NATHAN BRUNO CAMILO - Fundação Educacional de Ituverava

Transcrição

NATHAN BRUNO CAMILO - Fundação Educacional de Ituverava
FUNDAÇÃO EDUCACIONAL DE ITUVERAVA
FACULDADE DE FILOSOFIA CIÊNCIAS E LETRAS
Nathan Bruno Camilo
MAIO DE 1968: QUANDO A RUA FAZ HISTÓRIA
ITUVERAVA
2014
NATHAN BRUNO CAMILO
MAIO DE 1968: QUANDO A RUA FAZ HISTÓRIA
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado à Fundação Educacional de
Ituverava, Faculdade de Filosofia Ciências e
Letras, para obtenção do titulo de
Licenciatura Plena em História.
Orientador: Prof. Ms. Felipe Ziotti Narita
ITUVERAVA
2014
NATHAN BRUNO CAMILO
MAIO 1968: QUANDO A RUA FAZ HISTÓRIA
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado à Fundação Educacional de
Ituverava, Faculdade de Filosofia Ciências e
Letras, para obtenção do titulo de
Licenciatura Plena em História.
Ituverava,___ de __________ de ____.
Orientador (a): ______________________________________
Prof. Ms. Felipe Ziotti Narita
Examinador (a): _____________________________________
Prof. Ms. Antonio Marco Ventura Martins
Examinador (a): _____________________________________
Prof. Sandro Luiz de Freitas Souza
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho aos meus pais, dos quais me orgulho, pelo amor e confiança
oferecidos em todos os momentos da minha vida.
AGRADECIMENTOS
Muito obrigado,
Ao meu orientador, Felipe Ziotti Narita, pela competência e sabedoria.
Aos meus pais, pelo apoio, carinho e lições de vida.
Aos professores, pelos ensinamentos.
Aos funcionários desta instituição pelos anos de convivência.
Aos colegas, que passaram a ser meus irmãos e irmãs.
Ao programa da Capes, o PIBID que me ajudou a ter um contato cedo com a prática
docente e como trabalhar a história utilizando de meios tecnológicos para despertar o interesse
do estudante.
A faculdade FFCL por disponibilizar um curso de qualidade, bem servido de excelentes
profissionais.
A todos que, direta ou indiretamente, colaboraram para o êxito deste trabalho.
―Conheço muitos que não puderam quando deviam, porque não
quiseram quando podiam.”
François Rabelais
RESUMO
Este trabalho pretende discutir as manifestações em Maio de 1968 na França, visando para
tanto o momento histórico no qual aconteceram as manifestações, entendendo assim seu
caráter apartidário, pois não havia nenhum partido comandando todo o processo. No entanto,
o movimento apresenta uma única bandeira: a da liberdade. Os temas abordados neste
trabalho, portanto, analisam desde a manifestação estudantil, o movimento operário, a
mudança dos hábitos e costumes até um panorama mais amplo, situando o estudo no contexto
da Guerra Fria. Para tanto a metodologia adotada será leitura e análise bibliográfica, tomando
como base uma entrevista especifica realizada pelo Programa ―Arquivo N‖. Analisaremos os
mais diversos pontos de vista referentes ao tema, abordados tanto por autores que são
especialistas no assunto (Eric Hobsbawm, Herbert Marcuse, Olgária Matos etc.) quanto por
professores e líderes que participaram do movimento. Enfatizamos, assim, a pluralidade e a
complexidade de tal movimento, que estabeleceu pautas e discussões que marcaram o fim do
século XX e encontram eco ainda no início do XXI.
Palavras-chave: Maio de 1968. Jventude. Manifestação. França. Liberdade.
SUMMARY
This paper will discuss the events of May 1968 in France, aiming to both the historical
moment in which the events happen, so understanding its nonpartisan character, because there
was no party commanding the whole process. However, the movement features a single
banner: the liberty. The topics covered from the student protests, labor movement, change of
habits and customs up to a larger picture, situating the study in the context of the Cold War.
For both the methodology will be reading and analyzing literature, based on an interview
conducted by the Program ―Arquivo N‖ (Globo News, a Brazilian TV channel). This work
will analyze the most varied points of view on the subject, addressed both by schollars (Eric
Hobsbawm, Herbert Marcuse, Olgária Matos etc.) and by teachers and leaders who
participated in the movement. Thus, we will emphasize the plurality of such a movement, so
that it is impossible to mark its beginning and its end.
Keywords: May 1968. Youth. Manifestation. France. Liberty.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Ilustração da disputa EUA-URSS............................................................................ 21
Figura 2: Desenho geopolítico da Guerra Fria ........................................................................ 22
Figura 3: Ilustração que representa a repressão sexual ........................................................... 24
Figura 4: Foto de Jim Morrison em seu show ......................................................................... 26
Figura 5: Foto que representa a ―Sociedade do espetáculo‖ onde o indivíduo é apenas um
telespectador ............................................................................................................................. 29
Figura 6: Foto da manifestação Maio de 1968 ........................................................................ 33
Figura 7: Foto que mostra a barricada que os estudantes criaram para fazerem resistência
perante a ação policial. ............................................................................................................. 38
Figura 8: Ilustração da reivindicação estudantil ―É proibido proibir‖. ................................... 40
Figura 9: Foto de jovem estudante protestando a favor da liberdade sexual (maio de 1968) . 41
Figura 10: Foto de estudantes manifestando na Bastilha em Paris ( maio de 1968) ............... 42
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10
1 A “ERA DAS CATÁSTROFES”: 1914-1945 .................................................................... 15
1.1 A guerra contra o Eixo: 1939-1945 ................................................................................. 17
1.2 O pós-guerra ..................................................................................................................... 18
1.3 O início da Guerra Fria.................................................................................................... 20
2 OS ANOS 1960: A DÉCADA QUE NÃO QUER CALAR .............................................. 24
3 MAIO DE 1968: PROTESTO, JUVENTUDE E HISTÓRIA ......................................... 32
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 44
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 45
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INTRODUÇÃO
O presente trabalho pretende apresentar e discutir as manifestações em Maio de 1968 na
França, situando-as no contexto da Guerra Fria. Nesse sentido teremos sempre que relembrar
o contexto histórico no qual o movimento se passa para assim ter uma visão mais apurada e
completa dos aspectos que possivelmente levaram ao movimento.
No primeiro capítulo será apresentado o contexto histórico anterior e pós-Segunda
Guerra Mundial, época a partir da qual a Guerra Fria surgirá como uma guerra ideológica
entre Estados Unidos (EUA) e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), ou seja,
Capitalismo e Socialismo.
Começaremos apresentando o inicio da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), guerra
travada entre a Entente (Inglaterra, França, Rússia e EUA) e os Impérios Centrais (Império
Alemão, Império Austro-Húngaro, Império Turco-otomano). Durante a Primeira Guerra
teremos um acontecimento importantíssimo: a Revolução Russa. Segundo Hobsbawm, seria
impossível entender o século XX sem entender antes essa revolução. A Revolução Russa
nasce com praticamente no fim da Primeira Guerra Mundial, onde a Rússia passado por
problemas internos assinará um tratado de paz com os Impérios que ficará conhecido como
Brest-Litovsk. Resolvido o problema em relação ao front da Primeira Guerra, a Rússia agora
poderia se preocupar em resolver suas questões internas, sob uma guerra civil entre
Bolcheviques (exercito vermelho liderado por Leon Trotski) e Mencheviques (exercito branco
lideres, antigos oficiais do regime czarista). Com a vitória dos Bolcheviques, em 1922
teremos a criação da URSS (primeira nação do planeta a adotar o socialismo como forma de
governo).
Após o breve governo de Lênin (morto em 1924), o poder será disputado entre Trotski e
Stalin. Stalin triunfa sobre seu adversário e assume o governo ditatorial da URSS. No
contexto da Primeira Guerra, a Entente vence o conflito e impõe penas duríssimas à
Alemanha, que foi culpada como causadora da guerra. Essa injustiça criará posteriormente
―revanchismo‖ alemão.
Devemos entender também que após a Primeira Guerra Mundial, a chamada Crise de
1929 abalará os Estados Unidos e as principais economias capitalistas. Diante desse fato,
teremos um economista, John Maynard Keynes, que tentando resolver o problema da crise irá
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propor um novo modelo econômico (Keynesianismo), onde o Estado passa a intervir na
economia, o que criará posteriormente o ―Welfare State‖ (estado de bem estar).
As marcas da Primeira Guerra ainda não haviam sido apagadas. A Alemanha vai incitar
uma revanche: nesse sentido, teremos o início da Segunda Guerra Mundial (1939-1945),
conflito em que teremos novamente dois polos, o Eixo (Alemanha, Itália e Japão) e os Aliados
(Estados Unidos, Inglaterra, França e URSS). A união entre Estados Unidos (Capitalismo) e
URSS (Comunismo) é uma união extremamente política e militar, não ideológica, já que se
uniram contra um inimigo comum: as potências do Eixo.
O fim da Segunda Guerra Mundial se dará com a vitória dos Aliados, com novamente
penas duríssimas à Alemanha e seus aliados. Como o medo de uma possível Terceira Guerra,
algo que fatalmente poderia destruir a humanidade, as nações se unem e criam a ONU (União
das Nações Unidas), que será responsável basicamente por manter a paz no planeta –
publicando a conhecida Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948. No entanto, o
século XX ficará marcado na história para sempre: não bastaram duas guerras mundiais, algo
ainda nos aguardava. Assim, em meio a toda a destruição causada na Segunda Guerra
Mundial, inicia-se uma nova guerra, uma guerra diferente de tudo o que havia sido
presenciado, uma guerra ideológica conhecida como ―Guerra Fria‖, onde teremos uma disputa
mundial entre dois blocos econômicos e políticos, o Capitalismo, representado pelos EUA, e o
Socialismo, representado pela URSS. Essas duas nações vão mexer com o imaginário do
mundo: se em algum momento a humanidade esteve face a face com o armagedom, foi
durante a ―Guerra Fria‖. Devemos relembrar que o presente trabalho está discutindo questões
durante esse período, portanto é importante o entendimento sobre esse acontecimento e o
imaginário que ele criará no mundo. Devido ao ―poder nuclear‖ presenciado em Hiroshima e
Nagasaki, tem-se uma espécie de ―o mundo pode acabar a qualquer momento‖: uma tensão
está continuamente no cotidiano das pessoas que vivenciarão esse período.
Essa é uma questão extremamente importante já que nos dá aporte para o início do
segundo capítulo, onde abordaremos de forma geral os aspectos culturais dos anos de 1960.
Neste momento, analisaremos a juventude com o papel principal dessa peça de mudanças que
ocorreram a partir dos anos 1960. Os jovens de maneira geral estavam desconfiados da
sociedade que ―causou as guerras‖ e começam a fazer voz a essa sociedade que, após a
Segunda Guerra, não havia mudado em nada seus hábitos e costumes, enfim sua tradição,
como se não houvesse motivos para determinadas mudanças.
Durante os anos 60 teremos a surgimento de uma cultura à parte da cultura dominante,
conhecida como ―contracultura‖: o ―movimento hippie‖ é a melhor forma de representarmos
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esse termo na prática. Os hippies tinham em si a contraposição aos valores que a sociedade
conservadora apresentava, seu aspecto de viver em meio à natureza em comunidades ia contra
o padrão vigente. As músicas, as vestimentas, as danças, o sexo e as drogas serão os
principais aspectos de contraposição a esse padrão de sociedade, conversadora, dominadora e
opressora.
Esse movimento de aspecto pacifista que irá influenciar toda uma juventude na década
de 50 sob a frase ―paz e amor‖ apresenta uma contraposição fortíssima contra a sociedade da
época, não apenas pelo aspecto ideológico, mas também musical e das vestimentas. Por
exemplo: suas roupas eram largas e as músicas tinham por essência a simplicidade, seu caráter
organicista e naturalista batia de frente com a sociedade capitalista individualista e
materialista da época.
Surge também no aspecto musical o rock ‘n‘ roll, onde teremos alguns dos músicos e
artistas mais populares do século XX, como Jim Morrison, da banda de rock The Doors.
Como uma espécie de ―xamã das antigas tribos, transmitindo à comunidade o poder de suas
experiências através do ritual da música‖ (CIDREIRA, 2008, p. 38), Jim Morrison vai
influenciar toda uma juventude, não apenas no aspecto musical, como também com suas
vestimentas. Os jovens viam a Morrison como o diferente perante a sociedade vigente e
queriam ser tal como seu ídolo, serem os diferentes no meio da massa.
Em divergência ao terno e a gravata, objetos simbólicos do status social masculino da
sociedade conservadora, surgem roupas mais largas, leves, soltas, além das cores coloridas,
fortes e vibrantes (vermelho, amarelo, verde, azul), em contraposição ao preto e branco
tradicional. O movimento hippie apresenta uma mudança de mentalidade, uma via de escape,
uma chance de escolher o diferente. Nesse sentido a música, a vestimenta e as drogas são
apenas consequências desse modo diferente de se viver.
A sociedade capitalista tem em si uma especificidade: ela transforma tudo em
mercadoria, transforma desejos em objetos de comprar. Em Sociedade do espetáculo, Guy
Debord (2003) expõe a padronização e idealização de certos produtos. Produtos inúteis são
vendidos pela sociedade do espetáculo como essências para a vida, o que temos de singular
nessa sociedade será que pessoas antes apenas tidas como consumidores agora passam a ser
também mercadoria.
Voltemos ao cerne do motivo pelo qual os hippies criam uma vida alternativa. Na
verdade, não só os hippies, mas os jovens de maneira geral adotam uma forma diferente de
existir em meio à sociedade vigente, por uma razão bem simples: eles queriam sua
―liberdade‖, liberdade em se expressar, liberdade em se vestir, liberdade em cantar, dança,
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enfim liberdade de existir. A sociedade, ou seja, o Estado, a Igreja e os pais eram repressores
e sendo assim autoritários. Os jovens logo se voltaram contra essa autoridade, principalmente
contra a repressão sexual. Diante desse clamor pela liberdade sexual teremos a frase dos
hippies ―faça amor, não faça guerra‖ (ALONSO, 2009, p.49), o que completava também sua
posição de crítica da Guerra do Vietnã, dado que milhares de jovens americanos foram para a
guerra.
A essa altura podemos começar a falar sobre o terceiro capitulo, que tratará
especificamente do movimento de Maio de 1968 na França, onde jovens vão fazer uma
revolta. Aparentemente, eles não haviam motivo de fazê-la; no entanto, esse movimento é
extremamente pluralista, de forma que devemos analisar seus pormenores para termos melhor
visão do que estava acontecendo.Como já foi mencionado, seria impossível entender o que se
passa nesse período senão relevarmos em consideração a ―Guerra Fria‖. Dado tal
esclarecimento, podemos agora analisar melhor essa dada que ficou marcada para a história:
nesse sentido, Zuenir Ventura escreveu o livro cunhado de 1968: o ano que não terminou.
O movimento de Maio de 1968 é apartidário (não há nenhum partido no comandando),
ou seja, ele não levanta bandeira capitalista e muito menos comunista. Sua única bandeira será
a da liberdade, tal qual os hippies, os jovens como um todo também a reivindicam em 1968.
Maio de 68 inicia-se aparentemente com uma reivindicação, a princípio comandada pelos
jovens da Faculdade de Nanterre: eles queriam que meninas visitassem quartos de meninos e
vise-versa. Vendo que seu pedido não seria atendido, os jovens tomam a universidade e a
partir daí começam a fazer suas próprias regras. A partir desse ponto os jovens começam todo
um movimento ideológico para mudar a sociedade vigente. Por ser um movimento novo,
nunca antes visto na história, ninguém sabia o que iria acontecer, nem mesmo os próprios
―revolucionários‖ do movimento. Os jovens foram movidos por ideais, por sonhos de
―construir uma sociedade tal qual eles amariam viver‖, os jovens tinham como logotipo do
movimento a frase ―é proibido proibir‖ (MATOS, 1981, p. 35). Além de outras ainda mais
provocativas, como (MATOS, 1981, p. 95) ―Sejamos realistas, que se peça o impossível‖:
frases como estas moveram os jovens em busca de um ideal, que eles estavam dispostos a
lutar para conseguir. Olgária Matos (1981, p. 9) nos apresenta que, ―o desejo revolucionário
será muito mais marcante do que a situação revolucionária. Talvez por isso o movimento foi
muito mais capaz de contestar do que vencer, de imaginar do que transformar‖. E realmente
assim ocorreu com os chamados ―filhos da burguesia‖, criando uma revolta nunca antes
presenciada na História.
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O movimento na França se espalha e começa a ter proporções cada vez maiores.
Teremos a chamada ―noite das barricadas‖, onde estudantes que haviam invadido a Sorbonne
iram combate à polícia a mando o presidente de Gaulle que estava estarrecido com tamanha
proporção que o movimento havia ganhado. Os estudantes perderam o combate e foram
presos, tentando um possível acordo entre os estudantes, uma normatização da situação. O
presidente De Gaulle declara anistia aos jovens que foram presos e propõe uma virada de
página na situação, que por sinal esse movimento deveria ter acontecido.
Mas a história prega peças e 1968 só havia começado a se mostrar. Dias depois da
anistia dos jovens estudantes, os sindicatos organizam uma greve geral, que chega a ter 10
milhões de grevistas, a greve alcança âmbito nacional, a França irá parar economicamente.
Nesse momento se tivesse existido uma união entre jovens estudantes e trabalhadores
provavelmente conseguiriam até mudar o sistema de governo na França, os sindicatos
estavam preparando para criar um regime socialista, já que diferente dos estudantes o
movimento operário era partidário. No entanto essa união nunca acontecendo, tanto os
operários desconfiavam dos estudantes, quanto os estudantes desconfiavam dos operários,
apesar de parecerem dispostos a se unirem a eles.
Os movimentos aos poucos foram sucumbindo, os operários conseguem mudanças
ligadas às horas de trabalhos e aumento salarial, e os jovens conseguem modificações nas
matérias universitárias. Porém as mudanças mais significativas estão no âmbito cultural e nas
relações de autoridade. Maio de 68 deve ser entendido no meio de um processo histórico, ou
seja, seria errôneo apontar seu inicio ou se termino devido à pluralidade que esse movimento
apresenta. Mas o filósofo Nietzsche (2005, p.287) já havia nos avisado: o que se diz
importante na história são apenas ―bolhas que se tornam visíveis sobre a torrente das águas‖.
Portanto, Maio de 68 é uma dessas ―bolhas‖ e por isso devemos prestar atenção nos seus
pormenores, nas torrentes das águas: esse é um movimento histórico único, dotado de
particularidades, de forma que seus efeitos e significados remontam aos anos 1960 mas ecoam
até o mundo atual.
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1 A “ERA DAS CATÁSTROFES”: 1914-1945
O fim da Segunda Guerra Mundial marca um período de extremas mudanças no cenário
global. A Europa perde a hegemonia mundial e surgem, para ocupar esse lugar, duas novas
potências que passaram a disputar a supremacia econômica e militar do planeta: os Estados
Unidos da América (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Vamos discorrer mais sobre essa questão entre americanos e soviéticos, que ficará
conhecida como ―Guerra Fria‖. No entanto, antes, vamos retornar para o inicio da Primeira
Guerra Mundial, em 1914, e identificar mudanças políticas e econômicas importantes para o
decorrer do trabalho e para melhor entendimento do assunto. Analisaremos, agora, as
principais marcas de formação do século XX, compreendendo o período que o historiador
Eric Hobsbawm (2011) denominou de ―Era das catástrofes‖ – momento em que, entre 1914 e
1945, guerras generalizadas assolaram o mundo.
Em 1914 teve início a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), guerra travada entre a
Entente (Inglaterra, França, Rússia e EUA) e os Impérios Centrais (Império Alemão, Império
Austro-Húngaro, Império Turco-otomano). Com a vitória da Entente, os impérios derrotados
sofreram inúmeras perdas territoriais, políticas e econômicas (HOBSBAWM, 2011). Após a
Primeira Guerra, mais precisamente em 1929, teremos uma crise econômica que vai arrasar os
Estados Unidos. As causas dessa crise são bastante estudadas: como a Europa estava se
reconstruindo, seu potencial de compra ficou reduzido; porém, os Estados Unidos
continuaram com sua produção em massa – lembremos que estamos neste período numa
economia liberal (em que o Estado intervém minimamente no mercado), e o resultado foi que
não havia para quem vender, de modo que sobraram muitos produtos, com uma grande oferta
e pouca procura. Assim, o valor dos produtos caiu drasticamente (diversas economias,
sobretudo na Europa e na América, foram duramente golpeadas pela crise de 1929).
Diante dessa crise teremos um economista que mudará o sistema econômico vigente
com sua teoria: era John Maynard Keynes, que percebeu que o modelo econômico da época, o
―laissez-faire‖, não estava resolvendo o problema, pelo contrário só agravava-o. Diante dessa
situação, Keynes vai mostrar a importância do Estado como controlador da economia, com o
objetivo de atingir o pleno emprego, o que criará posteriormente o ―Welfare State‖ (estado de
bem estar), onde o governo não só passa a intervir na economia, como também passa a
proporcionar o que há de melhor para sua população. Fábio Guedes Gomes (2006, p. 203)
define Welfare state como
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[...] um conjunto de serviços e benefícios sociais de alcance universal promovidos
pelo Estado com a finalidade de garantir uma certa ―harmonia‖ entre o avanço das
forças de mercado e uma relativa estabilidade social, suprindo a sociedade de
benefícios sociais que significam segurança aos indivíduos para manterem um
mínimo de base material e níveis de padrão de vida, que possam enfrentar os efeitos
deletérios de uma estrutura de produção capitalista desenvolvida e excludente.
Hobsbawm (2011, p. 146) entende a introdução das medidas de Keynes adotadas pelos
países capitalistas, principalmente Estados Unidos e Grã-Bretanha (sistema econômico que
ficará conhecido como Keynesianismo), como uma grande contradição, já que os ―nomes‖ do
sistema liberal, que defendiam o liberalismo, agora vão contra sua base principal, que era
sustentada justamente pela livre regulação do mercado. Duramente afetadas pela crise de
1929, a Europa enfrentava diversos problemas financeiros: especialmente na Itália (frustrada
com os resultados da guerra de 1914) e na Alemanha (humilhada após a derrota), movimentos
que pretendiam reerguer os países da ruína ganhavam força. Assim, nos anos 1920 e 1930, o
fascismo italiano (cujo líder era Benito Mussolini) e o nazismo alemão (Adolf Hitler).
Nasciam, na Europa, experiências de governos totalitários: regimes ultranacionalistas,
ditatoriais, de partido único, centralizados na figura de um grande líder, com forte teor
anticomunista e racial (especialmente o nazismo alemão). Hannah Arendt (1989, p. 394)
define esse processo:
[...] o que caracteriza a propaganda totalitária melhor do que as ameaças diretas e os
crimes contra indivíduos é o uso de insinuações indiretas, veladas e ameaçadoras
contra todos os que não derem ouvidos aos seus ensinamentos, seguidas de
assassinato em massa perpetrado igualmente contra culpados e inocentes.
Além do nazi-fascismo, o comunismo soviético também pode ser encaixado nessa
definição dos totalitarismos dos anos 1920. Retornemos um pouco para identificamos onde
nasceu a URSS e seu contexto. Em 1917 teremos um fato central para o entendimento de todo
o século XX: a Revolução Russa. Como principais nomes, teremos os Bolcheviques,
liderados por Joseph Stalin, Vladmir Lênin e Leon Trotsky. A chamada ―Revolução de
Outubro‖, tomada de poder pelos bolcheviques, em 1917, marca o estopim para a criação de
uma posterior superpotência. Uma das medidas propostas por Lênin seria a paz e essa só se
concretizaria com a saída da Rússia da Primeira Guerra Mundial. Os Bolcheviques se
organizam e iniciam a implantação do socialismo: a Rússia sai da Primeira Guerra e assina
um tratado de paz conhecido como Brest-Litovsk (1918). Resolvido esse problema externo de
não receber mais ataques exteriores, a Rússia irá se concentrar em revolver seus problemas
internos a partir da guerra civil entre Bolcheviques (exercito vermelho liderado por Leon
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Trotski) e Mencheviques (exercito branco lideres, antigos oficiais do regime czarista). Com a
vitória dos Bolcheviques, em 1922 teremos a criação da URSS (primeira nação do planeta a
adotar o socialismo como forma de governo).
Após o breve governo de Lenin (morto em 1924), o poder será ferozmente disputado
entre Trotski e Stalin. Este triunfa sobre seu adversário e assume o governo ditatorial da
URSS. Durante o período stalinista, a URSS foi governada por uma forte burocracia,
controladora do Estado e das instituições, atravessando um processo de militarização e
perseguição política (CERDEIRA, 1988).
1.1 A guerra contra o Eixo: 1939-1945
Um fato interessantíssimo deve ser resaltado nesse período: a união entre Capitalistas e
Socialistas, ou seja, entre EUA e URSS, para derrotar os países do Eixo (sobretudo o nazismo
alemão e o imperialismo japonês). Eric Hobsbawm (2011, p. 145) afirma que
Num século dominado pelo confronto entre o comunismo anticapitalista da
Revolução de Outubro, representado pela URSS, e o capitalismo anticomunista, cujo
defensor e principal exemplar eram os EUA, nada parece mais anômalo do que essa
declaração de simpatia, ou pelo menos preferência, pelo berço de revolução mundial
em detrimento de um país vigorosamente anticomunista e cuja economia era
reconhecivelmente capitalista.
Essa união é extremamente política e não ideológica: a aliança era feita para enfrentar
um inimigo comum, ou seja, a ameaça representada pelos países do Eixo (Alemanha, Japão e
Itália). Em 1939 teremos a ―revanche da Alemanha‖ com o início da Segunda Guerra
Mundial, onde teremos novamente dois polos, o Eixo (Alemanha, Itália e Japão) e os Aliados
(Estados Unidos, Inglaterra, França e URSS).
A Segunda Guerra mundial deixará um cenário de caos e destruição. Além dos milhões
de mortos e feridos (militares e civis), das cidades e países completamente destruídos pelas
batalhas, nunca antes havia sido presenciado o poder atômico. Esse momento aconteceu no
fim da guerra, em agosto de 1945, de modo que a bomba atômica foi talvez o momento que o
ser humano refletiu sobre o seu poder de destruição em massa e até onde utilizar esse poder
era racional. Assim, prevaleceu a frase ―guerra é guerra‖: nisso Hiroshima e Nagasaki foram
às escolhidas para o teste da bomba atômica, implicando a rendição do Japão e o fim Segunda
Guerra Mundial.
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Após presenciado duas guerras, uma Terceira Guerra seria o fim da raça humana, quiçá
do planeta, como disse Albert Einstein (ALBERT..., 2008): ―Eu não sei como vai ser a
Terceira Guerra Mundial, mas a Quarta vai ser com paus e pedras.‖ Com o intuito de evitar
que um mal maior aconteça, as nações se reúnem e criam a ONU (Organização da Nações
Unidas), que será responsável basicamente por manter a paz no planeta – publicando a
conhecida Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, documento que afirmava
questões como liberdade, dignidade e vida a partir dos horrores vividos durante a guerra.
1.2 O pós-guerra
O cenário mundial após a Segunda Guerra Mundial é de destruição, desolação,
desesperança. Os impactos da guerra foram destruidores: a destruição foi completa, uma
verdadeira ―Guerra Total‖ não apenas por ter havido participação de praticamente todos os
países, ou por ter havido uma participação civil também, mas total porque não só mudou o
cenário físico e político como também moral e ideológico (sobretudo com os massacres).
Tony Judt (2014, p. 25) faz um breve comentário de como estavam as condições na Europa
A perspectiva da Europa era de miséria e desolação total. Fotografias e
documentários da época mostram fluxos patéticos de civis impotentes atravessando
paisagens arrasadas, com cidades destruídas e campos áridos. Crianças órfãs
perambulam melancólicas, passando por grupos de mulheres exaustas que reviram
montes de entulho. Deportados e prisioneiros de campos de concentração, com as
cabeças raspadas e vestindo pijamas listrados, fitam a câmera, com indiferença,
famintos e doentes. Até os bondes parecem traumatizados — impulsionados por
corrente elétrica intermitente, aos trancos, ao longo de trilhos danificados. Tudo e
todos — exceto as bem nutridas forças aliadas de ocupação — parecem surrados,
desprovidos de recursos, exauridos.
Viver durante a guerra era um desafio, viver após ela será ainda mais difícil, como bem
expõe Judt (2014): ―as cidades em ruínas eram a prova mais evidente — e captada em
fotografias — da devastação,e passaram a servir de uma espécie de emblema que expressava a
tristeza da guerra.‖ As condições para se reerguer diante desse cenário eram desvantajosas,
principalmente para os países que fizeram parte ou apoiaram o Eixo: muitos tiveram que
começar do zero, sem leis, ordem ou administração. Temos dados do subúrbio berlinense de
Treptow que nos dá uma boa base como ficaram as estruturas sociais e familiar – ―em
fevereiro de 1946, entre os adultos na faixa etária de 19 a 21 anos, havia apenas 181 homens,
para 1.105 mulheres‖ (JUDT, 2014, p. 33). A população masculina estava escassa, teremos
uma grande predominância feminina, principalmente na Alemanha, com mulheres (mães
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solteiras) criando seus filhos sozinhas, uma vez que as crianças que nasceram nessa época não
terão uma figura paterna a seu lado.
Durante o pós-guerra pouquíssimas pessoas terão condições de se alimentar
adequadamente, já que o mercado interno do país não estava ―funcionando‖, faltava
comunicação e inúmeras fazendas foram destruídas durante a guerra, o número de pessoas
desabrigadas e improdutivas era extremamente elevado o que agravava ainda mais a procura
por alimentação, as poucas pessoas que conseguiam produzir alimentos em suas fazendas, não
os vendia, a moeda do país estava desvalorizada, pouco lhes importava nessas condições obter
lucro. Como nos explica Judt (2014), a maioria das pessoas padecia de fome e de doenças:
teremos um sério problema em Berlim, no verão de 1945, por causa de cadáveres que estavam
em estágio de putrefação, provocando várias doenças. Crianças foram as grandes vítimas
durante esse período: por causa da escassez de alimento, muitas contraíram tuberculose,
raquitismo, pelagra, disenteria e impetigo.
Para clarear ainda mais o meio ao qual estamos tentando descrever, temos uma
descrição do oficial do Exército britânico, William Byford-Jones (apud JUDT, 2014, p. 37)
Destroços de naufrágio, cargas ao mar! Mulheres que perderam maridos e filhos,
homens que perderam esposas; homens e mulheres que perderam lares e filhos;
famílias que perderam grandes fazendas, propriedades, estabelecimentos comerciais,
destilarias, fábricas, moinhos de trigo, mansões. Havia também crianças
abandonadas, carregando pequenas trouxas, portando patéticos crachás. Tais
crianças perderam-se das mães, ou as mães morreram e foram sepultadas por outros
deslocados de guerra em alguma beira de estrada.
Outra questão interessante que deve ser apontada é a questão dos estrangeiros: muitos,
no início, estavam sendo repatriados à força; porém, diante dessa situação, em 1951 será
organizada uma Convenção Europeia dos Direitos Humanos, garantindo ao estrangeiro a não
repatriação. Independentemente da nacionalidade, os refugiados não eram recebidos de braços
abertos: havia uma preferência por certos tipos de pessoas (no caso das mulheres, deveriam
ser solteiras e sem filhos). Os judeus são um caso particular: muitos eram reenviados para
acampamentos na Alemanha. Posteriormente, para ser mais coerente, a ONU cria o Estado de
Israel, em 1948. Porém só teremos uma grande imigração judaica em 1951, quando 332 mil
judeus saem da Europa e vão para o nascente estado de Israel.
20
1.3 O início da Guerra Fria
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, o cenário econômico capitalista
muda de foco: da Europa passa-se para a América. O Eurocentrismo perde força, com isso
teremos os Estados Unidos erguido como a grande potência mundial. Porém isso teve um
custo altíssimo: a Europa pós-guerra estava completamente destruída, como já foi
mencionado anteriormente. Conforme Hobsbawm (2011, p. 237) ―[...] a situação da Europa
Ocidental em 1946-7 parecia tão tensa que Washington sentiu que o fortalecimento da
economia europeia e, um pouco depois, também da japonesa, era prioridade mais urgente‖.
Com esse intuito de reconstruir a economia europeia teremos a criação de um plano pelos
Estados Unidos, com o nome de ―Programa de Recuperação Europeia‖, mais conhecido como
Plano Marshall (1947), idealizado pelo general George Catlett Marshall. O plano consistia em
empréstimos e doação de recursos financeiros aos países da Europa: esses empréstimos
dependiam do quão devastado o país estava pós Segunda Guerra Mundial. Alemanha e França
foram as mais beneficiadas por este plano devido ao tamanho estrago que foi causado durante
a guerra. No entanto veremos que houve muito mais doações de verba do que empréstimos.
Os Estados Unidos impunham seus planos políticos e econômicos sobre a Europa, que nada
podia fazer. O dólar era uma moeda forte e valorizada, porém essa supremacia não durará
muito: a Guerra do Vietnã (1964-1965) desmoralizou os Estados Unidos perante os demais
países e dividiu a própria nação americana. Sobre isso temos uma explicação muito sucinta de
Hobsbawm (2011,p. 238):
Os dólares são escassos em 1947, haviam fluído para fora dos EUA numa torrente
crescente, acelerada – sobretudo na década de 1960 – pela tendência americana de
financiar o déficit gerado pelos enormes custos de suas atividades militares globais,
notadamente a Guerra do Vietnã (depois de 1965), e pelo mais ambicioso programa
de bem-estar social da história americana.
Nunca antes na história houve uma dependência tão grande de país para país: a guerra
afetou a todos, de pequenas ou extremas formas, mas afetou e agora temos uma economia
global, de forma que um país é dependente do outro. Nesse período, entre as duas
superpotências vitoriosas em 1945, começa uma guerra ideológica entre capitalismo (EUA) e
socialismo (URSS). Como já foi dito, essas duas potências disputariam a supremacia
econômica e militar do mundo. Porém, em nenhum momento elas chegam a se enfrentar
militarmente de forma direta.
21
Figura 1: Ilustração da disputa EUA-URSS.
Disponível em: <http://costalonga.files.wordpress.com/2012/07/cold_war_by_costalonga-d4bdjsg.jpg>.
Acesso em: 20 abr. 2014
Orivaldo Leme Biagi (2001, p. 62-63) expõe que as grandes discussões historiográficas
em torno da Guerra Fria tendem a assumir duas posturas bastante distintas: ―1ª) foi uma
construção soviética, que queria expandir o comunismo para o resto do mundo; 2ª) foi uma
construção norte-americana, para justificar suas ações e consequentes intervenções que
tiveram fora do domínio soviético.‖ Ambas as posturas são plausíveis e mostram a dinâmica
pela qual os conflitos acorriam. Teremos também um imaginário, neste período, que irá
assombrar a humanidade: a ―ameaça nuclear‖ era constante. Rodrigo Fernando More (2014, p.
01) define esse período como
[...] um temor constante, alimentado pela instabilidade das relações entre as duas
superpotências, de que a qualquer momento num simples apertar de botões estaria a
humanidade face a face com o armagedom, com a completa destruição da vida pelas
armas nucleares, cujo potencial destrutivo fora testado e apresentado ao mundo em
agosto de 1945 sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki.
Sob essa perspectiva, a Guerra Fria pode ser entendida como algo que causa uma
angústia constante de não se saber o que acontecerá a qualquer momento. Esse imaginário ao
qual More se refere será notado em praticamente em todo o desenrolar do século XX e será
importantíssimo para melhor compreensão do assunto, sempre levando em conta essa questão
do mundo polarizado entre Capitalismo e Socialismo. Se, com apoio dos EUA, o sistema
capitalista ganhava terreno na Europa Ocidental, no Japão, no Oriente Médio e na América
Latina, as propostas socialistas eram defendidas, além do Leste Europeu, sobretudo em países
como China (1949) e Cuba (1959).
22
Para polarizar ainda mais o mundo, teremos a criação da OTAN (Organização do
Tratado do Atlântico Norte), em 1949, que será uma aliança militar, uma ajuda mútua no caso
de agressão por outro país, formada exclusivamente por países ocidentais capitalistas, tendo
como seu principal nome os Estados Unidos. O principal intuito dessa organização será inibir
o avanço do bloco socialista sobre o continente europeu. Assim, era fundamental para os EUA
a preservação de sua influência na Europa Ocidental. Leonardo Dall Evedove (2004), em
pesquisa feita na Unesp, define que a ordem capitalista deveria ser preservada ―seja em
termos de distribuição do poder mundial, seja pela preservação das relações econômicas entre
as partes que incidiam diretamente sobre a existência de ambas enquanto países democráticos
e capitalistas‖. Em 1955, a URSS criará o Pacto de Varsóvia, formado pela URSS e os países
socialistas do Leste Europeu que tinham como objetivo uma aliança militar, ou seja, ajuda
mútua também para inibir a expansão do capitalismo no Leste Europeu.
Figura 2: Desenho geopolítico da Guerra Fria
Disponível em: <http://megaarquivo.files.wordpress.com/2012/04/guerra_fria_1980.png>.
Acesso em: 12 out. 2014.
Agora que temos clara a divisão entre Capitalismo (EUA) e Socialismo (URSS), OTAN
e Pacto de Varsóvia, vamos passar a nos concentrar em quais países teremos essas ―brigas de
braços‖, ora apoiando o capitalismo, ora o comunismo. Como já foi mencionado, em nenhum
momento teremos uma guerra declarada entre EUA e URSS. No entanto, eles utilizavam da
ameaça nuclear para forçar outros países a aceitar suas imposições, havendo vários confrontos
23
não declarados entre essas duas potências, como a Guerra do Vietnã (1964-1975), a Guerra da
Coreia (1950-1953) e a Guerra do Afeganistão (1979-1989). Além dos conflitos militares e
das disputas econômicas, a polarização da Guerra Fria implicava também um confronto
cultural e ideológico. Diversos grupos sociais e partidos políticos no mundo capitalista
ocidental, por exemplo, buscavam inspiração em formas alternativas ao sistema capitalista:
nesse sentido, movimentos estudantis, artísticos e intelectuais agitavam a cultura no período.
Uma radical mudança nos costumes começava a ganhar corpo nos anos 1960.
24
2 OS ANOS 1960: A DÉCADA QUE NÃO QUER CALAR
Começaremos esse capítulo apresentando possíveis agentes causadores de uma década
que ficou marcada na história, com peculiaridades até então não vistas em todo processo
histórico anterior. A geração pós-guerra começa a levantar-se e fazer voz perante a sociedade
que ―causou a guerra‖. A sociedade na qual essa geração está inserida ainda continua a
mesma em sua estrutura conservadora e repressiva. Essa geração dos jovens possuía
reivindicações fortes perante essa sociedade caduca: reivindicações relacionadas ao aspecto
da liberdade sexual e da despatronização do indivíduo perante a sociedade capitalista, que
exaltava o individualismo. Deve-se levar em consideração que os jovens propõem uma
modificação no aspecto cultural e não político. Segundo Cidreira (2012, p 96), o descaso com
a política está atribuído a
[...] Adorno e Horkheimer (1985) defenderam a tese que os indivíduos voltaram às
costas para a política em virtude da exacerbação de personalidades narcisísticas
dedicadas ao consumo e a individuação.
É interessante notar que a própria sociedade capitalista, individualista e de consumo
tenha criado seu oposto: a coletividade e a comunidade de compartilhamento. Na década de
60 nasce um novo modo de ser, que buscava sua afirmação longe do aspecto do ter bens
materiais, longe da padronização repressiva sexual imposta pela religião.
Figura 3: Ilustração que representa a repressão sexual
Disponível em: < http://www.ronaud.com/wp-content/uploads/2011/05/no-sex.jpg >.
Acesso em: 01 nov. 2014.
25
Sobre o aspecto repressivo sexual, o filósofo Nietzsche (1957, p.72) nos apresenta uma
provocação diante da castidade, do ―casar virgem‖:
[...] A pregação da castidade é excitação pública contra a natureza. Todo o desprezo
da vida sexual, toda a sua adulteração através da noção de «impureza» constitui
delito de lesa-vida,verdadeiro pecado contra o espírito santo da vida.
Nietzsche enxerga que a própria repressão instiga em si uma excitação, ou seja, ela cria
um desejo maior e impulsiona o individuo a cometer aquilo que se considera ―proibido‖ ou
―errado‖ pela sociedade. Digamos que os jovens foram instigados a ir na contramão do que se
considerava o ―certo‖ e de boa conduta pela sociedade vigente da época. Não por menos,
Nietzsche será um dos pensadores mais influentes nos círculos intelectuais dos anos 1960 e
1970, entre esses intelectuais estão: Michel Foucault, Jean-Paul Sartre e Marcuse.
Na década de 60 os jovens vão criar uma contracultura, um novo modo de existir. Luís
Carlos Maciel Pereira (1984, p.13), definiu contracultura como:
[...] O termo ―contracultura‖ foi inventado pela imprensa norte-americana, nos anos
60, para designar um conjunto de manifestações culturais novas que floresceram,
não só nos Estados Unidos, como em vários outros países, especialmente na Europa
e, embora com menor intensidade e repercussão, na América latina. Na verdade, é
um termo adequado porque uma das características básicas do fenômeno é o fato de
se opor, de diferentes maneiras, à cultura vigente e oficializada pelas principais
instituições das sociedades do ocidente. Contracultura é a cultura marginal,
independente do reconhecimento oficial. No sentido universitário do termo é uma
anticultura.
Nos movimentos organicistas, a individualidade se dissolve na massa. Os hippies são o
grande exemplo da quebra de paradigma com o individualismo capitalista, porém devemos
entender que a dissolução na massa não faz do individuo inexistentes ou sem importância,
pelo contrário, o que se procura construir é uma identidade única fora dos padrões individuais,
apresentando como o novo modo de vida a coletividade e em seu cerne teremos como
características da ruptura com o velho mundo, o fator musical (rock), o fator corporal (sexo) e
o fator substancial (drogas).
Segundo Cidreira (2008, p. 38), a música é dada como pertencimento a uma dada tribo,
onde o som ―converte-se numa religião elétrica em que os músicos de rock revivem a função
mágica do xamã das antigas tribos, transmitindo à comunidade o poder de suas experiências
através do ritual da música‖. Cidreira (2008, p. 41) nos apresenta uma informação mais
objetiva sobre esse aspecto:
26
[...] Por isso mesmo a força da aparência na constituição e solidificação de grupos
específicos; a indumentária é acolhida como um dos mais significativos emblemas
de uma série de transformações que os jovens almejavam, uma vez que é um
elemento visual e um artifício que se cola ao corpo, a própria pele, como uma
verdadeira extensão do ser humano.
Como ―xamã‖ do rock and roll teremos Jim Morrison, nascido em 1943, vocalista do
grupo The Doors, que influenciará toda uma juventude das décadas de 60-70, com seus shows
teatrais no palco e posteriormente com suas poesias. Parte de toda uma geração de músicos
importantes nos anos 1960-70 (Jimi Hendrix, Janis Joplin etc.), parecia que tanto na música
como em suas poesias, Jim não queria criar modelos, fórmulas de como viver, mas sim apenas
aumentar o leque de possibilidades de vidas. Jim morre em 03 de julho de 1971, Rosangela
Patriota (2005, p. 12) atribui a morte de Morrison a um mistério:
[...] O atestado de óbito revelou problemas cardíacos. No entanto, outras versões
falam de uma overdose, em um bar da cidade, que o deixou em coma e,nesse estado,
fora levado para casa. Essa morte mal explicada deu origem a lendas acerca do xamã
dos anos 1960.
Entre essas lendas destaca-se uma possível aparição de Morrison em alguma parte do
mundo e ―em New Orleans onde um romance bizarro foi mesmo (mal) escrito sob o seu
nome‖ (PATRIOTA, 2005, p.12), este rumor e fato, alavancou ainda mais o título de xamã a
Morrison.
Figura 4: Foto de Jim Morrison em seu show
Disponível em: < https://warosu.org/data/fa/img/0082/24/1400055315452.jpg >.
Acesso em: 01 nov. 2014.
27
Morrison está entre os ídolos do rock dos adolescentes que possui um estereótipo de
conduta contrária a valores padronizados pela sociedade, de modo que será incorporado pelos
jovens como o patrão fora dos patrões. Os jovens viam a seus ídolos do rock como o novo,
como o diferente, inspiraram-se neles e adotaram seu estilo, tanto de vestimenta quanto de
comportamento. Entre esses ídolos estão: Elvis Presley, John Lennon, Jerry Garcia, Janis
Joplin, Jim Morrison, Jimi Hendrix e Kurt Cobain.
Voltando aos aspectos de ruptura com o velho mundo, teremos uma despatronização nas
vestimentas. O ―movimento hippie‖ surge como um grande despatronizador de vestimentas,
aderindo a roupas leves e coloridas. O terno e gravata, roupas típicas de status social
masculino, características da sociedade conservadora, vão perdendo espaço, dando lugar a
roupas mais leves, soltas e largar. Cidreira (2008, p.36) nos apresenta um dado sobre como
teria surgido à primeira comunidade hippie:
[...] De acordo com as pesquisas de Daufouy e Sarton, atualizadas por Tupã Correia,
teria sido um grupo de professores e estudantes de arquitetura, psicologia e ciências
sociais que,numa ruptura frontal com o sistema de ensino que eles chamavam de
esclerosado e decadente, teria fundado a primeira comunidade hippie de que se tem
conhecimento. A comunidade foi batizada de Drop City e tinha como meta fomentar
a criatividade de seus membros através do contato direto coma natureza, bem como
buscavam eliminar todos os padrões hierárquicos de chefia ou de governo e toda
forma de trabalho organizado.
Esse é um dado importante, a busca de um modo de vida diferente parte de pessoas com
uma formação intelectual significativa. Causada esta pela insatisfação com o sistema de
ensino vigente. Uma hipótese seria que essas pessoas tivessem a consciência da padronização
dos indivíduos e não queriam fazer parte dessa sociedade controladora e repressiva, adotando
assim um modo de vida alternativo.
O movimento hippie apresenta uma mudança de mentalidade: as roupas, as músicas e as
drogas são apenas expressões desse modo diferente de encarar a realidade, dessa mudança de
romper com o velho e criar o novo. Nesse sentido, o movimento hippie não apenas cria um
modo diferente de viver em contato com a natureza: na paz, no amor, na passividade, na busca
do equilíbrio consigo mesmo, na preocupação ambiental, na liberdade corporal e sexual, como
também apresenta a naturalização desses comportamentos e radicaliza a impossibilidade de
viver de outro modo, fora deste proposto por eles, qualquer adesão a outra forma de viver,
está intimamente relacionada aos aspectos da velha sociedade repressiva, controladora,
capitalista e padronizadora.
28
O capitalismo possui uma peculiaridade surpreendente: ele naturaliza até mesmo modos
de vida que estão na contramão de sua padronização inicial. No entanto, o ―ser hippie‖
também foi padronizado, todo idealismo que se tinha antes, capaz de colocar a sociedade
vigente em risco sucumbiu. Mas esta perda de força não está no movimento em si, mas sim no
quesito surpresa que o mesmo continha inicialmente. Encarando o modo de vida alternativo
de forma natural pertencente à própria sociedade, o instigamento do ―proibido‖ e do ―errado‖
se dissolve e com ele também adesão para esse modo de vida. Digamos que a surpresa de um
movimento a par da sociedade fez mais ―barulho‖ do que o próprio movimento em si. Porém
é inegável disser que o movimento hippie não trouxe mudanças significativas no aspecto
cultural para o processo histórico.
Apesar do que foi apresentado acima, não podemos diminuir o valor de um movimento
contracultural. O movimento hippie não tomou essas proporções por acaso, não foi apenas por
diversão ou uma ideia qualquer e sim à recusa ao modo de viver capitalista, como bem expõe
Guy Debord (2003, p. 32):
[...] O espetáculo é o momento em que a mercadoria chega à ocupação total da vida
social. Tudo isso é perfeitamente visível com relação à mercadoria, pois nada mais
se vê senão ela: à mercadoria, pois nada mais se vê senão ela: o mundo visível é o
seu mundo.
Esse trecho de Debord causa uma angústia, pois nada existe além da mercadoria, tudo é
mercadoria, a sociedade que os hippies estão recusando é esta sociedade que padroniza e
vende ideais de beleza, do melhor emprego, da família perfeita, do modo de se vestir e se
portar correto, das crenças e exposições públicas aceitas, do pai e mãe perfeitos, vendendo até
mesmo a felicidade – enfim nascer, crescer, trabalhar, casar, envelhecer e morrer. Era
justamente essa vida padronizada, sem emoção e ―certinha‖ que foi recusada pelos jovens da
década de 60-70. Como atitudes que faziam um divisor de águas entre o velho que estava se
deteriorando e o novo mundo que estava nascendo, estão o sexo na juventude e a utilização de
drogas. Debord continua (2003, p. 50):
[...] sem dúvida, a pseudo-necessidade imposta no consumo moderno não se opõe a
nenhuma necessidade ou desejo autêntico, que não seja, ele próprio, modelado pela
sociedade e pela sua história.
Em outras palavras todo desejo é modelado pela ―Sociedade do Espetáculo‖, em que as
estruturas de produção capitalistas prendem os indivíduos a uma relação de alienação com a
sociedade e a mercadoria, no contexto de uma ―massificação‖ dos objetos culturais. No
29
entanto, seguindo o raciocínio de Guy Debord, o indivíduo não percebe que esse desejo foi
criado nele por um agente terceiro (as estruturas de produção e reprodução capitalistas) e
acaba adotando esse desejo como uma necessidade, algo que deve ser suprido.
Figura 5: Foto que representa a ―Sociedade do espetáculo‖ onde o indivíduo é apenas um
telespectador
Disponível em: < http://www.ojornalista.com/wp-content/uploads/2011/03/sociedade_espetaculo.jpg >.
Acesso em: 01 nov. 2014.
Esse tipo de ―lavagem cerebral‖ é perfeito, principalmente em uma sociedade
capitalista, onde se vende uma infinidade de produtos inúteis, porém vendidos
ideologicamente como necessidades existenciais de status, de poder, de ―boa pessoa‖.
Debord (2003, p. 73) afirma que ―uma coisa é conhecer uma necessidade, e outra é pôrse ao serviço desta necessidade‖. Nesse sentido, os indivíduos sempre consumiram: o que
marca o capitalismo do século XX, no entanto, é a construção de uma vida dedicada apenas
ao consumo. A existência deve valer mais do que um potencial de compra, afinal, ―como diria
Millôr Fernandes, o importante é ter sem o que ter te tenha‖ (CORTELLA, 2012, p. 52).
Trata-se de uma forte reivindicação, pois essa é uma questão individual, pois não há
necessidade de protestos ou de uma revolução para atacá-la ou reconhecê-la. É apenas uma
questão de consciência.
Abordemos agora a questão fundamental para o entendimento das mudanças radicais de
mentalidade e de comportamento, alterando os gostos e os ideais dos jovens nos anos 1960.
As reivindicações ocorrem em torna da ―liberdade‖: liberdade no modo de existir e viver,
liberdade nas escolhas e nos anseios do corpo. A sociedade inibia a liberdade individual,
30
controlando e dominando o coletivo para que essa liberdade não se expressasse, ou que não
chegasse ao âmbito público. No entanto essa tentativa de prender o individuo, padronizandoo, não durou muito. Os jovens logo se voltaram contra essa repressão do Estado, da Igreja e
dos pais.
Criaram por si próprios um modo diferente de viver, um modo coletivo, onde poderiam
se expressar como se sentiam. As vestimentas que eles usavam eram fieis aos seus
sentimentos, o branco e preto dão lugar ao colorido – vermelho, verde, azul e amarelo, cores
alegres, cores vivas, era assim que os jovens queriam se sentir, vivos, poder respirar o ar puro
da liberdade (ALONSO, 2009, p.49). ―Faça amor, não faça guerra‖: os hippies apresentavam
essa frase de aspecto pacifista contra a Guerra do Vietnã, na qual milhares de jovens
americanos estavam lutando na década de 60. A reivindicação era para o não alistamento
desses jovens para a guerra. Já foi discutido anteriormente que a Guerra do Vietnã dividiu a
população americana e fez os EUA perder sua legitimidade perante os demais países no
período da Guerra Fria, justamente pelos EUA, uma potência mundial, possuir vantagens
enormes perante um país pequeno e com um armamento deficitário como o do Vietnã.
O sexo passa a ser naturalizado desde sedo, o consumo de drogas é um escapismo do
mundo que ainda não via as condutas dos jovens como uma forma alternativa de viver, mas
sim como pessoas loucas, doentes, depravadas e fracas. Cidreira irá nos apresentar a ideia que
o sociólogo Michel Maffesoli defende, enfatizando que o surgimento do movimento hippie
marcou o início do que ficou conhecido como pós-modernidade, de modo que esse
neotribalismo ―seria o novo modo de agregação social cujo vínculo se estabelece a partir do
ponto de vista afetivo‖ (CIDREIRA, 2008, p.37).
Diante dos aspectos levantados, das questões propostas e das possíveis causas que
levaram posteriormente às mudanças radicais na década de 60, observemos o resumo que
Cidreira (2008, p. 36) apresenta sobre este período, evidenciando, entre os anos 1960 e 1970,
a existência de
Movimentos como o psicodelismo, o feminismo, uma certa revitalização da volta à
natureza, festivais de música que se transformam em verdadeiros happenings de
liberação, vertigem, a proposição de uma nova forma de relação, em que se
privilegia o amor livre, movimentos estudantis e as comunidades hippies, entre
outros. Uma sensação de instabilidade e a consequente necessidade de escapismo –
própria de momentos de grande reviravolta de valores –, promovem, na grande
maioria dos jovens, a necessidade de uma vida mais saudável, simples, natural.
Podemos abrir um destaque para o que Cidreira apresenta, com relação à reivindicação
do simples. A sociedade complexa não mais interessava aos jovens. O excesso de
31
responsabilidades é visto de uma perspectiva de controle da própria liberdade individual. Os
jovens tem um grande anseio pela liberdade e vão contra tudo que os impeça te ter essa
liberdade do ser, do se expressar como se é.
32
3 MAIO DE 1968: PROTESTO, JUVENTUDE E HISTÓRIA
A França nas décadas que se prosseguem após a Segunda Guerra encontra-se muito bem
economicamente e parecia que politicamente e socialmente também. Apesar da recuperação
da economia francesa, muitos jovens buscavam alternativas ao consumo e à ordem capitalista.
Além disso, diversas mudanças nos comportamentos e na cultura começavam a agitar os anos
1960. Para o historiador Eric Hobsbawm (2011, p. 263), ―o crescimento repentino dos
números da educação, especialmente do ensino superior, são um dos motivos que explica as
mudanças da década‖. Segundo ele ―no final da Segunda Guerra Mundial, havia mais de 100
mil estudantes na França. Em 1960 eram mais de 200 mil e, os dez anos seguintes, esse
número triplicou para 651 mil‖.
Voltemos nossa atenção para aqueles que construíram o movimento, os assim chamados
―filhos da burguesia‖, aqueles que nasceram com privilégios e desfrutam do que a sociedade
tem a oferecer de melhor. Essa afirmação nos remete a uma grande questão: por que os ―filhos
da burguesia‖ fizeram tal movimento com tamanha violência? E a resposta mais provável é a
do filósofo Herbert Marcuse (apud MATOS, 1981, p. 38), pois segundo ele
[...] Esta questão, ao mesmo tempo em que silencia o fato de que muitos estudantes
são obrigados a trabalhar para prosseguir com seus estudos, recobre um erro
fundamental: a ideia de que só a miséria material justifica a revolta e de que um
homem ‗que tem tudo que precise‘ (no plano material) deve se encontrar igualmente
satisfeito no plano moral. Na sociedade atual, o intelectual é por essência
insatisfeito. A televisão, a imprensa, os bens de consumo utilizados como meio
sistemático de opressão contribuem para criar um universo material e espiritual no
qual o intelectual não consegue fazer compreender sua exigência de verdade e
liberdade.
É imprescindível tamanha reflexão sobre essa questão. Marcuse aponta de forma
magnífica que a pobreza moral é gerada por uma essência de insatisfação e aqueles que
atribuem a revolta legítima apenas daqueles que possuem miséria material realmente não
entendem a essência do homem.Ter riqueza material não necessariamente garante satisfação
moral, como bem atribui Marcuse. O filósofo alemão, assim, argumenta, (apud MATOS,
1981, p. 37)
[...] as minorias oprimidas tem o direito natural de resistir e de recorrer a meios
extralegais se os meios legais se revelam inúteis. Se utilizam a violência não é para
engendrar uma nova cadeia de violência, mas para por fim a violência estabelecida.
33
A violência à qual Marcuse se refere é a violência contra a moral, um sentimento
desesperador por mudança que inunda os jovens da década de 60. Sobre essa questão veremos
que os jovens tinham, sim, motivos pelo qual se movimentarem. E não só isso: os jovens
acreditavam realmente em uma revolução ideológica, como bem disse Olgária Matos (1981,
p. 21): ―O desejo revolucionário será muito mais marcante do que a situação revolucionária.
Talvez por isso o movimento foi muito mais capaz de contestar do que vencer, de imaginar do
que transformar, de se exprimir do que se organizar‖. O movimento de 1968 nas ruas de Paris
foi uma revolta e uma revolução.
Figura 6: Foto da manifestação Maio de 1968
Disponível em: < http://www.photos-mai68.com/images/20071129015127_1968_mai_paris_manif_0794r.jpg >.
Acesso em: 09 nov. 2014.
Constataremos os pormenores dessa afirmação ao longo desta reflexão. Comecemos
pela frase de Claude Lefort (apud MATOS, 1981, p. 21): segundo ele a ―revolução mobiliza
sempre aqueles que veem arruinadas suas esperanças‖. Nesse sentido, ―aqueles que em maio
de 68 se sublevaram estavam recusando muito mais uma certa forma de existência social do
que a impossibilidade material de subsistir nesta sociedade.‖
34
Quais esperanças dos ―filhos da burguesia‖ teriam sido arruinadas? Constatamos agora
pouco a legitimidade de tal revolta/revolução perante a insatisfação moral, gerada claro por
uma utopia, de que as coisas poderiam ser diferentes do que são. Lefort também nos apresenta
dados importantes com relação à finalidade da revolta: de forma alguma constatamos que a
revolta era contra o sistema regente na França e muito menos que o movimento de maio de 68
levanta alguma bandeira ideológica homogênea, senão a da felicidade, como está bem exposto
nesse grafite parisiense: ―a felicidade é uma ideia nova na escola da ciência política‖
(ARQUIVO N.., 2008).
O movimento maio de 68 exemplifica bem o que expõe Matos (1981, p. 08) em seu
livro: ―maio de 68 continua rebelde à interpretação, pois revela a incongruência das teorias e
das doutrinas que procuram dar conta da sociedade‖. O movimento se apresenta como
―metamarxismo e metacartesiano‖, não levantando propriamente uma bandeira ideológica,
seja de cunho marxista ou socialista. Não podemos nos esquecer de um dado importante: a
Guerra Fria estava a pleno vapor, tanto que muitos autores vão atribuir incongruência ao
movimento devido a essa ―imparcialidade‖ ideológica. Observemos essa declaração de um
panfleto de paris no mês de maio:
[...] Vocês não são coerentes com vocês mesmos, ao pretender aproximar os
acontecimentos de Paris dos de Praga. Em Praga, os estudantes querem se livrar das
estruturas socialistas para ir a um regime liberal, enquanto que em Paris é
exatamente o contrário, os estudantes querem se livrar de estruturas capitalistas por
um regime da tendência socialista. (MATOS, 1981, p. 32)
A ambiguidade entre capitalismo e socialismo contínua na Guerra Fria, influência
profundamente para acusar determinado movimento de anticapitalista ou anticomunista.
Percebemos aqui a impossibilidade de mudança dentro do mesmo sistema: ao longo da nossa
reflexão deste trabalho constataremos que é justamente o que os estudantes estão tentando
criar. Outro dado importante que Lefort (apud MATOS, 1981, p. 21) nos apresenta para o
entendimento das manifestações estudantis será:
[...] os estudantes perceberam que a formação técnica que lhes é oferecida só
permitirá a um número reduzido alcançar funções de responsabilidade que queriam
iniciativa, que a maior parte das funções que disputarão pedem uma qualificação
inferior aquela que recebem na universidade e finalmente que muitos não escaparam
ao desemprego.
Trata-se de uma questão realmente interessante, pois é muito plausível essa reflexão de
que os jovens poderiam ter se movimentado antes de entrarem no mercado de trabalho,
35
propondo mudanças significativas. No entanto, a questão pode ser bem mais profunda, pois se
assim não fosse teríamos inúmeras revoltas. Essa consciência de ―vai me faltar emprego‖ por
si só não mobiliza uma grande massa. A questão é bem mais contingente com relação a uma
mudança de melhoramento do que já existe, propondo mudanças bem mais amplas,
abrangendo diversos aspectos do que uma simples revolta. De qualquer forma, é uma questão
pequena a ―falta de emprego‖ quando comparada aos ideais de mundo que os jovens
propuseram com seus movimentos.
―Nenhum incêndio começa grande‖ (Cortella, 2014, p. 15), começamos com essa frase
para podemos ir mais profundo nas questões de como se dá o processo de uma
revolta/revolução. Nesse sentido, Lefort (apud MATOS, 1981, p. 09-10) irá atribuir à
revolução a seguinte exposição
[...] toda revolução tem o seguinte singular, de paradoxal: ela mobiliza as paixões a
ponto de fazer a alguns perder – qualquer que seja seu campo - o sentido de
distinção do real e imaginário, do possível e do impossível, e, por outro lado, libera,
mesmo aqueles que pouco antes não duvidaram de suas prerrogativas, mas
sobretudo naqueles que estavam habituados a submeter-se e calar-se, a vontade de se
afirmarem e estabelecer uma ruptura entre o verdadeiro e o mentiroso.
E como é preciosa essa reflexão: aqueles que já estiveram em uma manifestação
entendem bem o que Lefort está expondo. É como se você fosse algo maior, como se tudo que
você sempre sonhou pudesse ser concretizado apenas se manifestando. Assim, a distinção
entre o que é imaginário e o real não existe, como bem expõe Lefort, pois o sentimento de
pertencimento a massa é extraordinário. É importante saber que aquele que está ao seu lado
luta pelas mesmas causas que você. É gratificante até mesmo morrer por essa causa, como
ocorrerá com alguns jovens que se manifestaram. ―Indivíduos que se unem, como diz La
Boetie, por amizade e não por cumplicidade, unem-se sem poder.‖ (MATOS, 1981, p. 15)
Observando as informações que coletamos até agora, constatamos que não é necessário
que exista uma pobreza material para que existam movimentos de mudança. A questão é bem
mais profunda do que ―ficar desempregado‖, quanto de se ingressar no mercado de trabalho.
Outro dado está na questão da violência: é legitima uma violência para coibir outra violência,
como expõe Marcuse. Não esqueçamos também que em uma revolução as fronteiras entre o
real e o imaginário não existem e que números maiores de estudantes na universidade
fomentam condições propícias para movimentos de mudança. Os jovens também não estavam
recusando o sistema capitalista como se pensava, mas sim tentando melhorá-lo.
36
Por vezes acreditou-se que os jovens estavam recusando todas as formas de autoridade e
todas as normas de moral. No entanto, Henri Weber (ARQUIVO N.., 2008) nos dará um
respaldo melhor a esse respeito, afirmando que ―nós recusamos o autoritarismo e não a
autoridade, a moral hipócrita, repressiva, tradicional e não todas as formas de moral.‖ Henri
Weber era um dos principais líderes do movimento de maio de 1968.
E numa tentativa desesperadora de mudar aquilo que ―sempre foi‖, os jovens vestem a
camisa de revolucionário e rompem definitivamente com o velho mundo. Eles diziam que ―o
mundo é organizado pela geração que fez a guerra, que viveu coisas terríveis, não era o nosso
mundo‖. E continuam: ―professores, vocês são velhos, assim como a cultura de vocês‖
(ARQUIVO N.., 2008).
―O que nos sentíamos é que nós queríamos ser donos do nosso futuro, queríamos fazer o
mundo tal como amaríamos viver‖. (ARQUIVO N.., 2008) Trata-se de uma reivindicação
forte, complementada pela seguinte: ―queríamos fazer do mundo tal como amaríamos viver‖.
Esse era o espírito os jovens que se dispuseram a lutar para ter esse futuro, como Tom
Hayden, ativista político, (ARQUIVO N.., 2008), irá apresentar:
[...] A maior parte da imprensa diz que 68 era selvageria, uma loucura, rua, rock‘n
roll, sexo, drogas, agitação, confusão, policias com cassetetes e você fica com a
impressão que o mundo ficou louco, mas havia uma lógica por trás disso, que não
ainda não foi explicada.Se fosse só insanidade teria terminado, mas foi uma grande
mudança e foi também o começo de mudanças de longo prazo.
Uma ideia interessante que podemos extrair do texto exposto acima é referente ao ―fim‖
do movimento de maio de 68. O movimento continua uma incógnita: afinal, como ele
apresenta uma gama de pluralidade, torna-se complicado apontar seu inicio ou seu término.
Zuenir Ventura (1988), por exemplo, apresenta a frase ―maio de 68 ainda não terminou‖:
diante desde pensamento podemos ter a visão de que o movimento pode ter apenas
adormecido e que hora ou outra poderá se expressar novamente com força total. Ou podemos
dizer, também, que o movimento tenha sucumbido diante das mudanças que foram já
conquistadas. Discutiremos mais sobre essa questão no final do trabalho.
Contrapondo a discussão acima, constataremos que, apesar de todas as conquistas
pretendidas no campo ideológico não terem sido alcançadas no campo material, Marcuse
(apud SANTOS, 2005, p. 64) nos apresentará a ideia de que, ―a dominação e o controle chegam a
tal ponto que uma revolta serviria apenas para substituir um grupo dominante por outro, ou até mesmo
para estabelecer um novo e melhor sistema de dominação‖.
37
É inegável que ninguém esperava que acontecesse um movimento tal como o de maio
de 68, porém ele aconteceu e agora a sociedade do controle tampará todos os buracos
possíveis para que esse tipo de movimento não se repita, criando se assim meios mais
eficientes de controle imperceptíveis. O sociólogo Pierre Bourdieu (1989) viveu durante esse
período, de modo que expõe claramente em seu livro O poder simbólico esses mecanismos de
dominação – e, pior, a naturalização deles nas sociedades contemporâneas. Lutando contra
formas de dominação e de autoridade, os jovens de 68 criticavam, em muitos momentos, a
própria estrutura burocrática de partidos tradicionais:
[...] Quando as cartas estão na mesa, o Partido Comunista Francês e os trabalhadores
sob sua influência provaram ser o último e mais efetivo ―freio‖ do desenvolvimento
da atividade revolucionária da classe trabalhadora. (SOLIDARYTI, 2003, p. 09)
Como bem exposto na colocação acima, os sindicatos atrapalharam e praticamente
boicotaram a ―revolução‖ de 1968, principalmente por causa da desconfiança que tinham nos
estudantes e por quererem que os próprios sindicalistas fossem os líderes da revolução. Pelas
manifestações de 68 os sindicalistas não moveram um dedo a favor. Pelo contrário, pareciam
totalmente contra o movimento de 68. Segundo Henri Weber (ARQUIVO N.. 2008), líder
estudante influente, podemos indicar que:
[...] O general De Gaulle não compreendia, não compreendia nada mesmo. Ele
estava muito afetado com esse grito da juventude e os movimentos sociais que se
seguiram e ele pensou em deixar o poder de fato. Deu ordem a Pompidou, seu
primeiro-ministro, de reprimir o movimento, de retomar a Sorbonne e o Tetro de
I‘Odeon. ―A reforma sim, o caos não.‖
O historiador Eric Hobsbawm, em um texto importante sobre as lutas de 68, aponta um
aspecto interessante sobre seus significados políticos mais profundos. Embora Maio de 68 não
fosse uma ―revolução clássica‖ (nos moldes de uma revolução operária ou camponesa), os
movimentos expuseram a fragilidade e alçaram diversas insatisfações contra o sistema
político e econômico:
[...] A crise de maio não era uma situação revolucionária clássica, embora as
condições para tal situação pudessem ter se desenvolvido muito rapidamente como
consequência de uma ruptura repentina e inesperada em um regime que mostrou ser
muito mais frágil do que qualquer um previra (HOBSBAWM, 1985, p. 240).
Como afirmamos, o presidente da França de Gaulle, vendo a situação fugindo de seu
controle, dá ordens para reprimir o movimento estudantil, tanto na Sorbonne quanto no Tetro
38
de L‘Odeon. Os estudantes na Sorbonne iriam enfrentar uma verdadeira guerra de gás
lacrimogêneo e cassetetes. Os policiais iram reprimir o movimento estudantil duramente: o
que ficará conhecido como ―noite das barricadas‖. Olgária Matos confere especial atenção
para essa noite cunhada de ―Barricadas do desejo‖, uma luta da liberdade pretendida, contra a
repressão policial.
Figura 7: Foto que mostra a barricada que os estudantes criaram para fazerem resistência
perante a ação policial.
Disponível em: < http://www.photosmai68.com/images/20071128183257_1968_mai_paris_manif_etudiants_barricade_0904r.jpg >.
Acesso em: 09 nov. 2014.
Apesar dos esforços, os polícias conseguem expulsar e prender os estudantes da
Sorbonne. Vendo que a situação estava controlada, o presidente De Gaulle prefere dar anistia
aos estudantes que estavam presos, com a intenção de recomeçar, como se o movimento
estudantil, fosse um erro, e que esse erro estaria perdoado. O presidente De Gaulle pensou que
assim as coisas voltariam a se normatizar e que aquele seria um movimento que nem deveria
ter acontecido. Porém a história prega peças, momentos inesperados acontecem, e maio de 68
ainda não havia mostrado toda sua força naquele ano. Concomitantemente a isso, teremos
uma organização da CGT (Confederação Geral do Trabalho), que irá organiza uma greve com
alcance de âmbito nacional.
O professor Alain Geismar (ARQUIVO N.. 2008), que vivenciou o movimento
estudantil em maio de 68, nos apresenta uma visão complementar sobre a importância de 68:
39
[...] O que aconteceu na França de 68 e que faz da França algo de diferente do que se
passava no resto do mundo é que o movimento estudantil abriu uma brecha em que
veio junto um movimento operário muito poderoso que teve mais de 10 milhões de
grevistas durante semanas. E esse cruzamento dos movimentos estudantil e operário
criou uma situação revolucionária incrível.
A combinação desses dois movimentos deu à França uma particularidade incomum. A
greve afetará o país como um todo. A França irá parar economicamente. A revolução parecia
certa, mas como já foi mencionado anteriormente, os sindicatos olham para o movimento
estudantil com desconfiança, e com isso não se aliam a eles, tentam criar um movimento a
parte, onde os sindicatos seriam os porta-vozes da revolução. Uma união entre esses dois
movimentos possivelmente desencadearia numa revolução completa da sociedade, apesar que
o movimento estudantil se apresente como apartidário, ou seja, não havia um partido político
no comando de todo o processo. O movimento é voltado para as mudanças de hábitos e
costumes, portanto culturais. Em contraposição, o movimento dos trabalhadores é por
natureza partidário, pois não só tinham ideias fixas das mudanças que deveriam ocorrer como
também à organização e os passos que deveriam ser dados dali por diante. Nesse sentido,
podemos perceber que o movimento estudantil era um ―obstáculo‖ para o movimento operário
e vise-versa, ainda que os estudantes apresentassem grande motivação em se unir aos
trabalhadores. Sob essas circunstâncias não poderíamos deixar de citar a influência da Guerra
Fria, ou seja, a ambiguidade entre Capitalismo e Socialismo controlando, mesmo que
simbolicamente, as manifestações e repressões dos movimentos.
O movimento tanto operário quanto estudantil vai perdendo força e acaba sucumbindo.
Henry Weber (ARQUIVO N.. 2008) nos apresenta uma perspectiva com relação a isso:
[...] No plano político o movimento de 68 foi desfeito. Em junho a direita ganhou as
eleições com grande folga.Isso era normal que ele tivesse sido derrotado por que as
suas perspectivas não eram realistas.Mas no plano dos costumes e no plano das
relações de autoridade isso trouxe muita novidade. Depois de 68, as relações de
poder se modificaram em todos os lugares, na família, entre homens e mulheres,
entre pais e filhos, nas escolas entre professores e alunos, nas empresas entre chefes
e empregados, no Estado entre funcionários e os cidadãos e mesmo na sociedade
inteira, entre poder político e as pessoas.
Os movimentos de 68 como um todo trouxeram algumas mudanças políticas, ligadas a
aumento salarial, melhores condições e menos horas de trabalho e modificação nas matérias
universitárias. Mas foi no campo cultural que o movimento de 68 ficará marcado para a
história, não apenas de forma física, como também de forma ideológica. O chamado ―É
Proibido proibir‖ (MATOS, 1981, p. 35) tornou-se uma reivindicação fortíssima dos
estudantes perante os hábitos e os costumes decadentes da sociedade que fez a guerra. Trouxe
40
uma ruptura, mudança radical dos mesmos. Os movimentos de 68, nesse sentido, podem ser
entendidos como uma grande crise de autoridade:
O Maio francês significou uma crise de autoridade generalizada. Se em 1968 a velha
sociedade não morreu, ou melhor, se a nova não chegou a nascer, ela não deixa de
ser uma grande e generosa explosão revolucionária [...] A juventude parisiense
representou a insatisfação com a ordem conservadora, capitalista e consumidora,
numa explosão de espontaneidade, sua virtude e ao mesmo tempo seu defeito
(SOARES; PETARNELLA, 2009, p. 349).
Figura 8: Ilustração da reivindicação estudantil ―É proibido proibir‖.
Disponível em: < http://www.hellcity.blogger.com.br/probido1logofotosim.jpg >.
Acesso em: 09 nov. 2014.
Por toda a França havia pichações em muros, praças e universidades. Os estudantes
expressam nas ruas e nas paredes seus ideais de mundo, suas reivindicações, seus anseios,
seus desejos, suas vontades. A rua e os muros tornaram-se páginas em branco, onde os jovens
poderiam pintar e escrever, serem artistas e poetas, se expressarem como quisessem. Os
jovens, tais como os hippies, reivindicavam a liberdade, a liberdade sexual primeiramente. Os
estudantes em um primeiro momento pediam a liberação sexual onde meninos poderiam
visitar quarto de meninas e vice-versa. Percebendo que eles não teriam êxito apenas pedindo,
os jovens tomam a universidade e a partir daí fazem suas próprias regras.
41
Figura 9: Foto de jovem estudante protestando a favor da liberdade sexual (maio de
1968)
Disponível em: < http://acasadevidro.files.wordpress.com/2013/08/la-rc3a9volution-sexuelle-de-mai-68-libreet-spontanc3a9e.jpeg >.
Acesso em: 09 nov. 2014.
O ato de mostrar os seios indica ―um grito por liberdade‖, já que o nu expressa como
viemos ao mundo, representa a pureza e a inocência, uma forma de protestar perante a
repressão sexual que a sociedade impunha. O ato de 68, simbolicamente, remete a um quadro
famosíssimo de Delacroix sobre as manifestações que varreram a França, desde a Revolução
Francesa até as barricadas de 1830, onde uma mulher expõe os seios carregando a bandeira
tricolor da França.
Movidos pelo impossível, os jovens estudantes, conseguiram mudanças rápidas e
incorporadas pela sociedade com facilidade, porém ainda com alguma resistência por parte
das pessoas mais tradicionais. O sociólogo Edgar Morin (2008), um dos principais analistas
dos movimentos de 68, afirma que as manifestações e a tomada das ruas significaram uma
verdadeira ―crise de civilização‖. Morin indica que
[...] a civilização ocidental ou burguesa estava muito segura de si mesma até 1968. A
tese sociológico-histórica era que a sociedade industrial desenvolvida diminuiria ao
máximo as desigualdades, resolveria o problema da pobreza e consequentemente
generalizaria a boa vida. Era a menos má ou a melhor sociedade possível.
42
Evidentemente, no Leste Europeu se dizia que era o sistema comunista que iria criar
um futuro mais radiante.
O filósofo Jean-Pierre Le Goff (ARQUIVO N.., 2008) faz atualmente uma crítica
radical aos jovens estudantes de 68, que agora são pais e não conseguem transmitir os valores
tradicionais de pai e filho. Sobre essa questão, ele expõe:
[...] Essa geração tem problemas em transmitir seus valores aos jovens. É uma
geração muito narcisista. Ela saturou a imagem de ―toda poderosa‖, da juventude
através dos seus discursos. (...) ―É você o autor da história‖, e os jovens que veem
depois, vão ter dificuldade em se situar em relação à geração de 68. Por que eles vão
ter a impressão de que tudo que fazem é consequência do que viveu o pai deles.
Sobretudo quando os pais não querem envelhecer, não agem como pais e sim como
amigos.E falam com os filhos como amigos e põem abaixo a autoridade paifilho.Por que a herança impossível de maio de 68 tem esse culto á juventude.
É interessante notar as possíveis consequências de maio de 68 nos dias atuais. Como já
foi dito, não só a relação pai e filho mudou, como todo o restante das relações, como já nos
apresentou Henry Weber. A liberdade que era pedida pelos jovens não era apenas sexual,
como também na forma de se vestir, de dançar, de cantar. Foi uma mistura que culminou em
68, mas que diz respeito a todas as mudanças socioculturais em curso nos anos 60,
contribuindo para a mudança a longo prazo de hábitos e costumes que estavam na sociedade
há séculos.
Figura 10: Foto de estudantes manifestando na Bastilha em Paris ( maio de 1968)
Disponível em: < http://www.photosmai68.com/images/20071128182740_1968_mai_paris_manif_bastille_0391r.jpg >.
Acesso em: 09 nov. 2014.
43
Houve também todo um processo musical que modificou a forma de se vestir e de se
portar. As drogas tiveram seu lugar como uma forma de fugir do mundo real: o que, segundo
os jovens, não era aquilo que eles desejavam. A mudança nas vestimentas com roupas
provocantes e excitantes criaram todo um clima contraposto pelo preto e branco tradicional
das saias e ternos. As mulheres começaram a utilizar calças, e pela primeira vez as roupas e os
sapatos deveriam ser confortáveis para aqueles que os utilizavam. A pluralidade de 68
fascina: seria errôneo apontar um fator único que desencadeou todos os demais, assim como
também seria errôneo dizer quando o movimento terminou, caso ele tenha terminado. Toda a
geração atual é fruto desse movimento de 68. A história como processo nos apresenta pontos,
movimentos, datas marcantes, mas como o filósofo Nietzsche (2005, p.287) já nos avisou, o
que se diz importante na história são apenas ―bolhas que se tornam visíveis sobre a torrente
das águas‖. Nesse sentido é importante, sim, levar em consideração os grandes fatos e feitos
na História, porém não podemos desconsiderar aquilo que está obscuro e que, por fazer parte
de um processo maior, acaba não aparecendo com nitidez e passa despercebido. Maio de 1968
é uma dessas bolhas da torrente das águas: tornou-se visível na história, porém devemos
entender Maio de 68 como um processo histórico dotado de uma particularidade única cujos
efeitos, muitas vezes subterrâneos, encontram eco e estendem as influências dos anos 1960 até
os dias de hoje, essa luta por mais liberdade.
44
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho teve como objetivo apresentar a importância dos eventos de Maio
de 1968 na França, enfatizando as particularidades de que essa é apenas uma parte visível
dentro de um processo histórico maior, em que, devido a suas pluralidades e particularidades,
seria errôneo apontar seu início ou seu término, já que seus efeitos podem ser percebidos e
analisados ao longo dos anos 1970, 1980...
Discutimos os aspectos imaginários propiciados pela Guerra Fria durante esse período,
sem a qual seria impossível entender essa particularidade histórica que é 1968. Levantamos o
questionamento em torno da não união do movimento dos estudantes e do movimento dos
operários. Destacamos, também, a sociedade do consumo e do espetáculo que cria
contraposições de seus modelos e padrões, contextualizando, por exemplo, os hippies e os
jovens de maneira geral. Analisamos como as guerras e o militarismo da Guerra Fria marcam
profundamente as discussões culturais e políticas dos anos 1960. As fotos complementam o
trabalho como um todo e as provocações filosóficas durante ele são colocadas
propositalmente para a curiosidade e a reflexão do leitor.
O objetivo não era limitar o campo de pesquisa sobre Maio de 1968 em um único ponto
de vista. Pelo contrário, o objetivo era expandir o campo de visão apresentando
principalmente os aspectos culturais e ideológicos mais amplos, tomando-os como agentes
principais da ocorrência desse movimento. A História tem a particularidade de criar situações
que as teorias de dado momento não conseguem pontuar seus motivos e muito menos explicar
suas causas. Maio de 1968 na França, assim como os jovens estudantes da época, parece
rebelde a interpretações prontas e padrões determinantes.
45
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