“ABORTO NÃO, CHÁ PRA FAZER DESCER!”: INTERSTÍCIOS DA

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“ABORTO NÃO, CHÁ PRA FAZER DESCER!”: INTERSTÍCIOS DA
INSTITUTO FEDERAL DE SERGIPE
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
“ABORTO NÃO, CHÁ PRA FAZER DESCER!”:
INTERSTÍCIOS DA MEDICINA POPULAR
NA SAÚDE SEXUAL E REPRODUTIVA DE MULHERES EM CAICÓ/ RN
Rozeli Porto1
Fabiana Galvão2
Esta comunicação traz alguns dados e reflexões sobre a pesquisa intitulada Práticas
e representações de Profissionais de Saúde relativas ao aborto e suas relações com
mulheres usuárias do SUS em hospitais/maternidades no Rio Grande do Norte (RN)
– financiada pelo CNPq/SPM/MCTI -, realizada em hospitais e unidades básicas de
saúde (UBS) nas cidades de Natal e Caicó. Para este GT, pretendemos discutir
alguns pontos observados durante nosso trabalho de campo realizado em uma UBS
em Caicó, que se refere aos itinerários abortivos vivenciados por algumas mulheres
quando se veem diante do atraso da menstruação. Nas incursões ao campo, foram
apresentados pelas interlocutoras usuárias do SUS e pelos Agentes de Saúde
relatos a recursos tradicionais e caseiros – chás, garrafadas e outras beberagens que fazem parte do itinerário das mulheres (ou casais) que buscam, na hora do
desespero, todos os recursos disponíveis para fazer descer a menstruação. As
considerações que seguem referem-se a um recorte da pesquisa mais ampla, e
corresponde ao nosso desejo de interlocução com o campo da saúde pública x
medicina popular, tendo por foco os itinerários terapêuticos e abortivos que
procuram essas mulheres, porém, com um interesse mais afinado no contato com as
1
Professora do Programa de Pós Graduação em Antropologia Social e do Departamento de
Antropologia Social (PPGAS/DAN/UFRN). Doutorado em Antropologia Social (UFSC). Membro do
Grupo de Pesquisa Gênero, Corpo e Sexualidades/ DAN/ CCHLA/ UFRN. [email protected].
2
Bacharel em Ciências Sociais/ UFRN, concluindo o curso de Licenciatura em Ciências Sociais/
UFRN. Bolsista de Iniciação ao Extensionismo do CNPQ/ UFRN. Membro do Grupo de Pesquisa
Gênero, Corpo e Sexualidades/ DAN/ CCHLA/ UFRN. [email protected].
detentoras desse conhecimento tradicional, ou seja, com as “Amiguinhas”.
Metodologicamente, os dados estão sendo coletados por meio de conversas
informais, entrevistas semiabertas e observação participante.
Palavras-chave: Itinerários abortivos; Mulheres; Medicina tradicional/ popular
1. Introdução
Síntese
referente
à
pesquisa
em
andamento
intitulada
Práticas
e
representações de Profissionais de Saúde relativas ao aborto e suas relações com
mulheres usuárias do SUS em hospitais/maternidades no Rio Grande do Norte/RN3.
Apresentamos alguns pontos observados durante nosso trabalho de campo
realizado em uma UBS em Caicó. Nessas incursões foram apresentados pelas
interlocutoras usuárias do SUS e pelos Agentes de Saúde, relatos a recursos
tradicionais e caseiros – chás, garrafadas e outras beberagens - que fazem parte do
itinerário das mulheres (ou casais) que buscam, diante de uma gravidez indesejada,
todos os recursos disponíveis para fazer descer a menstruação. Buscamos, assim,
manter uma interlocução com algumas dessas pessoas ligadas a medicina
tradicional no interior do RN conhecidas popularmente nesta região por
“Amiguinhas/os”.
As/os Amiguinhas/os dizem desconhecer chás ou outras beberagens para
abortar. No entanto, diante do discurso sobre o “chá pra fazer descer a
menstruação” este é largamente reconhecido por estas especialistas que não
pensam nesse processo como abortamento4.
Sob orientação teórico-metodológica da Antropologia, os métodos desta
pesquisa
foram
de
natureza
qualitativa,
apoiando-se
em
entrevistas
semiestruturadas, observação participante e conversas informais.
Para a realização dessa pesquisa buscamos autorização da Secretaria
Municipal de Saúde de Caicó. Porém, como a pesquisa acabou percorrendo outros
caminhos que nos levaram para fora da UBS local, optamos pela não utilização do
3
Pesquisa financiada pelo Edital MCTI/CNPq/SPM-PR/MDA Nº 32/2012.
O abortamento deve ser considerado como a interrupção voluntária ou não da gravidez até a
vigésima semana ou com um concepto pesando menos que 500 gramas (nos casos em que a idade
gestacional é desconhecida). O termo “aborto” refere-se mais precisamente ao produto da concepção
eliminado da cavidade uterina ou abortado.
4
2
consentimento informado para as “Amiguinhas/os”, mulheres e homens que
possuem ínfima educação formal, sendo que tal documento poderia representar,
diante de tais circunstâncias, um recurso invasivo e, sob nosso ponto de vista, sem
sentido para nossas/os interlocutoras/es5.
2. Caminhos e descaminhos da pesquisa – Itinerários abortivos e o Saber local
Pensamos primeiramente em iniciar a investigação em uma das principais
maternidades da cidade. Atendidas nesta ocasião por uma equipe de cinco
pessoas6, foi perceptível reconhecer através de seus questionamentos, olhares e
sabatinas, que nossa presença naquele espaço não era bem vinda. Nos foi negada
a autorização e indicaram de fazermos pesquisa nos municípios de Currais Novos e
Santa Cruz (vizinhos a Caicó), onde “existia atendimento de Referência a Saúde
Sexual e Reprodutiva das Mulheres” e que ali, naquela maternidade, “não é
realizado o acompanhamento neonatal, tampouco chegam casos de aborto”7.
Foram-nos sugeridas, então, por estas mesmas gestoras, que procurássemos
as maternidades de referência citadas ou que transferíssemos nossa pesquisa para
as UBS locais. Os passos seguintes nos levaram a pesquisar duas unidades
Básicas de Saúde em Caicó: A do bairro Santana e a do bairro Vila Nova8.
Estas UBSs nos foram sugeridas especialmente por serem contrastantes em
nível de “classe social”. Em conversa com um médico ginecologista/ obstetra enquanto a UBS de Santana conta com usuários de perfil econômico emergente, a
UBS de Vila Nova, na zona oeste, nos foi sugerida por ser um local onde “há muitas
drogas e prostituição”, duas questões indissociáveis do aborto como nos lembra
Flávia de Mattos Motta (2013), inculcadas, no imaginário das pessoas com as quais
mantivemos contato. Segundo o profissional:
5
No que diz respeito ao posicionamento ético na pesquisa, ver Fernanda Cardozo, 2007.
A gestão dessa Maternidade é feita por um Conselho no qual atuam profissionais vários
profissionais: uma filósofa, uma nutricionista, um matemático, uma enfermeira e uma pedagoga.
7
O aborto é permitido pelo Código Penal Brasileiro (1940, artigos 127 e 128) somente nos casos de
estupro, quando a gestação ofereça risco de vida à mulher, e recentemente o STF autorizou a
antecipação do parto em casos comprovados de anencefalia. Falas e expressões êmicas serão
indicadas entre aspas.
8
Nomes, endereços, números e mesmo alguns locais estão aqui expostos ficticiamente para
preservar as identidades de nossas interlocutoras, seguindo os apontamentos de Claudia Fonseca
que nos alerta sobre o dilema envolvendo o uso ou não do anonimato no texto etnográfico (2007).
6
3
Em 2012 houve cinco mortes maternas por negligência. Faltam
ambulâncias, equipamentos, profissionais qualificados e ainda por cima
existe sacanagem dos gestores... Mulheres vêm com aborto retido e são
mandadas para casa. O número de abortos provocados e espontâneos
é alto. Isto é, há muita postura errada do hospital daqui. Já tivemos que
colocar mulheres na ambulância para irem para outras maternidades porque
o único anestesista disponível estava em outro hospital e não poderia estar
em dois lugares ao mesmo tempo. É lamentável, mas algumas vezes essas
mulheres morrem dentro dessas ambulâncias (Médico Ginecologista, Caicó,
junho 2013).
Se levarmos em conta o discurso do interlocutor, poderíamos pensar que
nossa presença na maternidade poderia trazer desconforto para suas gestoras e
gestores. Mas, para confirmarmos o desconforto com a nossa presença no hospital,
precisaríamos realizar trabalho de campo na instituição.
Informadas pelo olhar etnográfico, observamos que o itinerário abortivo das
mulheres que frequentam a UBS de Santana perpassa outros saberes locais, além
dos já conhecidos na e pela prática dos agentes e dos profissionais de saúde. Nesta
UBS, entramos em contato com várias pessoas que nos informaram sobre questões
da concepção, contracepção e aborto, nos chamando atenção para os itinerários
abortivos que envolvem muitas outras substâncias, camufladas (MOTTA, 2013)9.
Dentre os sujeitos, foi o agente de saúde Janduí quem nos apresentou
Catarina, usuária desta UBS, reside em sua área de atuação. Há época de nosso
trabalho de campo, Catarina estava grávida de seis meses, e já havia passado por
um aborto espontâneo10. Foi nessa conversa com ela, juntamente com o agente de
saúde, que nos direcionamos efetivamente a procurarmos as “Amiguinhas”, peçaschaves na cultura reprodutiva local e desse trabalho que vos apresentamos.
1.1 Catarina, Agentes de Saúde e as garrafadas
9
Situação similar as pesquisas realizadas por Flávia de Mattos Motta (et al, 2013) em Florianópolis.
Motta percebe, dentre outras questões, que quanto mais recente for a gestação, “menos vida e
menos pessoa” estará representada nesta “gravidez”. Isso favorece, segundo a autora, maior
permissividade a recorrência aos chás, mezinhas e beberagens, elementos que muitas vezes fazem
parte do itinerário abortivo dessas mulheres, lembrando que elas também conhecem e tem acesso ao
misoprostol (Torniquist, Pereira E Benetti, 2013; Heilborn, 2012). Tais elementos, segundo Motta,
“são capazes de resolver uma gravidez que (ainda) não envolve propriamente uma criança”.
10
Embora nosso foco de análise sejam os abortos provocados, não dispensamos as informações de
mulheres como Catarina que passaram por abortos espontâneos. Além disso, confiamos nas redes
de pesquisa as quais abrem caminhos às questões direcionadas ao nosso interesse.
4
Catarina nos explica que teve um aborto espontâneo e passou por todos os
procedimentos necessários no hospital e na clínica particular – que procurou para
fazer um ultrassom11 - não necessitando de curetagem para remover o feto:
Isso tudo foi em um intervalo de um dia, com o ultrassom na mão a médica
(da clínica particular) que bateu disse „olhe você não vai fazer curetagem,
acredito que seu organismo tá expulsando, você já perdeu o bebe‟. Aí,
quando eu fui a Drª (da maternidade) ela olhou o ultrassom, da transvaginal
no caso, e disse, „não vai precisar fazer a curetagem‟. Ai fiquei...fui pra
casa, aí o pessoal manda a gente tomar aquelas água inglesa né? Que
é muito bom né?(Catarina, Caicó, julho de 2013).
Perguntamos, o que é água inglesa? Janduí, que também estava presente
nesta conversa, nos explica que é um tipo água com gás: “Dizem que é muito bom
pra limpar”, “... limpar o útero... as coisas que pessoas no passado usavam”.
Ave Maria, depois que eu fui morar com ele (aponta para o companheiro),
que eu tenho vontade de ter um bebê, eu nunca tomei anticoncepcional...
porque eu tenho dificuldade de engravidar. Mas só ficava na expectativa. O
pessoal aconselhava tomar umas garrafadas. Não sei se em Natal tem,
mas aqui, não toma Janduí pra tentar engravidar?! (confirmando com o
Agente de Saúde a pratica do uso das garrafadas), no que ele confirma: “é,
o meu primeiro filho foi com uma garrafada também”. Continua
Catarina: Foi a minha cunhada que arranjou essa pessoa que faz. Ela
disse “...comigo fez logo efeito, arranjei logo a menina”. E eu tomando
garrafada pra arranjar menino (risos). Em interior tem cada mágica, a gente
tem cada coisa. (Catarina, Caicó, julho de 2013).
Questionamos onde afinal são vendidas as garrafadas e quem são as
pessoas que fabricam tais beberagens “mágicas”. O agente de saúde, tenta nos
localizar chegando, enfim, às nossas personagens principais: as Amiguinhas.
“Você pode até conversar, que elas lhe explicam detalhadamente cada
garrafada. Elas são famosas e conhecidas por venderem esses produtos. E
só trabalham com produtos naturais. Coisas da natureza.” Conforme nos
conta Catarina “elas tem um canto... elas não contam todas as raízes que
usam. Dizem que é segredo. As raízes que elas usam tem segredo...”.
(Janduí, julho de 2013)
Consideradas eficazes e poderosas tanto para “engravidar” como para
“limpar”, egundo o agente de saúde “pra perder elas inventam o chá da bucha do
11
Diante da urgência de seu caso, Catarina vai até uma clínica particular fazer uma ultrassonografia,
decidindo não esperar pelo SUS. Essa foi uma atitude comum relatada pelas mulheres em campo
assim como em outras pesquisas que realizamos em Natal (Dantas Sousa; Porto: 2013).
5
côco. Quebra pedra. De jornal, até de jornal elas fazem...”. E assim, a partir das
declarações
de
nossos
interlocutores,
compreendemos
que
os
itinerários
reprodutivos e abortivos das mulheres muitas vezes passam por essas especialistas
populares. Fomos então atrás das “Amiguinhas” e de seus “cantos”, “encantos” e
“segredos”, tentando entender as lógicas locais impressas nos símbolos que
rodeiam as práticas e representações relativas à saúde reprodutiva das mulheres (e
dos homens) na região do Seridó.
2. As Amiguinhas: medicina popular e cultura reprodutiva feminina
Segundo Iaperi Araújo (1999, p. 13)12 medicina popular é a parte da coluna
do povo, dedicada à utilização de drogas, substâncias, gestos ou palavras para a
conquista da saúde da coletividade. De origem indígena, no Brasil, apresenta-se
principalmente no meio rural do nordeste, onde se incluem as rezadeiras, as
curandeiras e as comadres. Está muito ligada à religiosidade e seu exercício exige
profundo conhecimento da flora medicinal local. Em Caicó, percebemos a presença
das Amiguinhas13 e de homens que trabalham com plantas, raízes e ervas como
uma expressão desse conhecimento popular.
Apresentamos os resultados de nossas reflexões sobre os relatos de campo
aprendidos no decorrer de um ano e meio de pesquisa, especificamente, das ultimas
idas a campo, dezembro de 2013, janeiro e maio de 2014.
2.1 “Amiguinha”14 Malva:“Só o chá para cinco dias”
Foram feitas entrevistas semiestruturadas com duas amiguinhas e três
amiguinhos.15 A primeira amiguinha que tivemos contato é a que possui uma banca
12
Médico ginecologista, já foi diretor da Maternidade Escola Januário Cicco e professor da UFRN.
Ao que parece, há uma competitividade entre elas, pelo reconhecimento de ser uma Amiguinha e o
que representa ser uma. Percebe-se uma relação de poder no campo simbólico, da Amiguinha
enquanto uma autoridade, relacionada ao conhecimento e o uso da fauna local para fins medicinais.
14
Perguntamos por que a chamam de Amiguinha, ela diz que desde que começou a trabalhar no
comércio chama o povo de Amiguinha, e o povo chama ela assim também.
13
6
com raízes, plantas e ervas. Ela trabalha com ervas há 45 anos. Aprendeu as
funções das plantas e a fazer garrafadas com a mãe, e a mãe aprendeu com a avó.
Percebemos esse traço de hereditariedade na transmissão do conhecimento
sobre as raízes, plantas e ervas, também entre a outra amiguinha e entre os
homens. Sendo esse conhecimento passado de geração a geração. As ervas,
plantas, e raízes, que Malva comercializa, vêm de alguns sítios da região.
O chá da “Cabacinha” conhecida por ser desobstruidor nasal em casos de
infecções como sinusites/ rinites, também é muito utilizada para “fazer a
menstruação descer”, ou provocar abortos, segundo relatos das interlocutoras.
A afirmação da amiguinha confirma o saber popular, “Cabacinha pra
sinusite, mas não estou usando, porque tá dando problema no povo, está causando
derrame”, “se toma com até cinco dias de atraso da menstruação”. Sua mãe dizia
que não era pra ela usar ou fazer o chá da Cabacinha. É utilizada como abortiva.
“Só o chá para cinco dias de atraso da menstruação” porque segundo ela, nesse
caso “ele serve como um teste” “Se vier veio”, a menstruação.
Nesse caso, há uma permissividade em relação ao uso de chás, com
devidas ressalvas, não muito detalhadas aqui, relacionadas à religiosidade, de
quando o embrião passa a ser pessoa se tiver alma ou espírito (LUNA, 2006). A fala
de Malva dialoga com as interlocutoras de Flavia Motta, quando ela também:
Manifesta tolerância em relação aos chás abortivos, que, embora
entendidos como tendo o potencial para fazer vir a menstruação, parecem
não implicar exatamente “aborto”, por não envolver uma “criança” “pronta”
ou quase pronta. O que torna o aborto condenável é o fato de ele atingir
uma “pessoa, uma “vida”. (Motta, p. 114. 2013)
Ela se diz crente, da Igreja Mundial16, questionada sobre o que pensa a
respeito do aborto, seu discurso é tolhido, por uma sustentação divina e maniqueísta
15
Há algumas contradições no uso do termo para os homens, pois, nos seus discursos, algumas
vezes elas os chamam de amiguinhos e em outras negam que eles sejam amiguinhos, sob a
justificativa de ser o termo só para as mulheres. Assim como, hora eles mesmos se considerem
amiguinhos, e em outros momentos, quando damos mais ênfase ao termo, eles negam serem
amiguinhos, e se consideram vendedores de ervas, ou mesmo utilizam os outros apelidos atribuídos
a eles, como Fulano do Mercado, Fulano do Tempero. Além disso, conversamos com mais duas
mulheres relacionadas a vendas de ervas, elas aparecem no texto de forma breve, pois ao que
pareceu, não se estabelecem como autoridades no assunto na cidade.
16
Lidera a lista de igrejas neopentecostais que mais crescem no Brasil. Mantendo a maior
característica das igrejas cristãs, a Mundial tem seus princípios fundamentados na Bíblia. O corpo da
igreja é formado por bispos, pastores, obreiros e membros voluntários, que se dizem evangelizadores
de qualquer tipo de pessoa seja ela de qualquer classe social, de diferentes denominações religiosas.
7
(bem e mal), onde o aborto aparece como algo maléfico – “Deus não quer isso não,
quer que faça o bem”.
Sobre as garrafadas para aborto, dá várias respostas negativas, dizendo não
fazer. Porém, quando a ênfase da pergunta é mudada, e perguntamos sobre as
ervas e garrafadas para a menstruação descer, ela então fala que para isso serve a
“Raiz do pedregoso, batata de pulga”. Diz que “sabe fazer garrafada pra tirar menino
até três meses, mas não faz mais, e que não ensina nem a filha a fazer.” Não faz
nem pra ela, dá ênfase a essa prerrogativa de que sabe fazer, mas não faz, por
meio de um discurso de superação, falando do grande numero de filhos que teve e
criou, quase meia duzia.
Segundo ela, são as mulheres que já têm filhos e que não querem ter mais,
as que mais compram as garrafadas pra a menstruação descer.
Há uma hierarquia que tangencia as relações dessas conhecedoras da
medicina popular. A cunhada de Malva também vende, diferentemente de Malva,
não é tida como uma referencia sobre utilização desses produtos, e que ela trabalha
com isso por causa do laço de aliança que estabelece com Malva. Já a filha de
Malva, fica no local de venda enquanto a mãe não está. Não sabe fazer “remédio”.
Assim como a mãe, ela diz ter aproximação com a Igreja Mundial. Sabe algumas
coisas pra inflamação, para aborto. Sobre aborto diz, a pessoa tem que ter
consciência. Não sou a favor do aborto, cada um que assuma seus atos, seus erros.
2.2 “Amiguinha” Hipácia17: “pra descer é três dias”
Apesar de confiarmos em nossas interlocutoras e interlocutores, devemos
ter em mente, que o estudo das representações sobre o aborto precisa estar atento
aos discursos e às práticas, principalmente as contradições e às ambiguidades.
(Motta, 2013).
Porque vocês se identificam por “Amiguinha”? Porque eu chamava o
pessoal de senhora e senhor. Ai eu fiquei com raiva. Um dia uma senhora, o
nome dela era bem difícil, eu pelejava pra dizer e ela não gostava. Ai eu
Religião da Igreja Mundial. Disponível em <http://www.infoescola.com/religiao/igreja-mundial-dopoder-de-deus-impd/>. Acessado em 22 de jul de 2014.
17
Pseudônimo: referencia a filósofa e cientista grega.
8
disse pronto, a partir de agora eu não chamo mais ninguém de senhora. Ai
eu fiquei procurando, procurando, talvez um que desse certo, ai veio
“amiguinha” e deu certo. (Hipácia, Caicó, janeiro de 2014).
Segundo Hipácia, foi dessa forma, que se estabeleceu esse nome de
tratamento. E assim, ela também gosta de ser chamada de “Amiguinha”. Trabalha
com ervas há mais de 16 anos. Considera o conhecimento sobre as ervas um dom.
Ambiguidades se apresentam quando ela hora diz que aprendeu com sua tia, hora
diz que foi com sua mãe, hora que é um dom.
Remédios da medicina popular, relacionados a saúde sexual e reprodutiva,
muitas vezes são indicados como substitutos dos medicamentos alopáticos 18, da
biomedicina. Em conversa com a amiguinha, chega uma mulher em busca de algo
para um corrimento vaginal, e pergunta “o que é bom?” Hipácia faz as indicações,
Bom, é a garrafada da babosa. Anti-inflamatório, gastrite, hemorroida,
inflamação em geral. Se o colo do útero da mulher estiver branco, ai ele
protege, pra tirar aquele brancão do colo do útero da mulher. Porque tem
uma história de mancha branca no colo do útero. É essa erva que é bom
pra isso.
As abortivas eu não trabalho com elas. As pessoas vêm, dizendo assim,
que é pra menstruar ou pra abortar. Ai eu pergunto, se é pra menstruar ou
pra abortar. Anotamos um papel com CPF e identidade, pra não dá
problema nem pra mim, nem pra a pessoa. Porque as vezes as pessoas
inventam que é pra descer a menstruação, deixa que é pra abortar. Ai eu
não trabalho com esse tipo. Porque tem variedades de ervas que abortam.
Cabacinha. Pedregoso. Canela. Eu não uso não, sabe minha filha porque
eu tenho medo. De fazer esse tipo de maldade. E essas pra a menstruação
descer? A da menstruação descer é a que eu faço de ervas frescas que é
feita de courama, malva, hortelã, pra descer é 3 dias. E esse chá serve pra
descer a menstruação que está atrasada até quanto tempo? Quando tá
atrasada só, 5 dias, 6, 7, passou de 8 dias, um mês eu não faço não.
(Hipácia, Caicó, maio de 2014)
2.3 Francisco: “moídos perdem as propriedades abortivas”
Os senhores dos temperos – E alguns delineadores de gênero
Casado, com filho. Vendia determinados tipos de ervas, e desconfiava da
alta procura por mulheres. Fazia a pergunta “pra que é?” elas não respondiam, ele
passou a desconfiar e não vendeu mais, dizia que não tinha, inventava qualquer
18
Medicamentos da medicina tradicional. A utilização desses medicamentos vão produzir no
organismo do doente reação contrária aos sintomas que ele apresenta. Relação de doença x cura.
Medicina curativa.
9
coisa, e por isso que depois deixou de vender. Tem muitas cascas que deixaram
faltar, porque não tinha muito entendimento, ai depois foi melhor parar.
Depois que Francisco descobriu porque as mulheres compravam tantas
ervas, passou a não vendê-las mais inteiras, porque assim perdem as propriedades
abortivas, a canela, o cominho. Vende quase tudo moído, como tempero.
Pergunto, – sendo católico, como ele vê a prática do aborto? Na vida dos
outros a gente não pode se meter, querer que ninguém faça, tirar a vida de
um cristão assim a toa. Eu acho que quem fizer tá errado, eu não dou valor
nunca, inclusive é o seguinte, se o papa disser, “vai fazer isso ai” é contra
mim, porque eu só confio em deus. Quando estava em Natal, a mulher
(esposa) ficou na banca. Tinha uma mercadoria que dava uns 800 reais, ela
mandou o cara jogar tudo no lixo, tudo. Juntou tudo, defumador, tudo. A
mulher jogou fora tudinho. Ai levei prejuízo com os negócios dos orixás. Eu
agradeci demais e disse tá bom mulher, o que você fez tá feito e pronto, não
quis nem saber, pra não aperriar ela. Porque isso é o seguinte, já botamos
outra mercadoria no canto e pronto. Eu coloquei essas panelas de ferro que
não tinha, um montão de coisa que não tinha aqui eu botei, foice. Substitui.
Melhor do que ter alguém fazendo mal aos outros, isso daí só faz maldade.
Se for pra fazer mal ao próximo, zero. (Francisco, Caicó, maio de 2014)
Na fala de Francisco, percebemos a ausência de ressalvas para o uso de
chás em casos de menstruação atrasada. No caso, há uma questão de gênero?
Será que o que ocorre entre as “amiguinhas” é uma solidariedade feminina?
Luzinete Simões Minela (2005), em seu livro Contracepção e Gênero,
verifica que, analisar a saúde reprodutiva a partir de uma perspectiva de gênero,
significa compreendê-la não apenas em seu aspecto biológico, mas no aspecto
relacional das múltiplas definições socioculturais sobre o masculino e feminino.
Procuramos, dessa maneira, também observar esses aspectos relacionais
que incluem tensões inerentes à construção das identidades a partir dos discursos
das mulheres e dos homens.
Quanto ao preparo das garrafadas, é expresso nas falas de cada uma e de
cada um, que, somente as mulheres (duas amiguinhas) exercem essa prática.
Apesar de que, elas negam prepararem hoje em dia as garrafadas abortivas. E pelo
que entendemos, qualquer garrafada tem poder abortivo.
Pergunto, o senhor tem religião? Católico. Frequento a igreja aqui e acolá.
Quando dá vontade. Não faz garrafada, nem o pai fazia. Pedia pro fazer.
Como a pesquisa é sobre aborto, o que você acha sobre aborto? Aborto é a
cabacinha pra tomar. Elas tomam cabacinha pra abortar. É umas
10
buchinhas, pequenininhas, (ele mostra) faz o chá e toma. Amarga igual (...?)
Coloca quanto na água? Um quarto, tem gente que toma ela toda. Aqui e
acolá aparece uma buchuda atrás de botar pra fora e não tem.
(Senhor do tempero, Caicó, maio de 2014)
Aqui, percebemos uma maior permissividade em relação a fala sobre as
substâncias abortivas, coisa que entre as mulheres é mais velado.
Mas eu digo assim, o senhor se diz católico apesar de não frequentar muito
a igreja, o que o senhor acha sobre o aborto? Errado. Errado por quê? Porque sim,
matar um sobrevivente. E o conhecimento que o senhor tem das ervas, já disse que
aprendeu com seu pai. Vem desde o tempo de meu pai. Já vem dos avôs, do pai
dele, dos avôs dele. Ai vai nascendo na família, o que quer pegar o ramo de
trabalhar pega, o que não quer.
Insisto, a pesquisa é mais focada na saúde das mulheres, sexual e
reprodutiva. Ai a gente tá trabalhando mais com aborto. Eu queria saber das
garrafadas que tem pra fazer a menstruação descer, ou das raízes que preparam.
Pra tipo de inflamação assim, o povo usa mais a quixabeira, arueira, baba
de timão, é boa mesmo pra todo tipo de inflamação. Vejo cabacinha e
pergunto, isso aqui é o quê? É a cabacinha. Serve pra fazer negocio pra
sinusite ou então, se tiver grávida vai perder. Isso daí é próprio para matar
o que veio pra nascer. É remédio pra bicho, pra cavalo, pra gado, é
medicinal mesmo a cabacinha. Pra muitas coisas.
(Senhor do Tempero, Caicó, maio de 2014)
Nessa fala o nosso interlocutor compara a menstruação com inflamação. E
evidencia-se uma tênue crença em predestinação, comum às religiões originárias do
protestantismo Isso daí é próprio para matar o que veio pra nascer.
A fala desse senhor nos trás elementos para realizarmos uma ginastica
mental sobre a presença do
ethos religioso
como disposição ética ou
comportamento (LUNA, 2006 p. 113).
Percebemos então o aspecto de uma cosmologia difusa em que existe a
presença de uma divindade (não somente) no processo reprodutivo (LUNA, 2006 p.
117), mas que se apresenta também em outras esferas da vida prática, sobretudo
na relação com a cura através do uso dos medicamentos que vêm da natureza.
3. Considerações Derradeiras
11
Debruçamo-nos sobre o material de campo, resultante de várias idas à
localidade pesquisada, e selecionado de acordo com o recorte para a escrita dessa
comunicação: sete entrevistas gravadas, e material escrito no diário, colhidos
durante as incursões a campo, de julho de 2013 a maio de 2014.
As questões tratadas em torno do uso da medicina popular como recurso ao
aborto, e, sobretudo, perceber os trânsitos que perpassam o manejo com as ervas,
plantas e raízes no município de Caicó, se sobressaíram no percurso de uma
pesquisa, que tinha como principal locus uma maternidade dessa localidade.
Foram analisadas dimensões concernentes aos discursos das especialistas
e dos especialistas em uso de ervas, raízes e plantas que têm relação com o aborto
ou o poder de fazer a menstruação descer. As contradições, limites e tensões que
estão presentes sob a prática com o manuseio, indicação e comercio dessa flora
relacionada à cura. Tentamos compor uma analise sob a ótica dos estudos de
gênero, equacionando as ocorrências presentes nos discursos, e diferenças
percebidas entre as mulheres e os homens.
Por fim, a pesquisa segue até meados de dezembro de 2014, até lá,
pretendemos elucidar e produzir dados analíticos também sobre o Posto de Saúde,
que resultem em uma compilação de informações sobre as relações entre itinerários
abortivos, SUS e medicina popular em Caicó.
Bibliografia
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