dinheiro - prova4.p65
Transcrição
dinheiro - prova4.p65
DINHEIRO , SEXO E PODER RICHARD J. FOSTER D INHEIRO , SEXO E PODER Um chamado à renovação ética Traduzido por WANDA DE ASSUMPÇÃO Editora Mundo Cristão DINHEIRO, SEXO E PODER — UM CHAMADO À RENOVAÇÃO ÉTICA CATEGORIA: COMPORTAMENTO Copyright © 1985/1989, por Richard J. Foster Publicado por HarperSanFrancisco, EUA Título original: The challenge of the disciplined life (publicado pela primeira vez como Money, sex & power) Coordenação editorial: Silvia Justino Colaboração: Rodolfo Ortiz Preparação de texto: Omar de Souza Rodolfo Ortiz Revisão: Theófilo Vieira Supervisão de produção: Lilian Melo Projeto gráfico: Sonia Peticov Capa: Douglas Lucas Os textos das referências bíblicas foram extraídos da Nova Versão Internacional (Sociedade Bíblica Internacional), salvo indicação específica. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Foster, Richard J. Dinheiro, sexo e poder: um chamado à renovação ética / Richard J. Foster; tradução de Wanda de Assumpção — 2a ed. — São Paulo : Mundo Cristão, 2005. Título original: Money, sex & power : the challenge of the disciplined life ISBN 85-8567-095-9 1. Autoridade - Aspectos éticos e morais 2. Casamentos - Aspectos religiosos 3. Economia — Aspectos religiosos — Cristianismo I. Título. 95-0808 CDD 248.4 Índice para catálogo sistemático 1. Guia de vida cristã: Religião 248.4 Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados pela: Associação Religiosa Editora Mundo Cristão Rua Antônio Carlos Tacconi, 79 — CEP 04810-020 — São Paulo — SP — Brasil Telefone: (11) 5668-1700 — Home page: www.mundocristao.com.br Editora associada a: • Associação Brasileira de Editores Cristãos • Câmara Brasileira do Livro • Evangelical Christian Publishers Association A 1a edição foi publicada em dezembro de 1988. A 2a edição foi publicada em setembro de 2005, com uma tiragem de 5.000 exemplares. Impresso no Brasil 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1 05 06 07 08 09 10 11 Em memória de David M. Leach, fiel ministro de Cristo e querido amigo de nossa família SUMÁRIO Agradecimentos ............................................................................................ 9 Prefácio ..................................................................................................... 11 Apresentação ............................................................................................. 13 1. Dinheiro, sexo e poder na perspectiva cristã ..................................... 17 PARTE UM — GANÂNCIA: O AMOR AO DINHEIRO 2. A face sombria do dinheiro ........................................................... 3. A face luminosa do dinheiro .......................................................... 4. Como o Reino usa o deus da iniqüidade ....................................... 5. O voto de simplicidade .................................................................. 35 51 63 81 PARTE DOIS — LUXÚRIA: O SEXO ILÍCITO 6. A sexualidade e a espiritualidade ................................................... 99 7. A sexualidade e o solteiro............................................................. 119 8. A sexualidade e o casamento........................................................ 137 9. O voto de fidelidade ...................................................................... 151 PARTE TRÊS — AMBIÇÃO: O PODER CORROMPIDO 10. Poder destrutivo ......................................................................... 11. Poder criativo ............................................................................. 12. O ministério do poder ................................................................ 13. O voto de serviço ........................................................................ 173 193 209 221 Epílogo .................................................................................................... 237 AGRADECIMENTOS FOI CONSIDERÁVEL o sacrifício pelo qual minha família passou para ver este livro terminado. De coração, agradeço a Carolynn, minha esposa, que carregou comigo esse fardo e contribuiu com muitas sugestões apropriadas que tornaram este livro muito melhor. Joel e Nathan, nossos filhos, foram extremamente compreensivos no decorrer dos meses que dediquei a escrever. Nathan, de modo especial, sacrificou a habitual leitura que fazemos juntos toda noite. Felizmente, agora posso voltar a gozar essa alegria familiar, bem como muitas outras. Lynda Graybeal, minha assistente, fez muito mais que digitar, imprimir e revisar o manuscrito. Tem sido também uma fonte inestimável de sabedoria. Muitos de seus comentários abriram rumos criativos e totalmente novos para o livro. Há alguns anos, falei em um retiro perto de Washington, patrocinado por The Ministry of Money [O Ministério do Dinheiro], e foi lá que encontrei Don McClanan, o diretor. Foi através de Don que percebi pela primeira vez a questão da conexão entre dinheiro, sexo e poder, bem como a dos votos de disciplina; sou-lhe muito grato. Kathy Gaynor, bibliotecária da seção de referência na Universidade Friends, muito contribuiu para minha pesquisa. Ela encontrou livros difíceis com incrível rapidez, esquadrinhando por vezes até a zona rural em busca de uma referência obscura. Meus agradecimentos a ela. Ao longo dos meses, li todo o manuscrito para um grupo de amigos literatos aqui na Universidade Friends, da qual sou membro. Eles fizeram muitas sugestões úteis. Muitos outros leram todo o manuscrito, ou parte dele, e seus comentários 10 DINHEIRO, SEXO E PODER foram de grande ajuda. Entre eles, encontram-se Vivian Felix, George Fooshee, David Holley e Richard Sosnowski. Roy M. Carlisle, meu editor na Harper, em São Francisco, envolveu-se profundamente no desenvolvimento deste livro desde o primeiro dia em que mencionei para ele o embrião da idéia, há alguns anos. Sua paciência e seu incentivo foram preciosos para mim. Essa é minha lista de pessoas conhecidas com quem tenho um débito de gratidão. Há muitas outras pessoas que me ajudaram a escrever este livro e que permanecerão para sempre no anonimato. Uma frase aqui, uma experiência acolá, tudo aguçou meu pensamento e contribuiu com uma nova idéia. Jamais poderia remontar às origens dessas propostas, pois passaram a fazer parte do fluxo de idéias de milhares de outras pessoas. Mas mesmo que não possa agradecerlhes individualmente, posso reconhecer a dívida que tenho para com elas — e aqui a registro. PREFÁCIO UM CUIDADO ESPECIAL cercou o ato de escrever este livro. Para o senso comum, tópicos como “oração” e “culto” trazem uma aura de espiritualidade, enquanto os temas “dinheiro”, “sexo” e “poder” parecem, no mínimo, terrivelmente “seculares”. Todo o meu trabalho aqui foi permeado pelo desejo de ajudar as pessoas a perceber que, ao tratar desses assuntos “seculares”, estamos pisando em solo santo. Viver da maneira certa com referência ao dinheiro, ao sexo e ao poder é viver em santidade. Fazer mau uso ou abusar dessas coisas é profanar as coisas santas de Deus. Esforcei-me por escrever com espírito de reverência e adoração, sabendo que estava tratando de temas sagrados. Cada dia dedicado à tarefa de escrever começava com um período de meditação sobre um dos salmos, e assim li todo o saltério. Meu desejo era o de mergulhar nas esperanças e aspirações dos salmistas, pois o saltério é o livro de orações da Igreja. Com a cadência de júbilo e beleza, culto e adoração que vem dos salmos, consegui ver de maneira nova as questões do dinheiro, do sexo e do poder. Foi somente então que me senti preparado para escrever acerca desses temas que estão tão próximos do coração de Deus. Minha esperança e minha oração são no sentido de que a leitura dessas palavras o ajude tanto quanto me ajudou escrevê-las. Para começar, é importante destacar um problema especial sobre o pronome pessoal escolhido nas referências a Deus. Acho que é óbvio para todos que Deus não é uma divindade masculina em contraposição a uma divindade feminina. Deus está além de nossas distinções de gênero, embora as abranja. Já no século XIV, Juliana de Norwich declarou: “Deus é tão verdadeiramente nosso Pai quanto 12 DINHEIRO, SEXO E PODER é nossa Mãe”. A Bíblia apresenta inúmeros símbolos para Deus, tanto masculinos quanto femininos. Contudo, quando nos deparamos com a questão de um pronome pessoal para Deus, torna-se difícil expressar sua grandeza neste aspecto. O problema não está em Deus, e sim em nós. Nossa linguagem é simplesmente limitada demais. A tentativa de resolver esse problema com traços e barras é semanticamente desajeitada e esteticamente horrorosa. Escolhi, portanto, seguir o uso padronizado do pronome masculino “ele”, embora esteja bem ciente da deficiência que lhe é inerente em relação aos propósitos para os quais é usado. RICHARD J. FOSTER AP R E S E N TAÇÃO MÁRIO QUINTANA, sábio poeta gaúcho, já nos advertia que existem livros que os leitores esgotam e outros que esgotam os leitores. Este é um livro para ser esgotado por leitores ávidos de orientação em três áreas essenciais na vida de qualquer ser humano. Trata-se de um manancial de onde jorram sabedoria bíblica, conteúdo teológico, bagagem histórica e conselhos práticos capazes de nos ajudar na desafiante relação que todos travamos com dinheiro, sexo e poder. Dificilmente outro autor abordaria de maneira tão brilhante este tão delicado tema, como Richard Foster o fez neste livro! Ele já é conhecido de alguns leitores brasileiros, especialmente pelo seu livro Celebração da disciplina, que fez história tanto “lá” quanto “aqui”. Foster faz parte dos Quakers, movimento fundado por George Fox, no século XVII, na Inglaterra, e que originalmente se chamava de Sociedade Religiosa dos Amigos. Iniciou e preside uma organização chamada Renovaré (Renovar) cuja proposta é buscar a renovação da Igreja de Jesus em suas multifacetadas expressões. É hoje, sem dúvida, um dos mais profundos pensadores do tema da espiritualidade; por isso mesmo, seus livros e palestras têm atingindo pessoas nos mais variados lugares do mundo. Foster tem o cuidado de não demonizar ou mesmo lançar um olhar somente enfatizando o lado negativo deste tripé que, por assim dizer, pode ser considerado como o “eixo do mal”. Revela-nos também o lado luminoso que cada uma destas realidades carrega dentro de si; e ao fazer assim, implicitamente, nos leva a perceber que é a maneira como respondemos às fortíssimas seduções do dinheiro, do sexo e do poder, que vai transformá-los em escravos de nossa vontade ou 14 DINHEIRO, SEXO E PODER senhores de nossa existência. O autor vai além da análise pura e simples e nos convida a resgatar no presente as respostas cristãs dadas no passado: contra a ganância pelo dinheiro, deve-se buscar a disciplina ou o voto da simplicidade; contra a luxúria do sexo, a disciplina ou o voto da fidelidade; contra a ambição do poder, a disciplina ou o voto do serviço. Portanto, são doenças para as quais existem remédios! Foster nos dá a confortante notícia de que, na luta contra estas três tentações mais poderosas da nossa jornada, não estamos órfãos de soluções, propostas, respostas e nem, naturalmente, destinados a fracassar diante delas. Uma nuvem de testemunhas de ontem e de hoje nos ajuda na esperança de combater as forças interiores e exteriores da ganância, da luxúria e da ambição e sairmos vitoriosos. Mas também outra nuvem de testemunhas do passado e do presente nos inspira a nunca subestimar nossa vulnerabilidade diante de tão sedutoras tentações. Esta é uma das razões pelas quais este livro chega às mãos do público brasileiro em muito boa hora. Assistimos perplexos a uma peça evangélica onde no palco desfilam irmãos, irmãs, ministérios, denominações, projetos... muitos deles dominados (ou quase!) pela lógica da ganância, que transforma a piedade em lucro, da luxúria, que transforma limites que não deveriam ser ultrapassados em comportamentos arraigados, e da ambição, que transforma o Reino de Deus em impérios pessoais. Na verdade, este eixo do mal bem poderia ser comparado ao que os cientistas chamam de um buraco negro no universo, que nada tem de buraco, mas é sim uma forte concentração de massa que traga tudo quanto gravita a seu redor. Sem os votos da simplicidade, fidelidade e serviço não há quem não possa ser tragado em tal órbita. Desprotegidos das virtudes, seremos presas fáceis do pecado. O certo é que, diante dessas realidades, ninguém se sente inteiramente seguro; pois, pela força que têm sobre cada um de nós, somos todos nivelados como iguais a partir de nossa vulnerabilidade. Também vale lembrar que este não é um tema teórico habitante da especulação de filósofos, teólogos e escritores desconectados com nossa prática de vida. Ao contrário, nos toca a todos bem de perto, pois os apelos financeiros, sexuais e de poder integram visceralmente nosso cotidiano, fazendo-nos lidar com eles em casa, na igreja, no trabalho ou onde quer que vivamos. Por isso mesmo, quanto mais reflexão de boa qualidade, como esta, tivermos sobre este tema, tanto mais estaremos construindo possibilidades reais de vitória e superação! APRESENTAÇÃO 15 É, pois, com um misto de prazer e honra que reapresento, uma vez que este livro já foi publicado antes, aos leitores brasileiros uma das mais preciosas obras da espiritualidade cristã atual. Leitura obrigatória para todos quantos desejam travar relações sadias com forças tão potencialmente perigosas. Livro para ser posto na cabeceira a fim de ser lido e relido, na esperança de que seu precioso ensino seja internalizado e transformado em comportamento concreto de resistência aos fortes apelos da ganância, luxúria e ambição; e assim, através da simplicidade, fidelidade e serviço, possamos ir construindo cotidianamente um “eixo do bem” produtor de uma vida pessoal, comunitária e social mais cheia de Deus e da sua luz! EDUARDO ROSA PEDREIRA Pastor da Comunidade Presbiteriana da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro Doutor em teologia na área de espiritualidade. 1 DINHEIRO, S E X O E P O D E R N A P E R S P E C T I VA C R I S T Ã É vaidade buscar riquezas que perecerão e depositar nelas a esperança. É vaidade também aspirar a honras e subir até elevada posição. É vaidade seguir a luxúria da carne. THOMAS À KEMPIS A MAIOR NECESSIDADE de nossos dias é de pessoas que vivam fielmente. Isso é uma realidade em todas as esferas da existência humana, mas particularmente verdadeiro com relação a dinheiro, sexo e poder. Não há outras questões que nos atinjam de forma tão profunda e universal. Não há outros temas que estejam tão inseparavelmente interligados. Não há outros assuntos que causem tanta controvérsia. Não há outros aspectos da vida humana que tenham tanto poder para abençoar ou amaldiçoar. Não há outras três coisas que tenham sido tão buscadas ou que precisem tanto de uma resposta cristã. As questões de dinheiro, sexo e poder nos atiram para dentro da arena da escolha moral. Neste livro, procuro descrever como devemos viver eticamente, mas não tento cobrir toda a gama da indagação ética, como se poderia fazer em um livro específico sobre esta questão. Antes, por tratar de três assuntos de tanta importância na sociedade moderna, espero dar pistas de como nós, seguidores de Cristo, devemos enfrentar as muitas escolhas éticas que nos são apresentadas a cada dia. 18 DINHEIRO, SEXO E PODER Ao fazer isso, creio estar seguindo o modelo do próprio Cristo. Jesus não deu instruções detalhadas sobre como devemos viver em cada esfera da vida. Antes, tomou os assuntos cruciais de seus dias e mostrou a relevância da mensagem do evangelho em relação a eles. Desta maneira, deu-nos parâmetros a partir dos quais somos capazes de conjugar os muitos outros verbos da escolha ética. Jesus devotou atenção considerável aos temas dinheiro, sexo e poder. Dentre os três, ele falou mais acerca de dinheiro e poder do que de sexo, pelo simples motivo de não ser esse último a questão do momento, como veio a ser em nossos dias. Hoje, contudo, precisamos tratar com seriedade a questão do sexo, pois é evidente a situação deplorável da sociedade moderna devido à falta de subordinação de eros a ágape. P OR QUE DINHEIRO , SEXO E PODER ? Você pode até questionar minha escolha em escrever um livro sobre estes assuntos específicos: dinheiro, sexo e poder. A resposta é simples. Durante o decorrer de toda a História, e em nossa própria experiência, esses assuntos parecem inseparavelmente interligados. O dinheiro manifesta-se como poder. O sexo é usado para adquirir tanto dinheiro quanto poder. E o poder é geralmente chamado “o melhor afrodisíaco”. Poderíamos discutir longamente as conexões que essas questões abrangem. Existe, por exemplo, um importante relacionamento entre sexo e pobreza: o sexo é a festa do homem pobre e o desastre da mulher pobre. Note também a conexão entre poder e riqueza: o poder é usado com freqüência para manipular a riqueza, e a riqueza é utilizada com igual freqüência para comprar poder. E assim por diante. A verdade é que não é realmente possível (nem mesmo desejável) desfiar todas as complexas formas nas quais dinheiro, sexo e poder estão entretecidos. Outro motivo para escrever sobre esses temas é o fato de que a necessidade hoje é grande. Passamos por convulsões em nossa cultura com relação a cada um desses assuntos. A hora é perfeita para tentar responder à questão dinheiro-sexopoder. Os cristãos precisam de uma nova articulação sobre o que significa viver com fidelidade nessas áreas, e aqueles que estão pensando na possibilidade de DINHEIRO, SEXO E PODER NA PERSPECTIVA CRISTÃ 19 adotar a fé cristã merecem alguma indicação do que podem esperar ao se tornar seguidores de Cristo. Tenho um terceiro motivo para escrever acerca desses assuntos. Do ponto de vista histórico, parece que os reavivamentos espirituais têm sido acompanhados por uma confrontação clara e audaciosa das questões dinheiro, sexo e poder. Isso é um fato, quer pensemos no movimento beneditino, no movimento franciscano, no movimento cisterciense, no movimento reformador, no movimento metodista, no moderno movimento missionário ou em quaisquer outros grupos. Quando esses reavivamentos ocorrem em uma cultura, vêm acompanhados de uma renovação tanto da experiência devocional quanto da vida ética. Precisamos, nos dias de hoje, de uma renovação da experiência espiritual que seja eticamente poderosa. I MPLICAÇÕES SOCIAIS É importante ver, desde o início, o longo alcance das implicações sociais referentes às questões das quais estamos tratando. Elas afetam profundamente a vida nos negócios e nas instituições, bem como a vida privada. A dimensão social do dinheiro é “negócio”; do sexo, “casamento”; do poder, “governo”.1 Uso aqui os termos negócio, casamento e governo em seu sentido mais amplo. “Negócio” refere-se à tarefa de apresentar os bens e serviços da Terra para abençoar ou oprimir a humanidade. “Casamento” refere-se ao relacionamento humano por excelência, que cria o contexto para a mais profunda intimidade possível ou para a maior alienação que se pode imaginar. “Governo” refere-se ao empreendimento de organização humana que pode conduzir à liberdade ou à tirania. Pode-se sentir, de imediato, que dinheiro, sexo e poder são assuntos vitais não apenas para cada um de nós como indivíduos, mas para toda a sociedade humana. Negócio, casamento e governo tanto podem ser benefícios supremos quanto flagelos de proporções monstruosas. E as variáveis que inclinam a balança para um lado ou outro são mais numerosas e mais complexas do que apenas o caráter 1 James O’REILLY. Lay and religious states of life: their distinction and complementarity [Estados laicos e religiosos da vida: sua distinção e complementaridade]. Chicago: Franciscan Herald Press, 1976, p. 22. DINHEIRO, SEXO E PODER 20 das pessoas envolvidas. Não resolveremos nosso problema simplesmente colocando o tipo certo de pessoas no mundo dos negócios e no governo. Não há dúvida de que esta é uma boa iniciativa, mas ela não pode garantir que essas instituições servirão à humanidade. Inerentes às próprias estruturas institucionais há forças destrutivas que precisam ser transformadas pelo poder de Deus para beneficiar a sociedade humana. A SSUNTOS PERENES Dinheiro, sexo e poder são três dos grandes temas éticos que têm inquietado os seres humanos no decorrer dos séculos. Foi dessas três coisas que Dostoievsky tratou com tanta sensibilidade em sua obra-prima O idiota.2 Nesse romance, o príncipe Myshkin, símbolo de Cristo, é jogado em uma cultura obcecada por riqueza, poder e conquista sexual. Mas o príncipe não possui orgulho, cobiça, malícia, inveja, vaidade ou temor. Comporta-se de maneira tão anormal que as pessoas não sabem o que pensar dele. Confiam nele devido à inocência e à simplicidade que demonstra. Mesmo assim, a falta de outras motivações por parte do príncipe leva o povo à conclusão de que ele é um idiota. Habilmente, Dostoievsky entretece os temas dinheiro, sexo e poder por toda a história, contrastando o espírito do príncipe com o de todos aqueles que o rodeiam. A respeito do personagem principal, o narrador observa: “Ele não se importava com pompa ou riqueza, nem mesmo com estima pública, mas apenas com a verdade!”3 Em uma carta, o próprio Dostoievsky disse, acerca do principe: “Minha intenção é a de retratar uma alma verdadeiramente bela”.4 A sociedade aristocrática dos tempos do grande escritor russo não conseguia compreender um indivíduo como o príncipe Myshkin, mas tampouco o compreende a sociedade moderna. Imagine Myshkin aparecendo como convidado especial numa novela da TV. Os roteiristas simplesmente não saberiam o 2 Desejo expressar minha dívida para com Jim Smith por encorajar-me a examinar O idiota à luz de meu trabalho sobre dinheiro, sexo e poder. 3 Fyodor DOSTOIEVSKY. The Idiot, trad. Constance Garnett. Nova York: Bantam Books, 1981, p. 569 [trad. em português: O idiota. Rio de Janeiro, São Paulo: Ediouro, Editora 34, 1991, 2002]. 4 Carta a Apollon Maikov, 12 de janeiro de 1868, citada por Konstantin Mochulsky em Dostoievsky: his life and work [Dostoievsky: vida e obra]. DINHEIRO, SEXO E PODER NA PERSPECTIVA CRISTÃ 21 que fazer com alguém sem qualquer avidez por bens materiais, ou impulsos sexuais desenfreados, ou mesmo alguma necessidade de exercer domínio sobre as outras pessoas. Naturalmente, a verdadeira pergunta que paira sobre todo o romance é a seguinte: quem, de fato, é o idiota? Talvez a pessoa verdadeiramente tola seja aquela cuja vida é dominada pela ganância, pela ambição e pela luxúria. Dostoievsky é, obviamente, apenas um representante de uma longa lista de pessoas e grupos que têm dedicado atenção séria e constante aos temas dinheiro, sexo e poder. Praticamente todos os principais pensadores e todos os grandes movimentos confrontaram essas questões. Os antigos votos monásticos de pobreza, castidade e obediência foram reação direta aos problemas relativos a dinheiro, sexo e poder. Pode-se também pensar nos puritanos, que reagiram a essas questões com a ênfase que deram à diligência no trabalho, à fidelidade e à ordem. Muito podemos aprender se considerarmos com atenção os seus esforços. OS VOTOS HISTÓRICOS : DINHEIRO A extravagância compulsiva é mania hoje em dia. O desejo desenfreado por “mais, mais e mais” é claramente psicótico; perdeu todo e qualquer contato com a realidade. O abismo existente entre a pobreza do Terceiro Mundo e a prosperidade do Primeiro Mundo está se alargando com velocidade alarmante. E muitos cristãos zelosos estão sem saber como agir diante dessas realidades desconcertantes. A reação monástica ao dinheiro encontra-se presente no antigo voto de pobreza. A renúncia deliberada foi a forma escolhida para bradar um “não” aos valores que prevaleciam na sociedade daqueles dias. Na verdade, os monges estavam fazendo muito mais do que simplesmente negar. Estavam dizendo “não” para poderem dizer “sim”. Renunciaram aos bens materiais a fim de aprender o que significa o desprendimento. O cativante (e por vezes irritante) frade franciscano Junípero havia aprendido tão plenamente o significado de desprendimento que muitos o consideravam um tolo. Em certa ocasião, ele se deparou com um altar muito trabalhado, enfeitado por argolas de prata penduradas na parte da frente. Assim que as viu, anunciou: “Estas argolinhas são supérfluas”, e passou a removê-las e dá-las aos pobres. DINHEIRO, SEXO E PODER 22 O padre do vilarejo, naturalmente, ficou furioso. O coitado do Junípero simplesmente não conseguiu entender a raiva do padre, pois achava que havia prestado um grande favor ao libertá-lo daquela “exibição de vaidade mundana”.5 Francisco de Assis ficou tão comovido com o espírito de desprendimento do irmão Junípero que exclamou, certa vez: “Meus irmãos, que bom seria se tivéssemos toda uma enorme floresta de juníperos como aquele!”6 Precisamos ouvir a palavra deles nos dias de hoje — nós, que amamos a ganância mais do que amamos o evangelho; que vivemos em temor, e não em confiança. Devemos atentar ao que dizem a nós, que definimos as pessoas em função do saldo bancário; que empurramos e passamos por cima dos outros só para adquirir um pedaço cada vez maior do mercado de consumo. A reação puritana à questão do dinheiro transparece na ênfase dada à diligência. Os puritanos enfatizaram a diligência por crer de coração na santidade de todo trabalho honrado. Rejeitaram completamente a antiga separação entre as coisas sagradas e as seculares. Para eles, vocação era a expressão da vida espiritual da pessoa. No periódico The Tradesman’s Calling, Richard Steele declarou que é no local de trabalho “que se pode, com maior confiança, esperar a presença e a bênção de Deus”.7 Sua vocação era um chamado de Deus. Cotton Mather declarou: “Oh! Possa todo cristão caminhar com Deus quando executa o trabalho para o qual foi chamado, agir em sua ocupação sem perder Deus de vista, agir como se estivesse sob as vistas de Deus”.8 O trabalho era uma oportunidade de glorificar a Deus e servir ao próximo. Eles também enfatizavam a moderação no trabalho. Desprezavam a mentalidade que transformava o trabalho em vício tanto quanto desprezavam a indolência. Como a finalidade do trabalho era a de honrar a Deus, em lugar de ganhar dinheiro, trabalhar em excesso poderia ser um mal tão grande quanto trabalhar 5 Santa Maria, frade Hugolino dos Montes. The little flowers of Saint Francis [Pequenas flores de São Francisco]. Garden City, Nova York: Image Books, 1958, p. 227. 6 Id., ibid., p. 222. 7 Leland RYKEN. “Puritan work ethic: the dignity of life’s labors” [“A ética puritana do trabalho: a dignidade das obras da vida”], in Christianity Today, edição de 19 de outubro de 1979, p. 15. 8 Id., ibid., p. 16. DINHEIRO, SEXO E PODER NA PERSPECTIVA CRISTÃ 23 pouco. Richard Steele afirmou que a pessoa não deveria “acumular duas ou três atribuições apenas para aumentar suas riquezas”.9 Precisamos ouvir hoje o que eles diziam — nós, que achamos o trabalho uma função inexpressiva e enfadonha; que somos tentados pela indolência e pela preguiça. Devemos dar ouvidos ao que dizem a nós, que somos viciados em trabalho, que acumulamos vários empregos para ascender economicamente. Podemos nos alegrar pelos votos monásticos de pobreza e pelo zelo puritano em relação à diligência, mas precisamos hoje de um tipo de voto que responda de forma criativa e corajosa à questão do dinheiro. É necessário que esse voto rejeite a sede atual de riquezas, mas sem pender para um asceticismo mórbido. Deve ser um voto que nos conclame a usar o dinheiro sem lhe servir, que submeta o dinheiro à vontade e aos caminhos de Deus. OS VOTOS HISTÓRICOS : SEXO Hoje em dia, as pessoas estão irremediavelmente confusas com relação à sexualidade. Para muita gente, a palavra “amor” nada significa além de ir para a cama com alguém. Não são poucos os que consideram manter um caso amoroso como questão de honra. Todos os antigos fundamentos de permanência e fidelidade parecem ter sofrido erosão. Desnorteada pela confusão de nossos tempos, muita gente sincera luta hoje para definir sua própria sexualidade. O voto de castidade foi a resposta monástica à questão do sexo. Os monges estavam dizendo muito mais que um simples “não”. Eles renunciaram ao casamento a fim de aprender o significado da disponibilidade. A castidade ergueuse como testemunho de um santo espaço vazio em um mundo curvado sob o peso de relacionamentos interpessoais. Tomás de Aquino disse ser o celibato um vacare Deo, “um lugar vago para Deus”. “Ser celibatário”, observa Henri Nouwen, “significa estar vazio para Deus, estar livre e aberto para a sua presença, estar disponível para o seu serviço”.10 O voto de castidade também testifica contra a auto-indulgência desenfreada. Faz-nos lembrar que a disciplina e a negação são imperativos do evangelho. 9 Id., ibid., p. 18. Henri J. M NOUWEN. Clowning in Rome: reflections on solitude, celibacy, prayer, and contemplation [Um bobo em Roma: reflexões sobre a solitude, o celibato, a oração e a contemplação]. Garden City, Nova York: Image Books, 1979, p. 45. 10 DINHEIRO, SEXO E PODER 24 Veja bem: nossa intoxicação sexual é apenas a representação de uma disposição para a falta de controle e de sobriedade que predomina no mundo em que vivemos. O irmão franciscano Giles disse certa vez: “Para mim, castidade significa manter vigilância sobre todos os sentidos, com a graça de Deus”.11 Se existe algo de que precisamos hoje é aprender a “manter vigilância sobre todos os sentidos, pela graça de Deus”, e se o voto de castidade pode servir como lembrete dessa necessidade, prestou-nos enorme serviço. Precisamos ouvir hoje o que eles diziam — nós, que temos um medo desesperador de ficar sozinhos; que tentamos colocar relacionamentos interpessoais no lugar de Deus. Devemos dar ouvidos ao que dizem a nós, que estamos enredados no narcisismo de nossos dias, que evitamos a disciplina como se fosse uma praga. Fidelidade foi a resposta dada pelos puritanos à questão do sexo. Infelizmente, os benefícios desta resposta têm sido obscurecidos para nós por causa de distorções absolutas da lógica puritana. O equívoco, de fato, chegou a ponto de fazer com que a palavra “puritano” funcione hoje como um substantivo, definindo alguém atormentado por tabus sexuais e inibições doentias. Na realidade, esta definição se aplica mais aos melindrosos vitorianos do século XIX do que aos puritanos dos séculos XVII e XVIII. Não eram ascetas rígidos, mas pessoas que sabiam rir e amar. Em 1660, Fritz-John Winthrop incumbiu John Haynes de comprar um par de ligas com o qual Winthrop desejava presentear sua noiva. Em carta enviada junto com as ligas, Haynes brincou com Winthrop, dizendo: “Você ficaria contente em ter uma dama com pernas e tudo”.12 Em um sermão para casamento, em 1694, John Cotton contou a história de um casal que havia resolvido levar uma vida contemplativa, sem relações sexuais, e ele classificou tal decisão como “zelo cego”, observando que “não provinha daquele Espírito Santo que disse: ‘Não é bom que o homem esteja só’”.13 Eles buscaram chegar à compreensão de uma base cristã séria para o casamento e a vida em família. Talvez seu desvio mais radical do ponto de vista 11 Santa Maria, frade Hugolino dos Montes. Op. cit., p. 274. Proceedings, Massachusetts Historical Society, vol. 21, p. 123, citado por Edmund S. Morgan em The puritan family: religion and domestic relations in seventeenth-century New England [A família puritana: religião e relações domésticas na Nova Inglaterra do século XVII], edição revisada. Nova York: Harper & Row, 1966, p. 64. 13 Id., ibid., p. 62,3. 12 DINHEIRO, SEXO E PODER NA PERSPECTIVA CRISTÃ 25 católico-anglicano tenha sido sua convicção de que o companheirismo era o principal propósito do casamento, e que uma sexualidade saudável dentro do matrimônio era parte vital desse companheirismo. Francis Bremer observou: “Não há base para o estereótipo do puritano como uma pessoa excessivamente pudica e legalista em relação ao sexo. (...) Conforme seus diários, cartas e outros escritos deixam evidente, os puritanos estavam muito mais à vontade discutindo questões sexuais do que muitos de seus descendentes”.14 Eles se esforçaram também para construir uma base cristã para o divórcio e um novo casamento. A respeito deste assunto, na realidade, os puritanos foram os liberais de sua época. Eles rejeitaram a proibição da Igreja medieval em relação ao divórcio a partir de bases bíblicas e práticas. William Perkins defendia o divórcio por infidelidade, abandono, enfermidade e insanidade, com os mesmos direitos para homens e mulheres.a John Milton defendeu a incompatibilidade como base válida para o divórcio, visto que a teologia puritana colocava o companheirismo como o propósito principal do casamento.15 Precisamos ouvir hoje o que eles diziam — nós, que vamos de um casamento a outro com a maior facilidade. Devemos dar ouvidos ao que dizem a nós, que colocamos fardos insuportáveis sobre as pessoas em nosso zelo frenético por conter a onda de divórcios. Podemos apreciar o voto monástico de castidade e o zelo puritano de fidelidade, mas precisamos hoje, com urgência, de um tipo de voto que responda de maneira franca e compassiva à questão do sexo. É necessário que esse voto confirme a sexualidade que nos foi dada por Deus sem incentivar a promiscuidade. 14 Francis J. BREMER. The puritan experiment [A experiência puritana]. Nova York: St. Martin’s Press, 1976, p. 177,8. a M. M. KNAPPEN. Tudor Puritanism: a chapter in the history of idealism [O puritanismo no tempo da família real de Tudor: um capítulo na história do idealismo]. Chicago: The University of Chicago Press, 1939, p. 459-61. Esse capítulo na história do puritanismo é realmente muito interessante e não está livre de controvérsias. Uma interessante amostra dos debates que proliferaram sobre esse assunto pode ser vista com a leitura de John Rainolds: A defence of the judgment of the reformed churches: that a man may lawfullie not on1y put awaie his wife for her adulterie but also marrie another [Uma defesa no julgamento das igrejas reformadas: que um homem possa não apenas repudiar sua esposa por adultério, mas casar de novo, de acordo com a lei], de 1609, e a resposta de Edmund Bunry: Of divorce for adulterie and marring again [Sobre o divórcio por adultério e um novo casamento], de 1610. 15 Id., ibid., p. 177. DINHEIRO, SEXO E PODER 26 Deve ser um voto que dê integridade à experiência conjugal sem depreciar a disposição ao celibato, que defina os parâmetros morais de nossa sexualidade, dentro dos quais ela possa se expressar com alegria. OS VOTOS HISTÓRICOS : PODER A idolatria de hoje é a idolatria do poder. Não são poucos os livros que apelam para nossas paixões maquiavélicas. No mundo contemporâneo, de modo geral, líderes políticos dispendem mais energias em manobras para conquistar uma posição do que servindo ao bem comum. Os executivos do mundo dos negócios importam-se mais em permanecer no topo do que em produzir algo útil; acadêmicos e intelectuais buscam sofisticação mais do que a verdade; e líderes religiosos preocupam-se mais com a sua imagem do que com o evangelho. Em meio a essa sociedade enlouquecida pelo poder, muitos cristãos perguntam-se como viver com integridade. O voto de obediência foi a resposta monástica à questão do poder. Eles renunciaram ao poder a fim de aprender o significado do serviço. Ora, se os votos de pobreza e castidade são incompreensíveis para os homens e mulheres modernos, o voto de obediência é absolutamente condenável. A simples idéia de que alguém — qualquer pessoa — tenha o direito de interferir de alguma forma em nossa vida é tão contrária a tudo em nossa sociedade que ira e hostilidade são nossas reações quase automáticas. Os monásticos, entretanto, estavam tentando aprender a servir através do voto de obediência. A obediência era uma forma intensa de confessar sua vida coletiva. Eles tinham de prestar contas e eram responsáveis uns pelos outros. Pela obediência, procuravam se submeter ao governo legítimo de Deus, exercido através de outros. Em certa ocasião, Francisco de Assis pediu à irmã Clara e ao irmão Masseo que buscassem saber a vontade do Senhor com relação a seu ministério. Quando eles voltaram, ele ajoelhou-se e perguntou: “Qual a ordem de meu Senhor Jesus Cristo para mim?”16 Veja bem, ele não perguntou qual era a opinião ou o conselho deles, mas quais as ordens que haviam recebido para lhe transmitir. Debaixo da “santa obediência”, ele deixou de lado seu próprio caminho para 16 Santa Maria, frade Hugolino dos Montes. Op. cit., p. 75. DINHEIRO, SEXO E PODER NA PERSPECTIVA CRISTÃ 27 dar ouvidos ao caminho de Cristo, e, pelo menos nessa ocasião, aprendeu a ouvir através de outros. Leonardo Boff fez uma boa colocação desse conceito quando afirmou: “A obediência é a mais importante decisão livre que se faz para Deus”.17 Talvez o voto da obediência nos ajude a ver de forma mais plena que só nos encontramos de fato quando nos perdermos de nós mesmos. Precisamos dar ouvidos hoje ao que diziam — nós, que não desejamos prestar contas a ninguém; que não desejamos ser responsáveis por ninguém. Devemos dar ouvidos ao que dizem a nós, que temos um desejo insaciável de poder e status; que achamos humilhante servir ao próximo. Ordem foi a resposta dos puritanos à questão do poder. Na Igreja, a ordem foi edificada em torno do conceito da “Aliança Visível”, que era um compromisso mútuo de apoio e prestação de contas. O propósito desta responsabilidade e deste cuidado mútuos era o de dar “poder eclesiástico de um sobre o outro, mutuamente”.18 E quando a finalidade desse “poder eclesiástico” foi a de incitar um ao outro ao amor e às boas obras, tornou-se muito útil. No governo, a ordem foi edificada em torno da idéia de “Santa Comunidade”. A visão era certamente ambiciosa: um governo baseado na Bíblia, com magistrados para executar a vontade de Deus. Devemos dar aos puritanos o crédito por haver procurado usar o poder do Estado para desenvolver fibra moral na vida pública, assim como na vida privada.b 17 Leonardo BOFF. God’s Witnesses in the Heart of the World [Testemunhas de Deus no coração do mundo]. Chicago, Los Angeles, Manila: Claret Center for Researches in Spirituality, 1981, p. 149, conforme citado em Francis J. Moloney em A life of promise: poverty, chastity, obediente [Uma vida de compromisso: pobreza, castidade, obediência]. Wilmington, Delaware: Michael Glazier, 1984, p. 152. 18 Thomas HOOKER. The Cambridge platform, cap. 4, par. 3, conforme citação de Herbert Wallace Schneider em The Puritan Mind [A mente puritana]. Nova York: Henry Holt, 1930, p. 19. b A visão puritana da ordem teve também conseqüências negativas. Quando esse “poder eclesiástico” foi direcionado para a eliminação de hereges, como sucedeu nos julgamentos das bruxas em Salém, no Estado de Massachussetts, nos Estados Unidos, ele azedou. Podemos, naturalmente, descobrir muitas deficiências semelhantes nos votos monásticos. Dinheiro, sexo e poder são coisas muito sedutoras, e, mesmo em roupagens religiosas, as tentações de manipular e controlar, de suprimir e oprimir são enormes. 28 DINHEIRO, SEXO E PODER Precisamos dar ouvidos hoje ao que diziam — nós, que rejeitamos toda ordem e autoridade. Devemos dar ouvidos ao que dizem a nós, que amamos nosso próprio caminho mais do que amamos a comunhão divina. É evidente que o voto monástico de obediência e o zelo puritano pela ordem podem nos ensinar muitas coisas, mas a necessidade clamorosa dos dias de hoje é a de um novo tipo de voto que responda criativa e positivamente à questão do poder. É necessário que esse voto consiga se valer do lado bom do poder sem ficar obcecado por sua face sombria. Deve ser um voto que coloque a autoridade e a submissão em um equilíbrio apropriado; que ofereça um modelo de liderança dentro do contexto de serviço. Q UANDO COISAS BOAS FICAM RUINS Existe, é claro, um lugar apropriado na vida e na experiência cristã para dinheiro, sexo e poder. Quando são colocados no lugar certo e funcionam eficientemente, eles têm mais capacidade do que qualquer outra coisa para embelezar a vida e ser uma bênção. O dinheiro, por exemplo, pode enriquecer a vida humana de maneiras maravilhosas. Alimentação, casa, educação — estas são coisas que o dinheiro pode ajudar-nos a adquirir. Por mais de uma vez vi estudantes literalmente pulando de alegria ao descobrir uma forma de financiar seus estudos. Ou, na área sexual, já aconselhei e orei com jovens casais que foram maravilhosamente transformados pela cura de um antigo problema íntimo ou por uma nova compreensão de sua sexualidade. O poder pode ser usado pelas pessoas com legítima autoridade espiritual para abençoar e dar liberdade a praticamente todos que as cercam. Já vi pessoas cuja simples presença já era enriquecedora por si. Mais uma vez: quando colocados no lugar certo e funcionando de forma eficiente, o dinheiro, o sexo e o poder têm uma enorme capacidade de beneficiar a vida humana. Descobrir esse exato lugar e como eles devem funcionar bem será a tarefa que permeará todo o conteúdo deste livro. Dito isso, precisamos também enfatizar, sem cessar, que estamos tratando de temas explosivos, que podem facilmente transformar-se em demônios, fazendo de nossa vida uma enorme tristeza. O demônio no dinheiro é a cobiça. Nada pode destruir seres humanos como a paixão por possuir coisas. Em O idiota, Dostoievsky coloca na boca de um de DINHEIRO, SEXO E PODER NA PERSPECTIVA CRISTÃ 29 seus personagens a seguinte observação: “Todo mundo está possuído por tamanha cobiça hoje em dia, estão todos tão dominados pela idéia de dinheiro, que parecem ter enlouquecido”.19 O demônio no sexo é a luxúria. A verdadeira sexualidade conduz à humanização, mas a luxúria conduz à despersonalização. A luxúria algema, em vez de emancipar; devora, em vez de nutrir. O demônio no poder é a ambição. O verdadeiro poder tem como seu objetivo libertar as pessoas, ao passo que a ambição está determinada a dominar. O verdadeiro poder embeleza os relacionamentos; a ambição os destrói. Os demônios da cobiça, da luxúria e da ambição podem ser exorcizados, mas permita-me avisar que tais exorcismos não são fáceis nem rápidos.c Exorcismos apressados geralmente expulsam anjos junto com os demônios. E assim que os demônios se vão, é melhor saber com clareza o que vai preencher o vazio que deixaram, pois lugares vazios não permanecem assim por muito tempo (Mt 12:43-45). Precisamos compreender que esses não são assuntos sobre os quais possamos permanecer neutros e esperar que desapareçam. Se falharmos na expulsão dos demônios da cobiça, da luxúria e da ambição, estaremos fadados a cair sob seu domínio. Eles podem ter a aparência de anjos, mas, não obstante, serão poderes demoníacos. Podemos tomar o dinheiro e usá-lo para ajudar os outros, mas se ele trouxer em si a semente da cobiça, colocaremos as pessoas na posição de devedoras e os efeitos serão devastadores. E quando a cobiça está vinculada à iniciativa da doação, é particularmente destrutiva por parecer tão boa, tão semelhante a um anjo de luz. Quando somos movidos pelo espírito da cobiça, uma atitude permeada de paternalismo envenena todo o empreendimento. Quando a cobiça motiva nossa doação, ainda estamos tentando nos beneficiar com a transação. É por isso que o apóstolo Paulo diz que podemos dar tudo o que temos, mas, se não tivermos amor, “nada disso me aproveitará” (1Co 13:3). 19 Fyodor DOSTOIEVSKY. Op. cit., p. 156. A referência que faço aqui a “demônios” e exorcismo é puramente metafórica. Não estou sugerindo que qualquer pessoa que demonstre características de cobiça ou luxúria ou orgulho esteja “possessa” e que precise de exorcismo. c DINHEIRO, SEXO E PODER 30 Quando nos reportamos à experiência sexual, descobrimos que também a luxúria pode ter a aparência de um anjo de luz. Ela aprisiona a outra pessoa, e, mesmo assim, o encarceramento pode parecer bom sob muitos ângulos. Ele promete segurança e salvaguarda de um mundo hostil. De fato, muita gente entra no relacionamento conjugal impulsionada pela luxúria, em lugar de fazêlo pelo amor, porque os dois geralmente se identificam tanto. Mas a conseqüência final da luxúria é a desumanização, na qual o mais importante não é a pessoa em si, mas o fato de tê-la. As pessoas tornam-se coisas a ser adquiridas, prêmios a ser conquistados, objetos a ser controlados. “Minha esposa” ou “meu marido” tornam-se “meu brinquedo”. Ou podemos tomar o poder e usá-lo de formas boas, mas se a força demoníaca da ambição ainda estiver presente, o resultado final será manipulação, domínio e tirania. A tragédia de Jonestownd é um exemplo gritante. Ali estava um empreendimento que começou como um nobre ministério, mas terminou em destruição. O poder, infestado pela ambição, certamente promoverá o crescimento da egomania. UM NOVO CHAMADO À OBEDIÊNCIA Como viver fielmente hoje com relação às questões de dinheiro, sexo e poder? Essa é a pergunta que exige uma resposta imediata. Ela não surgirá de maneira rápida ou fácil; exigirá o melhor de nossa capacidade de pensamento e a maior devoção possível. O movimento monástico, com seus votos de pobreza, castidade e obediência, foi uma tentativa de responder a essa pergunta dentro do contexto de uma determinada cultura. Os esforços dos puritanos para levar a convicção monástica para a vida cotidiana através de seu zelo com a diligência, a fidelidade e a ordem foram uma tentativa de responder a essa mesma pergunta dentro do contexto de uma cultura bem diferente. O problema com que nos defrontamos agora é: como responder a essa pergunta dentro do contexto de nossa própria cultura? d Referência ao suicídio e assassinato em massa promovido em novembro de 1978, quando 913 pessoas, a maioria delas seguidoras de uma seita denominada Templo do Povo, liderada pelo reverendo Jim Jones, morreram nas selvas da Guiana. (N. do T.) DINHEIRO, SEXO E PODER NA PERSPECTIVA CRISTÃ 31 Muito podemos aprender com os diferentes grupos do passado que tentaram viver em obediência, mas não podemos tratar as questões de dinheiro, sexo e poder da mesma forma que o fizeram. Vivemos em outra época. Enfrentamos muitos problemas que nem mesmo existiam para eles. Novas situações exigem respostas novas. Assim, defrontamo-nos com a necessidade de formular uma resposta contemporânea para as questões de dinheiro, sexo e poder. Em nosso tempo, precisamos de uma nova articulação de votos cristãos. Tais votos constituirão um novo chamado à obediência a Cristo em meio à sociedade de hoje. A necessidade é enorme. A tarefa é urgente. Nosso século anela por uma nova demonstração de vida plena de júbilo, confiança e obediência. Que possamos ser essa demonstração.