Reflexões sobre a Construção do Campo - Nepp-DH

Transcrição

Reflexões sobre a Construção do Campo - Nepp-DH
REFLEXÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO DO CAMPO RELIGIOSO A PARTIR DA
EXPERIÊNCIA FRANCESA 1
Angela Xavier de Brito
O estudo dos processos de secularização da sociedade, frequentemente conhecidos como processos de
laicização, é frequentemente contaminado pelas representações dos diversos grupos que se afrontam.
Este fato faz com que ele oculte uma forte dimensão ideológica, que os cientistas sociais devem recusar
a qualquer preço, sob pena de introduzir vieses estranhos à análise cientifica.
A análise lúcida desses períodos em que o Estado, enquanto esfera institucional separada da sociedade
civil, se confronta a forças externas, deve ser feita de maneira a evitar que o ponto de vista do
pesquisador, seja ele qual for, deturpe os fatos históricos ou selecione de maneira arbitrária suas fontes.
O pesquisador não deve, no entanto, ser considerado neutro. Ao contrário, o ponto de vista do
pesquisador deve sempre ser levado em conta como uma variável que integra a construção desse campo
complexo, na medida em que a sociologia mais recente demonstrou amplamente que, ao contrário do
que aprendemos, o conhecimento e o controle da subjetividade do pesquisador é a melhor garantia de
objetividade de uma pesquisa, na medida mesma em que a constante reflexividade (Bourdieu, 1997) e a
consciência atenta dessa subjetividade reduzem os riscos de viés (LeCompte, 1987 ; Peshkin, 1982,
1991). Devemos trabalhar no sentido de evitar as radicalizações das análises, como ocorreu em certos
estudos sobre a Guerra da Vendéia (1793-1796), onde os fatos mudavam segundo a sensibilidade
monarquista, tradicionalista, católica ou republicana dos autores.
A partir desses breves princípios metodológicos, proponho-me a analisar a experiência francesa em
matéria de laicização, que venho estudando há alguns anos, para dela tirar um quadro teórico que nos
ajude a analisar dentro de um espírito de complexidade as congregações católicas na sociedade
brasileira.
As diferentes etapas da laicidade na França
Os autores que se debruçaram sobre a questão da laicidade na França mostram que os embates entre o
Estado francês e as diferentes religiões obedecem a limites ou fronteiras que se repetem a
aproximadamente um século de distância e estabelecem modelos de relações em ligação com cada um
desses períodos. É assim que Baubérot (2007) estabelece três fases de laicidade na França, fases que
Cabanel (2007) aprofunda considerando a existência de cinco modelos de atuação — que vou tentar
resumir como base de minha análise.
A primeira fase se dá no século XVI (fim da Idade Média, por volta de 1450-1500), quando a
hegemonia incontestável da igreja católica — na época, a religião do Estado monárquico na França — é
ameaçada pelo desenvolvimento e afirmação do protestantismo. A situação é tão tensa que chega a
provocar uma guerra, e tão importante a representação que os franceses tem dela que a literatura a
descreve em detalhes. Quem não ouviu falar no famoso e decisivo cerco de La Rochelle (1627-1628)
ordenado pelo Cardeal de Richelieu e descrito tanto por Alexandre Dumas (Les trois mousquetaires,
1844) quanto por Edmond Rostand (Cyrano de Bergerac, 1897) ? O sítio desse bastião protestante dura
cerca de um ano e culmina com a perda dos direitos políticos, militares e territoriais dos huguenotes.
Esse período culmina com a ação de Henrique IV, rei da França de 1589 a 1610, protestante convertido
1
Texto apresentado no I Colóquio Educação e Congregações Católicas no Brasil , em julho de 2010.
Observatório da Laicidade do Estado
www.nepp-dh.ufrj.br/ole
ao catolicismo por razões de Estado, que proclama o Edito de Nantes (1598), abrindo caminho a uma
pacificação. Pouco antes dessa época, no século XV, assistimos ao emergir dos nacionalismos, que se
opõem tanto ao feudalismo quanto ao “monopólio de fato e quase perfeito” (Bourdieu, 1974, p. 67) da
Igreja católica, ou seja, à fidelidade absoluta ao papa e ao rei de direito divino. A esse respeito, é
ilustrativa a cena IV da peça Saint Joan of Arc de Bernard Shaw, em que um capelão diz : “Quando ela
[Joana d’Arc2] ameaça expulsar os ingleses do solo da França, está evidentemente se referindo à
totalidade do território onde se fala francês. Para ela, o povo francófono representa o que as Sagradas
escrituras descrevem como uma nação. Pode chamar esse lado da heresia dela de nacionalismo, se
quiser : não há termo melhor. Digo-lhe apenas que esse sentimento é essencialmente anti-católico e anticristão ; porque a Igreja católica só conhece um reino, o reino de Cristo Rei. Divida-se esse reino em
nações e Cristo será destronado. Destrone-se o Cristo e quem protegerá nossas gargantas da espada ?”
Essa primeira fase comporta ainda o que Cabanel chama de “parêntese revolucionário” (1789-1800) —
onde os confrontos entre o Estado e a religião assumem proporções bastante drásticas, na medida em
que a queda do rei de direito divino e da aristocracia ameaça diretamente a religião católica 3. A abolição
do Ancien Régime se acompanha do fim dos privilégios eclesiásticos e da afirmação de princípios
universais, entre os quais a liberdade de consciência e a igualdade de direitos para todos, expressos
ambos na Declaração dos direitos do Homem. Mas logo depois de fechado o “parêntese revolucionário”,
em 1801, Napoleão I vai estabelecer uma Concordata com a igreja católica através do papa Pio VII,
onde o catolicismo perde sua qualidade de religião do Estado mas é reconhecido como a religião da
grande maioria do povo francês. É preciso também não esquecer que Napoleão I introduz o Código
Civil, que dissocia de maneira estável as leis e as normas religiosas (Baubérot, 2006). A religião católica
perde alguns privilégios institucionais — que passam a ser dados ao Estado — mas recebe em troca
concessões financeiras, o que abre caminho para mais de um século de paz e de estabilidade. Há mesmo
sob Napoleão I uma tentativa de se constituir um catolicismo gálico, uma religião nacionalista que
dividiria o campo religioso, a exemplo do protestantismo anglicano sob Henrique VIII na Inglaterra
(1530), onde a autoridade suprema de Roma se veria bastante enfraquecida.
Essa primeira fase dá lugar: a) a um processo de fragmentação institucional, na medida em que a Igreja
católica deixa de ser o baluarte institucional da França. Entre os privilégios que ela perde estão o direito
de manter os registros civis e o reconhecimento da predominância do casamento religioso sobre o
casamento civil. No entanto, essa fragmentação institucional é acompanhada de b) um reconhecimento
da legitimidade das religiões, onde o Estado reconhece que a população tem necessidades religiosas,
razão pela qual os cultos e seus ministros devem ser financiados pela coletividade. Existe também c) o
reconhecimento de um certo pluralismo religioso, com quatro religiões (católicos, huguenotes,
luteranos, judeus) reconhecidas como de utilidade social e financiadas pelo Estado, com direito à livre
prática de seu culto. Mas nenhum desses processos tem uma repercussão imediata sobre a população, na
medida em que há sempre uma histerese entre o factual e o simbólico.
A segunda fase se dá no fim do século XIX - início do século XX, sob a Troisième République
(1870-1940). Essa conjuntura se caracteriza pelo acesso da França à modernidade num contexto de
revolução industrial, através do desenvolvimento da urbanização e da racionalização da sociedade. A
igreja, “que cumpria anteriormente a função externa de legitimação da ordem estabelecida” (Bourdieu,
1974, p. 56), corre o risco de ser substituída pela lógica do Estado e se vê constrangida a lutar
2
Nascida em Domrémy (Lorraine) provavelmente em 1412-1413 e queimada na fogueira em Rouen, em 1431.
Relembrar a fase dita do Terror (1793-1794), onde há um processo de descristianização da sociedade e Robespierre tenta
impor uma religião de Estado, o culto ao Ser supremo.
3
Observatório da Laicidade do Estado
www.nepp-dh.ufrj.br/ole
abertamente pela preservação de seus privilégios. Mas o “enjeu” central da Troisième République não é
a luta contra a Igreja católica, como a propaganda ideológica da igreja apresentou durante muito tempo.
Os conflitos com a Igreja são mais uma conseqüência da política central do governo, ou seja, a
consolidação de um Estado republicano, dotado de uma burocracia civil4.
A grande extensão (setenta anos5) desse período faz com que ele recubra múltiplos “enjeux”. No inicio,
a França é um pais essencialmente agrícola, que está se recompondo de uma situação de conflito (guerra
contra os prussianos, 1870), onde os principais “enjeux” são simultaneamente econômicos e políticos.
Economicamente, a República tenta vencer a depressão dos anos 70, sobretudo através de seus
investimentos no exterior. O período que se sucede, chamado La Belle époque, vai de 1896 (fim da
depressão) até 1914 (inicio da Primeira guerra). A França atravessa uma fase de expansão colonial, de
despreocupação e de fé no progresso, que se traduz através de intenso desenvolvimento urbano
(construções luxuosas, pontes, estações ferroviárias, reforma Haussmann, torre Eiffel) e pela atenção
dada à irradiação cultural da França no exterior, representada pelas Exposições universais (1978, 1889,
1900) e pelas Exposições internacionais (1925, 1937 6). Politicamente, trata-se de sair de um regime
monárquico, instaurar e solidificar um regime republicano. A necessidade de estabilizar a vida política
provoca uma divisão no seio dos próprios monarquistas : aproxima os “orleanistas”, que aceitam uma
composição com o Estado, dos republicanos moderados ; e os afasta dos “legitimistas”, mais radicais,
que querem restaurar a monarquia. O campo republicano se torna assim mais forte, o que lhe permite
aprovar a emenda Wallon (1875) que trata das modalidades de eleição do presidente, consolidando a
República e infligindo uma derrota à monarquia. A República se consolida a ponto de fazer com que,
em 1879, a assembléia legislativa deixe Versailles, centro da monarquia, e venha se reunir em Paris,
símbolo da República.
Jules Ferry — ministro da Instrução pública entre 1879 e 1882 — visa então desenvolver uma
campanha de cidadania e respeito às leis republicanas dentro de um contexto de “integração” 7
(Durkheim, 1980, 2007) da França. Resumindo rapidamente o pensamento de Durkheim (2007), o
processo de integração só seria possível através de um modelo social de solidariedade orgânica apoiado
sobre uma divisão do trabalho, onde os indivíduos são interdependentes e tem necessidade uns dos
outros. Quanto mais a solidariedade se desenvolve, mais forte é a integração social. Nas sociedades
integradas, a transmissão cultural é feita por instituições especializadas — daí, a importância da escola.
Num primeiro momento, era importante homogeneizar a formação dos cidadãos — sobretudo do sexo
masculino, porque as mulheres não tinham direito ao voto 8 —, no sentido de construir uma nova
geração de cidadãos esclarecidos, capazes de transcender as solidariedades mecânicas locais, regionais,
religiosas. Para tanto, era necessário acabar com a hegemonia que a igreja católica tinha sobre as
4
Lembremos que, segundo Max Weber (1921), a burocracia pode ser comparada a um instrumento de dominação política e
pode mesmo exercer um certo poder sobre a população.
5
A titulo de comparação, a 5e République, atual, tem apenas 52 anos (1958-2010).
6
As duas últimas, ligadas aos aspectos técnicos e industriais da sociedade e consideradas “exposições da razão”, são a
Exposição Internacional das Artes decorativas e industriais modernas (1925) e a Exposição Internacional “Artes e Técnicas
na Vida moderna” (1937), cujo símbolo é a tela La fée électricité, de Raoul Duffy.
7
Para Durkheim, o processo de integração só é possível através de um modelo social de solidariedade orgânica, que se apóia
sobre uma divisão do trabalho, onde os indivíduos são interdependentes e tem necessidade uns dos outros. Quanto mais a
solidariedade se desenvolve, mais forte é a integração social.
8
O direito ao voto é conferido às mulheres na França em 21 de abril de 1944 pelo Comité français de la Libération
nationale, mas só foi utilizado pela primeira vez em 29 de abril de 1945, depois da Segunda guerra mundial — e bem depois
do Brasil, onde ele foi concedido em 1932 e confirmado em 1934.
Observatório da Laicidade do Estado
www.nepp-dh.ufrj.br/ole
instituições de ensino da França desde as leis Guizot (18339) — que incluía o catecismo entre os saberes
elementares obrigatórios a serem transmitidos no primário (Curtis, 2003) —, e Falloux (185010) —
conhecida por dar total liberdade de ação à igreja no campo educativo 11. A primeira medida de Jules
Ferry foi ordenar a expulsão dos Jesuítas do solo francês — que, como mostra Durkheim (1999),
pretendiam ao monopólio da formação das elites através dos colégios secundários que dirigiam,
rivalizando com a ação da Universidade. Em seguida, ele busca implantar uma dinâmica que leve à
criação de uma sólida tradição republicana, cujo principal instrumento é a escola obrigatória, laica e
gratuita para os meninos. Para tanto, ele obriga cada departamento a ter uma escola normal para a
formação dos professores primários (1879), torna as escolas gratuitas (1881) e obrigatórias (1882),
retira a instrução religiosa do programa escolar — mas lhe concede espaço dentro do tempo educativo
(criação da quinta-feira sem escola para o catecismo, querela dos locais). Ele se preocupa igualmente
com as liberdades individuais e coletivas: como presidente do Conselho (1° ministro) sob a presidência
de Jules Grévy, ele vota as grandes leis sobre a liberdade de reunião (1881), a liberdade de imprensa
(1881), a liberdade sindical (1884), o divórcio (1884) e a liberdade de enterro (1887) — tirando cada
vez mais privilégios da Igreja.
As leis de secularização visam, na verdade, a libertar o cidadão da hegemonia exercida pela religião
sobre o campo político e cultural ; e a dissolver os laços históricos que o catolicismo continua a manter
com o Estado e com a população. No mesmo sentido, são decretadas mais tarde a lei sobre as
associações (1901) — que vai exigir que as congregações religiosas se submetam à autorização
administrativa para poder ensinar12, acarretando o fechamento e o “exílio oportuno” (Cabanel & Durand,
2005) de muitas ordens — e a lei de 1905 — que decreta a separação entre as igrejas e o Estado 13. Nesse
contexto, há efetivamente uma luta viva entre a República e a igreja católica — ainda mais que o
socialismo está emergindo como força na França14 e no contexto mundial. Diante da recusa da igreja
católica em se colocar em regra diante da lei, seus bens são nacionalizados (dando origem à “querela
dos inventários” e ao “delito de missa”). Ao tornar-se totalmente independente do Estado, a igreja
católica tem que se assumir totalmente do ponto de vista financeiro. O Estado deixa de remunerar os
padres, mas perde o privilégio de nomear os bispos. A separação entre o Estado e a igreja católica
mergulha de novo a França numa série de conflitos que a historiografia retrata durante muito tempo ora
do ponto de vista católico — que o apresentava como a substituição de uma religião de Estado por um
Estado sem religião15 que desejava submeter a igreja ao “jugo do Estado” (Guilbaud, 2004, p.164) —
ora do ponto de vista republicano — cuja ação visava a levar a igreja a se dobrar às leis republicanas,
como as demais instituições. Uma análise cientifica mais equilibrada, que mostra as divergências
internas e as concessões feitas de parte a parte, começa a emergir recentemente, sobretudo a partir de
9
Guizot era um conservador liberal que foi ministro da Instrução pública (1832-1840) da Monarchie de Juillet (1830-1848),
quando Louis Philippe Ier, do ramo dos Orléans, foi entronizado rei da França.
10
Durante a Deuxième Republique (1848-1852).
11
O conde Alfred de Falloux era um católico legitimista do Partido da Ordem, cujo programa político ele mesmo resume em
suas Mémoires pelas seguintes palavras : “Deus na educação, o Papa à cabeça da igreja, a Igreja à frente da civilização”.
12
Lembremos que a igreja jamais se submeteu às leis temporais. Por exemplo, o collège de Clermont, origem do Lycée Louis
le Grand, nunca buscou a autorização formal da universidade para funcionar. Ele abre suas portas em outubro de 1563 sem
autorização oficial, graças à subvenção do bispo de Clermont e às cartas patentes do Rei de 1610.
13
A lei visava bem o conjunto das igrejas. Se ela dá a impressão de afetar sobretudo a igreja católica, isso se deve, por um
lado, à sua importância numérica e simbólica na França do século XIX e por outro, ao fato de que os outros cultos
(protestantes, judaísmo) não tinham ligações históricas com o Estado francês.
14
Lembremos que Jean Jaurès, dirigente socialista, foi assassinado por se opor à guerra de 1914-1918.
15
Segundo a igreja católica, a lei de separação fora votada dentro de um espírito anti-clerical e seria a consequência lógica e
o fim da longa série de perseguições lançadas contra a igreja desde 1880 (Guilbaud, 2004, p.164).
Observatório da Laicidade do Estado
www.nepp-dh.ufrj.br/ole
meados dos anos 1990, através do trabalho dos historiadores. A sociologia pouco se interessou por essa
questão — à exceção talvez dos trabalhos de Jean Baubérot16.
O processo mais marcante dessa fase é d) a dissociação institucional, ou seja, a religião católica deixa
de ser a instituição estruturante da sociedade e de “exercer o papel forte de elemento regulador dos
costumes” (Julia, 1995, p. 377), cedendo lugar a novas normas políticas e sociais fundadas sobre o
universalismo republicano17. A República constitui o que se chama “o pacto leigo”, que alguns autores
descrevem como funcionando como uma religião civil, como “um quarto monoteísmo” (Pinto, 2004).
Vários trabalhos descrevem essa fase como um período de perseguição irracional à Igreja. Os autores
mais recentes insistem no entanto sobre a intransigência da hierarquia católica, cujo papa Pio X, em sua
encíclica Gravissimum officii de 10 de agosto de 1906, recusa toda e qualquer concessão ao governo e
“preconiza a resistência em bloco” (Guilbaud 2004, p.168) — apesar de que “a maioria dos bispos, das
personalidades laicas18 e dos católicos liberais tendia à aceitação das associações de culto” (Guilbaud
2004, p.166). A fase mais radical da laicização se passa durante o governo Combes 19, mas tem uma
duração relativamente curta : de 1902 a 1905 (quatro anos), enquanto que o período de tentativa de
acordos com a igreja dura 50 anos (de 1860 a 1902 e de 1906 a 1914). Desde 1918, com o fim da
primeira guerra, os historiadores vêem abrir-se uma fase conhecida como “laicidade de
incompetência”, ou seja, um período onde o Estado com freqüência vai se considerar inapto ou
incompetente para se pronunciar sobre as questões religiosas, cedendo o terreno progressivamente a
outras forças sociais. A igreja católica continua a manter uma forte influência simbólica na França, não
somente sobre sua população mas igualmente sobre uma grande parte de suas elites.
A terceira fase acontece no fim do século XX-início do século XXI, ou seja, nos dias atuais. A
conjuntura mostra uma integração da França à Europa e à globalização, onde “a religião volta a
contribuir para a imposição dos princípios de estruturação da percepção e do pensamento do mundo, em
particular do mundo social” (Bourdieu, 1974, p.33) — com o conseqüente recuo das instituições
estatais laicas, que revertem em beneficio do setor privado.
Há também uma maior visibilidade do fato religioso no espaço publico. O próprio Malraux, que era
ateu, não excluía “a possibilidade de um acontecimento religioso em escala planetária” no século XXI 20.
Cabanel chama esse modelo de e) desinstitucionalização da laicidade : as grandes instituições
republicanas, como a escola publica, o funcionalismo publico e a securité sociale, não cumprem mais
suas promessas e entram em crise — fenômeno que se passa simultaneamente à crescente escolarização
da sociedade e à necessidade de diplomas cada vez mais altos. Paralelamente ao fim das grandes forças
coletivas (partidos, sindicatos), assiste-se a um incremento da ideologia individualista na França, onde o
individuo tem todos os direitos e nenhum dever. O cidadão passa a se comportar apenas como
16
Não esqueçamos que a formação de base de Jean Baubérot é a história (Paris IV). Mas é bem verdade que, na França, a
história mantém com a sociologia laços antigos e partilha questionamentos similares.
17
Não esqueçamos que “católico”, em grego, quer dizer “universal”.
18
Personalidades locais ou homens políticos locais importantes que acumulavam vários mandatos.
19
Émile Combes foi presidente do Conselho de junho de 1902 a janeiro de 1905. Nesse período, ele proíbiu que as
congregações se ocupassem do ensino (1902), o governo francês rompeu relações com o Vaticano (1903), a igreja foi
oficialmente separada do Estado (1905) e foram fechadas mais de 2500 escolas dirigidas pelas congregações.
20
Atribui-se frequentemente a André Malraux a frase “O século XXI será religioso ou não existirá”. O próprio Malraux
retifica isso durante uma entrevista a Pierre Desgraupes (Le Point, 10/11/1975) : "Você sabe, colocaram em minha boca a
frase "O século XXI será religioso…". Eu nunca disse isso, está claro, porque não tenho como sabê-lo. O que eu disse
comporta uma margem bem maior de incerteza. Não excluo a possibilidade de um acontecimento espiritual em escala
planetária”.
Observatório da Laicidade do Estado
www.nepp-dh.ufrj.br/ole
consumidor, inclusive como um consumidor de escola (Ballion, 1982) e outros bens culturais. Os
sindicatos, esteios do sistema, vêem seus adeptos baixar de 90 a 5% aproximadamente e são reduzidos a
negociar com o Estado, coisas tão importantes quanto o direito de greve. Os partidos políticos
abandonam suas características tradicionais de representação de classe. O fato religioso marcante vai
acontecer em 1989, no governo Jospin, quando pela primeira vez o porte do véu islâmico nas escolas
públicas vai ser transformado em problema social — em decorrência do aumento de praticantes da
religião islâmica em solo francês depois da reunificação familiar (1974), no contexto da imigração
consentida. O véu é apresentado como uma ameaça à laicidade escolar, levantando uma nova querela
dos emblemas e signos religiosos, desta vez colocada sobre os ombros dos alunos — e não mais dos
professores, como em 1889. Assiste-se também à introdução velada do ensino religioso nos cursos de
história. Chama-se a esse período uma fase de “laicidade de informação”, na medida em que se
acredita que a difusão de informações sobre o fato religioso, sobretudo de informações históricas,
poderia ser benéfica à socialização da nova geração. As religiões, inclusive as antigas seitas 21, voltam a
adquirir uma parte de institucionalização no espaço republicano, uma nova legitimidade e um novo
reconhecimento sociais em função de sua suposta capacidade de manter a paz social.
Esse rápido resumo da historia francesa me permitiu esboçar os fatores intervenientes na construção do
campo religioso, segundo o conceito de Bourdieu (1992) e suas interações com o campo do poder.
Minha idéia é fornecer aqui os elementos de um quadro teórico que nos ajudem a levar a cabo a tarefa a
que nos propusemos : a análise das congregações católicas na sociedade brasileira do século XXI. É
praticamente impossível realizar essa tarefa sem analisar o campo religioso no Brasil. Ou seja, sem
compreender, de um lado, o papel da igreja católica no Brasil, incluindo suas ligações históricas com o
Estado brasileiro ; a composição do Estado brasileiro em cada conjuntura e suas reações diante do fato
religioso, assim que suas possíveis alianças ; o papel das igrejas no mundo atual ; o poder de cada igreja
e de cada seita ; e o recuo de antigas conquistas que pensávamos estabelecidas para sempre. De posse
deste esboço teórico, de informações sobre a história brasileira e dos dados de nossos questionários,
poderemos conceber a melhor maneira de analisar certas tendências atuais sem cair no sectarismo —
que se presta mais a igrejas, que pensam deter o monopólio da verdade, do que a instituições cientificas,
onde se impõem a dúvida cartesiana e a reflexividade.
Partirei assim do conceito de campo, tal como ele foi definido por Bourdieu (1992). Um campo é « um
conjunto de posições distintas e coexistentes em um mesmo espaço social, exteriores umas às outras,
definidas umas com relação às outras, por sua exterioridade mútua e por relações de proximidade, de
vizinhança ou de distanciamento, mas também de ordem e de hierarquia” (Bourdieu, 1992). O primeiro
passo na análise do campo é levar em conta a maneira pela qual foi construído — ou seja, sua história.
Assim, o que chamei até agora de fases são, segundo Bourdieu, “estados do campo” religioso, ou seja,
“estados conjunturais das relações de força entre as instituições e os agentes engajados na luta [ou, se
preferirmos], da distribuição do capital especifico acumulado durante as lutas anteriores, que contribui a
orientar as lutas ulteriores” (Bourdieu, 1980, p.114). Bourdieu distingue dois pólos extremos para
classificar os diferentes estados do campo religioso : de um lado, o auto-consumo religioso, a autoexegese, que recusa qualquer intermediação entre o fiel e seu deus ; do outro, a monopolização integral
da produção religiosa por “especialistas incumbidos da gestão dos bens de salvação” (Weber, 1995), ou
seja, o corpo sacerdotal, o clero. Como mostra ainda uma vez Bernard Shaw em Saint Joan of Arc (cena
IV), os membros do corpo sacerdotal se orgulham de ser, antes de tudo, “homens da Igreja” e nesse
sentido, suas posições são diametralmente diferentes dos membros da nobreza, que são antes de tudo
21
Ver Rapport Parlementaire français n° 2468 de 4 de outubro de 1958 sobre as seitas, o número de adeptos e a importância
de cada uma delas na França.
Observatório da Laicidade do Estado
www.nepp-dh.ufrj.br/ole
“nobres”. Na época, recusar essa hierarquia social equivalia a uma heresia : “Percebo agora que o que o
senhor estava pensando não tinha nada que ver com o fato de que essa moça [Joana d’Arc] não
menciona nem uma vez a Igreja e pensa apenas em termos de uma relação entre Deus e ela ; mas sim o
fato de que ela nunca menciona os pares do reino e pensa apenas em termos de uma relação entre o Rei
e ela”, recusando toda e qualquer interferência dos padres ou dos pares entre ela e a autoridade, seja ela
religiosa ou civil. O papel de intermediação entre deus, o Estado e o povo é uma das principais
características das igrejas até nossos dias e seria interessante ver como as congregações se definem com
relação a ele.
Por outro lado, o campo é, em princípio, “dotado de autonomia relativa. Cada campo possui seus
próprios interesses, suas regras de funcionamento e seus agentes dotados de um habitus específico”
(Bonnewitz, 2000, p. 93). Sem duvida, o campo religioso tem suas regras de funcionamento interno :
certas congregações são mais próximas entre si do que outras. No entanto, o campo religioso é um dos
campos mais próximos do campo do poder, devido à importância da dimensão simbólica que controla
— o que vai introduzir uma certa heteronomia em seu seio. As posições na luta são assim variáveis e
extremamente dependentes das mudanças nas alianças políticas conjunturais. Por exemplo, na França,
em 1914, ainda dentro da Troisième République, a Union sacrée22 vai anular “de facto as disposições de
1901”, que só serão “revogadas de jure através das medidas tomadas pelo regime de Vichy (19401944)”. (Boyer, 2002, p.7).
A hegemonia de que desfrutou a religião católica na França, em todos os períodos analisados, fica assim
bastante clara. A análise que fiz acima mostra que, apesar da queda da monarquia e de suas sucessivas
derrotas frente ao Estado, a religião católica continua a “monopolizar o capital específico [do campo
religioso], fundamento do poder e da autoridade específicos característico desse campo” (Bonnewitz,
2002, p. 73) — apesar da França se proclamar um Estado laico e do pluralismo religioso que vigora, em
principio, nesse país. Prova disso é o pertencimento à religião católica de grande parte dos atuais
ministros do Estado francês (governo Sarkozy), que vem marcar as políticas da família, de saúde, de
migração ; ou ainda a clara adesão da maior parte das elites francesas a essa religião. Pequenos sinais
insidiosos do cotidiano, como a proclamação do “santo do dia” nos jornais dos canais públicos de
televisão ou os feriados baseados no calendário católico vem ainda reforçar essa asserção.
A grande divisão que parece estruturar historicamente os conflitos entre a igreja católica e o Estado na
França, nas diferentes épocas, é a oposição entre Roma e o Estado. Mas esta visão pressupõe uma
homogeneidade do campo da Igreja católica na França, do clero francês, que na verdade não existe ; a
mesma coisa sendo válida para o Estado. Sem duvida, o fato de poder contar com uma instituição
centralizadora e autoritária em Roma fortalece as hostes católicas, dá-lhes grande unidade. Mas os
prelados franceses mantém igualmente, historicamente, uma tradição de independência com relação ao
poder romano, que pode ser vista através de vários incidentes :
•
os prelados franceses participaram ativamente na declaração do Grande Cisma do Ocidente
(1378-1417), com a manutenção de um papa em Avignon durante o século XIV até o concilio de
Constancia.
•
a tendência ao desenvolvimento de uma “religião gálica”, que está presente desde Luis XIV,
passando pela Revolução, pela Comuna de Paris (que faz uma efêmera separação entre a igreja e o
Estado) e mesmo pelas iniciativas de Napoleão I de controlar o clero, fazendo dele um corpo de
funcionários civis.
22
A Union sacrée foi o nome dado ao movimento de aproximação política que uniu os franceses de todas as tendências
políticas e religiosas quando da deflagração da Primeira Guerra mundial. Esse termo foi cunhado pelo presidente da
república Raymond Poincaré em seu discurso à Câmara, em 1914.
Observatório da Laicidade do Estado
www.nepp-dh.ufrj.br/ole
a linha adotada pelos arcebispos e bispos franceses, em oposição às injunções de Roma, em
diversas ocasiões (1791, juramento à Constituição civil durante a revolução ; 1801, sob Napoleão I ;
1905-1906, aliança com os ‘cardeais verdes23’ na Troisième Republique)
•
O segundo ponto se refere à importância da querela sobre a escola durante a Troisième Republique e à
relevância do ensino como instancia de socialização da juventude para todas as religiões. Bourdieu
(1992) diz que, para que o campo exista, é preciso que os agentes estejam convencidos que o jogo existe
(illusio) e que eles estejam dispostos a jogar o jogo. Ainda segundo ele, “todos os agentes engajados
num campo tem em comum um certo número de interesses fundamentais, ou seja, tudo o que está ligado
à existência mesma do campo”. Isso cria entre eles uma “cumplicidade objetiva, subjacente a todos os
antagonismos”, na medida em que “a luta pressupõe um acordo entre os antagonistas sobre as coisas que
merecem que se lute por elas” (Bourdieu, 1980, p. 115). O grande enjeu da Troisième Republique é a
importância da escola enquanto instituição de socialização para os membros dos dois setores em
oposição — igreja católica e Estado republicano. A primeira exerce nessa época o papel forte
de “elemento regulador dos costumes” (Julia, 1995, p. 377), ela detém assim uma grande eficácia
simbólica. A igreja católica busca manter de maneira dissimulada sua hegemonia sobre “os princípios
de estruturação da percepção e do pensamento do mundo, em particular do mundo social” (Bonnewitz,
2002, p. 33) que orientavam a população desde a monarquia — onde os reis eram todos católicos e o
povo tinha a religião do seu rei 24. Por isso ela atribui tanta importância à luta para manter o monopólio
quase total do ensino de que desfrutou desde essa época : sua hegemonia no campo está em jogo. O
Estado pretende acabar com esse monopólio e transformar a instituição escolar de maneira a que ela
sirva a seus próprios fins, ou seja, a formação de cidadãos laicos, esclarecidos, livres da influência da
igreja católica mas submetidos aos interesses do Estado. A laicidade busca substituir o corpus de
conhecimentos organizados religiosos, fundados na definição do bem e do mal, ao desenvolvimento do
sentimento do pecado e do desejo de redenção (Bonnewitz, 2002, p. 35-36), por um corpus de direitos e
deveres dos cidadãos não subordinados ao corpo de especialistas religiosos — algo similar à exegese
individual dos textos sagrados preconizada pelo protestantismo. A República busca reformar a
instituição escolar em profundidade: redefinir as funções da escola, formar um corpo de agentes
públicos encarregados da socialização (les hussards de la République), mudar os programas escolares
esvaziando-os dos relentos da religião católica, codificar a neutralidade dos prédios públicos e até
mesmo a maneira dos professores se apresentarem aos alunos (querela dos emblemas). Para isso, conta
com o auxilio de vários professores da Sorbonne (Buisson, Bouglé, Durkheim, Mauss) que lutavam pela
extensão do ensino primário público laico, obrigatório e gratuito e pela laicização do ensino secundário,
então a cargo da universidade.
É preciso notar que a tendência a manter posições independentes no campo está mais presente no baixo
clero do que na hierarquia, que tende em principio a aderir a Roma. Isso introduz a questão seguinte : o
campo não existe sem seus agentes, cuja posição dentro do campo é “definida pelo volume e pela
estrutura do capital eficiente dentro do campo” (Bonnewitz, 2000, p. 93) de que dispõem, assim como
do volume de seus outros capitais (econômico, cultural, social). Assim, o que se vê é que a aparente
unidade do campo católico oculta diversos princípios de oposição. A primeira mediação é a mediação
institucional. A posição dos agentes muda segundo que eles estejam reagrupados sob uma instituição (o
“clero regular”, agrupado em ordens e congregações) ou que eles sejam dependentes apenas de sua
própria hierarquia (o “clero secular”). No primeiro caso, deve-se perguntar como se apresentam as
23
Chamava-se ‘cardeais verdes’ aos membros da Academia de ciências morais e políticas que exortaram os bispos em 1906
a aceitar o estatuto das “associações de culto” proposto pela Troisième République.
24
Pode-se dizer que a França viveu sob um regime monárquico durante cerca de onze séculos — do reino de Pepino, o
Breve (751-768, século VIII) até o último imperador, Napoleão III (1852-1870, século XIX).
Observatório da Laicidade do Estado
www.nepp-dh.ufrj.br/ole
ordens e congregações das quais participam esses agentes : qual sua história, qual seu carisma, qual sua
identidade ? Por exemplo, durante o conflito da laicidade, as ordens e congregações de ensino (Jesuítas,
Sacré-Cœur de Jésus, Ursulinas) apresentaram uma maior tendência a adotar a posição da hierarquia da
igreja católica do que aquelas ordens cujo carisma as levava a desenvolver interesses afastados do
ensino (conversão dos judeus, cuidado dos enfermos, ajuda aos pobres). A segunda mediação se refere à
origem social de seus membros : trata-se de analisar a diferença de posições entre as elites (tanto do
clero regular como do clero secular) e os simples padres ou membros das congregações, que ocupam
uma posição inferior na escala hierárquica. Esses últimos, frequentemente destituídos de poder, estão
mais próximos da sociedade civil e adotam, via de regra, uma posição menos ultramontana do que os
membros das elites católicas. Os exemplos são numerosos. Durante o conflito que opôs as congregações
religiosas ao Estado francês, o episcopado e as congregações tomam posições diferentes segundo seus
dirigentes e os grupos formados em seu interior. Nem a igreja nem o campo laico podem assim ser
vistos como inteiramente coesos — configuração que muda, como já vimos, em cada estado do campo.
Assim, as congregações de Notre Dame de Sion e do Sacré-Cœur tomam posições opostas no que se
refere à conformidade para com a legislação republicana porque tem carismas diferentes — mas
também porque a origem de classe de seus membros é diferente, como veremos mais adiante. Enquanto
que Sion, destinada a “rezar pela conversão dos judeus”, assina as cartas de secularização e se conforma
à lei de 1901 sobre as associações, o Sacré-Cœur, congregação de ensino feminina por excelência,
recusa a se conformar à legislação em vigor, decide fechar seus colégios e partir em exílio. A posição, a
trajetória e os capitais do(s) agente(s) que assume(m) o poder na instituição também são fundamentais.
Segundo Luirard (2002), a posição da congregação do Sacré-Cœur parece ser determinada porque a
irmã que o dirige no início do século XX, Mère Mabel Digby25, era de origem protestante e se
converteu ao catolicismo contra a vontade de sua família — o que a leva a adotar posições mais
radicais, como todo neófito. Mère Digby apresentava por toda parte a política do governo francês como
« uma perseguição », « uma guerra declarada a Deus », « um afrontamento entre o Bem e o
Mal » (Luirard, 2002, p. 269). Sua posição de dissolver a congregação em 1901 (efetivada em 1904) e
de fechar a casa generalícia em 1909 revela ainda uma outra divisão no seio da Igreja : ela se fez contra
a vontade do episcopado, “inquieto com a situação do ensino religioso na França, [e que] não tinha
posição unânime quanto à partida das congregações religiosas” (Luirard, 2002, p. 266). Luirard (2002)
acredita que, se a congregação do Sacré-Cœur tivesse sido dirigida nessa época por Mère Depret,
diretora há muitos anos do “internato do Sacré-Cœur […] que recebia meninas do mundo inteiro para
aperfeiçoar sua educação” (Luirard, 2002, p. 267) — e que era, por isso mesmo, mais atenta aos
interesses exteriores à congregação — os estabelecimentos de ensino não teriam fechado suas portas
nem as religiosas partido para o exílio. Apesar de sua origem de classe, essa irmã preconizava no
Capítulo uma política mais tolerante, por estar mais próxima da sociedade civil.
Como qualquer instituição, as congregações católicas não são monolíticas. São com maior frequência as
congregações de elite, e sobretudo “a elite de muitas congregações” (Mayeur, 1995, p. 199 ; p. 203) que
vão preferir o exílio, devido a seu caráter mais radical. Dai a importância de estudar a origem de classe
das religiosas e das pessoas com as quais a congregação se mantém em contato. Segundo Monique de
Saint-Martin (1990, p. 64), “as religiosas e as alunas do Sacré-Cœur são, em sua maioria, de origem
aristocrática, enquanto que no Des Oiseaux, as meninas da aristocracia se sentam ao lado daquelas da
boa burguesia”, enquanto que o Institut de l’Assomption acolhia “as meninas da melhor burguesia de
Paris assim como um número reduzido de alunas da velha nobreza” (Bricard, 1985, p. 53). Tendo sido
25
Mère Mabel Digby, quinta superiora geral da Sociedade do Sacré-Cœur, dirigiu a congregação entre 1835 e 1911.
Observatório da Laicidade do Estado
www.nepp-dh.ufrj.br/ole
fundado apenas em 1853, o internato de Sion em Paris tinha uma tradição menor do que as
congregações anteriormente mencionadas, todas fundadas em diferentes momentos dos séculos XVI a
XIX. Sion se caracterizava igualmente “por um grau inferior de seletividade : a proporção de filhas de
donos de industria e comércio, de engenheiros ou executivos, era ligeiramente inferior (do que nos
outros colégios), a proporção de alunas oriundas das classes populares e médias um pouco mais
elevada” (Saint-Martin, 1990, p. 69, note 3).
Nesse contexto, fica mais claro quem decide emigrar : as irmãs de Notre Dame des Oiseaux
(congregação fundada em Paris, no fim do século XVI), do Sacré-Cœur (Paris, 1800) e do Institut de
l’Assomption (Paris, 1839) vão preferir fechar as portas de seus conventos e de seus estabelecimentos
escolares e partir. Estabelecimentos dirigidos por outras congregações, a exemplo de Notre Dame de la
Compassion (Toulouse, 1817), Notre Dame de Sion (Paris, 1853) e o Cours Dupanloup (Paris,1904)
(Meyer, 1995, p. 143) adotam uma política diferente, tomam a decisão de assinar as “cartas de
secularização”26, podendo assim conservar sua organização, seus métodos e sua identidade. Sion, cuja
historia conheço melhor, vai atravessar relativamente sem problemas o período mais duro da laïcidade
(1902-1905), apesar da lei de 7 de julho de 1904 proibir o ensino às congregações, precipitando o
fechamento de “centenas de escolas religiosas […] entre 1902 e 1904 [de] casas não autorizadas”
(Cabanel, 2007, p.189 ; Luirard, 2002, p.259). Os colégios Sion só serão fechados depois de promulgada
a lei de separação entre a igreja e o Estado, em 9 de dezembro de 1905. “Com efeito, nem todas as
congregações foram postas fora da lei. Aquelas que já tinham sido autorizadas, por assinarem as cartas
de secularização, não foram molestadas. É de se notar que as atividades de todas as congregações —
fossem elas quais fossem, autorizadas ou não — fora do território francês (colônias de ultramar ou bacia
do Mediterrâneo), continuaram a ser encorajadas e mesmo financiadas pelos poderes públicos, em
particular através da Œuvre d’Orient27, porque faziam parte da irradiação cultural da França. Incluem-se
nesse caso tanto as escolas das irmãs de Sion quanto as atividades escolares e educativas dos Jesuítas,
dos Pères blancs e dos Frères des écoles chrétiennes28. Mas dentro do território francês, as
congregações não autorizadas nem legalmente reconhecidas foram colocadas « fora da lei », fazendo
com que muitos de seus membros se refugiassem em paises limítrofes estrangeiros — Bélgica ou Itália
em particular — “buscando reconstituir suas congregações nas fronteiras da França” para continuar
dando às crianças francesas uma educação católica de elite (Boyer, 2002, p. 9).
Esboço do quadro de análise
A primeira coisa a reter é, assim, o fato de que os embates entre o Estado e as religiões tem uma certa
periodicidade segundo o pais em que acontecem e que esses incidentes se inscrevem fortemente na
memória nacional. Embora nosso grupo não se proponha a fazer uma análise de todo o campo religioso
— e sim analisar as congregações — é necessário que tenhamos uma idéia mais global do campo para
saber os contextos em que elas se inserem. Trata-se pois de ter a dimensão histórica das relações entre a
igreja católica e o Estado brasileiro como pano de fundo, de identificar os estados do campo para
conhecer a participação das congregações em cada um deles. E de descobrir, através da historiografia
brasileira, que períodos são esses, com que freqüência se repetem, quais são suas características, quem
26
Através das lettres de sécularisation, as congregações juravam submissão às leis da República e as religiosas renunciavam
a viver em comunidade.
27
A Œuvre d’Orient é uma organização francesa que visa a ajudar as igrejas e os cristãos do Oriente criada em 1856 por
iniciativa de um grupo de pessoas laicas reunidas em volta do barão Cauchy, célebre matemático e membro do Institut de
France. Seu primeiro diretor geral foi o Abade Lavigerie, futuro cardeal e fundador dos Pères Blancs.
28
Os Pères blancs são uma ordem missionária por excelência, fundada em 1868. Já os Frères des écoles chrétiennes (ou
lassalistas), ordem fundada em Reims em 1684, formam um instituto religioso dedicado à educação das classes populares na
França.
Observatório da Laicidade do Estado
www.nepp-dh.ufrj.br/ole
são seus principais agentes, que tipos de relação estabelecem entre si ao longo do tempo e em que
medida esses fatos se relacionam com nosso objeto de estudo. O estudo de cada congregação na
diacronia poderá ser feito através de uma pesquisa bibliográfica, cujo roteiro teríamos que definir
coletivamente.
Em segundo lugar, trata-se de ver a posição das congregações estudadas entre as forças que estruturam
cada um desses estados do campo — e que se apresentam, em um primeiro momento, sob a aparência
de uma oposição dual. Quais são as características de cada congregação (historia, carisma, trajetória de
implantação, sua importância local, regional ou nacional, as origens sociais de seus membros) em cada
período histórico ? Qual era a posição global da igreja católica nesses períodos e em que medida a
congregação aderiu (ou não) a ela ? Quais são as posições respectivas da hierarquia da igreja católica, da
direção da congregação, de seus membros ? Que mediações as atravessam ? Que alianças estabelecem ?
Em terceiro lugar, qual a relação da congregação com Roma e com a hierarquia católica local ? Que
relações mantém com o Estado brasileiro ? Como os incidentes nessas diversas esferas institucionais
(nacionais, regionais, eclesiásticas) as afetaram ?
Em quarto lugar, qual é ou quais são os interesses centrais da congregação em seu pais de origem e no
Brasil ? Houve mudança, em que sentido e por que ? Há consenso entre os agentes sobre os interesses de
luta ? A escola, o ensino religioso, são objetos centrais de luta para todas as congregações ou não ? Por
quê e de que maneira ?
Em quinto lugar, qual foi a evolução de seu carisma ? Como esse carisma afeta sua relação com o
Estado e com a Igreja romana — sobretudo durante a vigência da teologia da libertação, de uma CNBB
liberal e do Concilio Vaticano II, importantes para a igreja no Brasil ? Por exemplo, a historia de Sion
na França e no Brasil é inteiramente diferente devido a fatores conjunturais e vai afetar sua posição
dentro do campo religioso, dentro do campo da educação e inclusive sua relação com os Estados francês
e brasileiro. Esses fatores fazem com que uma congregação cujas escolas em Paris não se encontravam
entre as mais afamadas, se torne uma escola exclusiva para “meninas de boa família”. Ao permanecer
praticamente a única instituição feminina de elite no campo educacional brasileiro durante dezesseis
anos (1888-190429), o colégio Sion vai se beneficiar da freqüência exclusiva da nobreza e da burguesia
brasileiras e ter tempo de adquirir a sólida reputação de que desfrutou até os anos 1970 — entre outras
razões porque o fato de ocupar o Palácio imperial de Petrópolis por cinco anos (1892-1897) lhe permitiu
desfrutar do status de “gozar dos favores da família Imperial” (Needell, 1993, p. 83).
Esse quadro de análise está evidentemente aberto e espera as contribuições de todos os participantes
deste colóquio, sobretudo no que diz respeito à historiografia brasileira — da qual eu me afastei
bastante durante minha estada na França. Através dele, no entanto, espero ter contribuído de alguma
maneira ao avanço de nossa pesquisa.
BIBLIOGRAFIA
BAUBEROT, Jean. Histoire de la laïcité en France. Paris, PUF, 2007 (4e édition).
BAUBEROT, Jean. L’intégrisme républicain contre la laïcité. Paris, Éditions de l’Aube, 2006.
BONNEWITZ, Patrice. Pierre Bourdieu, vie, œuvres, concepts, Paris, Ellipses, 2000.
BONNEWITZ, Patrice. Premières leçons sur la sociologie de Pierre Bourdieu. Paris, PUF, 2002.
BOURDIEU, Pierre. Questions de sociologie. Paris, Minuit, 1980.
BOURDIEU, Pierre. Méditations pascaliennes. Paris, Seuil, 1997.
29
O internato do Sacré Cœur só será fundado no Rio de Janeiro em 1905.
Observatório da Laicidade do Estado
www.nepp-dh.ufrj.br/ole
BOURDIEU, Pierre. “Gênese e estrutura do campo religioso”. In Miceli Sérgio (ed)., A economia das
trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva, 1974, p. 28-77.
BOURDIEU, Pierre. Les règles de l’art. Genèse et structure du champ littéraire. Paris, Seuil, 1992
BOYER, Alain. “Avant-propos”. In Lalouette Jacqueline & Machelon Jean-Pierre. Les congrégations
hors la loi ? Autour de la loi du 1er juillet 1901. Paris, Letouzey & Ané, 2002, p.7-15.
BRICARD, Isabelle. Saintes ou pouliches. L’éducation des jeunes filles au XIXe siècle. Paris, Albin
Michel, 1985
CABANEL, Patrick & DURAND, Jean-Dominique (eds.). Le Grand exil des congrégations religieuses
françaises 1901-1914. Paris, Le Cerf, 2005.
CABANEL, Patrick. Laïcité, la voie française XIXe-XXe siècles. Paris, Privat, 2007.
CURTIS, Sarah Ann. L’enseignement au temps des congrégations : le diocèse de Lyon (1801-1905).
Lyon, PUL, 2003. Prefácio de Claude Langlois.
DURKEIM, Émile. Éducation et sociologie. Paris, PUF, 1980 (1a edição, Alcan, 1922).
DURKEIM, Émile L’évolution pédagogique en France. Paris, PUF-Quadrige, 1999 (1a edição, 1938)
DURKEIM, Émile, De la division du travail social. Paris, PUF-Quadrige, 2007 (1a edição, 1893)
GUILBAUD, Mathilde, “La loi de séparation de 1905 ou l’impossible rupture”. Revue d’histoire du
XIXe siècle, n° 28, 2004, p.163-173.
JÉGOU, Marie Andrée (sœur), “Le projet éducatif des Ursulines”. Les cahiers de l’ISP, n° spécial,
1986, p. 1-32.
JULIA, Dominique. “La culture scolaire comme objet historique ». In Nóvoa Antonio, Depæpe Marc &
JOHANNINGMAYER, Erwin V. (eds), The colonial experience in education. Historical issues and
perspectives. Gent C.S.H.P., Pædagogica Historica, 1995, p. 353-382.
LECOMPTE, Margareth. “Bias in biography : bias and subjectivity in ethnographic research”.
Anthropology and education quarterly v. 18, 1987, pp. 43-53.
LUIRARD, Monique. “Les dames du Sacré-Cœur de Jésus”. In Lalouette Jacqueline & Machelon JeanPierre. Les congrégations hors la loi ? Autour de la loi du 1 er juillet 1901. Paris, Letouzey & Ané, 2002,
p.257-270.
MAYEUR, Françoise. “Vers un enseignement secondaire catholique des jeunes filles au début du XXe
siècle”. In Cholvy Gérard & Chaline Nadine-Josette (eds.), L’enseignement catholique en France aux
XIXe et XXe siècles. Paris, éditions du Cerf, 1995, p. 197-205.
NEEDEL, Jeffrey. Belle époque tropicale. Sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do
século. São Paulo, Cia das Letras, 1993.
Peshkin Alan, “The researcher and subjectivity : reflections on an ethnography of school and
community”. In Spindler Georges (ed.), Doing the ethnography of schooling. New York, Holt, Rinehart
& Winston, 1982.
PESHKIN, Alan. “In search of subjectivity — one's own”. In Peshkin Alan, The color of strangers, the
color of friends. The play of ethnicity in school and community. Chicago, University of Chicago Press,
1991, p. 285-295.
PINTO, Diana. “La France et ses quatre religions”. Esprit vol. 2, n° 302, 2004, p.78-88.
Saint-Martin Monique de, “Une ‘bonne’ éducation. Notre-Dame des Oiseaux à Sèvres”. Ethnologie
française vol. 20, n° 1, 1990, p. 62-70.
WEBER, Max. Économie et société, vol. 1. Paris, Agora, 1995.
Observatório da Laicidade do Estado
www.nepp-dh.ufrj.br/ole

Documentos relacionados