236 237 Letra, N°18, Verano 1990, p.43. (11) LE BOT, Marc "El arte

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236 237 Letra, N°18, Verano 1990, p.43. (11) LE BOT, Marc "El arte
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Letra, N°18, Verano 1990, p.43.
(11) LE BOT, Marc "El arte mediático", La Letra, Ano II, N°2,
Buenos Aires, 1991.
Representação e Identidade: Shakespeare nos Anos 40
Tliais Flores Nogueira Diniz
Universidade Federal de Ouro Preto
Num momento em que texto, aqui amplamente considerado
como produto cultural, é visto como absorção, réplica a outro texto ou
a vários, e em que o que era entendido como relação de dependência
ou dívida para com o antecessor passa a ser compreendido como um
procedimento natural e contínuo de re-escrita, pretendo não só identificar
as relações entre a peça de Shakespeare, Henrique V, e uma de suas
versões cinematográficas, mas também analisar os motivos que geraram
essas relações. A peça foi resgatada pelo cineasta Laurence Olivier, que
se apropriou do texto, não posso dizer se passiva ou corrosivamente, se
destruindo-o ou prolongando-o. O que pretendo é apontar alguns
procedimentos efetuados, indagando as razões que levaram o cineasta
a reler o texto de Shakespeare no século XX, especificamente em 1944,
e que novos sentidos lhe foram atribuídos (Carvalhal).
Ao fazer isso, estarei mostrando que a representação, a idéia,
aquilo de que é imagem no ato da lembrança, resulta em conhecimento
da identidade. Esta se define como uma experiência emocional que
permite a cada ser perceber-se como entidade única, apesar de suas
contínuas transformações. É a contradição de "ser-si-mesmo" deixando
de sê-lo. O conceito de identidade opõe-se ao de alteridade e o
reconhecimento da identidade de dois ou mais objetos, ou sua
identificação, pressupõe sua alteridade, que lhes permite continuar "o
mesmo", persistir no seu ser (Greimas & Courtés).
Dessa maneira, os conceitos de identidade e representação estão
intimamente ligados, principalmente no processo de tradução de uma
peça de teatro, à qual se vai permitir ser outro, neste caso, o filme, —
a tradução em outro tempo e em outro meio — enquanto continuará a
ser ela mesma, a peça de Shakespeare, escrita no século XVI.
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Desde os anos 60 e 70, as questões de defesa da honra do cinema
como forma de arte e a questão da eficácia ou não da tradução das
peças de Shakespeare para o cinema vêm desaparecendo e deixando
lugar para a questão política. O fato é que a adaptação fílmica de
Shakespeare continua ocorrendo. A atenção dos estudiosos se volta,
então, não para a eventual existência da adaptação, mas para suas
prováveis implicações, pois novas abordagens estão sempre substituindo
outras mais velhas. No século XVIII, por exemplo, condenou-se a faka
da forma clássica e do "decorum", no século XIX, sugeriu-se a
apresentação de Shakespeare em grandes anfiteatros e censurou-se sua
obcenidade. Já no século XX, tenta-se uma revitalização da obra de
Shakespeare sob novos ângulos. O fato é que cada era sempre condena
as interpretações da era anterior e em cada uma existe o desejo conflitante
de ver uma produção de Shakespeare ao mesmo tempo renovada e
fiel, apesar da certeza da impossibilidade de se recapturar a natureza
e o contexto da performance original. Adaptamos as peças hoje pela
sua contínua importância para nós e pela necessidade de entendê-las,
mesmo sabendo que Shakespeare nunca esteve totalmente ligado a seu
tempo, a seu lugar e às convenções teatrais (Ferrara).
Podemos dizer que as características artísticas e culturais do
cinema inglês e americano são o resultado direto do desenvolvimento
econômico da indústria, mas isto é raramente conhecido dos historiadores
do cinema. Estes apresentam as transformações na técnica e pTodução
fílmica como desenvolvimento inevitável. Isso acontece porque a
ideologia esconde as relações econômicas reais dentro da sociedade,
fazendo com que o código dominante pareça natural e inevitável.
A maioria das histórias de cinema começa com a chegada dos
filmes (moving pictures) no fim do século XIX. Em seguida, discute o
nascer da indústria cinematográfica durante o período do pós-guerra, e
finalmente aceita que o cinema emergiu, como um meio totalmente
independente, com a invenção do som em fins dos anos 20. Essa visão
evolutiva se liga ao conceito de linguagem fílmica, código de edição e
representação, que é peculiar ao meio cinematográfico, e que vem
formulado para expressar a essência das capacidades representacionais
do cinema. Entretanto, uma nova corrente de estudiosos está trabalhando
para desconstruir essa linguagem aceita, recolocando-a como uma parte
importante da expansão econômica durante e após a primeira guerra.
Eles não aceitam, por exemplo, que os filmes de Shakespeare sejam
apenas parte de uma tradução do palco para a tela, pois a história revela
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que, no estágio inicial do cinema, este e o teatro existiram numa relação
muito próxima, tanto econômica como estética.
Com a mudança dos rumos da crítica nos últimos dez anos, a
análise formalista e prescritiva dá lugar a uma análise de filmes em seus
momentos históricos e sociais. Em vez de afirmar que o filme é o produto
de uma mente única, ela reconhece que sua forma, conteúdo e posição
cultural são determinadas pelas forças econômicas e políticas que
condicionam sua produção. Mas o inverso também se dá: contradições
sociais e econômicas de uma economia capitalista se manifestam num
texto ou filme com uma pluralidade de discursos e imagens. No caso
dos filmes de Shakespeare, o processo é composto pelo status mitológico
que Shakespeare e suas obras conseguiram na sociedade contemporânea.
A reprodução de Shakespeare vem ocorrendo, historicamente, como
qualquer outro mito: reprodução de um conjunto de crenças, imagens,
estruturas e motivos, mesmo que sejam contraditórios. Embora algumas
leituras sejam idealizadas como corretas e universais, a posição de
Shakespeare é, de fato, pluralística. Shakespeare não é apenas um corpo
específico de textos, mas uma área abrangente de prática cultural que
engloba filme, teatro, literatura, educação e história. Por isso, nenhum
filme é uma obra fechada, hermética, com um conjunto de significados
específicos coerentes, mas a soma de um número de discursos escolhidos
entre as várias áreas de produção. Conhecer o lugar específico de um
filme de Shakespeare dentro das estruturas políticas e econômicas é
reconhecer o mecanismo de ideologia e suas fontes políticas. A crítica
ortodoxa acredita que a obra de Shakespeare seja universal e por isso
marginaliza, como fatores irrelevantes na produção de um filme, as
condições materiais da sociedade. A melhor maneira de desafiar essa
crítica é reincorporar cada filme no seu momento histórico (Collick).
Durante muitos anos, a crítica leu as peças históricas de
Shakespeare ou como textos abertamente políticos, ou como
entretenimento dramático ou ainda como parte do amadurecimento
pessoal do autor. Em alguns aspectos, a peça Henrique V pode ser
considerada uma peça política: o rei descobre conspirações domésticas
e as pune, unifica a Grã-Bretanha com a incorporação da Escócia, une
a Inglaterra e a França usando a lei de sucessão, etc. A história aqui
nada mais é do que uma história de formas de desordem sobre as quais
o rei triunfa porque, sozinho, incorpora as contradições que podem
destruir o serviço do Estado e faz o processo político descontínuo parecer
um momento coerente. É a literatura da Renascença expondo sua política
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enquanto desmistifica formas específicas de poder.
Apesar das mudanças radicais acontecidas nos palcos da Europa
no início do século XX, Shakespeare nunca deixou de ser associado a
uma representação idealizada da história. Em 1930, o cinema britânico
sentiu-se suficientemente confiante para tentar estabelecer-se como um
meio de identidade nacional. Apesar de tentativas de revitalização, os
filmes de Shakespeare eram ainda similares aos filmes do cinema mudo.
A despeito de se usar a Inglaterra Renascentista como fonte de material
para esses filmes, somente em 1944 com o filme Henrique V, de
Laurence Olivier, é que Shakespeare se tornou um cinema diferente.
Mesmo assim, muitos códigos de representação usados no cinema mudo
de antes da guerra ainda se encontravam presentes. Um exemplo é a
cena em frente a Hartfleur: com o cenário entulhado, guerreiros se
amontoando e um naturalismo pitoresco, esta cena se assemelha a um
quadro vivo do melodrama. Certamente o contexto da Inglaterra
sitiada, no princípio dos anos 40, foi ideal para um reviver do estilo
patriótico de representação usado em filmes anteriores. O filme de Olivier
satisfez as pretensões culturais da audiência e serviu também de base
para a idéia mítica de que existia uma cultura literária britânica,
totalmente integrada. No filme, Olivier omitiu uma série de cenas ou
parte delas, talvez com intenção de amenizar ou esconder tudo que
pudesse lançar dúvidas no caráter do rei ou em seus motivos: parte da
ameaça da Hartfleur, a morte de Bardolfo, o assassinato dos prisioneiros
franceses e dos traidores ingleses e ainda alguns trechos ambíguos. Não
é de se estranhar que, após ter purificado ao máximo o caráter do rei, o
filme tenha sido oferecido às Forças Armadas.
O filme começa nos tempos de Elizabeth, com a câmara
passeando por um mapa da Londres de Shakespeare e finalmente
focalizando o teatro O Globo. Mostra, em seguida,a audiência enchendo
o teatro, e passa para os bastidores, captando a excitação dos atores
preparando-se para a encenação. Fica implícita a distinção entre o que
um dramaturgo faz para criar uma ilusão teatral aceitável e a maneira
como um diretor usa a câmara para criar uma ilusão da realidade
plausível. Daí o filme parte para um mundo semi-fantástico, emoldurado
por pinturas medievais. Os cenários de Henrique V foram baseados em
pinturas do artista medieval Paulo de Limburgo. A escala não-naturalista
e a ausência do ponto-de-fuga da perspectiva pós-renascentista foram
criados fielmente. A impressão causada é a de uma beleza idealizada e
simbólica, especialmente nas cenas firmadas na vila de Agincourt e no
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palácio de Rouen. O coro reforça essa imagem, sugerindo ser o mundo
de Henrique V um reinado imaginário que, para ser compreendido,
exige que a audiência "solte as asas da imaginação". As palavras do
coro, por certo, serviram de pista para Olivier que usou, em sua
adaptação fílmica, recursos técnicos inovadores. Deste mundo lírico, o
filme se transporta, em seguida, para a parte central da peça, a noite
anterior à batalha de Agincourt e o combate em si. É somente neste
episódio que nos confrontamos momentaneamente com a realidade,
como a percebemos normalmente. A partir daí, o desenvolvimento
estrutural é, então, revertido: a câmara volta passando pelas belezas de
Limburgo e termina no teatro outra vez, onde os atores terminam seu
espetáculo.
Os diferentes estilos de que é composto o filme podem servir de
paralelos aos diferentes mundos das personagens. O campo de batalha
realista, em estilo semi-naturalista, é o mundo de Henrique, lugar de
seu confronto com os franceses. O estilo estilizado ilusionista dos campos
franceses e do palácio é o mundo de Catarina. Neste mundo, o rei tem
de se tornar irreal para si mesmo para conquistar a princesa Catarina:
converte-se em um galanteador. Além disso, a artificialidade do cenário
da corte francesa reforça a impressão de intangibilidade dos franceses
(McLean).
Um outro paralelo possível se estabelece entre os diferentes estilos
do filme e as diferentes etapas da tradição inglesa de espetáculo. Em
sua obra Shakespeare, Film & Society, John Collick compara esses
estilos às raízes dos códigos de representação usados no melodrama
vitoriano, principalmente no que diz respeito ao desejo de transcender
os limites fixos do espaço do palco. Esses códigos fazem parte das técnicas
expressionistas de Eisenstein, que se desenvolveram em reação à
cenarização baseada em pinturas. O filme de Olivier contém,
representadas em fases, todas as características da produção britânica
de peças e filmes de Shakespeare, desde o teatro elizabetano até o
melodrama das eras vitoriana e eduardiana. Produzido a um tempo em
que a Inglaterra se achava fisicamente isolada do resto do mundo, o
filme reforçou a noção de que as obras de Shakespeare representavam,
em nível histórico e alegórico, a reafirmação contínua da identidade
nacional da classe-média. "Em um pedaço fechado da 'Inglaterra alegre',
simbolizado pela construção do interior do teatro O Globo, um grupo
de homens do povo representava as tentativas e os triunfos de um
'bando de irmãos' enfrentando o inimigo" (Collick: 50-51)
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Depois da segunda guerra mundial, os códigos de representação
perderam as poderosas e patrióticas associações ideológicas dos anos
40. Já no fim dessa década, a cultura homogênea do tempo da guerra
desaparecera e, em conseqüência do filme perdeu, naquele momento,
a autoridade emocional e ideológica que lhe era conferida em 1944. O
uso, por Olivier, de um espaço generalizado marca a transição entre
filmes patrióticos, como Henrique V, e as produções mais estilizadas
que apareceram posteriormente. O filme de Olivier marca, assim, o
declínio da tradição de teatro-espetáculo na Inglaterra e o início de
uma outra era.
Em 1990, a história de Henrique V é re-escrita pelo cineasta
Kenneth Branagh, em versão eminentemente naturalista. Cenas omitidas
por Olivier são retomadas, mas, ao se apropriar do texto, o cineasta o
transforma, resgatando, predominantemente, as fortes emoções das
personagens. Com esse procedimento, leva a audiência a mergulhar no
lado humano do mundo medieval, talvez esquecido pelas versões
anteriores. Produzido em um outro tempo, em que o nacionalismo
britânico se distancia de qualquer noção de cooperativismo e se liga à
noção de individualismo, o filme de Branagh se situa praticamente no
nível emocional. E a peça Shakespereana passa, então, a ter um outro
sentido, e nós, seus "leitores", passamos a resgatar uma outra identidade.
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