Chegando lá olhei aquela imensidão, eu já havia estado lá um dia antes e pensei: “Você vai cantar para a Império Lapeano, esquece a Unidos do Peruche”, e eu esqueci mesmo a Peruche. Entrei como se fosse a Império Lapeano, e graças a Deus me saí muito bem. Ganhei todos os prêmios da noite: revelação, melhor intérprete, tudo o que tinha direito eu ganhei. Aí começou a história da Bernadete no mundo do samba. CARLOS: Você lembra desse enredo da Peruche? Pode cantar um pedaço? BERNADETE: Lembro. O tema era: “Quem Não Arrisca, Não Petisca!” “Ô Batuqueiro, segue meu samba que a Peruche vem mostrar/ Nesta Ciranda quem não arrisca nunca pode petiscar/ O tempo que não dá tempo para pensar/ A sorte nessa hora jorra pelo ar/ Vamos tentar de novo, sempre fazendo jogo/ Desta vez é para ganhar...” CARLOS: E a do Império Lapeano? BERNADETE: A do Império Lapeano você acredita que eu não lembro? Porque ficou assim, marcou muito na minha vida isso, sabia? Porque é uma história que, vamos combinar, ninguém mais vai viver. Que outra cantora vai cantar numa escola e vai dar à luz naquele dia? E que uma outra assumiu o lugar, uma mera desconhecida? Marcou muito isso e eu não consigo esquecer, e acho que muita gente não esquece. Todo mundo tem esse dia como referência. CARLOS: E qual o desfile mais emocionante da Império Lapeano que 184 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano você participou? BERNADETE: Olha, todo desfile é emocionante, mas o que marca mesmo é o primeiro, porque você vem de reuniões, reuniões e reuniões. “Vamos formar uma escola”. “Vamos formar uma escola”. E de repente a Escola está ali e você está fazendo carro alegórico, fazendo fantasia, ensaiando o samba. Então, eu acho que o primeiro desfile da Império para mim foi muito marcante. O primeiro desfile foi na Tiradentes, em 1974, eu desfilei o último ano da São João. Fizeram um cartaz para o nome da escola que se chamava “A Voz do Morro” e depois se transformou na Império Lapeano. Foi só um ano, nós desfilamos com ela na Avenida São João. Neste ano, o Jair Rodrigues cantou pela Rosas de Ouro. No fim, eu ganhei dele, acabei ganhando dele como melhor intérprete. Já ali eu ganhei. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano B E R N A D E T E 185 HOMENAGEM Este trabalho traz uma riqueza de universos particulares a respeito de uma manifestação popular. A experiência que vivi no Samba da Vela quando Paqüera contou histórias de sambistas mais velhos e ainda cantou suas músicas me proporcionou imaginar e recriar um fato ou fatos, por meio do ponto de vista dele e de minhas poucas referências da época. Porém, hoje eu não tenho aquelas histórias ou canções na memória, mas a impressão de um momento marcante e arrebatador - a narração de Paqüera. Agora, penso nas pessoas que cruzei nestes dois anos e que por algum motivo não consegui registrar seus depoimentos - seja por questões de prazos de minha parte, seja por não casarem os horários e disponibilidade. Mas alguns motivos foram mais fortes para impedir a realização de determinadas entrevistas, pois alguns partiram desta vida. Este capítulo triste é uma sugestão de que trabalhos envolvendo a memória do samba se multipliquem, não necessariamente neste formato. Muitas pessoas que visitei guardam fantasias bordadas à mão, LPs, reportagens, instrumentos, fotografias, letras de músicas, e tantas outras coisas, que nenhum centro cultural ou órgão público se preocupou em preservar, até o momento. Seu Miguel da Contemporânea, empresário e dono da loja e marca de instrumentos Contemporânea, concedeu uma pequena e rápida entrevista que serviria de base para um segundo encontro, que infelizmente não pode acontecer. Pretendia também entrevistar Odelise Camargo, da Velha Guarda do Peruche e Embaixatriz do Samba, que havia me encantado com sua voz linda e forte. Ela veio a falecer após sofrer um infarto na Quadra da Camisa Verde e Branco, na madrugada da escolha do Casal Cidadão Samba de 2009. Outra importante figura, muito citada pelos interlocutores foi seu Juarez da Cruz, fundador da Escola de Samba Mocidade Alegre. Na cerimônia de posse da presidente Maria Helena para a Embaixada do Samba Paulista, em 2008, ouvi o discurso de seu Juarez. Infelizmente, esperei demais para entrevistá-lo. Pretendia, também, recolher o depoimento de alguém que tivesse contribuído significativamente com o samba da região M’ Boi Mirim, lugar onde me criei e moro. E no Jardim São Luís conheci a 186 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano figura do Mário Preto e seria ele a pessoa. Mas foi fazer companhia ao Seu Miguel, Odelise e seu Juarez. A biografia a seguir é uma homenagem a Mário Preto e a todos que fizeram seu passamento e dedicaram sua vida ao samba, sobretudo aqueles anônimos que estiveram nos seus bairros, às vezes até longe de suas escolas do coração, mas que não deixaram de fazer o samba. H O M E N A G E M Odelise Camargo cantando ao lado de Maria Helena, na Vigília Dia do Samba, 02 de dezembro de 2008. (Foto de Luís Baron) Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 187 MÁRIO PRETO Mário Luiz Fraga de Oliveira nasceu em São Paulo, no dia 21 de fevereiro de 1958 e faleceu dia 01 de setembro de 2009. Era motorista. Este texto foi feito em colaboração com seu filho, Mario Fraga Junior. Mário Preto, também conhecido como Marum ou Índio, desde criança esteve presente nas rodas de samba com o pai, Geraldo Fraga. Mas, sua história no samba começou em 1972 como integrante da bateria da Escola de Samba Plenário de Santo Amaro. A partir daí foi integrante da bateria da Vai-Vai e falava com orgulho: “sou bela vista, sou vai-vai, sou bi-campeão”. Em 76 integrou a banda de Benito di Paula na percussão, onde permaneceu por mais de 30 anos. Nas décadas de 80 e 90 ajudou na formação da bateria da Escola de Samba Unidos do Jardim São Luís em São Paulo e durante 12 anos ajudou na realização do Carnaval de Ibitinga. Integrou a Torcida Uniformizada do Palmeiras - TUP, assumindo a bateria como segundo diretor. Porém, o presidente falava: “o Pio apita, apita e os erros continuam. O Mestre Marum dava duas apitadas e o samba ficava redondo”. Dentre triunfos e perdas de carnavais nesse tempo, a TUP passou de bloco carnavalesco à Escola de Samba. Em 2002 integrou a bateria da Escola de Samba Rosas de Ouro até 2004. A partir de 1995 Mario Preto iniciou uma tradicional virada de ano reunindo sambistas e suas famílias em que o samba celebrava o Ano Novo. E assim aconteceu durante catorze anos. Em 2009 realizou seu último trabalho como diretor de bateria do Bloco do Beco no Jardim Ibirapuera onde realizou cortejos carnavalescos pelas ruas e vielas do bairro e proporcionou um novo olhar da comunidade para o espaço público e samba. 188 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano FONTES DE PESQUISA bibliografia BENJAMIN, W. “Experiência e pobreza” e “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. Em BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994 BERNARDO, Terezinha. Memória em Branco e Negro - Olhares sobre São Paulo. São Paulo, EDUC; UNESP; FAPESP; 2007. BRITTO, Ieda Marques. Samba na Cidade de São Paulo. São Paulo, USP/ FFLCH, 1986. CAMPOS JR., Celso de. Adoniran – uma biografia. São Paulo: Globo, 2004. CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda. História da cidade de São Paulo Vol2. São Paulo: Editora Terra de Paz, 2004. CERRI, Luís Fernando. AIdeologia da Paulistanidade. São Paulo, Livro Aerto, 1997. DOMINGOS, José. Arte - o maravilhoso mundo da emoção. São Paulo: Mageart, 2000. MANZATTI, Marcelo Simon. Samba Paulista, do centro cafeeiro à periferia do centro: sobre o samba de bumbo ou samba rural paulista. Dissertação de Mestrado, PUC-SP, 2005. MORSE, Richard. De Comunidade à Metrópole. São Paulo, Comissão do IV Centenário da fundação de São Paulo, 1954. MOURA, Roberto M. No princípio era a Roda - Um estudo sobre samba, partido-alto e outros pagodes. RJ, e. Rocco, 2004. MUNIZ JUNIOR, J. Do Batuque a Escola de Samba: Subsídios para a História do Samba. São Paulo: Símbolo, 1976. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 189 F O N T E S D E P E S Q U I S A POLLACK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.2, n.3, p.3-15, 1989. PORTA, Paulo (Org.) Vários autores. HISTÓRIA DE SÃO PAULO – A Cidade no Império – 1823 à 1889 – Volume 2. Editora Terra e Paz, 2005 – SP. PORTA, Paulo (Org.) Vários autores. HISTÓRIA DE SÃO PAULO – A CIDADE NA PRIMEIRA METADE DO SECULO XX 1890-1954 Volume 3. Editora Terra e Paz, 2005 – SP. RODRIGUES DE MORAES, Wilson. Escolas de Samba de São Paulo: Síntese de uma Pesquisa. Brasília, MEC, 1977. SIMSON, Olga R. de Moraes Von. A burguesia se diverte no reinado de Momo: sessenta anos de evolução do Carnaval Paulistano. Dissertação de Mestrado, São Paulo, FELCH, 1984. __________________________ Carnaval em Branco e Negro. Campinas, Editora da Unicamp; São Paulo, EdUSP, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007. TINHORÃO, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira. SP, Ed 34, 1998. ______________________ Os sons que vêm da rua. São Paulo, Editora 34, 2ª edição, 2005. URBANO, Maria Aparecida. Sampa, Samba, Sambista - Osvaldinho da Cuíca. São Paulo: Edição do Autor, 2004. ______________________. Carnaval & Samba em Evolução na cidade de São Paulo. São Paulo, Ed. Plêiade, 2005. Vários autores. História da Vida Privada no Brasil. SP, Cia. Das letras, 1999, vol 3. 190 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano Documentários Pesquisados 1. Samba à Paulista - fragmentos de uma história (2006), direção de Gustavo Mello, - Série de três episódios que a partir de depoimentos e imagens históricas se propõe ao registro da memória. 2. Coleção História dos Bairros de São Paulo - documentários sobre bairros: Vila Maria, Vila Matilde, Itaim Paulista, Capela do Socorro, Capão Redondo, Jabaquara, Barra Funda, Perdizes, Pacaembu, Vila Madalena, Freguesia do Ó, Perus, Brasilândia, Pirituba. 3. Programa Ensaio com Geraldo Filme. 4. Especial Os Baluartes do Samba Paulista exibido pela TV Cultura com participação de Toniquinho Batuqueiro, Silvio Modesto, Geraldo Filme, Zeca da Casa Verde, Zezinho do morro e Talismã. 5. Programa Jogo de Idéias do Itaú Cultural, conversa com Fabiana Cozza e T-Kaçula. 6. Sampa Hop SP, 7. “Seu Nenê”, direção Carlos Cortez. 8. Geraldo Filme, direção de Carlos Cortez. 9. Brodway Bexiga. 10. Filhos do Samba, direção de Germano Fehr e Tomás Carvalho. F O N T E S D E P E S Q U I S A Áudios pesquisados 1. Programa Ensaio com Paulo Vanzolini. 2. Entrevistas realizada por Olga Von Simson arquivado no MIS-SP com Geraldo filme, Madrinha Eunice, Seu Carlão do Peruche, Dionísio barbosa, entre outras personalidades. 3. Plínio Marcos, Geraldo filme, Toniquinho Batuqueiro e Zeca da Casa Verde no LP - Prosa e Samba, Nas Quebradas do Mundaréu. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 191 DESDOBRAMENTOS BATUQUE MEMORÁVEL Em maio de 2009 iniciou o primeiro desdobramento do projeto com o nome reduzido para BATUQUE MEMORÁVEL que teve a apresentação de dois shows, SP em Retalhos e Embaixada do Samba Paulista. Em novembro e dezembro as apresentações musicais voltaram à sala Adoniran Barbosa. Foi realizada uma parceria com o Bloco do Beco e o projeto cresceu para além do Centro Cultural indo para os bairros do Jardim Ibirapuera (Bloco do Beco), Jardim São Luís (Centro Cultural Monte Azul) e Parque Santo Antônio (Sacolão das Artes), na Zona Sul da cidade. Assim o Centro Cultural abriu espaço para o samba paulistano e artistas da nova geração se encontram com sambistas veteranos. Velhas Guardas e rodas de samba compuseram uma intensa programação que também incluiu encontro de baterias e dança de mestre-sala e porta-bandeira. 7/11 - sábado, às 21h - Centro Cultural Monte Azul OSVALDINHO DA CUÍCA 8/11 - domingo, às 18h - Centro Cultural São Paulo TONIQUINHO BATUQUEIRO E TIAS BAIANAS PAULISTAS 14/11 - sábado, às 16h - Bloco do Beco - Tenda na rua TIAS BAIANAS PAULISTAS 15/11 - domingo, às 18h - Centro Cultural São Paulo VELHA GUARDA MUSICAL NENÊ DE VILA MATILDE com as participações de OSVALDINHO BABÃO E IDEVAL 20/11 - sexta - Bloco do Beco 15h - ENCONTRO DE BATERIAS: GRÊMIO MADRUGADA E BATUCADA BLOCO DO BECO 16h - NOSSA CHAMA 18h - BATERIAS: OS BAMBAS 192 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 19h - ELISETE ROSA E O PROJETOCULTURAL SAMBA NOSSO DE CADA DIA VAI-VAI participação especial TOINHO MELODIA 21h - BATERIAS: BATUCADA BLOCO DO BECO 21/11 - sábado - Sacolão das Artes 19h - KOLOMBOLO DIÁ PIRATININGA 20h30 - COMUNIDADE SAMBA DO MONTE D E S D O B R A M E N T O S 22/11 - domingo, às 18h - Centro Cultural São Paulo VELHAS GUARDAS MUSICAIS DA ROSAS DE OURO E DA CAMISA VERDE E BRANCO 29/11 - domingo, às 18h - Centro Cultural São Paulo MESTRE GABI APRESENTANDO MESTRE-SALA E PORTA-BANDEIRA 5/12 - sábado, às 21h - Centro Cultural São Paulo NOSSA CHAMA PARTICIPAÇÃO OSVALDINHO DA CUÍCA 6/12 - domingo, às 18h - Centro Cultural São Paulo VELHA GUARDA MUSICAL VAI-VAI 13/12 - domingo, às 18h - Centro Cultural São Paulo MESTRE DIVINO E A ESCOLA DE SAMBA IMPERIAL PRO CINEMA SAMBAR Desde 2006 o Pro Cinema Sambar, projeto do Grupo de Pesquisa de Samba e Teatro Band’ doido, juntou exibição de filme, apresentação musical e caldo de feijão numa grande festa para a comunidade. Os escadões do Jardim Ibirapuera viraram arquibancada, o tecido branco virou a tela de projeção e o tema do samba acompanham o filme. Após a exibição das obras acontecia a roda de samba e servia-se o caldo de feijão. Nas edições do Batuque Memorável o grupo que acompanhou o evento foi a Batucada no Beco. PARADAS SONORAS Em novembro de 2009, o público que frequentou o Centro Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 193 D E S D O B R A M E N T O S Cultural São Paulo pode ouvir uma seleção especial de sambas paulistas. Estas músicas ficaram disponíveis gratuitamente nas Paradas Sonoras, que são pontos de audição espalhados pelo CCSP em vários formatos para escuta individual, em dupla ou coletiva. O projeto foi criado para tornar mais acessível o acervo da Discoteca Oneyda Alvarenga, que conta hoje com mais de 70 mil discos. WORKSHOPS Durante os meses de novembro e dezembro, aconteceram no Bloco do Beco workshops de capoeira, percussão, bateria mirim, dança afro e maracatu. PORTAL Desenvolvido pela equipe da Web Radio TV do Centro Cultural São Paulo a criação do portal foi coordenada por Márcio Yonamine. A idéia principal do portal é de ser mais que um publicador de notícias e acervos, possibilitando o encontro entre pesquisadores, entusiastas e ouvintes, além de um mecanismo de recolhimento de materiais para o aumento e diversificação do seu acervo. Desta forma, é a possibilidade de uma memória viva em frequente expansão e reflexão em si. O Portal terá a seguinte estrutura: • Publicação de notícias envolvendo o samba paulistano serão organizadas e publicadas; • Agenda de eventos: um agenda com participação do público e que terá formato iCal que possibilita diálogo com outros, o Calendário Google; • Consulta ao acervo: baseado em padrões internacionais (Dublin Core), possuirá acervo digital multimídia e poderá fazer parte de uma rede de acervos de mesmo protocolo; • Redes Sociais: os usuários poderão criar páginas pessoais para administração de favoritos, material enviado, mensagens de 194 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano outros usuários, etc; • Upload de material: um área reservada para um mecanismo de upload de material que poderá ser incorporado ao acervo. Promoção de coleta D E S D O B R A M E N T O S Além do material enviado pelos internautas, o Portal será abastecido pelo material vindo dos documentários em produção, de programas da Web Radio TV CCSP e do próprio material utilizado na pesquisa. http://www.centrocultural.sp.gov.br/batuque/ DOCUMENTÁRIO Este livro vem acompanhado por um DVD com um filme documentário. É o registro de entrevistas e imagens de alguns veteranos do samba paulistano. Participaram do documentário a maioria dos fizeram apresentações musicais durante os meses de novembro e dezembro. Foi, acima de tudo, a busca de depoimentos enfocando o universo da Velha Guarda Paulistana, não para compor a história do samba, mas para proporcionar a idéia de um todo a partir de declarações pessoais. Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 195 A C E R V O F O T O G R Á F I C O 1. Cristina no ateliê da 4. Entrevista com Valdir CaEscola de Samba Impe- choeira. (Foto Radio - CCSP) rial. (Foto Carlos Gomes) 2. Equipe de Gravação e 5. Entrevista com ToniMarco Antonio. (Foto Luís quinho Batuqueiro. (Foto Baron) Radio - CCSP) 3. Entrevista com Mestre 6. Apresentação da Velha Divino. (Foto Radio - CCSP) Guarda da Vai-Vai. (Foto Ra4. Baianas da Imperial na concentração para o desfile de 2009. (Foto Ra- dio - CCSP) 196 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano dio - CCSP) Tias Baianas Paulistas e equipe CCSP. (Foto Equipe Radio - CCSP) Ideval (ao fundo) e Lagrila antes do show da Embaixada do Samba no CCSP. (Foto Carlos Gomes) Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 197 Apresentação Toniquinho Batuqueiro na Adoniran Barbosa. (Foto Equipe Radio - CCSP) Apresentação da Escola de Samba Imperial, Mestre Divino tocando surdo. (Foto Equipe Radio - CCSP) 198 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano Gravação do documentário com a Velha Guarda Musical da Nenê de Vila Matilde. (Foto Luís Baron) Apresentação da Velha Guarda Musical da Nenê na Adoniran Barbosa. (Foto Equipe Radio - CCSP) Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 199 Imperial e AMESPBEESP. (Foto Equipe Radio - CCSP) Mestre Gabi em apresentação na Adoniran Barbosa. (Foto Equipe Radio - CCSP) 200 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano Apresentação da Velha Guarda da Camisa Verde e Branco na Adoniran Barbosa. (Foto Equipe Radio - CCSP) Casal da AMESPBEESP em apresentação no CCSP. (Foto equipe Radio - CCSP) Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 201 Apresentação do Casal Mirim da AMESPBEESP na sala Adoniran Barbosa. (Foto Equipe Radio - CCSP) Mestre-Sala Gabi e a Porta-Bandeira Vivi dançando com a Bateria da Imperial. (Foto Equipe Radio - CCSP) 202 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano Apresentação do Grupo Nossa Chama e participação de Osvaldinho da Cuíca. (Foto Equipe Radio - CCSP) Apresentação da Velha Guarda Musical da Rosas de Ouro. (Foto Equipe Radio - CCSP) Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 203 Vigília do Samba, na UESP, com a Embaixada do Samba, 02 de dezembro de 2008. (Foto Luís Baron) Bateria da Imperial no CCSP. (Foto Equipe Radio - CCSP) 204 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano Apresentação Velha Guarda Musical Camisa Verde e Branco. (Foto Equipe Radio - CCSP) Tias Baianas Paulistas e Equipe Gravação Documentário no CCSP. (Foto Equipe Radio - CCSP) Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 205 A C E R V O F O T O G R Á F I C O 1. Moisés da Rocha 4. Detalhe do Estanapresentando “O Samba darte. (Foto Radio - CCSP) Pede Passagem”. (Foto Carlos Gomes) 5. Paqüera acendendo a 2. Equipe de Gravação vela. Início do Samba da CCSP. (Foto Radio - CCSP) Vela. (Foto Carlos Gomes) 3. Ensaio Ala Perfor- 6. Integrantes da Barroca mance da Vai-Vai no Anhembi. (Foto Luís Baron) Zona Sul no empossamento da Presidência da 4. Porta-Bandeira da Embaixada do Samba em AMESPBEESP no CCSP. 2008. (Foto Carlos Gomes) (Foto Radio - CCSP) 206 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano E S P A Ç O S ESPAÇOS DO SAMBA Seguem nestas folhas, descrições de alguns espaços citados nas entrevistas ou que colaboraram durante a pesquisa de campo. UESP - União Das Escolas De Samba Paulistana É uma associação sem fins lucrativos, fundada em 10 de setembro de 1973 com o objetivo de unir as Escolas de Samba e Blocos Carnavalescos representando-os junto ao poder público. É mebro do Conselho Municipal de Cultura. A UESP, por ocasião do carnaval paulistano, é responsável pela realização de 6 desfiles oficiais de escolas de samba e blocos carnavalescos, além de ser a organizadora do Carnaval de Bairro. Abriga a Embaixada do Samba - um grupo seleto de sambistas com trajetória que lhes confere o status de referência absoluta do samba paulista. Rua Rui Barbosa, 588 - Bela Vista. Tel: (11) 3171-3713. D O S A M B A CDMS - Centro De Documentação e Memória Do Samba Desde 1999 é um centro de referência para pesquisadores, o único voltado para o samba paulista. Conserva rico acervo, realiza atividades culturais, tais como exposições, lançamentos de livros, palestras cursos, seminários, oficinas etc, procurando aglutinar, divulgar e preservar a história para garantir o futuro do samba. Estão armazenados milhares de documentos, desde a década de 20, como fotos, revistas, discos e jornais que registram a história e evolução do samba paulista, mostrando, através dos tempos, a história de escolas de samba, blocos, cordões carnavalescos e todas manifestações da cultura do samba e sua influência na formação cultural do povo paulista. Está localizado na sede da UESP, endereço acima. FESEC - Federação das Escolas de Samba e Entidades Carnavalescas do Estado de São Paulo Entidade federativa fundada em 13 de julho de 1984. Faz visitas periódicas às cidades do interior organizando seminários, encontros e palestras, mantendo sempre seus objetivos em oficializar o carnaval, os desfiles carnavalescos e padronizar as formas e critérios de julgamento, e estimulando a criação de Uniões, Ligas ou Associações de Escolas Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 207 E S P A Ç O S D O S A M B A de Samba e Blocos Carnavalescos. Primeira entidade a promover o Curso De Formação e Aperfeiçoamento de Jurados. A diretoria atual tomou posse em 10 de junho de 2008 tendo como presidente Nelson Crecibeni Filho. Rua Frei Antônio Santana Galvão, 37 - Luz. Tel: (11) 3227-2263. LIGA INDEPENDENTE DAS ESCOLAS DE SAMBA DE SÃO PAULO A LIGA é uma Organização Sociedade Civil de Interesse Público - OSCIP, reconhecida na esfera Federal, Estadual e Municipal que congrega quinze agremiações e dois afoxés. Fundada em 19 de junho de 1986 tem realizado um trabalho permanente na promoção e produção dos desfiles dos grupos Especial e Acesso das Escolas de Samba do Carnaval Paulistano no Sambódromo. Sua missão, além do Carnaval, é de contribuir para o desenvolvimento cultural, social e econômico da cidade, gerando emprego e renda, implantando cursos de formação profissional em parcerias com instituições públicas e privadas; promovendo eventos diversos, concursos carnavalescos oficiais e extra-oficiais, conferências, feiras, debates, congressos, seminários, espetáculos, desfiles e festivais de cultura assim como ações desportivas e de lazer. Av. Santos Dumont, 614/618 - Armênia. Tel: (11) 2853-4555. SUPER LIGA DAS ESCOLAS DE SAMBA DE SÃO PAULO Foi formada em 2008, por 9 entidades dissidentes da LigaSP: Vai-Vai, Camisa Verde e Branco, Unidos do Peruche, Gaviões da Fiel, Imperador do Ipiranga, Pérola Negra, Império de Casa Verde, Mancha Verde e Dragões da Real. Tem como finalidade, reunir idéias das escolas, divulgar eventos e expandir o amor pelo samba por todo o Brasil, organizar contratos do carnaval paulistano e ainda, fortalecer o crescimento do espetáculo com a união das entidades. Sua administração é formada por integrantes de várias escolas de samba. Rua Marjor Caetano da Costa, 91 - Santana. Tel: (11) 2089-0579. AMESPBEESP - Associação de Mestres-Sala, Porta-Bandeiras e Estandartes do Estado De São Paulo Com a preocupação de preservar a tradição da dança do Casal 208 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano de Mestre-Sala e Porta-Bandeira foi fundada no dia 10 de Junho de 1995. Teve o apoio de algumas entidades como UESP, LIGA e FESEC. Neste período, os cursos foram ministrados nas seguintes coirmãs: Camisa Verde e Branco, Unidos do Peruche, Mocidade Alegre, Rosas de Ouro, Vai-Vai, Barroca Zona Sul, Tom Maior e Acadêmicos do Tucuruvi. Os cursos são abertos para quem quiser. Neste ano de 2010 será na Império de Casa Verde. E S P A Ç O S D O S A M B A SAMBA DA VELA Fundada em 17 de julho de 2000 por Paqüera, Magnu Sousá, Chapinha e Maurílio de Oliveira é uma reunião de compositores, cantores, músicos e simpatizantes do samba que apresentam suas obras diretamente ao público. Sua principal característica é reunir dezenas de crianças, jovens, adultos e idosos da periferia da cidade para ouvir samba em silêncio. Refletindo, transformando e renovando suas ações, o Samba da Vela democratiza o acesso a cultura e por meio da música revela novos compositores e promove mudanças individuais e coletivas. Os encontros acontecem às segundas-feiras a partir das 21hs na Casa de Cultura Santo Amaro localizada na Praça Doutor Francisco Ferreira Lopes, 434 - São Paulo - SP - CEP 04751-070. ASSOCIAÇÃO INDEPENDENTE CULTURAL DA VELHA GUARDA DO SAMBA DO ESTADO DE SÃO PAULO Esta associação tem como missão reunir nos quadros associados todas e todos os componentes das alas de Velhas Guardas das agremiações, blocos e cordões carnavalescos paulistas, para preservar a cultura do samba, fomentar projetos culturais e sociais, e defender os direitos dos sambistas da Velha Guarda na festa do carnaval, mantendo viva a memória do samba paulista. Rua Capitão Salomão, 40 - 6º. Andar, sala 602. Tel: (11) 3311-7718. DISCOTECA ONEYDA ALVARENGA – CCSP Idealizada por Mário de Andrade enquanto esteve à frente do Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo, a discoteca Oneyda Alvarenga foi criada em 1935, com o nome de Discoteca Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 209 E S P A Ç O S D O S A M B A Pública Municipal. Em 1982, após passar por várias sedes, a Discoteca foi transferida para o Centro Cultural São Paulo e, a partir de 1987, passou a se chamar Oneyda Alvarenga, em homenagem a sua primeira diretora, que exerceu o cargo até 1968. Trata-se de uma instituição pública que abriga um acervo de 70 mil discos e mais de 60 mil partituras, um rico material para pesquisadores e público em geral. Além do acervo sonoro e impresso (que inclui uma hemeroteca especializada) a discoteca conta também com um acervo histórico. Tel: 3397 4071. O SAMBA PEDE PASSAGEM A história da veiculação do samba nas emissoras de rádio paulista, nos últimos 30 anos, não pode ser contada sem o reconhecimento do pioneirismo do radialista e pesquisador da MPB Moisés da Rocha e de seu programa “O Samba Pede Passagem”, marco da popularização do samba nas emissoras de rádio, levado ao ar pela Rádio da Universidade de São Paulo, transmitido pela primeira vez em 1978. Programa consagrado pelo público e várias vezes premiado pela crítica especializada é dedicado à preservação das raízes culturais afrobrasileiras, evocando personagens e criações musicais e divulgando talentos contemporâneos, reconhecidos ou não pela mídia em geral. Para sintonizar: Rádio USP FM 93,7 MHz, sábados e domingos das 12h00 às 14h00 e Rádio Capital AM 1040Khz aos sábados das 0h00 ás 2h00. E-mail: [email protected] 210 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano Muito obrigado aos interlocutores que com tanta generosidade me presentearam com suas histórias, humores e prazer de ser e estar no samba. Muito obrigado as minhas famílias, Moreira, Gomes e Baron, um apoio carinhoso, amoroso que me fortaleceu e me acalentou nos devidos momentos. A G R A D E C I M E N T O S Aos meus primeiros leitores, revisores, críticos e dedicados companheiros que me presentearam com a paciência e generosidade: Cíntia Gomes, Celina de Castro, Andréia Tenório, Thaís Queiroz, Luís Cláudio de Souza, Márcio de Holanda, Suellen Caroline, Lucimara Souza, Wanderley Moreira, Regina Baron, Aparecida Baron, Thaís Lemes, Valéria Gomes e o mais dedicado companheiro, presente desde a primeira ida a campo, aos ensaios, ao desfile e as cansativas edições, escolhas, revisões, Luís Baron. Ao Chapinha, Paqüera, Osvaldinho da Cuíca, J. Muniz Júnior, Moisés da Rocha, Marcos dos Santos, Sérgio da Contemporânea, Gustavo Melo, Gunnar, Katia Dell´Agnolo Bocchi, dona Paula, SP em Retalhos, Ala das Baianas do Camisa Verde e Branco, UESP, Band’doido, FESEC, Liga, Superliga, AMESPBEESP, Escola de Samba Imperial, Embaixada do Samba Paulistano e todos que muito contribuíram. A equipe do CCSP sempre dispostos a realizar este projeto da melhor maneira, especialmente Juliano Gentile, Márcio Yonamine, Marquito Alonso, Durval Lara, Alaete Evangelista de Andrade, Roque de Souza, Nelson de Souza Lima, Karlla Guerra, Thiago Negro, Mariane Kunze, Patrícia Ceschi, Vera Lúcia Cardim Cerqueira. Ao vereador Jamil Murad, a Associação Bloco do Beco e ao Centro Cultural São Paulo. Obrigado! Um Batuque Memorável no Samba Paulistano 211 212 Um Batuque Memorável no Samba Paulistano