Sock! Pow! Crash!

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Sock! Pow! Crash!
“Sock! Pow! Crash! – 40 Anos da série Batman da TV”, de Jorge
Ventura. Prefácio assinado por Sílvio Ribas*
Série Clássica e Inovadora
Para boa parte dos brasileiros de minha geração, sobretudo os garotos, falar
sobre o seriado de TV Batman é fazer uma viagem de volta às horas felizes de
nossa infância e adolescência. Os anos 70 e 80 nos trouxeram opções de lazer
e entretenimento que mexiam com o imaginário e ainda nos provoca muita
saudade daquilo que curtíamos e éramos. Batman – o mais badalado herói de
ficção daqueles tempos – surgia em carne e osso na telinha da televisão,
sempre na mesma bat-hora e bat-canal – para nos convidar a participar de
aventuras que também divertiam os adultos.
Com o complemento das histórias em quadrinhos, dos desenhos animados –
da Filmation e da Hanna-Barbera (Super Amigos) – e dos brinquedos, o público
do qual eu fazia parte admirava um personagem único que já tinha e continuou
tendo as mais diferentes faces e fases. Juntamente com as recentes versões
do homem-morcego na telona do cinema, aquela composta pelo ator Adam
West na TV é, até hoje, há exatas quatro décadas, a mais conhecida das
multidões do planeta.
Ainda me vejo vestido com a capa e o capuz de cor preta e detalhes em branco
pintados à mão, feitos por dona Mary, a minha mãe. Saía correndo para o
quintal ou para o coreto da Praça da Matriz, em Curvelo (MG), minha terra
natal. Brincava de Batman. Era como se tivesse recebido uma convocação do
comissário Gordon. Nos fundos de casa mantinha uma bat-caverna com a
porta camuflada com folhas, que se abria ao puxar uma corda, fazendo sair de
lá o Batmóvel, tal qual aquela cena gravada para o seriado. Meu bólido da
Gulliver era um orgulho que levava para a escola primária. A bat-lancha azul,
então, era o máximo. De resto, uma caixa de papelão ornada com ampolas de
injeção vazias era o meu bat-computador.
Por que tanta nostalgia? A capacidade daquele programa antológico (não há
melhor adjetivo) atravessar esse tempo todo e chegar à atualidade com
renovada aura de sucesso está na ousadia própria dos anos 60. Obra de culto
para seguidores de todas as idades, alguns de longa data, esse produto
televisivo norte-americano criado pelo genial William Dozier foi uma febre da
juventude contestadora e sedenta por renovação, primeiro nos Estados Unidos
e depois no resto do mundo.
Como parte daquela época, nunca uma atração do horário nobre mexeu tanto e
em tão pouco tempo com as massas, sobretudo num período no qual a
indústria cultural dava passos mais largos na promoção de idéias voltadas para
o consumo universal. Foi um fenômeno ideal para se estudar os poderes da
mídia e a sua especial aptidão em criar mitos e desejos. A mesma década de
The Beatles e “Bond, James Bond” – que somados a Batman formavam os
grandes três Bs dos sixties – foi bastante criativa em matéria de tendências e
comportamentos.
O seriado, em particular, fez história na comunicação social e na cultura de
massa antes mesmo de ir ao ar naquele histórico 12 de janeiro de 1966, na
emissora americana ABC. A primeira das várias inovações criadas pelo versátil
Dozier, produtor que se fazia até de locutor, foi o próprio marketing de
lançamento. Depois, os primeiros dos 120 episódios (três temporadas) logo
provocaram uma mania nacional representada pela excepcional audiência e
por um fenômeno televisivo de primeiríssima grandeza.
A onda gerou inúmeros produtos licenciados que vendiam a Batmania. Ela
disseminou novos costumes e bordões e influenciou até mesmo os roteiros das
histórias em quadrinhos publicadas pela DC Comics, editora dona do
personagem. O próprio Batman foi seduzido pelo seu show na TV, como
sugere uma capa de gibi daquela época. Figuras que surgiram e
permaneceram exclusivos nessa empreitada Dozier-ABC-Fox se integraram ao
panteão batmaníaco, como o chefe O’hara e o Cabeça de Ovo.
Os até então pouco conhecidos Adam West e Burt Ward (nomes de guerra) se
tornaram celebridades respectivamente como os satíricos Bruce Wayne
(Batman) e Dick Grayson (Robin), seu inseparável parceiro na luta contra o
crime. Eles também estavam acompanhados por uma estelar galeria de “vilões
especialmente convidados”, como anunciavam os letreiros da abertura do
programa. Só para citar uma dessas estrelas: Vincent Price, Cesar Romero e
Liberace.
A eterna dupla dinâmica parece ter dado passos que se tornaram saltos
gigantes para a humanidade, a exemplo dos que o astronauta Neil Armstrong
deu na Lua em 1969. West, Ward e as centenas de profissionais envolvidos na
mais célebre série de todos os tempos deixaram suas marcas. Foram grandes
contribuições para a forma de se fazer TV que vão dos trocadilhos nas vinhetas
até as tomadas inusitadas de câmera. Suas cores e enredos incomuns deram
novo estímulo à insipiente cultura pop, além de alargar o universo do
personagem Batman iniciado em 1939.
As onomatopéias que cruzavam a tela nas seqüências de luta, as armadilhas
quase circenses, o jingle inesquecível (Tã-rã-rã-rã-rã-rã... Batmannn...), os
bordões “santa isso, santa aquilo” do menino-prodígio Robin, as curvas da
gatíssima Mulher-Gato Julie Newmar (imbatíveis até hoje nas enquetes sobre
qual atriz melhor encarnou a vilã), a participação do infalível Bruce Lee
(referenciada pelo cineasta Quentin Tarantino em seu Kill Bill), Batman
recitando Poe e Shakespeare, as batquinquilharias... Não faltam, enfim,
imagens memoráveis.
Até mesmo o filme nascido da série deixou quadros dignos de replay. Com
gosto de matinê, soda e pipoca, essa versão disponível em VHS e DVD traz
cenas de ação hilárias como a do tubarão explosivo, o sacrifício da doninha
que interceptou um torpedo e a da difícil tarefa de Batman em se livrar de uma
bomba no cais. A sátira à Organização das Nações Unidas (ONU) é outro dado
merecedor de nota. A caracterização pastiche das autoridades e a fleuma de
Alfred reforçavam todo aquele non-sense.
Roteiros bem elaborados, experimentalismo na televisão e uma estética
arrojada. Esse pacote de Batman inspirou até o jazzista Sun Ra na época e
outros seriados cômicos da TV mais recentes como The Tick. As homenagens
e referências não param, seja nos desenhos animados do Bob Esponja e dos
Simpsons, em peças de teatro e até nos diálogos de sitcoms norte-americanos
e britânicos. No mais, estão fãs criando sátiras na Internet (notadamente com
palavreado chulo) e comunidades diversas de intercâmbio, além dos
tradicionais caçadores de relíquias, como a capa histórica da revista “Life” ou
protótipos metálicos do Batmóvel.
Nos Estados Unidos, a Batmania de 1966 ainda movimenta muitos negócios,
tais como a fabricação de estátuas, venda de fotos autografadas pelo elenco,
convenções, fornecedores de trajes “oficiais” e oficinas que criam réplicas do
Batmóvel, xodó do criador George Barris e carro mais reconhecido do mundo
conforme pesquisas recentes de opinião.
Objeto de teses acadêmicas até os dias atuais, a série foi dissecada no
contexto da contracultura dos anos 60, na história da televisão e no mundo de
Batman. Livros, artigos, documentários e reportagens especiais continuam
trazendo novidades e desmistificando sobre fatos sobre o seriado, tanto de
bastidores quanto das reações de telespectadores durante sua exibição original
e nas incontáveis reprises em todo o globo.
Um desses aspectos fartamente explorados é a associação incorreta entre o
estilo camp da série e uma temática deliberadamente gay. O suposto
relacionamento homossexual entre Batman e Robin ainda sustenta piadas
difundidas pela rede mundial de computadores, por textos literários e por
artistas plásticos. Qual a razão disso? Aquele refinado espetáculo de
inteligência e sarcasmo não foi totalmente compreendido em sua própria época
mas acabou forjando uma obra-prima merecedora de estudos e inspiradora de
muitas outras realizações artísticas. O impagável embuçado West tornou o
mundo de Batman mais complexo e colorido, como é mostra compilações
sobre a história do personagem, que aparecem geralmente pouco antes da
estréia de um de seus blockbusters.
A trajetória da dupla Adam West e Burt Ward pode ser vista também como a de
dois atores que conheceram a consagração antes de terem uma carreira
solidamente construída. Para alguns críticos foi pura sorte. Mas para outros foi
fruto de uma escalação acertada para os dois papéis. A fama que hoje se
conhece em reality shows teria acontecido com eles. Contudo, ela não só
perdurou como tornou, sobretudo West, um ídolo perene. Ele não mais vive à
sombra de Batman e se tornou um ícone cultural por si mesmo.
Resultado da força do mito Batman? Em parte. Mas também teve o carisma
pessoal que se combinou com aquilo que o seriado propunha e da melhor
forma possível. Essa “química” talvez não tivesse dado tão certo com outros.
Até os maneirismos criados pelos atores se tornaram detalhes inerentes dessa
obra eletrônica e dos seus personagens. Os socos de Ward na mão e sua
inquietude. No caso de West, a fala pausada, o gesto para ocultar o riso no set
de filmagem e os braços cruzados em “x” no peito viraram marcas registradas.
Para boa parte das pessoas, Adam West é “o” verdadeiro Batman. Ele desistiu
de lutar contra o estigma e, pelo contrário, abraçou o que a vida lhe deu.
Exemplo disso está nos programas que participou como Batman e os
presentes que recebeu de roteiristas, diretores e atores que também foram
crianças de olho grudado na telinha para ver seu herói passar. Como dublador,
foi melhor reverenciado no episódio O Fantasma Cinzento do desenho Batman,
um testemunho do próprio realizador Bruce Timm. Nos quadrinhos, a história
Batman da Vida Real também dá uma idéia dessa louvação coletiva. Outra foi
quando, em 2005, a mansão onde a série foi gravada ardeu em chamas meses
depois de ser comprada pelo ex-beatle Paul McCartney. A notícia despertou a
atenção de milhões em vários países.
Este belíssimo livro que você, leitor, tem nas mãos mostra que, além da
fidelidade aos sonhos do passado (que nunca envelhecem, como diz o poeta),
o público continua se encantando com o repertório inovador de Batman,
formador de ídolos e um crítico sutil com seu deboche de bom gosto. Os
colecionadores japoneses de tudo que se relaciona ao seriado e os clubes
norte-americanos de fãs criados por emissoras de rádio e publicações
alternativas são boas ilustrações desse legado.
Os fiéis fanáticos, desde os mais explícitos que se vestem como West até os
simples nostálgicos com seus imãs de geladeira, têm cada um seus episódios,
personagens e até falas preferidos. Exemplos? Batman cruza com um índio ao
entrar em um escritório, acena e o cumprimenta com um “cidadão!”. Para
competir numa prova de surf, o herói usa uma bermuda sobre o uniforme. Para
se manter incógnito, o fiel mordomo Alfred coloca uma máscara de ladrão sob
os óculos. West dança o batusi na boate e no esconderijo do Rei Tut. “O
milionário Bruce Wayne e seu pupilo Dick Grayson fazem higiene mental”, diz o
narrador ao mostrá-los fazendo compras. A campanha eleitoral do Pingüim
para prefeito, que se repetiu no filme Batman o Retorno. A lista não tem fim.
Quando escrevia, ano passado, o Dicionário do Morcego, projeto pessoal que
acalentava há tempos, sabia de antemão que o “Batman de 1966”, para citar
um termo próprio dos seus estudiosos independentes, merecia um guia
confiável mais consistente. Por mais que os verbetes de meu livro tentassem
cobrir todos os detalhes desse capítulo importante da bat-cronologia haveria
questões não respondidas e seu retrato sairia fragmentado. A série Batman é
importante não apenas para o mais conhecido personagem criado pelos
colegas Bob Kane (que inclusive acompanhou de perto o seriado de Dozier
desde a pré-produção) e Bill Finger. Foi, por exemplo, a primeira transposição
explícita da linguagem típica dos quadrinhos para o meio áudio-visual.
Em 1996, a Ordem Filosófica do Homem-Morcego (OFHM), liderada por Márcio
Escoteiro e o autor deste livro, presenteou os fãs com um especial sobre o
seriado na edição número quatro de seu fanzine Tribuna do Morcego. Aí já
estava uma das primeiras investidas de Jorge Ventura, grande colecionador e
estudioso, para compartilhar conosco sua vasta compreensão da série.
Talentoso e polivalente, ele conseguiu fazer o que muitos fãs e pesquisadores
(ou apenas curiosos de plantão) queriam: um compêndio sobre o seriado em
português, completado com curiosidades e uma rica narrativa repleta de
cuidados que só os entendidos no assunto conseguem.
Além de ser pesquisador por hobby, Ventura também é profissional das
comunicações e artes, como comunicador e ator. Sua experiência com
dublagem de programas de TV estrangeiros lhe conferiu outro ângulo de visão
privilegiado. Seus poemas de temática urbana deram sensibilidade extra. Por
fim, como publicitário reconhece a importância da cultura de massa na
formação de inconscientes coletivos.
Por isso, quando soube que ele faria este livro e, depois, ao ser convidado a
escrever este prefácio, não tive dúvidas de que, finalmente, teríamos em breve
nas mãos um trabalho sério e sincero sobre o “Batman de 1966”. Mais que
isso: encontraria um relato autêntico dessa relação duradoura com o público,
em particular o do Brasil, com o seriado. Parte integrante do seleto grupo de
obras sobre o tema, como o conhecido inglês The Official Bat-Book e as
biografias autorizadas de Adam West, Burt Ward e Yvonne Craig (a curvilínea
bailarina que se tornou a Batgirl), este livro não tem comparação em qualidade
e abrangência com nenhum outro. A missão foi cumprida.
* Jornalista, autor de Dicionário do Morcego.

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