Irmãos Flor, sucesso calcado em tecnologia.
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Irmãos Flor, sucesso calcado em tecnologia.
ITAMAR SANDOVAL / MARISTELA FRANCO: FOTO MONTAGEM Irmãos Flor, Romão (esq.) e Sebastião sucesso calcado em tecnologia. 70 DBO abril de 2011 Mitos vivos da pecuária nacional, proprietários de 100 mil cabeças, eles atribuem o seu êxito à capacidade de se atualizar, sem tirar os pés do chão. S Canabrava MT Cuiabá Fazenda em números Nome: Fazenda Rio Preto Localização: Canabrava, MT. Área total: 141.830 ha Área de pastagem: 70.000 ha Rebanho: 100.000 cabeças Matrizes em reprodução: 30.000 Matrizes inseminadas: 25.000 Novilhas: 30.000 Machos de engorda: 25.000 Número de funcionários: 192 e a pecuária tem seu panteão de mitos, os irmãos Sebastião e Romão Flor nele ocupam um lugar de destaque, ao lado de Tião Maia e Tonico Toqueiro, pecuaristas legendários. Poucos personagens na história da atividade suscitaram tanta curiosidade entre seus pares e deram origem a tantos relatos fantasiosos, como o de um suposto pacto que teriam feito, ainda jovens, de jamais se casarem para não colocar em risco sua parceria. “Doidices dessa gente. Eu me casei e tenho dois filhos”, retruca Romão Flor, soltando uma gargalhada gostosa. A origem de tanto folclore é a singular trajetória de vida dos dois irmãos, que sobreviveram a uma infância pobre, em Presidente Olegário, MG; trabalharam duro desde criança; demonstraram invejável habilidade comercial e se tornaram grandes pecuaristas, donos de um rebanho superior a 100.000 cabeças. Aos 76 e 73 anos, respectivamente, Sebastião e Romão continuam empresários ativos, destituídos do perfil tradicionalista, comum a muitos de sua geração. Souberam, a seu modo, acompanhar a modernização do setor e eleger as tecnologias adequadas a cada um de seus projetos pecuários. A despeito de terem testemunhado muitas crises econômicas nacionais, não desistem de sonhar grande. Hoje, seu principal objetivo é produzir carne de qualidade, com remuneração diferenciada. No ano passado, terminaram, em confinamento, 5.800 novilhos e novilhas superprecoces Nelore-Angus, abatidos com 17-18@, aos 14 meses. Todos produtos de inseminação, convencional e por tempo fixo-IATF. Neste ano, serão terminados 9.800 e, no próximo, 11.200. Para chegar a esse último número, 25.000 matrizes estão sendo submetidas aos protocolos durante a estação de monta, que termina em abril, na Fazenda Rio Preto, em Canabrava, nordeste do Mato Grosso. Essa propriedade, de 141.830 hectares, encravada no Vale Norte do Araguaia, era anteriormente especializada em recria/engorda, mas voltou-se para a cria nos últiabril de 2011 DBO 71 FOTOS MARISTELA FRANCO 25.000 matrizes estão sendo inseminadas, nesta estação de monta, com sêmen de Angus. mos três anos, demonstrando a capacidade dos irmãos Flor de alinhar-se às tendências de mercado, pois, a exemplo de outros pecuaristas que possuem fartura de terras, decidiram enfrentar a atual carestia de bezerros com auto-suficiência e agregação de valor. A terminação dos animais é feita principalmente em confinamento, na Fazenda Califórnia, em Goiás, onde são utilizadas técnicas de última geração na gestão do rebanho, como a identificação individual eletrônica e o controle de consumo de ração por meio de sensores (tags) instalados nas linhas de cocho (veja matéria à página 78). PERSPICÁCIA – Assim como tudo o que diz respeito à adoção de inovações, os Flor não aderiram à IATF por modismo. Já realizavam inseminação artificial convencional na Rio Preto há 10 anos, utilizando várias raças, entre elas a norte-americana Shorthorn, que Romão conheceu em uma viagem aos Estados Unidos, em 1998. Esse trabalho lhe valeu uma visita, em 2000, do governador do Estado de Ohio e de autoridades agropecuárias do Texas. Quando se consolidou no Brasil, a IATF passou a ser testada na fazenda com Angus, tendo por base vacas Nelore. O bom desempenho dos produtos 1/2 sangue no confinamento, tanto em precocidade quanto em qualidade de carcaça, e a perspicácia comercial dos Flor, que identificaram demanda crescente pela carne da raça no mercado, fortaleceram tal escolha. Na estação de monta 2011/2012, cerca de 30.000 matrizes serão fertilizadas exclusivamente com sêmen de Angus. A fácil transição da inseminação convencional para a IATF deveu-se ao bom nível de organização da fazenda, que, por sua grande extensão, está estruturada em 12 retiros, subdivididos em 700 pastos com cerca de 100 ha cada, todos convergindo para corredores, o que facilita a movimentação do gado. Cada retiro possui seu curral, seu refeitório e uma equipe composta por quatro vaqueiros, um capataz e uma cozi72 DBO abril de 2011 Novilhas Nelore de 25-26 meses, da Fazenda Rio Preto, MT, em fase de preparação para inseminação em tempo fixo. nheira. “Graças a essa infraestrutura, conseguimos mudar rapidamente de 3.000 matrizes inseminadas convencionalmente para 25.000 em tempo fixo”, informa Ricardo César dos Passos, diretor da empresa goiana Criafértil, responsável pela execução do serviço. Os irmãos Flor terceirizam a IATF, porque ela demanda mão de obra sazonal e especializada, difícil de formar. Fica mais econômico contratar especialistas e trabalhar ao longo do ano com Saga em causos Conta-se, em rodas de pecuaristas do Centro-Oeste, que os irmãos Sebastião e Romão Flor fizeram um pacto de sangue, quando meninotes, para jamais se casarem, porque as mulheres gostam de muito dinheiro e dão palpite em tudo, o que atrapalharia a sua sociedade. Os Flor acham graça dessa história, cuja origem desconhecem. FALSO uma equipe fixa enxuta, de 1 homem para cada 1.200 cabeças, afirma. A eficiência operacional da Rio Preto tem-lhe propiciado resultados inéditos. São seis retiros de vacas, que abrigam, em média, 5.000 cabeças, e cada retiro está sob responsabilidade de um inseminador da Criafértil. No ano passado, quatro desses técnicos inseminaram 2.712 matrizes em apenas dois dias, média de 678 vacas/homem. Na estação 2010/2011, planejava-se realizar 4.000 inseminações em igual período, mas a seca atrapalhou os planos da equipe, e a meta foi adiada para o ano que vem. Romão Flor, que cuida da Fazenda Rio Preto, enquanto seu irmão administra os negócios de Goiás, faz questão de acompanhar a rotina da IATF. Conversa com os peões, observa detalhes e faz anotações rápidas em pequenas folhas de papel, que mantém permanentemente no bolso da camisa. “Registro algumas coisas, para não esquecer, mas minha cabeça é meu computador”, brinca o megafazendeiro, cuja curiosidade tem-lhe servido de bússola no desafio de acompanhar a evolução do setor. CONTROLE E SINTONIA – O processo de IATF é controlado por fichas, das quais constam os números dos lotes submetidos ao serviço, dos retiros e pastos onde estavam alojados, a raça dos animais, sua categoria (primíparas, secundíparas, multí- Machos de engorda terminados a pasto cedem lugar ao gado de cria. paras), o ano de nascimento de cada fêmea, a data dos partos anteriores, seu escore corporal de 1 a 5, o tipo de protocolo aplicado, o número de vezes em que o implante intravaginal foi utilizado, se houve perda desse dispositivo, a data da inseminação, o touro escolhido, a partida do sêmen (data de coleta) e o nome do inseminador. “Trata-se de um relatório que possibilita a avaliação detalhada de nosso trabalho”, explica Cléverson Machado, coordenador da equipe de inseminadores da Criafértil que atende a Fazenda Rio Preto. Normalmente, os procedimentos da IATF são concentrados na primeira quinzena do mês, ficando a segunda quinzena para serviços de manejo reprodutivo, como diagnóstico de gestação, repasse das vacas com touro, desmame etc. “A sintonia entre nossa equipe de inseminadores e os vaqueiros é perfeita. O trabalho flui tão bem que, em 2010, ninguém trabalhou no domingo ou deixou de ir à cidade no dia do pagamento”, diz Machado. Graças a essa interação, os resultados da IATF na fazenda têm melhorado. No ano passado, o percentual de produtos cruzados desmamados colocados no confinamento, que, para Romão Flor, é o principal critério econômico no emprego da técnica, foi de 45%. Mas esse índice tende a melhorar, pois a estação de monta está sendo ajustada. Também começa a ser fei- to o diagnóstico precoce de prenhez por ultrassom, que possibilita avaliar perdas embrionárias e tomar medidas corretivas. Segundo o diretor da Criafértil, Ricardo César, a IATF aumentou a produção de bezerros da Rio Preto em 8,98%. No ano passado, o índice geral de prenhez chegou a 92,75%, pois, mesmo quando as vacas não enxertam com a aplicação do protocolo, seu organismo é estimulado a ciclar natu- Saga em causos Certa vez, Romão teve problemas com seu carro e foi obrigado a voltar a pé para a sede. No caminho, pediu carona a um caminhoneiro da empresa, que não o reconheceu e pediu que embarcasse na carroceria. “Subi sem pestanejar. Não tenho luxo, não”, diz ele. O caminhoneiro, quando soube tratar-se do patrão, ficou vários dias encabulado. VERDADEIRO ralmente, e o índice de concepção por repasse com touro aumenta. Apesar de ter sido invernista boa parte da vida, Romão Flor gosta de cria. “Cheguei a engordar 80.000 bois na Rio Preto, mas sempre tive um pouco de vaca. Quando o mercado me indicou que era hora de mudar de rumo, não tive medo. Estacionar é sentença de morte, em qualquer negócio”, ensina. Hoje, a fazenda é um grande berçário a céu aberto e conta somente com 20.000 animais de engorda. Em 2012, abrigará 47.000 matrizes em reprodução. BAQUE INESPERADO – Um dos principais motivos que levaram os irmãos Flor a reformular o projeto pecuário da Rio Preto foi a necessidade de reduzir sua dependência dos frigoríficos. “Com um leque mais amplo de produtos – bezerros, novilhas, vacas -, podemos vender para vários tipos de compradores e não colocar todos os ovos em uma única cesta”, explica Romão. Como terminador especializado, ele sofreu um grande baque financeiro em março de 2009. Havia acabado de vender 6.000 bois e 1.200 vacas por R$ 11,2 milhões ao Frigorífico Independência, quando este pediu recuperação judicial. “Dias antes, instituições financeiras me haviam garantido que a situação da empresa era sólida. Levei um choque. Da noite para o dia, me vi sem dinheiro para pagar as contas. Tive abril de 2011 DBO 73 Relações de trabalho nota dez Para fazer funcionar esse pequeno império de 141.830 ha, com 3.000 km de cercas, 350 km de corredores e 56 pontes, Sebastião e Romão Flor contam com o apoio de 192 funcionários fixos, todos com carteira assinada. Eles moram numa pequena vila, composta por 23 casas semelhantes à dos proprietários, distribuídas ao longo de ruas largas e bem cuidadas, com canteiros centrais floridos. A vila dispõe ainda de três alojamentos para solteiros, um refeitório, nove galpões, um escritório, uma oficina, uma escola, um posto de saúde, um hangar com pista de pouso, um armazém e um açougue, que desossa cinco carcaças bovinas e 10 suínas por semana, destinadas ao abastecimento dos retiros e do refeitório central. “Os cortes são preparados dentro dos mais rigorosos padrões de higiene”, afirma Edilson Nunes de Lima, responsável pelo estabelecimento. Todos os trabalhadores usam equipamentos de proteção individual, como botas, óculos e luvas, dependendo da atividade. A empresa possui Programa de Controle Médico e Saúde Operacional e programa para prevenção de riscos ambientais. Todos os meses, um médico e um dentista atendem gratuitamente os funcionários, que também contam com assistência diária de uma enfermeira residente, treinada para atender emergências e realizar partos normais. Todas as casas possuem água encanada, luz, horta e sinal de TV. Na escolinha, que atende 20 crianças de 4 a 10 anos, foi montada também uma sala de informática. “O acesso à internet facilitou nosso trabalho e possibilitou a conexão dos alunos com o mundo”, diz a professora Maria Marta Rodrigues. A professora Maria Marta Rodrigues em frente à escolinha 74 DBO abril de 2011 Da esq. para a dir: Pedro Pires e Paulo Dias, da Gestão Agropecuária; Cléverson Machado e Ricardo César, da Criafértil; Romão Flor e a sobrinha Janaína; o zootecnista Renato Cortez e o gerente geral, João dos Reis. de vender gado, abandonar investimentos e adiar planos”, conta Romão. Agora que a situação está se normalizando, com a possibilidade de recebimento da dívida, antigos projetos deverão ser retomados na fazenda, entre eles a adubação de pastagens. “Já plantei mais de 6.000 hectares de soja aqui, por isso sei quanto é importante repor os nutrientes do solo. Com rotação e fertilizante, podemos elevar o rebanho rapidamente de 100.000 para 300.000 cabeças”, diz. Atento às novidades do setor, Romão é criterioso na escolha das tecnologias. “Gosto de ser puxado, não empurrado. Consulto técnicos, faço contas, experimento. Nossa política é aumentar a produtividade sem carregar nos custos. Com muito açúcar, faz-se doce até de jiló, mas será que vale à pena?”, indaga bem-humorado. Sua intuição lhe diz que a produção vertical é tendência irreversível na pecuária, mas ele questiona o impacto desse sistema, de custos crescentes, sobre o bolso do consumidor. “Até que ponto o preço da carne vai poder subir? Responder essa pergunta é fundamental para dosarmos o nível de intensificação da fazenda. Se andarmos muito à frente do mercado, poderemos ser atropelados”, pondera. A produção de carne de qualidade ainda é, a seu ver, uma equação mal resolvida. “O frigorífico continua pouco disposto a remunerar adequadamente o pecuarista, e o consumidor pouco disposto a pagar mais pelo produto. Falta maturidade ao segmento. Mas as perspectivas são boas. Já estivemos pertinho do inferno; agora estamos virando para o lado do céu”, comemora. Para conter custos, o manejo da fazenda é simples, mas dáse atenção especial ao calendário sanitário e à suplementação mineral. Todo o rebanho recebe sal proteinado, processado na fábrica de rações da fazenda, que tem capacidade para 30 toneladas/hora e armazenagem de 9.000 toneladas de grãos em seis silos. Os irmãos Flor estimam ter gasto R$ 2 milhões com suplementação na seca passada, mas, em compensação, não MANEJO DO GADO – Saga em causos Tempos atrás, Romão ouviu dizer que rapadura estimulava a libido dos jumentos, utilizados em cruzamento com éguas, para obter burros de lida. Não teve dúvidas: comprou uma carga inteira de rapaduras para dar aos animais. Mas, como os peões também gostavam de rapadura, o produto não chegava direito ao cocho. Desistiu da experiência. VERDADEIRO perderam animais, ao contrário de muitos pecuaristas da região. Nas águas, as matrizes recebem apenas sal mineral específico para reprodução. Os piquetes, formados basicamente com braquiarão, são submetidos a pastejo contínuo com carga controlada. Nas áreas de maior movimentação de gado, plantou-se grama estrela, que suporta pisoteio e mantém o solo coberto mesmo em períodos de rodeio intenso de matrizes para IATF. Devido a esse manejo básico, mas cuidadoso, conduzido pelos capatazes dos retiros, há poucos pontos de degradação de pastagens. Com as invasoras, o maior problema é o fedegoso, que se alastra principalmente após períodos de seca intensa e precisa ser controlado regularmente com herbicidas. Para evitar o estresse provocado pela disputa no cocho, a fazenda trabalha com lotes pequenos, de no máximo 200 cabeças. Logo após a desmama, efetuada aos oito meses, os bezerros são mantidos durante dois dias em piquete contíguo ao das Saga em causos Diz-se, também em noites de causos, que os Flor possuiriam um rebanho de meio milhão de cabeças no Mato Grosso e sequer conseguiriam contá-las. Certa vez, teriam organizado um mutirão de vaqueiros para reaver animais perdidos na floresta. Em realidade, a Fazenda Rio Preto possui rebanho de 100.000 cabeças e raramente registra casos de animais “alongados”. FALSO mães, para permitir contato visual, e recebem ajuda de vaca-madrinhas, para se adaptar à nova condição. Concluído esse processo, são separados por sexo, data de nas- cimento e peso, formando-se lotes com base no critério de cabeceira, meio e fundo. Esse sistema de apartação padroniza os lotes e facilita o manejo. Segundo Romão Flor, os machos Nelore chegam à desmama com 220 kg e os cruzados com 250 kg. A taxa de mortalidade pós-nascimento é baixa. Os chamados bezerros guachos – rejeitados pela mãe, estropiados ou doentes – são encaminhados para o Retiro do “Zé do Leite”, funcionário responsável por tratá-los na mamadeira ou no cocho, até que fiquem fortes e possam reunir-se aos companheiros nos retiros de recria. Esse trabalho deu tão certo que os irmãos Flor decidiram montar uma estrutura semelhante também para o gado adulto. Animais debilitados ou vítimas de acidentes são encaminhados para um pequeno confinamento, onde recebem ração diária e acompanhamento adequado. Na seca do ano passado, esse confinamento recebeu cerca de 600 animais. Com medidas triviais como essas, os irmãos Flor garantem bom retorno a seu negócio. abril de 2011 DBO 75 Na Fazenda Califórnia, automação dos processos. A capacidade dos irmãos Flor de adequar tecnologias às exigências de seus projetos é patente na Fazenda Califórnia, localizada nos municípios de Anicuns e Turvânia, a 80 km de Goiânia, GO. A fazenda, de porte menor do que a Rio Preto (5.250 ha), dedica-se exclusivamente à terminação em confinamento, após breve recria a pasto. Também opera com equipe enxuta: 1 funcionário para cada 1.150 animais confinados, contra a média nacional de 1 para 630. Por esse motivo e por realizar operações complexas, a Califórnia emprega tecnologias avançadas, que lhe facilitam a coleta de dados e lhe garantem eficiência operacional. Da recepção dos animais no curral, sua pesagem e identificação individual, até o abastecimento dos cochos, tudo é controlado pelo Sistema de Gestão Integrada-SGI, que compreende três softwares diferentes, desenvolvidos pela empresa goiana Gestão Agropecuária. A fazenda funciona como uma fábrica. Roda 24 horas por dia e confina cerca de 40.000 bovinos por ano. Suas instalações de engorda, construídas em 2004, contam com 20 linhas de cocho, cada uma com 10 currais, em média. Parte dessas linhas tem o piso de bloquete, para evitar acúmulo de lama e permitir o confinamento também nas águas, uma necessidade que se impôs desde que a empresa começou a produzir novilhos superprecoces. “Como agora movimentamos animais o ano inteiro, tivemos de automatizar processos. Além disso, a fazenda está inscrita na Lista Traces; não podemos correr o risco de ver lotes desclassificados pelo frigorífico, devido a erros na coleta ou no registro de dados”, explica Janaína Flor, que auxilia o tio Sebastião na administração da fazenda e é responsável pela área de rastreabilidade e informática da empresa. INTEGRAÇÃO TOTAL – O três softwares que compõem o SGI (Tecnologia e Gestão de Rastreabilidade-TGR, Tecnologia e Gestão de Confinamento-TGC e Teconologia e Gestão de Trato-TGT) são inte- 76 DBO abril de 2011 Graças aos superprecoces cruzados, o confinamento funciona também nas águas. grados, o que facilita o manejo do gado confinado. Logo na portaria, um funcionário registra no computador o nome do motorista que trouxe o gado e a placa do caminhão. Na balança rodoviária, cadastra-se a GTA-Guia de Trânsito Animal, pesa-se o lote e confere-se a quantidade de bovinos e sua condição sanitária. Em seguida, eles são conduzidos para o curral de processamento, onde se faz sua identificação individual, com um brinco munido de código de barras e um botton com chip, ambos de acordo com as normas do Sisbov. O TGR, integrado à balança eletrônica, faz a coleta automática do peso individual e, conectado ao bastão de leitura eletrônica RFID e ao leitor de código de barras, captura o número dos animais. Esse programa específico de rastreabilidade também auxilia na aplicação do protocolo sanitário, controlando o prazo de carência dos medicamentos e organizando os lotes por raça, peso, categoria, fornecedor, etc. Na Fazenda Califórnia, a apartação por peso admite variação máxima de 50 kg entre animais de um mesmo lote. Todos as informações coletadas pelo TGR são transferidas, via rede, ao TGC (programa de gestão geral do confinamento). Na fábrica de rações, os operadores verificam os dados do lote no sistema e providenciam a ração, conforme as indicações do nutricionista da Tortuga, empresa que atende o confinamento. “Essa integração facilita a rotina da fábrica e a logística de trato”, afirma Paulo Dias. Informática reduziu índice de erros e melhorou a logística do confinamento As inclusões e baixas de animais são realizadas por meio de arquivos eletrônicos, enviados por e-mail à certificadora. O extrato de liberação dos lotes é importado pelo sistema, para que se possa bloquear a saída de indivíduos não conformes. Na hora do embarque, todos os bovinos passam pela balança, onde são pesados e têm o brinco lido eletronicamente. Caso algum animal esteja sem o dispositivo de identificação ou não tenha cumprido a quarentena, por exemplo, o sistema aciona um sinal sonoro e luminoso (sirene vermelha), e o animal é desviado para outro curral. Corrigese, então, a listagem de embarque e faz-se nova contagem dos lotes. “Havendo transporte disponível, podemos embarcar até 2.000 bois/dia, sem tumulto”, afirma Janaína. As informações de saída dos animais também são transmitidas ao sistema, para que se possa fazer fechamento dos custos e avaliações zootécnicas. Na Fazenda Califórnia, a adaptação ao cocho dura duas semanas. Nos primeiros quatro dias, os animais recebem apenas volumoso; nos cinco seguintes, uma dieta com 30% de concentrado e, nos outros cinco, eleva-se esse percentual para 40%. Concluída a adaptação, é fornecida a dieta final, que apresenta a relação 10:90 – 10% de volumoso para 90% de concentrado. “Utilizamos, como fontes principais de fibra a silagem de milho, produzida em 350 ha da fazenda, e o bagaço de cana, que ajuda a baixar o custo da ração e poupar silagem, quando necessário. Como ingredientes do concentrado, são usados milho moído, farelo de soja (apenas para os novilhos cruzados), torta de algodão, polpa cítrica, uréia, minerais na forma orgânica e leveduras. Normalmente, a dieta é formulada para se obter ganho médio de 1,740 kg/cab/dia”, informa Renato Antônio Cortez, zootecnista responsável pelo confinamento. O período médio de permanência dos bovinos nas instalações é de 97 dias, no caso dos Nelore, e 121 dias, no caso de superprecoces cruzados. “Além de cumprir a noventena do Sisbov, precisamos de algum tempo para manejar e negociar os animais”, explica Janaína. Toda a rotina de fornecimento da ração no cocho começa a ser automatizada, com a ajuda do TGT, programa de gestão do trato. Em três linhas de cocho (30 currais), foram instalados sensores, que captam o peso de entrada e saída do caminhão em cada curral. Dessa for- BOTTON COM CHIP ANTENA SENSORES (TAGS) AUTOMAÇÃO – 78 DBO abril de 2011 COMPUTADOR DE BORDO Da rastreabilidade ao trato dos animais, tudo é controlado por programas integrados. ma, é possível saber com precisão a quantidade de ração fornecida, em que horário o trabalho foi realizado e quem foi a pessoa responsável. Dentro do caminhão, o motorista controla tudo, utilizando um monitor sensível ao toque, que o informa sobre os tratos anteriores e a quantidade prevista para aquela batelada. Caso constate, por meio de leitura de cocho, que o volume de ração prevista não é adequado, ele pode alterá-lo no computador de bordo, que está conectado à balança do caminhão. As alterações feitas pelo tratador são registradas e justificadas, para que se possa fazer estatística de ocorrências e detectar possíveis gargalos. O registro de dados possibilita a avaliação do consumo de ração e, consequentemente, da eficiência alimentar, além da avaliação do trabalho dos funcionários. A Fazenda Califórnia também possui 3.300 ha de pastagens, que recebem, no verão, cerca de 10.000 bezerros, recriados até atingirem média de 362 kg, no caso de gado Nelore. Os novilhos cruzados, oriundos da Fazenda Rio Preto, são introduzidos no confinamento com peso médio de 220 kg-250 kg. ENTREVISTA – ROMÃO FLOR “ Uma história de extremos P iadista de repertório inesgotável, Romão Flor gosta de prosear, de preferência diante de uma travessa de frutas, outro de seus prazeres. Na estrada que dá acesso à vila da Fazenda Rio Preto, no MT, plantou extensas alas de mangueiras; mantém um grande pomar atrás da sede, com inúmeras espécies frutíferas; e, nas visitas aos retiros da fazenda, leva consigo um saco de laranjas ou maçãs para distribuir aos peões. Mineiro de nascimento e goiano de coração, ele mescla gestos mansos com agilidade mental. “Tenho 73 anos para trabalhar e 18 para namorar”, diz, rindo. Considera-se um homem simples, mas não humilde. “Humildade demais é ruim, apanha-se muito”, justifica. Romão veste roupas de corte tradicional, usa botinas durante o trabalho e mantém o costume dos homens de sua geração de levar papel e caneta no bolso da camisa; canivete, pente e lenço, nos da calça. Seu jeito comunicativo contrasta com o caráter reservado do irmão Sebastião, que fala pouco. Em entrevista à repórter Maristela Franco, Romão Flor emociona-se ao re- 80 DBO abril de 2011 Eu tinha de andar seis quilômetros para chegar à escola, descalço, sem merenda”. latar episódios de sua infância pobre, em Minas, e reivindica maior reconhecimento para a atividade de pecuarista. DBO – Como foi sua infância? Vou te contar como escapei. Nasci em 1938. Sou o quinto de oito filhos. Éramos muito pobres. Meu pai trabalhava como lavrador num pequeno sítio, mas a comida era pouca, e a gente ainda tinha de ajudar na roça, moer cana, ralar mandioca. Nem arroz tinha. Nosso prato principal era feijão com abóbora. Eu era franzino, demorei a crescer. Fui estudar tarde e só cursei três anos. Era muito difícil. Eu tinha de andar seis quilômetros para chegar à escola, descalço, cabeça raspada para não pegar piolho, sem merenda. Parei de estudar aos 14 anos, quando meu pai morreu de repente e tive de ajudar o Sebastião a sustentar minha mãe e meus três irmãos menores. Os mais velhos já haviam se casado, ficou tudo com a gente. Criamos uma aliança muito forte, de parceria e confiança. Comecei a tocar roça à meia com os vizinhos, comprei bezerros para treinar como bois de carro. Carreei du- rante muito tempo. Depois que minha mãe morreu, mudamos para Patos de Minas. Passamos a negociar de tudo. Comprávamos e vendíamos queijo, automóvel, sítio. Até que juntamos dinheiro para engordar gado em pasto alugado. Quando vocês se mudaram para Goiás? No começo dos anos 70. Eu e o Sebastião fomos a Goiás comprar um carro Volkswagen e acabamos gostando da região. Decidimos, então, alugar uma fazenda e engordar bois. Mais tarde, vendemos tudo o que tínhamos e compramos uma propriedade em Anicuns, a Califórnia, que temos até hoje. Compramos essa terra para tocar roça e fomos muito felizes. Na safra 74/75, colhemos 25.000 sacos de feijão roxo e 150.000 sacos de milho. Com o dinheiro da lavoura, compramos muito gado. Foi nessa época que se associaram ao Tonico Toqueiro? Sim. Não tínhamos pasto, e ele era dono de muita terra, lá em Ceres, GO. Nos ENTREVISTA – ROMÃO FLOR associamos em 7.200 bois. Ele entrou com o pasto e nós com o trato (sal mineral). O Tonico era um sujeito muito ativo, negociava muito bem. O que o atrapalhou foi o carteado. Com o dinheiro dessa sociedade, compramos a primeira fazenda no Mato Grosso, em São José do Xingu, que meu irmão Antônio, o caçula da família, começou a tocar. Meu pai queria que pelo menos um de nós se formasse, e nós decidimos realizar o sonho dele. O Antônio formou-se engenheiro, pela Universidade de Frankfurt, na Alemanha. Ficou lá 12 anos, mas decidiu voltar e trabalhar com a gente. Depois, comprou sua própria fazenda. No começo dos anos 90, decidimos participar do leilão da Agip Petroli, multinacional italiana pertencente ao grupo ENI-Ente Nazionale Idrocarburi, ex-dona da Liquigás, que queria vender 256.000 ha na região de Canabrava do Norte, MT, e fomos vitoriosos. Como conseguiram arrematar as terras? Nós e o Antônio Garavelo, dono do extinto Consórcio Garavelo, entramos fortes na concorrência. Dávamos um lance e ele outro, aí o preço foi subindo. Para não favorecer o vendedor, decidimos parar os lances isolados e comprar a área juntos. Dos 256.000 ha, ficamos inicialmente com 70.000 e eles com 186.000. Pagamos nossa parte com o dinheiro da venda da fazenda no Xingu e de 24.000 bois. Na época, boi valia dinheiro, era reserva de valor contra a inflação, que chegava a 30% ao mês. Com o tempo, fomos comprando glebas do Garavelo, até formar uma propriedade de 171.000, dos quais o Incra desapropriou 30.000 ha, em 1998, ao preço de R$ 100/ha, e não pagou até hoje. Como foi a abertura da fazenda? Difícil, pois a região não tinha infraestrutura. A estrada que passava pela fazenda virava um grande atoleiro na época das chuvas. Costumo dizer que o progresso não anda em estrada de chão, nem 82 DBO abril de 2011 pernoita no escuro. O ex-governador Blairo Maggi adotou essa frase como slogan, mas até hoje estou esperando pelo término do asfalto da BR 158, que batizei de rodovia da promessa. Quando tomei posse da Fazenda Rio Preto, era tudo mato. Montei um ranchinho, desses de plástico, que eu chamava de cinco estrelas, porque tinha cinco buracos no teto, e vivi nele por muito tempo. Nunca refuguei trabalho. Se for para morrer, morro em pé, não deitado. Contratei gente de Goiás para abrir picada e formar os pastos. Hoje, nada disso seria possível, porque o produtor sofre muita perseguição. “ beiros de Cuiabá, que chamei para ajudar, disseram que estávamos mais preparados para fazer o serviço do que eles. Mas os órgãos ambientais não reconhecem nosso trabalho. No ano passado, a Secretaria de Controle Externo do Mato Grosso, braço regional do TCU-Tribunal de Contas da União, abriu um processo contra o Incra por omissão nas ações relacionadas à nossa fazenda, pois, na visão deles, trata-se de propriedade improdutiva, que não atende sua função social. O Incra fez novo laudo de inspeção e emitiu um parecer a nosso favor, dizendo que não paira dúvidas sobre a legitimidade e autenticidade do domínio e que ele cumpre indiscutivelmente sua função social, pois o grau de utilização da terra e eficiência da exploração estão bem acima dos padrões mínimos estabelecidos para a região. Tenho um rebanho de 100.000 cabeças, pastagens totalmente formadas, infraestrutura completa, quase 200 funcionários. Como o TCU pode dizer que essa fazenda é improdutiva? O progresso não anda em estrada de chão, nem pernoita no escuro” Que tipo de perseguição? Uma vez me multaram por falta de placa de sinalização nas ruelas da vila. Se cai um raio no pasto, eles falam que nós colocamos fogo. Se o satélite detecta uma fumacinha, dizem que é na nossa mata, quando o incêndio foi no vizinho. O pecuarista sofre muito preconceito. Ao contrário do industrial, que é visto de forma positiva, devido a pesadas campanhas de marketing, nós, produtores, somos vistos como bandidos. No ano passado, passamos 42 dias apagando fogo em fazendas vizinhas, para impedir que as chamas chegassem às nossas terras. Montamos uma brigada de incêndio equipada com máquinas pesadas e pessoal treinado. Até os homens do Corpo de Bom- Como o senhor vê o contencioso ambiental? Estou tentando me adequar, mas os processos são incrivelmente lentos. Demorei quase sete anos para conseguir o georreferenciamento da fazenda. Agora estou me preparando para fazer o CARCadastro Ambiental Rural, para depois tirar a LAO-Licença Ambiental de Operação, tudo isso enquanto o Congresso debate o Código Florestal. Nossas terras estão em uma área de transição, basta verificar a vegetação nativa, que é tipicamente de cerrado. O pecuarista vive em meio a um fogo cruzado, pode levar uma bala perdida a qualquer momento ou se salvar. Não sabemos. Enquanto isso, estou tomando algumas providências, como a recomposição de alguns pontos da mata ciliar. Neste ano, pretendo plantar 50.000 mudas de espécies nativas como o landim, o pequi, o angazinho e o genipapo em beiras de córregos e nascentes. Estou fazendo a minha parte.