Irmãos Flor, sucesso calcado em tecnologia.

Transcrição

Irmãos Flor, sucesso calcado em tecnologia.
ITAMAR SANDOVAL / MARISTELA FRANCO: FOTO MONTAGEM
Irmãos Flor,
Romão (esq.)
e Sebastião
sucesso calcado em
tecnologia.
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DBO abril de 2011
Mitos vivos da pecuária nacional, proprietários
de 100 mil cabeças, eles atribuem o seu êxito à capacidade
de se atualizar, sem tirar os pés do chão.
S
Canabrava
MT
Cuiabá
Fazenda em números
Nome: Fazenda Rio Preto
Localização: Canabrava, MT.
Área total: 141.830 ha
Área de pastagem: 70.000 ha
Rebanho: 100.000 cabeças
Matrizes em reprodução: 30.000
Matrizes inseminadas: 25.000
Novilhas: 30.000
Machos de engorda: 25.000
Número de funcionários: 192
e a pecuária tem seu panteão de
mitos, os irmãos Sebastião e Romão Flor nele ocupam um lugar
de destaque, ao lado de Tião
Maia e Tonico Toqueiro, pecuaristas legendários. Poucos personagens na história
da atividade suscitaram tanta curiosidade
entre seus pares e deram origem a tantos
relatos fantasiosos, como o de um suposto pacto que teriam feito, ainda jovens, de
jamais se casarem para não colocar em risco sua parceria. “Doidices dessa gente. Eu
me casei e tenho dois filhos”, retruca Romão Flor, soltando uma gargalhada gostosa.
A origem de tanto folclore é a singular
trajetória de vida dos dois irmãos, que sobreviveram a uma infância pobre, em Presidente Olegário, MG; trabalharam duro
desde criança; demonstraram invejável
habilidade comercial e se tornaram grandes pecuaristas, donos de um rebanho superior a 100.000 cabeças. Aos 76 e 73 anos,
respectivamente, Sebastião e Romão continuam empresários ativos, destituídos do
perfil tradicionalista, comum a muitos de
sua geração. Souberam, a seu modo, acompanhar a modernização do setor e eleger as
tecnologias adequadas a cada um de seus
projetos pecuários.
A despeito de terem testemunhado
muitas crises econômicas nacionais, não
desistem de sonhar grande. Hoje, seu
principal objetivo é produzir carne de qualidade, com remuneração diferenciada. No
ano passado, terminaram, em confinamento, 5.800 novilhos e novilhas superprecoces Nelore-Angus, abatidos com
17-18@, aos 14 meses. Todos produtos de
inseminação, convencional e por tempo
fixo-IATF. Neste ano, serão terminados
9.800 e, no próximo, 11.200. Para chegar
a esse último número, 25.000 matrizes estão sendo submetidas aos protocolos durante a estação de monta, que termina em
abril, na Fazenda Rio Preto, em Canabrava, nordeste do Mato Grosso.
Essa propriedade, de 141.830 hectares,
encravada no Vale Norte do Araguaia, era
anteriormente especializada em recria/engorda, mas voltou-se para a cria nos últiabril de 2011 DBO
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FOTOS MARISTELA FRANCO
25.000 matrizes estão sendo
inseminadas, nesta estação de
monta, com sêmen de Angus.
mos três anos, demonstrando a capacidade dos irmãos Flor de alinhar-se às tendências de mercado, pois, a exemplo de outros pecuaristas que possuem fartura de terras, decidiram enfrentar a atual carestia de
bezerros com auto-suficiência e agregação
de valor. A terminação dos animais é feita principalmente em confinamento, na Fazenda Califórnia, em Goiás, onde são utilizadas técnicas de última geração na gestão do rebanho, como a identificação individual eletrônica e o controle de consumo de ração por meio de sensores (tags)
instalados nas linhas de cocho (veja matéria
à página 78).
PERSPICÁCIA – Assim como tudo o que diz
respeito à adoção de inovações, os Flor não
aderiram à IATF por modismo. Já realizavam inseminação artificial convencional na Rio Preto há 10 anos, utilizando várias raças, entre elas a norte-americana
Shorthorn, que Romão conheceu em uma
viagem aos Estados Unidos, em 1998. Esse
trabalho lhe valeu uma visita, em 2000, do
governador do Estado de Ohio e de autoridades agropecuárias do Texas. Quando
se consolidou no Brasil, a IATF passou a
ser testada na fazenda com Angus, tendo
por base vacas Nelore. O bom desempenho dos produtos 1/2 sangue no confinamento, tanto em precocidade quanto em
qualidade de carcaça, e a perspicácia comercial dos Flor, que identificaram demanda crescente pela carne da raça no mercado, fortaleceram tal escolha. Na estação
de monta 2011/2012, cerca de 30.000
matrizes serão fertilizadas exclusivamente com sêmen de Angus.
A fácil transição da inseminação convencional para a IATF deveu-se ao bom nível de organização da fazenda, que, por sua
grande extensão, está estruturada em 12 retiros, subdivididos em 700 pastos com cerca de 100 ha cada, todos convergindo para
corredores, o que facilita a movimentação
do gado. Cada retiro possui seu curral, seu
refeitório e uma equipe composta por
quatro vaqueiros, um capataz e uma cozi72
DBO abril de 2011
Novilhas Nelore
de 25-26 meses,
da Fazenda Rio Preto, MT,
em fase de preparação para
inseminação
em tempo fixo.
nheira. “Graças a essa infraestrutura, conseguimos mudar rapidamente de 3.000 matrizes inseminadas convencionalmente
para 25.000 em tempo fixo”, informa Ricardo César dos Passos, diretor da empresa goiana Criafértil, responsável pela execução do serviço. Os irmãos Flor terceirizam a IATF, porque ela demanda mão de
obra sazonal e especializada, difícil de formar. Fica mais econômico contratar especialistas e trabalhar ao longo do ano com
Saga em causos
Conta-se, em rodas de
pecuaristas do Centro-Oeste,
que os irmãos Sebastião e
Romão Flor fizeram um pacto
de sangue, quando
meninotes, para jamais se
casarem, porque as mulheres
gostam de muito dinheiro e
dão palpite em tudo, o que
atrapalharia a sua sociedade.
Os Flor acham graça dessa
história, cuja origem
desconhecem.
FALSO
uma equipe fixa enxuta, de 1 homem para
cada 1.200 cabeças, afirma.
A eficiência operacional da Rio Preto tem-lhe propiciado resultados inéditos.
São seis retiros de vacas, que abrigam, em
média, 5.000 cabeças, e cada retiro está
sob responsabilidade de um inseminador
da Criafértil. No ano passado, quatro
desses técnicos inseminaram 2.712 matrizes em apenas dois dias, média de 678
vacas/homem. Na estação 2010/2011,
planejava-se realizar 4.000 inseminações
em igual período, mas a seca atrapalhou
os planos da equipe, e a meta foi adiada
para o ano que vem.
Romão Flor, que cuida da Fazenda Rio
Preto, enquanto seu irmão administra os negócios de Goiás, faz questão de acompanhar a rotina da IATF. Conversa com os
peões, observa detalhes e faz anotações rápidas em pequenas folhas de papel, que
mantém permanentemente no bolso da
camisa. “Registro algumas coisas, para não
esquecer, mas minha cabeça é meu computador”, brinca o megafazendeiro, cuja curiosidade tem-lhe servido de bússola no desafio de acompanhar a evolução do setor.
CONTROLE E SINTONIA – O processo de
IATF é controlado por fichas, das quais
constam os números dos lotes submetidos
ao serviço, dos retiros e pastos onde estavam alojados, a raça dos animais, sua categoria (primíparas, secundíparas, multí-
Machos de engorda terminados a pasto cedem lugar ao gado de cria.
paras), o ano de nascimento de cada fêmea,
a data dos partos anteriores, seu escore corporal de 1 a 5, o tipo de protocolo aplicado, o número de vezes em que o implante
intravaginal foi utilizado, se houve perda
desse dispositivo, a data da inseminação,
o touro escolhido, a partida do sêmen (data
de coleta) e o nome do inseminador. “Trata-se de um relatório que possibilita a avaliação detalhada de nosso trabalho”, explica
Cléverson Machado, coordenador da equipe de inseminadores da Criafértil que
atende a Fazenda Rio Preto.
Normalmente, os procedimentos da
IATF são concentrados na primeira quinzena do mês, ficando a segunda quinzena
para serviços de manejo reprodutivo, como
diagnóstico de gestação, repasse das vacas
com touro, desmame etc. “A sintonia entre nossa equipe de inseminadores e os vaqueiros é perfeita. O trabalho flui tão bem
que, em 2010, ninguém trabalhou no domingo ou deixou de ir à cidade no dia do
pagamento”, diz Machado.
Graças a essa interação, os resultados
da IATF na fazenda têm melhorado. No ano
passado, o percentual de produtos cruzados desmamados colocados no confinamento, que, para Romão Flor, é o principal critério econômico no emprego da
técnica, foi de 45%. Mas esse índice tende a melhorar, pois a estação de monta está
sendo ajustada. Também começa a ser fei-
to o diagnóstico precoce de prenhez por ultrassom, que possibilita avaliar perdas
embrionárias e tomar medidas corretivas.
Segundo o diretor da Criafértil, Ricardo César, a IATF aumentou a produção de
bezerros da Rio Preto em 8,98%. No ano
passado, o índice geral de prenhez chegou
a 92,75%, pois, mesmo quando as vacas
não enxertam com a aplicação do protocolo,
seu organismo é estimulado a ciclar natu-
Saga em causos
Certa vez, Romão teve
problemas com seu carro
e foi obrigado a voltar a pé
para a sede. No caminho,
pediu carona a um
caminhoneiro da empresa,
que não o reconheceu e
pediu que embarcasse na
carroceria. “Subi sem
pestanejar. Não tenho luxo,
não”, diz ele. O caminhoneiro,
quando soube tratar-se do
patrão, ficou vários dias
encabulado.
VERDADEIRO
ralmente, e o índice de concepção por repasse com touro aumenta. Apesar de ter
sido invernista boa parte da vida, Romão
Flor gosta de cria. “Cheguei a engordar
80.000 bois na Rio Preto, mas sempre tive
um pouco de vaca. Quando o mercado me
indicou que era hora de mudar de rumo, não
tive medo. Estacionar é sentença de morte, em qualquer negócio”, ensina. Hoje, a
fazenda é um grande berçário a céu aberto e conta somente com 20.000 animais de
engorda. Em 2012, abrigará 47.000 matrizes em reprodução.
BAQUE INESPERADO – Um dos principais
motivos que levaram os irmãos Flor a reformular o projeto pecuário da Rio Preto
foi a necessidade de reduzir sua dependência dos frigoríficos. “Com um leque
mais amplo de produtos – bezerros, novilhas, vacas -, podemos vender para vários
tipos de compradores e não colocar todos
os ovos em uma única cesta”, explica Romão. Como terminador especializado, ele
sofreu um grande baque financeiro em março de 2009. Havia acabado de vender 6.000
bois e 1.200 vacas por R$ 11,2 milhões ao
Frigorífico Independência, quando este
pediu recuperação judicial. “Dias antes, instituições financeiras me haviam garantido
que a situação da empresa era sólida.
Levei um choque. Da noite para o dia, me
vi sem dinheiro para pagar as contas. Tive
abril de 2011 DBO
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Relações de
trabalho nota dez
Para fazer funcionar esse pequeno
império de 141.830 ha, com 3.000 km de
cercas, 350 km de corredores e 56 pontes,
Sebastião e Romão Flor contam com o
apoio de 192 funcionários fixos, todos
com carteira assinada. Eles moram numa
pequena vila, composta por 23 casas semelhantes à dos proprietários, distribuídas
ao longo de ruas largas e bem cuidadas,
com canteiros centrais floridos. A vila dispõe ainda de três alojamentos para solteiros, um refeitório, nove galpões, um escritório, uma oficina, uma escola, um posto de
saúde, um hangar com pista de pouso, um
armazém e um açougue, que desossa
cinco carcaças bovinas e 10 suínas por semana, destinadas ao abastecimento dos retiros e do refeitório central. “Os cortes são
preparados dentro dos mais rigorosos padrões de higiene”, afirma Edilson Nunes de
Lima, responsável pelo estabelecimento.
Todos os trabalhadores usam equipamentos de proteção individual, como botas,
óculos e luvas, dependendo da atividade.
A empresa possui Programa de Controle
Médico e Saúde Operacional e programa
para prevenção de riscos ambientais. Todos
os meses, um médico e um dentista atendem gratuitamente os funcionários, que
também contam com assistência diária
de uma enfermeira residente, treinada para
atender emergências e realizar partos normais. Todas as casas possuem água encanada, luz, horta e sinal de TV. Na escolinha, que atende 20 crianças de 4 a 10 anos,
foi montada também uma sala de informática. “O acesso à internet facilitou nosso trabalho e possibilitou a conexão dos alunos
com o mundo”, diz a professora Maria Marta Rodrigues.
A professora Maria Marta Rodrigues
em frente à escolinha
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Da esq. para a dir: Pedro Pires e Paulo Dias, da Gestão Agropecuária; Cléverson Machado e
Ricardo César, da Criafértil; Romão Flor e a sobrinha Janaína; o zootecnista Renato Cortez e
o gerente geral, João dos Reis.
de vender gado, abandonar investimentos
e adiar planos”, conta Romão.
Agora que a situação está se normalizando, com a possibilidade de recebimento da dívida, antigos projetos deverão ser
retomados na fazenda, entre eles a adubação de pastagens. “Já plantei mais de
6.000 hectares de soja aqui, por isso sei
quanto é importante repor os nutrientes do
solo. Com rotação e fertilizante, podemos
elevar o rebanho rapidamente de 100.000
para 300.000 cabeças”, diz. Atento às novidades do setor, Romão é criterioso na escolha das tecnologias. “Gosto de ser puxado, não empurrado. Consulto técnicos,
faço contas, experimento. Nossa política é
aumentar a produtividade sem carregar nos
custos. Com muito açúcar, faz-se doce até
de jiló, mas será que vale à pena?”, indaga bem-humorado.
Sua intuição lhe diz que a produção vertical é tendência irreversível na pecuária,
mas ele questiona o impacto desse sistema,
de custos crescentes, sobre o bolso do consumidor. “Até que ponto o preço da carne
vai poder subir? Responder essa pergunta
é fundamental para dosarmos o nível de intensificação da fazenda. Se andarmos muito à frente do mercado, poderemos ser atropelados”, pondera. A produção de carne de
qualidade ainda é, a seu ver, uma equação
mal resolvida. “O frigorífico continua
pouco disposto a remunerar adequadamente o pecuarista, e o consumidor pouco disposto a pagar mais pelo produto. Falta maturidade ao segmento. Mas as perspectivas são boas. Já estivemos pertinho do
inferno; agora estamos virando para o
lado do céu”, comemora.
Para conter custos,
o manejo da fazenda é simples, mas dáse atenção especial ao calendário sanitário e à suplementação mineral. Todo o rebanho recebe sal proteinado, processado
na fábrica de rações da fazenda, que tem
capacidade para 30 toneladas/hora e armazenagem de 9.000 toneladas de grãos
em seis silos. Os irmãos Flor estimam ter
gasto R$ 2 milhões com suplementação na
seca passada, mas, em compensação, não
MANEJO DO GADO –
Saga em causos
Tempos atrás, Romão ouviu
dizer que rapadura
estimulava a libido dos
jumentos, utilizados em
cruzamento com éguas,
para obter burros de lida.
Não teve dúvidas: comprou
uma carga inteira de
rapaduras para dar aos
animais. Mas, como os
peões também gostavam de
rapadura, o produto não
chegava direito ao cocho.
Desistiu da experiência.
VERDADEIRO
perderam animais, ao contrário de muitos
pecuaristas da região. Nas águas, as matrizes recebem apenas sal mineral específico para reprodução.
Os piquetes, formados basicamente
com braquiarão, são submetidos a pastejo contínuo com carga controlada. Nas
áreas de maior movimentação de gado,
plantou-se grama estrela, que suporta pisoteio e mantém o solo coberto mesmo em
períodos de rodeio intenso de matrizes para
IATF. Devido a esse manejo básico, mas
cuidadoso, conduzido pelos capatazes
dos retiros, há poucos pontos de degradação de pastagens. Com as invasoras, o
maior problema é o fedegoso, que se
alastra principalmente após períodos de
seca intensa e precisa ser controlado regularmente com herbicidas.
Para evitar o estresse provocado pela
disputa no cocho, a fazenda trabalha com
lotes pequenos, de no máximo 200 cabeças. Logo após a desmama, efetuada aos
oito meses, os bezerros são mantidos durante dois dias em piquete contíguo ao das
Saga em causos
Diz-se, também em noites de
causos, que os Flor
possuiriam um rebanho de
meio milhão de cabeças no
Mato Grosso e sequer
conseguiriam contá-las.
Certa vez, teriam organizado
um mutirão de vaqueiros
para reaver animais perdidos
na floresta. Em realidade, a
Fazenda Rio Preto possui
rebanho de 100.000 cabeças
e raramente registra casos
de animais “alongados”.
FALSO
mães, para permitir contato visual, e recebem ajuda de vaca-madrinhas, para se adaptar à nova condição. Concluído esse processo, são separados por sexo, data de nas-
cimento e peso, formando-se lotes com base
no critério de cabeceira, meio e fundo. Esse
sistema de apartação padroniza os lotes e
facilita o manejo. Segundo Romão Flor, os
machos Nelore chegam à desmama com
220 kg e os cruzados com 250 kg.
A taxa de mortalidade pós-nascimento é baixa. Os chamados bezerros guachos
– rejeitados pela mãe, estropiados ou
doentes – são encaminhados para o Retiro do “Zé do Leite”, funcionário responsável por tratá-los na mamadeira ou no cocho, até que fiquem fortes e possam reunir-se aos companheiros nos retiros de recria. Esse trabalho deu tão certo que os irmãos Flor decidiram montar uma estrutura semelhante também para o gado adulto.
Animais debilitados ou vítimas de acidentes
são encaminhados para um pequeno confinamento, onde recebem ração diária e
acompanhamento adequado. Na seca do
ano passado, esse confinamento recebeu
cerca de 600 animais. Com medidas triviais
como essas, os irmãos Flor garantem bom
retorno a seu negócio.
abril de 2011 DBO
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Na Fazenda Califórnia,
automação dos processos.
A
capacidade dos irmãos Flor de adequar
tecnologias às exigências de seus
projetos é patente na Fazenda Califórnia,
localizada nos municípios de Anicuns e
Turvânia, a 80 km de Goiânia, GO. A fazenda, de porte menor do que a Rio Preto
(5.250 ha), dedica-se exclusivamente à terminação em confinamento, após breve
recria a pasto. Também opera com equipe
enxuta: 1 funcionário para cada 1.150
animais confinados, contra a média nacional de 1 para 630. Por esse motivo e por
realizar operações complexas, a Califórnia
emprega tecnologias avançadas, que lhe facilitam a coleta de dados e lhe garantem eficiência operacional. Da recepção dos animais no curral, sua pesagem e identificação individual, até o abastecimento dos cochos, tudo é controlado pelo Sistema de
Gestão Integrada-SGI, que compreende três
softwares diferentes, desenvolvidos pela
empresa goiana Gestão Agropecuária.
A fazenda funciona como uma fábrica.
Roda 24 horas por dia e confina cerca de
40.000 bovinos por ano. Suas instalações
de engorda, construídas em 2004, contam
com 20 linhas de cocho, cada uma com 10
currais, em média. Parte dessas linhas
tem o piso de bloquete, para evitar acúmulo
de lama e permitir o confinamento também
nas águas, uma necessidade que se impôs
desde que a empresa começou a produzir
novilhos superprecoces. “Como agora movimentamos animais o ano inteiro, tivemos
de automatizar processos. Além disso, a fazenda está inscrita na Lista Traces; não podemos correr o risco de ver lotes desclassificados pelo frigorífico, devido a erros na
coleta ou no registro de dados”, explica Janaína Flor, que auxilia o tio Sebastião na
administração da fazenda e é responsável
pela área de rastreabilidade e informática
da empresa.
INTEGRAÇÃO TOTAL – O três softwares
que compõem o SGI (Tecnologia e Gestão de Rastreabilidade-TGR, Tecnologia e
Gestão de Confinamento-TGC e Teconologia e Gestão de Trato-TGT) são inte-
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Graças aos superprecoces cruzados, o confinamento funciona também nas águas.
grados, o que facilita o manejo do gado
confinado. Logo na portaria, um funcionário registra no computador o nome do
motorista que trouxe o gado e a placa do
caminhão. Na balança rodoviária, cadastra-se a GTA-Guia de Trânsito Animal,
pesa-se o lote e confere-se a quantidade de
bovinos e sua condição sanitária. Em seguida, eles são conduzidos para o curral de
processamento, onde se faz sua identificação individual, com um brinco munido
de código de barras e um botton com chip,
ambos de acordo com as
normas do Sisbov.
O TGR, integrado à
balança eletrônica, faz a
coleta automática do peso
individual e, conectado
ao bastão de leitura eletrônica RFID e ao leitor de código de barras, captura o número dos animais. Esse
programa específico de rastreabilidade
também auxilia na aplicação do protocolo sanitário, controlando o prazo de carência
dos medicamentos e organizando os lotes
por raça, peso, categoria, fornecedor, etc.
Na Fazenda Califórnia, a apartação por peso
admite variação máxima de 50 kg entre animais de um mesmo lote.
Todos as informações coletadas pelo
TGR são transferidas, via rede, ao TGC
(programa de gestão geral do confinamento). Na fábrica de rações, os operadores verificam os dados do lote no sistema
e providenciam a ração, conforme as indicações do nutricionista da Tortuga, empresa que atende o confinamento. “Essa integração facilita a rotina da fábrica e a logística de trato”, afirma Paulo Dias.
Informática reduziu
índice de erros e melhorou
a logística do confinamento
As inclusões e baixas de animais são
realizadas por meio de arquivos eletrônicos, enviados por e-mail à certificadora. O
extrato de liberação dos lotes é importado
pelo sistema, para que se possa bloquear a
saída de indivíduos não conformes. Na hora
do embarque, todos os bovinos passam pela
balança, onde são pesados e têm o brinco
lido eletronicamente. Caso algum animal
esteja sem o dispositivo de identificação ou
não tenha cumprido a quarentena, por
exemplo, o sistema aciona um sinal sonoro e luminoso (sirene vermelha), e o animal é desviado para outro curral. Corrigese, então, a listagem de embarque e faz-se
nova contagem dos lotes. “Havendo transporte disponível, podemos embarcar até
2.000 bois/dia, sem tumulto”, afirma Janaína. As informações de saída dos animais
também são transmitidas ao sistema, para
que se possa fazer fechamento dos custos
e avaliações zootécnicas.
Na Fazenda Califórnia, a
adaptação ao cocho dura duas semanas.
Nos primeiros quatro dias, os animais recebem apenas volumoso; nos cinco seguintes, uma dieta com 30% de concentrado e, nos outros cinco, eleva-se esse percentual para 40%. Concluída a adaptação,
é fornecida a dieta final, que apresenta a
relação 10:90 – 10% de volumoso para
90% de concentrado. “Utilizamos, como
fontes principais de fibra a silagem de milho, produzida em 350 ha da fazenda, e o
bagaço de cana, que ajuda a baixar o custo da ração e poupar silagem, quando necessário. Como ingredientes do concentrado, são usados milho moído, farelo de
soja (apenas para os novilhos cruzados),
torta de algodão, polpa cítrica, uréia, minerais na forma orgânica e leveduras.
Normalmente, a dieta é formulada para se
obter ganho médio de 1,740 kg/cab/dia”,
informa Renato Antônio Cortez, zootecnista responsável pelo confinamento.
O período médio de permanência dos
bovinos nas instalações é de 97 dias, no
caso dos Nelore, e 121 dias, no caso de superprecoces cruzados. “Além de cumprir
a noventena do Sisbov, precisamos de algum tempo para manejar e negociar os animais”, explica Janaína. Toda a rotina de fornecimento da ração no cocho começa a ser
automatizada, com a ajuda do TGT, programa de gestão do trato. Em três linhas de
cocho (30 currais), foram instalados sensores, que captam o peso de entrada e saída do caminhão em cada curral. Dessa for-
BOTTON
COM CHIP
ANTENA
SENSORES
(TAGS)
AUTOMAÇÃO –
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COMPUTADOR
DE BORDO
Da rastreabilidade ao trato
dos animais, tudo é controlado
por programas integrados.
ma, é possível saber com precisão a quantidade de ração fornecida, em que horário
o trabalho foi realizado e quem foi a pessoa responsável.
Dentro do caminhão, o motorista controla tudo, utilizando um monitor sensível
ao toque, que o informa sobre os tratos anteriores e a quantidade prevista para aquela batelada. Caso constate, por meio de leitura de cocho, que o volume de ração prevista não é adequado, ele pode alterá-lo no
computador de bordo, que está conectado
à balança do caminhão. As alterações feitas pelo tratador são registradas e justificadas, para que se possa fazer estatística de
ocorrências e detectar possíveis gargalos.
O registro de dados possibilita a avaliação
do consumo de ração e, consequentemente, da eficiência alimentar, além da avaliação do trabalho dos funcionários.
A Fazenda Califórnia também possui
3.300 ha de pastagens, que recebem, no
verão, cerca de 10.000 bezerros, recriados
até atingirem média de 362 kg, no caso de
gado Nelore. Os novilhos cruzados, oriundos da Fazenda Rio Preto, são introduzidos no confinamento com peso médio de
220 kg-250 kg.
ENTREVISTA – ROMÃO FLOR
“
Uma história de extremos
P
iadista de repertório inesgotável, Romão Flor gosta de prosear, de preferência diante de uma travessa de frutas,
outro de seus prazeres. Na estrada que dá
acesso à vila da Fazenda Rio Preto, no MT,
plantou extensas alas de mangueiras;
mantém um grande pomar atrás da sede,
com inúmeras espécies frutíferas; e, nas
visitas aos retiros da fazenda, leva consigo um saco de laranjas ou maçãs para distribuir aos peões. Mineiro de nascimento
e goiano de coração, ele mescla gestos
mansos com agilidade mental. “Tenho 73
anos para trabalhar e 18 para namorar”,
diz, rindo.
Considera-se um homem simples,
mas não humilde. “Humildade demais é
ruim, apanha-se muito”, justifica. Romão
veste roupas de corte tradicional, usa botinas durante o trabalho e mantém o costume dos homens de sua geração de levar papel e caneta no bolso da camisa; canivete, pente e lenço, nos da calça. Seu jeito comunicativo contrasta com o caráter reservado do irmão Sebastião, que fala
pouco. Em entrevista à repórter Maristela Franco, Romão Flor emociona-se ao re-
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Eu tinha de
andar seis
quilômetros para
chegar à escola,
descalço, sem
merenda”.
latar episódios de sua infância pobre, em
Minas, e reivindica maior reconhecimento para a atividade de pecuarista.
DBO – Como foi sua infância?
Vou te contar como escapei. Nasci em
1938. Sou o quinto de oito filhos. Éramos
muito pobres. Meu pai trabalhava como lavrador num pequeno sítio, mas a comida
era pouca, e a gente ainda tinha de ajudar
na roça, moer cana, ralar mandioca. Nem
arroz tinha. Nosso prato principal era feijão com abóbora. Eu era franzino, demorei a crescer. Fui estudar tarde e só cursei
três anos. Era muito difícil. Eu tinha de andar seis quilômetros para chegar à escola,
descalço, cabeça raspada para não pegar
piolho, sem merenda.
Parei de estudar aos 14 anos, quando
meu pai morreu de repente e tive de ajudar o Sebastião a sustentar minha mãe e
meus três irmãos menores. Os mais velhos
já haviam se casado, ficou tudo com a gente. Criamos uma aliança muito forte, de
parceria e confiança. Comecei a tocar roça
à meia com os vizinhos, comprei bezerros
para treinar como bois de carro. Carreei du-
rante muito tempo. Depois que minha mãe
morreu, mudamos para Patos de Minas.
Passamos a negociar de tudo. Comprávamos e vendíamos queijo, automóvel, sítio.
Até que juntamos dinheiro para engordar
gado em pasto alugado.
Quando vocês se mudaram para
Goiás?
No começo dos anos 70. Eu e o Sebastião fomos a Goiás comprar um carro
Volkswagen e acabamos gostando da região. Decidimos, então, alugar uma fazenda e engordar bois. Mais tarde, vendemos tudo o que tínhamos e compramos
uma propriedade em Anicuns, a Califórnia, que temos até hoje. Compramos essa
terra para tocar roça e fomos muito felizes. Na safra 74/75, colhemos 25.000 sacos de feijão roxo e 150.000 sacos de milho. Com o dinheiro da lavoura, compramos muito gado.
Foi nessa época que se associaram
ao Tonico Toqueiro?
Sim. Não tínhamos pasto, e ele era
dono de muita terra, lá em Ceres, GO. Nos
ENTREVISTA – ROMÃO FLOR
associamos em 7.200 bois. Ele entrou com
o pasto e nós com o trato (sal mineral). O
Tonico era um sujeito muito ativo, negociava muito bem. O que o atrapalhou foi
o carteado. Com o dinheiro dessa sociedade, compramos a primeira fazenda no
Mato Grosso, em São José do Xingu, que
meu irmão Antônio, o caçula da família,
começou a tocar. Meu pai queria que
pelo menos um de nós se formasse, e nós
decidimos realizar o sonho dele. O Antônio formou-se engenheiro, pela Universidade de Frankfurt, na Alemanha. Ficou lá
12 anos, mas decidiu voltar e trabalhar com
a gente. Depois, comprou sua própria fazenda. No começo dos anos 90, decidimos
participar do leilão da
Agip Petroli, multinacional italiana pertencente ao grupo ENI-Ente
Nazionale Idrocarburi,
ex-dona da Liquigás, que
queria vender 256.000
ha na região de Canabrava do Norte, MT, e
fomos vitoriosos.
Como conseguiram
arrematar as terras?
Nós e o Antônio Garavelo, dono do extinto
Consórcio Garavelo, entramos fortes na concorrência. Dávamos um lance e ele outro, aí o preço foi subindo. Para não
favorecer o vendedor,
decidimos parar os lances isolados e comprar a área juntos.
Dos 256.000 ha, ficamos inicialmente
com 70.000 e eles com 186.000. Pagamos
nossa parte com o dinheiro da venda da fazenda no Xingu e de 24.000 bois. Na época, boi valia dinheiro, era reserva de valor contra a inflação, que chegava a 30%
ao mês. Com o tempo, fomos comprando
glebas do Garavelo, até formar uma propriedade de 171.000, dos quais o Incra desapropriou 30.000 ha, em 1998, ao preço
de R$ 100/ha, e não pagou até hoje.
Como foi a abertura da fazenda?
Difícil, pois a região não tinha infraestrutura. A estrada que passava pela fazenda virava um grande atoleiro na época das chuvas. Costumo dizer que o progresso não anda em estrada de chão, nem
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DBO abril de 2011
pernoita no escuro. O ex-governador Blairo Maggi adotou essa frase como slogan,
mas até hoje estou esperando pelo término do asfalto da BR 158, que batizei de rodovia da promessa. Quando tomei posse
da Fazenda Rio Preto, era tudo mato. Montei um ranchinho, desses de plástico, que
eu chamava de cinco estrelas, porque tinha
cinco buracos no teto, e vivi nele por muito tempo. Nunca refuguei trabalho. Se for
para morrer, morro em pé, não deitado.
Contratei gente de Goiás para abrir picada e formar os pastos. Hoje, nada disso seria possível, porque o produtor sofre muita perseguição.
“
beiros de Cuiabá, que chamei para ajudar,
disseram que estávamos mais preparados
para fazer o serviço do que eles. Mas os
órgãos ambientais não reconhecem nosso trabalho.
No ano passado, a Secretaria de Controle Externo do Mato Grosso, braço regional do TCU-Tribunal de Contas da
União, abriu um processo contra o Incra
por omissão nas ações relacionadas à nossa fazenda, pois, na visão deles, trata-se
de propriedade improdutiva, que não
atende sua função social. O Incra fez novo
laudo de inspeção e emitiu um parecer a
nosso favor, dizendo que não paira dúvidas sobre a legitimidade e autenticidade
do domínio e que ele cumpre
indiscutivelmente sua função
social, pois o grau de utilização da terra e eficiência da
exploração estão bem acima
dos padrões mínimos estabelecidos para a região. Tenho um rebanho de 100.000
cabeças, pastagens totalmente formadas, infraestrutura completa, quase 200
funcionários. Como o TCU
pode dizer que essa fazenda
é improdutiva?
O progresso
não anda
em estrada
de chão,
nem
pernoita no
escuro”
Que tipo de perseguição?
Uma vez me multaram por falta de
placa de sinalização nas ruelas da vila. Se
cai um raio no pasto, eles falam que nós
colocamos fogo. Se o satélite detecta uma
fumacinha, dizem que é na nossa mata,
quando o incêndio foi no vizinho. O pecuarista sofre muito preconceito. Ao
contrário do industrial, que é visto de forma positiva, devido a pesadas campanhas
de marketing, nós, produtores, somos vistos como bandidos. No ano passado,
passamos 42 dias apagando fogo em fazendas vizinhas, para impedir que as
chamas chegassem às nossas terras. Montamos uma brigada de incêndio equipada com máquinas pesadas e pessoal treinado. Até os homens do Corpo de Bom-
Como o senhor vê o contencioso ambiental?
Estou tentando me adequar, mas os processos são
incrivelmente lentos. Demorei quase sete anos para
conseguir o georreferenciamento da fazenda. Agora
estou me preparando para fazer o CARCadastro Ambiental Rural, para depois tirar a LAO-Licença Ambiental de Operação, tudo isso enquanto o Congresso debate o Código Florestal. Nossas terras estão em uma área de transição, basta verificar a vegetação nativa, que é tipicamente
de cerrado. O pecuarista vive em meio a
um fogo cruzado, pode levar uma bala perdida a qualquer momento ou se salvar. Não
sabemos. Enquanto isso, estou tomando
algumas providências, como a recomposição de alguns pontos da mata ciliar. Neste ano, pretendo plantar 50.000 mudas de
espécies nativas como o landim, o pequi,
o angazinho e o genipapo em beiras de
córregos e nascentes. Estou fazendo a minha parte.

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