Encantamentos, milagres e outros prodígios: O bestiário das lendas

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Encantamentos, milagres e outros prodígios: O bestiário das lendas
Centro de Tradições Populares Portuguesas
Encantamentos, milagres e outros prodígios
Os animais das nossas lendas
Maria de Lourdes Cidraes
Lisboa 2013
Encantamentos, milagres e outros prodígios
Os animais das nossas lendas
Maria de Lourdes Cidraes (CTPP / FLUL)
De todos os géneros da narrativa tradicional a lenda é o que tem suscitado maior
discussão teórica, não existindo, ao contrário do que se verifica com o romanceiro e o
conto, tipologias internacionalmente aceites ou catálogos gerais, mas apenas de âmbito
nacional ou regional. No entanto, alguns parâmetros parece serem consensuais:
- género narrativo
- estrutura simples ou mesmo fragmentária da narrativa
- carácter extraordinário dos acontecimentos narrados
- localização da acção no tempo e no espaço
- afirmação da veracidade ou da verosimilhança da história narrada
Características que podem ser sistematizadas numa definição, necessariamente
redutora porque não considera as inúmeras variações e desvios que caracterizam um
género literário de fronteira, difícil de delimitar sobretudo em relação ao conto:
A lenda é uma narrativa breve, em que são narrados acontecimentos
extraordinários, apresentados como verdadeiros ou verosímeis e situados
no espaço e no tempo.
A esta definição base podem ainda ser acrescentados outros traços definidores:
- predomínio da função informativa sobre a intenção doutrinária ou moral
- utilização de procedimentos de atestação de veracidade: discurso na 1ª pessoa,
datação e referências geográficas precisas e identificação da fonte da informação,
geralmente um parente próximo ou um vizinho.
- dupla origem, popular e erudita, tornando-se difícil determinar o processo
evolutivo: tradicionalização de narrativas de origem não popular incluídas em crónicas,
textos hagiográficos, etc., ou apropriação, pelo texto escrito, de narrativas orais e
tradicionais.
As diferenças entre narrativas que compõem o corpus vastíssimo das lendas
portuguesas justificam a sua divisão em grandes categorias, com características
específicas, embora se verifiquem frequentes sobreposições que exigem a inclusão da
mesma lenda em mais de uma categoria.
No caso português, à arrumação por regiões geográficas, dominante nas grandes
1
antologias já publicadas, prefere-se actualmente uma classificação temática, já ensaiada
por Alda e Paulo Soromenho e por Fernanda Frazão
1
e adoptada nas duas bases de
dados de literatura oral portuguesa, o Arquivo das Lendas Portuguesas (APL), do Centro
de Estudos Ataíde de Oliveira (C.E.A.O.) da Universidade do Algarve, já em consulta online 2, e o Arquivo Digital de Literatura Oral e Tradicional (ADLOT) do Centro de Tradições
Populares Portuguesas “Prof. Manuel Viegas Guerreiro” (CTPP) da Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa, em preparação 3.
As grandes categorias das lendas portuguesas (classificação do ADLOT):
1 – Lendas sagradas
Uma das mais importantes categorias do lendário português, as lendas sagradas
abrangem o vastíssimo corpus das lendas cristãs que relatam episódios da vida de Cristo,
da Virgem e dos Santos e a sua intervenção no mundo dos homens, manifestada em
inúmeros milagres e aparições e ainda em fenómenos extraordinários associados a
imagens milagrosas e à construção de ermidas, igrejas e mosteiros. O seu grande
número e difusão e o registo familiar e afectivo das narrativas traduzem uma relação de
proximidade característica da religiosidade popular. Pela sua natureza devocional e
religiosa e por se inserirem na esfera do sagrado e estarem associadas a uma religião,
distinguem-se das outras lendas de seres e forças sobrenaturais, que se agrupam na
categoria seguinte. Devem igualmente incluir-se nesta categoria narrativas lendárias
referentes a outras religiões, nomeadamente cultos pré-cristãos. Contudo, embora a
tradição oral portuguesa conserve vestígios desses cultos, muito raramente se organizam
em pequenos núcleos narrativos que dificilmente podem ser considerados lendas.
2 – Lendas de forças e seres sobrenaturais
O
medo
do
desconhecido
e
a
necessidade
de
explicar
fenómenos
incompreensíveis dominaram desde sempre a imaginação dos homens. Neles enraízam o
sentimento religioso e a crença em divindades temidas ou tidas por protectoras, mas
também a crença numa grande diversidade de seres e forças sobrenaturais – monstros,
gigantes, diabos, fantasmas, sereias, mouras encantadas, etc.. A sua diversidade e
permanência e o grau de crença que mantém justificam a sua elevadíssima presença na
literatura tradicional portuguesa.
3 – Lendas históricas
As lendas históricas são facilmente reconhecidas pelo cidadão comum porque
remetem sempre para personagens ou factos históricos, ou pseudo-históricos,
2
apresentados como verídicos e situados no tempo e no espaço. Podem evocar grandes
vultos da história nacional e acontecimentos que pelo seu carácter extraordinário
entraram no imaginário da nação, como Nuno Álvares Pereira e a batalha de Aljubarrota
ou D. Sebastião e o desastre de Alcácer Quibir, ou recordar figuras e episódios ligados à
história das populações locais, sendo, nestes casos, frequentemente de natureza
etiológica, explicando a origem de um monumento, de um topónimo, de uma linhagem
familiar, etc..
4 – Lendas etiológicas
Agrupam-se nesta categoria as narrativas lendárias que procuram explicar a origem do
Homem e do Universo, dos animais e das plantas, dos astros e de outros fenómenos
naturais, de um costume de origem desconhecida, dos nomes de lugares e povoações,
etc..
5 – Lendas iconográficas
Incluem-se nesta categoria as lendas associadas a representações iconográficas
na área da heráldica (escudo nacional, armas de cidades e vilas, brasões de famílias) ou
da emblemática religiosa e ainda aquelas que procuram interpretar um registo
iconográfico de significação desconhecida.
O texto das lendas, que engloba todas as versões e variantes conhecidas,
apresenta uma estrutura narrativa simples e um pequeno número de personagens. Entre
estas surgem os animais que, e ao contrário do que se verifica nas fábulas e nos contos
de animais, não desempenham a função de protagonistas mas de adjuvantes ou
oponentes de outras personagens, homens, deuses ou demónios.
Que animais povoam as nossas lendas?
Podemos distinguir dois grandes grupos:
1 - Bestiário fantástico
2 - Animais da fauna de Portugal (domésticos e selvagens)
Note-se a ausência de animais exóticos em narrativas que se caracterizam pela
sua inserção no espaço, delimitado, no corpus das lendas em análise, ao território de
Portugal continental e aos arquipélagos da Madeira e dos Açores.
1 - Bestiário fantástico
Surpreendentemente, o bestiário fantástico surge com pouca frequência nas lendas
portuguesas. São animais fabulosos, que simbolizam os temores e angústias do homem
perante as forças interiores que o dividem e face ao desconhecido ou ao incompreensível
3
no mundo que o cerca: estranhos seres híbridos, dragões com rosto humano e serpentes
com cabeça ou cabeleira de mulher (Lenda da Casa das Figuras, A Mulher-cobra, Lenda
da cobra com cabeça de mulher, …), um cão gigantesco que ninguém sabe de onde
surge ou uma cabra com olhos de fogo, ambos encarnações do demónio que vêm
surpreender os homens em lugares desertos e assombrados (O medo do Alto do Piloteiro,
A cabra que tinha olhos de fogo), e ainda, restritos ao imaginário regional e conservando
um razoável grau de credibilidade, o Cavalum da Madeira, que invade o espaço da noite
abrindo as suas imensas asas negras (Lenda do Cavalum,) e a Zorra Berradeira da serra
algarvia, que ninguém consegue descrever e desperta o temor no coração daqueles que
escutam o seu berro tremendo (Lenda da Zorra de Odelouca), ser fantástico que Carlos
Porfírio, pintor e etnógrafo nascido em Silves, imaginou num dos seus quadros sobre os
encantamentos do Algarve.
Fig. 1
A Zorra Berradeira
Carlos F. Porfírio
1962
Museu de Faro
Raramente reconhecemos nas nossas lendas, evocados apenas num número
restrito de narrativas quase esquecidas na tradição oral, os antiquíssimos animais míticos
que povoam o imaginário universal e que remetem para antigas crenças pagãs e judaicocristãs: a serpente de sete cabeças, símbolo do perigo que ameaça o homem que ousa
enfrentar o desconhecido e que a tradição clássica representou na mítica Cila, guardiã da
entrada do Oceano Atlântico, a infeliz ninfa transformada em terrível monstro de mortíferas
cabeças, vingando a sua desdita com a destruição dos navios que se aproximassem do
seu promontório. Serpente monstruosa que na tradição bíblica é a figuração do Demónio,
“o enorme Dragão, a antiga Serpente, o Diabo ou Satã, como é chamado, o sedutor do
mundo inteiro” (Apocalipse, 12, 9). Serpente/dragão que o Arcanjo S. Miguel vencerá em
4
terrível combate celestial, lançando-a para os abismos da Terra, confronto tantas vezes
representado na arte cristã, desde as iluminuras dos Beatus medievais e das esculturas
dos pórticos das igrejas românicas – onde a serpente/dragão figura como defensor da
entrada no espaço sagrado do templo cristão – até aos inúmeros retábulos espalhados
por capelas e altares de toda a cristandade. S. Miguel é aquele que protege o povo de
Deus do mal e do pecado e aquele que virá pesar as almas, separando os justos dos
pecadores no final dos tempos 4. Em Portugal podemos destacar, pela sua qualidade
artística, os notáveis óleos da igreja do Mosteiro de Tarouca, do grande pintor Vasco
Fernandes, e da igreja do Menino Deus, de André Gonçalves, pintor régio de D. João V 5.
Fig. 2
S. Miguel
Vasco Fernandes
Séc. XVI
Igreja do Mosteiro de S. João de Tarouca
Fig. 3
S. Miguel
André Gonçalves
c. 1730
Igreja do Menino Deus de Lisboa
Uma curiosíssima lenda açoreana recupera o episódio bíblico da luta do Arcanjo
contra o Demónio, transladando-a para a época moderna e para a ilha que de S. Miguel
tomou o nome: andando D. Pedro IV a caçar, montado no seu cavalo branco e de lança
na mão, perseguindo um animal que o atraía para um inesperado precipício, o Arcanjo S.
Miguel apareceu milagrosamente e agarrando as rédeas da montada do rei deteve a sua
infernal correria, assim vencendo, de novo, o Demónio que tomara aquele disfarce animal
(Lenda do Salto do Cavalo). Esta narrativa, que transfere para a devoção a S. Miguel um
milagre que integra o lendário mariano e de que são exemplos, em Portugal continental,
as lendas de Nossa Senhora da Nazaré e da Senhora do Salto, é também uma lenda
5
toponímica que explica o curioso nome de um lugar situado próximo de Santa Bárbara, no
distrito de Ponta Delgada, o vale do Salto do Cavalo. A tradição açoreana acrescenta
ainda que a estátua de S. Miguel, que se encontra hoje face à Câmara Municipal da
capital da ilha, teria sido encomendada pelo monarca em acção de graças pelo seu
salvamento. Nesta escultura, o Arcanjo enverga vestes “à romana”, convenção artística
recorrente na época. A posição de descanso, de espada apontada para o chão, a
ausência de qualquer representação do Diabo afastam a estátua de Ponta Delgada da
iconografia tradicional do Arcanjo que apenas é identificado por duas grandes asas,
podendo-se colocar a hipótese de um eventual aproveitamento de uma escultura anterior
6
.
Fig. 4
Estátua de S. Miguel
Ponta Delgada
Açores
Nos textos bíblicos, a Serpente e o Dragão têm idêntico significado simbólico
enquanto figurações do Demónio. É sob a forma de um monstro híbrido, com corpo de
dragão e sete cabeças de serpente, que Satã é representado na iluminura de um dos
mais belos manuscritos medievais dos Comentários ao Apocalipse do Beato de Liébana,
o códice do mosteiro cisterciense feminino de Santo André de Arroyo (1219-1235) 7.
E é sob a forma de serpente que o “tentador” conseguirá levar à expulsão de Adão
e Eva do Paraíso. O episódio bíblico da serpente do Paraíso, condenada a rastejar por ter
ousado desafiar a vontade do Criador, é recuperado, na tradição popular, numa lenda
etiológica que explica, por esse castigo divino, a insólita ausência de patas nas serpentes
(Porque é que as cobras não têm patas?).
A imagem da serpente de sete cabeças enquanto animal demoníaco é rara nas
6
lendas portuguesas (Lenda da serpente de sete cabeças). No entanto, a cobra é um
animal que invade o espaço das lendas de forças e seres sobrenaturais, quase sempre
como forma aparente de encantados ou metamorfose de outras entidades sobrenaturais,
frequentemente sob o aspecto de um ser híbrido, ostentando, tal como num interessante
desenho de Francisco Holanda sobre as idades do mundo
8
, cabeça ou cabeleira
feminina, assim se sublinhando a duplicidade atribuída à mulher, descendente de Eva, a
grande sedutora (A moura da Ponte de Aradeira, A cisterna da Torre de Dona Chama, …).
Este significado demoníaco da serpente, que a exagese bíblica estendeu à mulher
descrita como instrumento de perdição, persiste no imaginário popular, reforçado pelo
medo generalizado que este animal inspira. Reconhecemo-lo em crenças mantidas ao
longo dos tempos e em contos tradicionais que reflectem esses instintivos temores.
Contudo, e ao contrário de outros encantamentos em animais igualmente repugnantes ou
temidos como o sardão gigante, a zorra berradeira ou o cão gigantesco, raramente
encontramos esta conotação demoníaca nas lendas de cobras. Efectivamente, se a
mulher-cobra pode surgir excepcionalmente como emanação do mal (O Pego da carriça)
ou como sua involuntária agente (A mulher-cobra), ela é, quase sempre, apresentada
enquanto vítima de um trágico destino de que pretende libertar-se, procurando apenas,
com sedutoras promessas, conseguir o fim do seu encantamento.
As lendas de mouras encantadas em cobras constituem o núcleo central desta
classe de lendas. O beijo proposto pela serpente como exigência de desencantamento
não é um amplexo de morte mas prova qualificadora que permite a revelação da realidade
que se oculta sob as formas aparentes e o acesso ao amor, simbolizado pela bela moura,
e ao conhecimento, representado pelos tesouros recebidos (A mina de Dona Mirra, A
mina de Bolideira, O rochedo da moura, …).
No corpus lendário português, encontramos ainda a serpente com asas, de
dimensões extraordinárias, que se caracteriza por uma ambivalência significativa,
podendo ser uma entidade malfazeja ( A serpente que tinha asas) ou, pelo contrário, uma
entidade protectora (Lenda da serpente de Serpa).
A mesma ambivalência significativa é atribuída ao dragão nas nossas lendas. Nas
histórias de mouros míticos e de mouras encantadas é o guardião de palácios
subterrâneos e de magníficos tesouros escondidos, desempenhando a função que é
atribuída aos anões no imaginário da Europa Central e continuando, igualmente, a
tradição clássica onde é o temido guarda do Tosão de Ouro e das maçãs do Jardim das
Hespéridas. Mas é também, paralelamente, a representação simbólica do Mal e das
forças demoníacas.
7
A tradição oral da região de Leiria conserva duas curiosas versões da lendária luta
de S. Jorge contra o Dragão
9
. Todos conhecemos a bela narrativa, acrescentada
tardiamente à hagiografia do santo, em que o jovem oficial romano, que foi martirizado no
tempo de Dioclesiano, teria enfrentado sozinho, com a sua lança e o seu cavalo branco, o
terrível dragão que assolava a região de Silene, na Líbia, dizimando os rebanhos e
exigindo da população o terrível tributo de uma donzela. A sorte recaiu sobre a filha do rei
e é o valoroso oficial romano quem vai salvar a princesa, numa aventura em que sagrado
e profano se sobrepõem e que se tornará tema recorrente na arte europeia, tanto no
Oriente, onde S. Jorge, “o mártir”, desde cedo foi santo de particular devoção, como nos
reinos cristãos do Ocidente. Talvez uma das mais belas representações na pintura
ocidental seja o óleo quinhentista do pintor florentino Paolo Uccello
10
. Nesta lenda
conjugam-se os dois significados simbólicos do dragão: a besta aniquilada pelo herói, isto
é, o Mal (ou o paganismo), vencido pelo Bem (ou a Igreja de Cristo), mas também o
vigilante guardião de um tesouro que é preciso conquistar. A vitória sobre o dragão é uma
prova qualificadora que o herói tem de vencer no árduo caminho do seu próprio
aperfeiçoamento.
Tal como se verifica com a lenda açoreana de S. Miguel Arcanjo, as duas narrativas
lendárias recolhidas na Beira Litoral (Lenda de S. Jorge e o Dragão e Lenda do monstro
de Aljubarrota), constituem dois interessantes exemplos de apropriação nacionalista de
uma conhecida tradição do imaginário cristão. Em ambas a acção é transferida para os
campos de Aljubarrota. Na primeira, o combate dá-se no tempo do domínio romano na
Península Ibérica. O herói comanda as legiões estacionadas no ocidente da antiga
Lusitânia onde um gigantesco dragão assolava os campos atacando os soldados. E tal
como na lenda original, o santo guerreiro, montado no seu cavalo branco, vai enfrentar
sozinho o monstro, matando-o com a sua lança. Na segunda lenda, a acção decorre no
reinado de D. João I, no mesmo local, o campo de Aljubarrota, onde se vai travar a grande
batalha que decidirá o destino futuro do reino de Portugal. Batalha em que S. Jorge,
patrono do exército português, descerá dos céus, cercado por uma bola de fogo, para
defender as hostes portuguesas, ameaçadas por um assombroso monstro que
atemorizava a região e que o rei de Castela, com auxílio de um mago de Toledo, fizera
avançar contra os seus inimigos
11
. E de novo se repetirá, em terras de Portugal, o
magnífico combate de S. Jorge contra o dragão. Combate que, segundo a tradição, ficou
celebrado na escultura de pedra que se conserva na Ermida de S. Jorge de Aljubarrota,
mandada erigir por D. Nuno Álvares Pereira. Esta escultura segue o modelo iconográfico
tradicional, vendo-se S. Jorge em vestes militares, montado a cavalo e ferindo com a sua
8
lança o dragão prostrado a seus pés.
Fig. 5 .
S. Jorge e o Dragão
Autor desconhecido
Escultura de pedra
Séc. XIV
Ermida de S. Jorge
Aljubarrota
Apesar da imagem do dragão ser recorrente na arte portuguesa, são raríssimas as
representações que se reportam a narrativas tradicionais, à excepção dos exemplos que
foram referidos, a estátua de S. Miguel de Ponta Delgada e a escultura de Aljubarrota. De
notar que, em ambos os casos, a sua associação a lendas da tradição oral constitui uma
interpretação popular que se afasta, seguramente, da intenção devocional ou gratulatória
dos respectivos encomendantes.
Um caso particularmente interessante de associação de um baixo relevo a uma
narrativa tradicional diz respeito à original decoração da empena da conhecida “Casa das
Figuras” da Horta do Ourives, em Faro
12
.
Fig.
6
Empena da “Casa das Figuras”
Decoração em massa
Autor desc. (of. Diogo Tavares ?)
Meados do séc. XVIII
Horta do Ourives, Faro
9
A estranheza das figuras e o desconhecimento do seu significado deram origem a
uma lenda que Leite de Vasconcelos apresenta como exemplo de narrativa iconográficointerpretativa. A população local interpretou o baixo-relevo como uma história de castigos
ou punições divinas: culpada de ter morto dois filhos de peito, uma mulher foi condenada
a amamentar duas serpentes. Esta leitura, que pode remeter para antigos costumes,
traduz igualmente a crença popular, ainda hoje viva, o perigo das cobras virem roubar o
leite das mulheres.
Desconhece-se o programa iconográfico original, provavelmente proposto pelo
encomendante da obra e proprietário da Horta do Ourives, o desembargador Veríssimo de
Mendonça Manuel, talvez já com a colaboração do seu neto, Manuel Mascarenhas de
Figueiredo Manuel, que tinha dezassete anos à data da morte do avô e que fez decorar,
anos mais tarde, a “Torre da Horta dos Cães”, conhecida hoje como Celeiro de S.
Francisco, que fora igualmente mandada construir pelo desembargador.
Uma legenda aposta ao baixo-relevo da “Casa das Figuras” poderá dar-nos
algumas pistas sobre a sua significação: Qolfin; Bois Marinos; Alaca lansada as feras;
Mostros da Merica; Qolfin. Ou seja: Golfinho; Bois Marinhos; Alaca lançada às feras;
Monstros da América; Golfinho
13
No entanto, como vemos, a sua leitura é difícil e a mensagem obscura. Sugere a
existência de um núcleo narrativo, a história de uma personagem feminina que é lançada
às feras. Contudo, a única figura humana, que parece amamentar duas serpentes, tem
uma atitude protectora que pode fazer-nos pensar numa divindade feminina, talvez ligada
à fertilidade. Tratar-se-à de uma narrativa mitológica ou apenas de uma história lendária?
Ou poderá ser antes uma alegoria da América? Hipótese que pode ser sugerida pela
referência a “Mostros da Merica” (Monstros da América), que parece ser sinónimo de
“Bois Marinos” (Bois Marinhos), uma vez que ambas as identificações só podem reportarse às duas figuras centrais, macho e fêmea, com corpo de dragão, rosto humano e chifres
de touro, seres fabulosos semelhantes aos animais fantásticos que povoavam, desde a
Idade Média e o Renascimento até ao início do séc. XVII, o imaginário dos navegantes e
as ilustrações das cartas de marear, de que são exemplo a grande baleia de um
manuscrito das Navegações de S. Brandão datado do início do séc. XVI
14
ou os
monstros marinhos desenhados, já na primeira década do séc. XVII, nos mapas reunidos
no Speculum Maritium Super Navigatione Maris Occidentalis (1612)
15
.
Por outro lado, a presença de dois golfinhos, animais simbólicos ligados ao mar e à
10
regeneração e mediadores de salvação, parece poder aludir a travessias marítimas e
viagens de descoberta. É sob a forma de um golfinho que Apolo alcança as margens de
Crisa e é montado num golfinho que Vasco da Gama é representado na Carta do Índico e
Extremo Oriente de Bartolomeu Velho (1561)
16
.
A hipótese “americana”, indiciada nas alusões ao espaço marítimo e à América na
legenda da “Casa das Figuras”, torna-se mais plausível se tivermos em conta as relações
do seu proprietário com a nobre família algarvia dos Mascarenhas, com antigas ligações
às terras do Brasil, orgulhando-se mesmo de ter como antepassado o célebre “Caramuru”
17
. Uma análise comparativa com a decoração em massa encomendada, na segunda
metade do séc. XVIII, para a ”Torre da Horta dos Cães” pelo neto do desembargador e
onde figura o Adamastor representado como um índio, parece trazer novos argumentos a
esta leitura da enigmática composição da Horta do Ourives. Os traços, aparentemente
negróides, da figura central podem corresponder à falta de conhecimento directo da
fisionomia do índio ou funcionar apenas como indicador de exotismo, dispensando o
recurso às plumas, emblema da iconografia renascentista da América, que estão
presentes no Adamastor da “Torre da Horta dos Cães”
18
.
Trata-se obviamente, de uma hipótese de interpretação que só a descoberta do
programa iconográfico original poderá, ou não, validar, mas que traduz os mesmos
sentimentos de estranheza e curiosidade que terão dado origem à lenda popular
recolhida, no final do séc. XIX, da tradição oral do distrito de Faro.
Estranheza que, no pólo oposto de Portugal, na província de Trás-os-Montes, terá
estado igualmente na origem da lenda da Porca de Murça. O primitivo significado da
grande escultura, que hoje ocupa a centro da praça principal daquela vila transmontana e
que já é referenciada no séc. XVI, perdeu-se com o passar do tempo e não perdurou na
memória colectiva das populações locais. Trata-se de uma escultura zoomórfica em
granito, semelhante, embora de tamanho excepcional, a outras que se encontram nesta
região norte de Portugal e que representam, provavelmente, divindades pré-romanas
ligadas, segundo alguns autores, ao culto da fertilidade. Na tradição popular é apenas um
monumento evocativo de um animal de dimensões extraordinárias, um porco, um javali ou
um urso, de acordo com diferentes versões, que atemorizava a região atacando pessoas
desprevenidas e que se inclui no restrito grupo de “lendas de pessoas devoradas”.
11
Fig. 7
“A porca de Murça”
Escultura em granito
Praça central de Murça
Independentemente da tradição que lhe está associada, a grande porca de pedra é
hoje reconhecida como emblema identitário da vila de Murça, figurando no seu brasão.
2 - Animais da fauna de Portugal (domésticos e selvagens)
Se o bestiário fantástico é pouco recorrente nas nossas lendas, são pelo contrário,
numerosas e diversificadas as espécies de animais domésticos e selvagens que
encontramos nestas narrativas: o cavalo, a mula e o burro, o touro, o boi e a vaca, o
carneiro e a ovelha, a cabra, o porco, o cão e as aves de capoeira; e, de entre os animais
selvagens: o lobo, o urso e o veado, cobras, lagartos e sapos, morcegos, peixes, insectos
e aves várias.
À primeira vista, parece que tão forte e variada presença de espécies animais nos
permitiria colher informações sobre o seu habitat natural e as suas relações com as
actividades do homem. Surpreendentemente, são muito poucos os dados que podemos
recolher: esporádicas referências ao pastoreio e à criação de animais, ao lavrar da terra,
ao transporte de pessoas e mercadorias, à prática da caça, à frequência de pragas de
insectos, à repulsa generalizada por cobras e outros répteis e ao receio de animais
selvagens, geralmente lobos, que podem devorar homens, crianças e rebanhos.
Por outro lado, o registo da narração, afectivo ou pelo contrário receoso ou
pejorativo, reflecte atitudes e comportamentos do homem face aos animais, não só da
parte do narrador/informante, mas também da comunidade a que pertence e onde o texto
da lenda foi sendo transmitido ao longo dos tempos, sofrendo variações que espelham a
alteração dos contextos histórico-culturais e que determinam mudanças nos graus de
credibilidade que os prodigiosos acontecimentos narrados suscitam nos nossos dias.
Os animais “reais” das nossas lendas raramente participam na vida quotidiana dos
12
homens. Surgem antes em situações extraordinárias ou ao serviço de entidades e forças
sobrenaturais, benfazejas ou malévolas.
A descolagem das suas representações em relação ao plano referencial, e assim a
abertura de um segundo nível de significação da ordem do simbólico, não pode ser
dissociada da natureza e dos conteúdos das diversas categorias de lendas. Delas
dependem, ao contrário da distribuição indiferenciada do bestiário fantástico, a escolha
dos animais que nos são apresentados e as funções e características que lhes são
atribuídas.
Nas lendas históricas, o cavalo ocupa um espaço privilegiado. Duplo do cavaleiro,
participa das suas qualidades, força e valentia. O cavalo do herói guerreiro deixa a sua
marca prodigiosa na rocha, como o cavalo de Afonso Henriques na batalha de Ourique (O
monte de S. Pedro das Cabeças). A Basílica Real de Castro Verde consagra aquela que é
talvez a mais interessante representação do monarca português enfrentando os mouros
na batalha de Ourique, montando o seu poderoso cavalo de guerra (fig. 9)
19
.
Em lendas que se integram simultaneamente na categoria lendas sagradas, o
cavalo aparece como instrumento de ajuda e protecção divina: montado num cavalo
branco, Santiago desce dos céus a combater ao lado dos cristãos (O cavalo branco
montado por S. Tiago, O castelo do mau vizinho). Estas narrativas lendárias, recolhidas
no norte de Portugal, têm certamente uma remota origem erudita, associada ao culto do
Apóstolo e à peregrinação a Santiago de Compostela, tendo importado da Galiza a
tradição de Santiago mata-mouros, iniciada com o célebre episódio da aparição do santo
guerreiro na batalha de Clavijo
20
, tantas vezes evocada em santuários dedicados ao
Apóstolo ou em igrejas do padroado da Ordem de Santiago, de que são notável exemplo
o alto relevo da Igreja Matriz de Santiago do Cacém (início do séc. XIV) e o “Retábulo da
Vida de Santiago”, do antigo Convento de Palmela (c. 1520-1525), que foi sede da Ordem
em Portugal. A inclusão de um painel de azulejo representando Santiago combatendo os
mouros na capela-mor da Basílica de Castro Verde, decorada com um rico programa
iconográfico celebrativo do rei fundador, vem sublinhar a influência do culto do apóstolo
guerreiro na tradição lendária de Afonso Henriques.
13
Fig. 8
Santiago combatendo
os mouros
P M P c. 1730
Basílica Real, Castro Verde
Fig. 9
Afonso Henriques na
Batalha de Ourique
P M P c. 1730
Basílica Real, Castro Verde
A presença do cavalo repete-se em várias narrativas histórico/sagradas: graças à
intervenção de S. Bartolomeu, os cavalos dos mouros detêm-se milagrosamente perante
uma barreira invisível (S. Bartolomeu e os mouros) e por vontade de Nossa Senhora, o
cavalo de D. Fuas Roupinho suspende o seu galope sobre o abismo para onde o atraíra o
diabo sob a aparência de um veado; ainda hoje é indicada, a devotos e turistas, a
prodigiosa pegada gravada no penhasco do Sítio da Nazaré. A devoção à Senhora da
Nazaré estendeu-se a terras tão distantes como Belém do Pará, onde ocorre uma das
mais grandiosas festas religiosas da nossa época, ou à ilha de S. Tomé. Numerosíssimas
são as suas representações. Escolhemos uma, pintada no tecto de uma pequena igreja
de Trás-os-Montes, por ser uma das menos divulgadas:
Fig. 10
Milagre da Nazaré
Autor desconhecido
Séc. XVIII
Igreja de Lamalonga (tecto)
14
Há diversas versões desta conhecida tradição milagrosa, como a Lenda da
Senhora do Salto, em que um cavaleiro, fugindo ao diabo que o enganara sob a
aparência de uma lebre, consegue saltar, prodigiosamente, para a outra margem de um
profundo rio, ultrapassando a apertada garganta conhecida pelo nome de “Inferno”. E tal
como na lenda da Nazaré, ficaram gravadas na rocha as marcas das ferraduras do
cavalo, que se podem observar perto da capela erguida em honra da Senhora do Salto,
no magnífico local que hoje é demandado por devotos e turistas atraídos pelas festas que
se realizam no 1º domingo de Maio ou pela beleza agreste da paisagem:
Fig. 11
Senhora do Salto
Rio Sousa
Aguiar de Sousa
A variante mais curiosa deste tema
lendário – pelo anacronismo e relocalização da acção e pelo sincretismo de tradições de
que é exemplo – é a lenda açoreana atrás referida, protagonizada pelo rei D. Pedro IV
(Lenda do Salto do Cavalo).
Numa composição igualmente histórico/sagrada, onde, como é frequente, os reis,
“ungidos de Deus”, são objecto de particular protecção e ajuda divina, encontramos outro
episódio de montaria em que o animal selvagem é o urso: ao ser atacado por uma destas
feras, D. Dinis, invocando S. Luís, bispo de Tolosa, consegue milagrosamente vencê-lo.
15
Este episódio é recordado na arca tumular do monarca, que se encontra na igreja do
antigo mosteiro de Odivelas mandado construir como ex-voto gratulatório pelo milagre
alcançado:
A tradição popular situa este extraordinário acontecimento em lugares tão diversos
como Monte Real, no distrito de Leiria, e Baleizão, no Baixo Alentejo. Na margem da
ribeira que corre perto desta povoação ainda hoje se aponta, gravada na rocha, a marca
das patas do grande animal. Na igreja
matriz
um óleo muito deteriorado, proveniente
da igreja de S.
Pedro de Pomares mandada construir
por D. Dinis, onde
é recordado este lendário episódio
21
.
guarda-se
De notar que o
desenho do urso, semelhante a um grande cão, testemunha que o ingénuo artista que o
pintou já não conhecia as formas de um animal selvagem praticamente extinto nessa
época no território de Portugal
22
. Um retábulo da igreja de Santa Clara de Coimbra, da
oficina de um importante entalhador do séc. XVII, parece revelar o mesmo
desconhecimento:
Fig. 13
D. Dinis e o Urso
Oficina de António Soares e Domingos Nunes
Séc. XVII
Santa Clara-a-Nova, Coimbra
Fig. 14
D. Dinis e o Urso
Autor desconhecido
Igreja Paroquial, Baleizão
Ao contrário do cavalo, o cão, símbolo da fidelidade na tradição erudita,
representado tantas vezes aos pés de estátuas jacentes, está quase ausente destas
16
narrativas tradicionais. Duas raras excepções são a lenda histórico/etimológica que atribuí
à valentia e ao incitamento de um cão a conquista de Alenquer aos mouros, Lenda O Alão
quer!, e a Lenda da Dama Pé de Cabra, incluída no Livro de Linhagens do Conde D.
Pedro e glosada em textos literários, onde o enorme cão de D. Diogo Lopes, senhor da
Biscaia, é morto pela pequena podenga negra de sua mulher, a dama com pés de cabra
que é, obviamente, o próprio o diabo. Nesta lenda, de origem erudita, o carácter
sobrenatural dos acontecimentos sobrepõe-se, contudo, à informação histórica, devendo
incluir-se, paralelamente, na sub-classe “histórias do diabo”, comum às lendas do
sobrenatural e aos contos maravilhosos.
É igualmente excepcional nas lendas históricas a presença da serpente, animal tão
frequente nas lendas de forças e seres sobrenaturais, particularmente nas lendas de
mouras encantadas. Uma interessante narrativa, de origem erudita como a maioria das
lendas históricas, registada numa crónica castelhana medieval
23
e recordada no
Romanceiro, é a impressionante lenda O Túmulo do Conde, constitui um raro exemplo da
presença deste animal nas lendas históricas: culpado de mandar matar a mãe atirando-a
aos leões, o conde D. Rodrigo é condenado a ser sepultado vivo num túmulo com cobras.
Segundo outra versão, é um cabelo da condessa assassinada que se transforma numa
enorme serpente que vai devorar o prisioneiro. Numa abside da igreja do antigo mosteiro
de Castro de Avelãs, no distrito de Bragança, conserva-se uma arca tumular que a
tradição identifica como o sepulcro do perverso fidalgo, conhecido naquela região como o
conde de Ariães. Segundo a tradição popular, o seu terrível pecado ficou para sempre
lembrado nos dois leões de pedra que encimam as colunas do portão do adro da igreja.
Esculturas que provavelmente, e à semelhança do que se verifica com o dragão, apenas
têm o significado simbólico de guardas de um espaço sagrado, igreja ou cemitério.
17
Fig. 15
Arca tumular
Igreja de Castro de Avelãs
Fig. 16
Leões de pedra (portão da entrada)
Igreja de Castro de Avelãs
Nas lendas históricas encontramos ainda referências a outros animais a que é
atribuída uma função secundária, mas decisiva, enquanto instrumentos de artimanhas e
ardis utilizados em situações difíceis, nomeadamente batalhas e cercos. São conhecidas
e ainda hoje recordadas localmente, por vezes figurando nas armas das respectivas
cidades ou vilas, as lendas A bezerra de Monsanto, A truta de Celorico e A sardinha de
Silves, variações sobre o mesmo tema: enganar os sitiantes com falsas provas de
abundância de víveres. Outro ardil é a colocação luzes nos chifres de cabras, para
simular um grande exército, motivo que se repete em várias lendas e é atribuído aos
mouros ou a Afonso Henriques mas que é também situado nas invasões francesas
(Lenda do Milagre de Ourique, Animais com luzes nos galhos, …).
Apesar de caracterizadas pela inserção da narrativa num tempo histórico
determinado e num espaço geograficamente delimitado, as lendas históricas são,
curiosamente, aquelas que, dentro do corpus lendário português, contém menos
informações sobre as relações homens/animais. São poucas as situações concretas
referenciadas: a presença do cavalo nas batalhas, a prática da caça (à lebre, ao veado e
ao urso), a abundância de alguns peixes (truta no centro, sardinha no sul) e a ameaça de
grandes pragas de gafanhotos e de formigas que provocam a transferência ou o
desaparecimento de povoações, como Idanha-a-Velha e Moncorvo.
Para esta escassez poderá ter contribuído a origem, geralmente erudita, e o
predomínio da transmissão por via escrita de narrativas que, em muitos casos, só
18
tardiamente se tradicionalizaram. Note-se que a categoria lendas históricas é aquela que
apresenta menor número de textos e também aquela que conserva uma menor vitalidade
na tradição oral, à excepção das lendas toponímicas, e um menor grau de credibilidade.
Poucos recordam estas “antigas histórias” que já não são objecto de crença. Hoje em dia
verifica-se, em boa hora, um esforço generalizado de recuperação e conservação deste
património imaterial, reconhecido como herança cultural de uma região ou de uma
comunidade local.
Nas lendas sagradas, enraizadas numa forte crença religiosa e assim dispensando
as fórmulas de atestação de veracidade recorrentes nas outras categorias de lendas, a
indeterminação espacio/temporal dos milagrosos acontecimentos narrados tende a
suprimir as balizas cronológicas e a alterar as coordenadas do espaço.
A natureza das narrativas – episódios bíblicos ou histórias de aparições e outros
milagres – é determinante na escolha dos animais que nelas desempenham a função de
emissários da vontade divina e de adjuvantes nas numerosas intervenções de Cristo, de
Nossa Senhora e dos Santos na vida dos homens.
Os animais que encontramos com maior frequência são os pássaros, traduzindo,
deste modo, a sua forte presença nos céus de Portugal: é com andorinhas de barro que
Jesus Menino brinca (A origem das andorinhas); são as mesmas andorinhas que
arrancam, com os seus bicos, os espinhos da coroa de Jesus crucificado e que se vestem
de luto para chorar a sua morte (Lenda das andorinhas); são de novo os passarinhos – a
arvéola, o pisco, o cartaxo, etc. – que vêm apagar, com as suas pequenas patas, as
pegadas da burrinha que transporta Jesus, Maria e José, ou que, pelo contrário,
denunciam os fugitivos com o seu piar inoportuno (A pita-cega e a lavandeira, Pitinhas de
Nossa Senhora, A condenação do noitibó, …); corvos negros protegem o corpo do mártir
S. Vicente dos animais selvagens e acompanham-no na sua barca até Lisboa (A nau dos
corvos), lenda que se insere na tradição de milagrosas viagens marítimas em navios sem
tripulantes e que, na hagiografia cristã, são atribuídas a diversos santos, como o apóstolo
S. Tiago, arribado na sua barca de pedra até às costas da Galiza, ou S Torpes, mandado
decapitar por Nero e metido num barco com um cão e um galo que, em vez de atacarem
o seu cadáver, o acompanharam até aos areais de S. Torpes, no Alentejo
24
. A barca e os
corvos são emblemas iconográficos do santo diácono sob cuja protecção Afonso
Henriques, que fez vir as suas relíquias de Sagres, quis pôr a nobre cidade que
conquistara aos mouros
25
.
Figuram no antigo brasão da cidade de Lisboa e estão
presentes nas numerosíssimas representações do santo que podemos encontrar em
regiões muito distantes. Um dos mais belos programas iconográficos consagrados a S.
19
Vicente na pintura portuguesa encontra-se hoje no Museu de Óbidos, proveniente da
antiga Igreja de S. Vicente da Gafaria.
Fig. 17
Os corvos defendem o corpo de S. Vicente
Garcia Fernandes
c. 1540
Museu Municipal de Óbidos
Fig. 18
“As armas da cidade de Lisboa”
Livro Carmesim
1502
Chancelaria Régia, cod. 37 fol. 8
Arquivo Histórico da C M L
As aves continuam a invadir outras narrativas tradicionais: bandos de passarinhos
obedecem a Santo António criança, encarregado pelo pai de proteger as searas (Santo
António e os passarinhos); uma andorinha vem devolver à Rainha Santa Isabel a agulha
que deixara cair quando contemplava a bela paisagem alentejana da janela do castelo de
Estremoz (A Rainha Santa e as andorinhas); pegas cobiçosas roubam o dedal de ouro da
Rainha Santa Mafalda (Lenda das pegas); ou, milagre ainda mais prodigioso, um galo
morto e assado ressuscita para provar a inocência de um devoto de Santiago,
injustamente acusado (O Senhor do galo de Barcelos ou O milagre do enforcado); milagre
recordado no padrão de Barcelos e que inspirou o popular Galo de Barcelos, original
criação de um artesão de barro figurado que se tornaria emblema de Portugal, para uso
turístico.
20
Fig. 19
O milagre do enforcado
Padrão de granito
Museu de Barcelos
Fig. 20
O Galo de Barcelos
Figurado de barro
Júlia Cota
(col. particular)
Têm igualmente uma forte presença nas lendas sagradas o boi e a vaca, a mula e
o burrinho. Observa-se, pelo contrário, a quase total ausência do cavalo, protagonista nas
lendas históricas e em algumas lendas histórico-sagradas, substituído por animais com
quem o homem do campo partilha a vida quotidiana e de quem está afectivamente mais
próximo. São eles os escolhidos para representar a ligação do homem com Deus: um boi,
aparentemente tresmalhado, leva o seu pastor até uma árvore onde aparece uma imagem
de Nossa Senhora com o Filho nos braços, imagem que depois de levada para a igreja da
terra regressa milagrosamente ao local do achamento (Lenda de Nossa Senhora da
Merceana)
26
.
Fig. 21
Milagre de Nª Sª da Merceana
Autor desconhecido
Séc. XVIII
Igreja de Nª Sª da Piedade
21
Merceana
Uma pequena burrinha consegue pôr a salvo a sagrada família na sua fuga para o
Egipto, atravessando áridos descampados ou subindo íngremes encostas, como nas
deliciosas lendas O Penedo da Pegadinha e As pegadas da burrinha ou Santa Maria da
Pedra de Mua. A acção é situada no território de Portugal e os sinais da passagem da
burrinha são assinalados em diversos lugares. Na última lenda, situada no Cabo Espichel,
as marcas apontadas correspondem, na realidade, a pegadas de dinossauros.
Fig. 22
Pegadas de dinossausos
Cabo Espichel
Uma mula conduz o caixão de D. Mafalda até ao convento de Arouca, assim
indicando o lugar escolhido para sepultura da “santa rainha” filha de D. Sancho I (A mula
da rainha):
Fig. 23
Milagre da mula de D. Mafalda
Autor desconhecido
1ª metade séc. XVIII
Cadeiral do Mosteiro de Arouca
Arouca
22
No Milagre de Santo António e a mula, ou Milagre Eucarístico, uma mula, privada
de comida durante três dias, recusa a aveia que lhe apresentam indo ajoelhar-se perante
a custódia empunhada pelo pregador franciscano, com este prodígio se operando a
conversão de um rico mercador.
Fig. 24
Santo António e a Mula
Ou Milagre Eucarístico
Séc. XVIII
Convento de Stº António do Varatojo
Contudo, o mais conhecido milagre atribuído a Santo António é o Milagre dos
peixes, que inspirou ao Padre António Vieira um dos seus notabilíssimos sermões e se
tornou tema central da iconografia do santo, tantas vezes evocado em Portugal por
grandes pintores, como Gregório Lopes e Vieira Lusitano, mas também em painéis e
registos de azulejo, afixados em igrejas ou nas fachadas de edifícios e de que é exemplo
o painel seiscentista que se conserva no Museu Antoniano de Lisboa.
Fig. 25
Stº António pregando aos peixes
Vieira Lusitano
1721
Igreja de S. Roque
Lisboa
23
Uma cena semelhante é incluída na iconografia de S. Gonçalo de Amarante. Mas
agora os peixes, que emergem das ondas, são os mesmos a que o santo dera de novo
vida, depois de pescados, comidos e reduzidos a cabeça e espinhas.
Os peixes podem ainda surgir em lendas sagradas/etiológicas que atribuem a um
acto milagroso algumas características invulgares destes animais, como é o caso do
linguado que ficou com a boca ao lado em castigo de ter troçado de Nossa Senhora
(Porque é que o linguado tem a boca torta).
Um caranguejo protagoniza uma das narrativas de milagres atribuídos a S.
Francisco Xavier: andando o padre jesuíta numa praia das ilhas Molucas, um destes
pequenos animais saiu das águas para lhe devolver o crucifixo que perdera durante uma
tempestade. O prestável crustáceo passou a integrar a iconografia deste santo, figurando
frequentemente, desde o início do séc. XVII, na base de imagens e cruzes-relicário, como
o belo exemplar do Museu Machado de Castro, proveniente do Colégio de Jesus de
Coimbra. O “milagre do caranguejo”, incluído por André Reinoso no seu notável programa
pictórico da sacristia da Igreja de S. Roque de Lisboa (c. 1619), é um dos mais
conhecidos e representados episódios da hagiografia do apóstolo das Indias.
Um grupo numeroso de lendas sagradas é constituído por narrativas de curas
milagrosas de animais doentes ou acidentados ou de manifestações de particular ajuda
divina em situações de perigo provocadas por animais ferozes (touros bravos, cães
raivosos ou lobos). São recordadas em inúmeros ex-votos, oferecidos em acção de
graças por devotos reconhecidos e guardados em santuários de forte devoção popular,
como a Igreja do Senhor Jesus da Piedade de Elvas:
Fig. 26
Cura de uma égua com terçãs
Ex-voto
Séc. XVIII
Fig. 27
Cura de uma jumenta cega
Ex-voto
Séc. XIX
24
Senhor Jesus da Piedade, Elvas
Senhor Jesus da Piedade, Elvas
Fig. 28
Cura de um boi com hemorragias
Ex-voto
Séc. XIX
Senhor Jesus da Piedade, Elvas
Fig. 29
Aparição de animais roubados
Ex-voto
Séc. XIX
Senhor Jesus da Piedade, Elvas
Nas lendas sagradas, à função informativa, característica do discurso lendário,
associa-se uma função catequética, centrada no núcleo familiar ou em pequenas
comunidades rurais, incitando, de forma apelativa e pela narração de histórias
exemplares, à meditação sobre a Paixão de Cristo, à veneração da Sagrada Eucaristia, à
devoção a Nossa Senhora e à confiança na protecção dos Santos.
Não pode ser esquecida, na difusão destas narrativas, a importância do culto
religioso que lhes está frequentemente associado, mas também o valor pedagógico e
doutrinário da imagem, erudita ou popular, oferecida à contemplação dos devotos em
igrejas, capelas e ermidas ou divulgada em registos afixados em edifícios ou circulando
em livros devocionais, pagelas, boletins informativos e, modernamente, nas páginas da
internet.
As lendas de forças e seres sobrenaturais constituem a mais lata categoria do
corpus lendário português. É nela que encontramos, igualmente, o mais diversificado e
prodigioso bestiário onde, a par de uma escassa presença de monstros e seres
fantásticos, existe uma grande variedade de espécies animais, domésticas ou selvagens,
que se descolam, no entanto, do plano da realidade física adquirindo prodigiosas
qualidades e mágicos poderes.
São animais encantados, guardiães de tesouros, como o touro que defende a
entrada do castelo dos mouros ou a vaca que guia o visitante que se aventura num
25
espaço proibido para desencantar uma bela princesa moura e receber em paga uma
magnífica recompensa (Lenda de Vilarinho dos Galegos, …), ou formas aparentes de
encantados, geralmente belas mulheres
metamorfoseadas em serpentes (A mulher-
cobra, A menina e o cordão, A Fraga do cavaleiro), ou de almas penadas reduzidas a uma
condição sub-humana, quase sempre sob a aparência de um cão negro, em castigo de
culpas não redimidas (O cão preto, O galgo negro). São ainda metamorfoses nocturnas
de lobisomens, condenados a transformar-se ao anoitecer num animal, geralmente um
lobo, mas também aquele que primeiro for visto em sonhos ou ao início do dia, burro,
porco, bode ou outra espécie doméstica (História de lobisomens, Homem de dia animal
de noite, Porco ou lobisomem, As gargalhadas do bode, …).
Um grupo numeroso de histórias de encantamentos em animais é constituído por
lendas de mouras encantadas, transformadas quase sempre em cobras, aguardando o
beijo que as desencantará (Lenda da moura de Reboredo, Lenda da Fonte da Moura de
Seixo de Ansiães, …). A sua condição feminina pode ser revelada por doces palavras e
pela longa cabeleira que penteiam com um pente de ouro (Lenda do Caúnho) ou ao
despir a pele de cobra para dançar na noite de S. João (O bruxo do castelo de Algoso).
A presença de cobras é assim frequentíssima nas lendas do sobrenatural.
Topónimos recordam ainda hoje a sua lendária presença. No entanto, como vimos,
raramente adquirem uma conotação demoníaca. A antiquíssima serpente de Eva já não
rasteja pelos nossos campos e a terrível serpente de sete cabeças parece ter
desaparecido no fundo das suas ocultas cavernas.
São outros os animais demoníacos das nossas lendas, associados a actos de
bruxaria, ocorrência muito rara, e à leitura do livro mágico de S. Cipriano (O ouro do
Monte de Santa Marinha), ou conotados com negros presságios, como o morcego, ou
ainda identificados como encarnações do diabo: o porco e o cão, o bode, o chibo, a cabra
e o cabrito, ou o borrego e o carneiro, ambos de cor negra porque o branco, que remete
para o paradigma divino, é a cor do Cordeiro Pascal. Refiram-se as curiosas narrativas,
que integram igualmente os contos tradicionais do “diabo pesado”: alguém, ao passar
numa estrada deserta, encontra um destes animais e carrega-o às costas; mas a cada
passo, o peso da sua carga torna-se maior até que o aterrorizado viajante descobre que
se encontra face a face com o demónio (O chibato da feteira, O carneiro preto, …).
Pelo seu elevado número e pelo alto grau de crença que ainda hoje conservam, as
lendas de forças e seres sobrenaturais constituem uma categoria particularmente
interessante dentro do corpus lendário português. É aquela que suscita, da parte do
informante, maior preocupação com a atestação de veracidade, o que passa por rigorosas
26
referências ao local e ao tempo da acção e pela identificação de testemunhas oculares,
geralmente um vizinho ou um familiar, ainda vivo ou já falecido.
Contudo, diferentemente do que se verifica em relação às lendas históricas e às
lendas sagradas, é muito difícil encontrar representações destas narrativas na arte
portuguesa, povoada, no entanto, por tantos seres fantásticos e prodigiosos, maravilhas
que invadem o espaço da iluminura, do fresco e da escultura, de retábulos a óleo ou de
painéis de azulejo, em figurações eruditas ou ingénuas e populares. Esta escassez de
imagens talvez derive precisamente da natureza de uma crença que, ao contrário da fé
religiosa, tende a ser dissimulada pelo informante, que por vezes chega a apresentar uma
explicação racional e lógica para os acontecimentos extraordinários que relata, sem
conseguir evitar um registo dubitativo que coloca dificuldades de avaliação ao recolector.
Na falta de representações figurativas traçadas pela mão do homem, insólitos
fenómenos da natureza, grutas e grandes pedras, penhascos e precipícios, vales
profundos e altos montes, continuam, como em tempos muito remotos, a recordar-nos
assombrosas histórias de forças e entidades sobrenaturais de que os animais são o
instrumento dócil ou a encenação simbólica. Um bom exemplo é o afloramento rochoso,
com inscrições rupestres e de configuração vagamente semelhante a um gigantesco
cavalo, que se pode avistar perto de Paradela. A tradição popular associa-lhe uma lenda
toponímica que retoma o motivo das pegadas gravadas na rocha (Lenda a Pedra do
Cavalo).
As lendas etiológicas incluem numerosas narrativas sobre animais. Procuram
explicar a origem de várias espécies (A origem dos javalis, A origem das andorinhas, …)
ou as características insólitas que apresentam, como a ausência de patas na cobra
castigada por Deus a rastejar depois de tentar Eva no Paraíso (Porque é que a cobra não
tem patas), ou como a cor invulgar de algumas aves: o preto das andorinhas, de luto pela
morte de Cristo (Lenda das andorinhas), ou o vermelho da cabeça do pintarroxo, tingida
com o sangue de Cristo crucificado (Um pintaroxo). Os animais podem ser também
associados à origem de costumes e de práticas agrícolas, como a arte da poda (O burro e
a videira), ou à origem do nome de uma povoação ou de um lugar (A Cova da Serpe, O
Pico Cidrão, …).
A distribuição dos animais nesta classe de lendas, aparentemente fortuita, fornecenos, no entanto, informações sobre a sua frequente presença em determinados lugares
ou sobre a existência, em épocas passadas, de espécies hoje desaparecidas do território
português, caso do urso, referido em topónimos da região de Monte Real, a Porta do Urso
27
e a Mata do Urso.
Esta sub-classe de lendas toponímicas conserva grande vitalidade a nível local.
Consideradas elementos identitários e património comum de uma comunidade, ocupam
um lugar particular na memória colectiva e são por vezes recordadas nas armas de
cidades ou vilas, como Alenquer (O Alão quer!), ou Serpa (Lenda da serpente de Serpa),
inclindo-se assim, igualmente, nas lendas iconográficas.
Fig. 30
Armas de Alenquer
Fig. 31
Armas da Notável Vila de Serpa
No final deste breve olhar pelas lendas portuguesas, tentando reconhecer a
presença e as funções que os animais apresentam num corpus narrativo tão vasto e
diferenciado, chegamos a algumas conclusões, nalguns casos surpreendentes:
presença pouco frequente de um bestiário fantástico; grande variedade de espécies
animais da fauna portuguesa e ausência de animais exóticos; descolagem das suas
representações em relação à realidade referencial, pelo investimento simbólico e pela
atribuição de qualidades extraordinárias e poderes sobrenaturais que os aproximam dos
animais fantásticos e que podem justificar a surpreendente escassez destes últimos;
distribuição diferenciada das espécies de animais, domésticos e selvagens, pelas
diversas categorias de lendas, com predomínio do cavalo nas lendas históricas, dos
pássaros nas lendas sagradas e da serpente nas lendas de forças e seres sobrenaturais;
caracterização diferenciada, ou mesmo contraditória, dos animais nas diversas categorias
de lendas, aparecendo, por exemplo, o cão como adjuvante do herói nas lendas
28
históricas, como encarnação do diabo nas lendas de forças e seres
sobrenaturais e
como instrumento de castigo divino nas lendas sagradas.
Se a presença dos animais nas nossas lendas nos fornece escassas informações
sobre o seu habitat natural e suas relações com o homem, dá-nos, pelo contrário,
preciosas informações sobre o próprio homem: a dualidade do ser humano, simbolizada
por seres híbridos e pelas metamorfoses de homem em animal; o temor do inferno e das
forças demoníacas, representadas nas muitas figurações do diabo; a particular devoção a
Nossa Senhora; a crença ainda viva em assombrações, almas penadas e lobisomens; o
receio generalizado por cobras e outros répteis e por animais selvagens que podem
devorar homens ou rebanhos.
E se formos pesquisar mais atentamente na espessura significativa das narrativas
lendárias, encontraremos certamente recantos dissimulados onde outros animais, que
integram este magnífico bestiário comum ou fantástico, aguardam o momento de serem
desencantados, isto é, de nos revelarem novas e inesperadas significações.
E hoje é possível fazê-lo graças ao esforço de inúmeros recolectores que, ao longo
dos tempos e com redobrado entusiasmo nos nossos dias, nos foram deixando um
imenso material pacientemente recolhido. Talvez este texto seja um pequeno exemplo da
importância que o seu trabalho teve e terá na preservação e no conhecimento futuro de
um precioso património de que todos somos depositários.
29
NOTAS
1
VASCONCELOS, José Leite de, Contos Populares e Lendas, coligidos por Alda da Silva Soromenho e Paulo
Caratão Soromenho, Coimbra, vol. II, 1969 e Fernanda FRAZÃO, Lendas Portuguesas da Terra e do Mar, Lisboa,
2004.
2
O APL organiza as lendas portuguesas em cinco grandes categorias: Lendas Sagradas, Lendas do Sobrenatural,
Lendas Históricas, Lendas Etiológicas e Lendas Urbanas. A posição dos especialistas em relação à aceitação deste
grupo de lendas, que alguns investigadores preferem designar por Lendas Contemporâneas, ainda não é consensual.
Qualquer uma das designações levanta problemas dado que estas narrativas não se situam nem circulam apenas no meio
urbano e podem corresponder à actualização de lendas e tradições anteriores, tese defendida por J. J. Dias MARQUES
(CEAO/UALG).
3
A cooperação institucional entre o CEAO/Ualg e o CTPP/FLUL e a semelhança de critérios e parâmetros permitiram
a adopção de uma classificação quase coincidente para as quatro grandes categorias de lendas portuguesas, embora se
tenha mantido uma diferenciação, não contraditória, ao nível das sub-categorias. Assim é possível, a todos os eventuais
interessados, a consulta articulada das duas bases de dados (APL http://www.lendarium.org e ADLOT ).
4
Os dois modelos iconográficos – “S. Miguel vencendo o Demónio” e “S. Miguel pesando as almas” – podem
aparecer sobrepostos, como se verifica no notável óleo do início do séc. XVII, de autor desconhecido, que se conserva
no M.N.A.A., onde o Arcanjo, calcando aos pés o Demónio, segura na mão esquerda a balança em que pesa as almas.
5
O óleo de André Gonçalves tem como fonte o famoso S. Miguel de Rafael (1518, Museu do Louvre) que inspirou
artistas italianos representados em Portugal no tempo de D. João V, como Guido Reni e Sebastiano Conca, e que foi
reproduzido em gravura que poderão ter servido de fonte directa à tela da Igreja do Menino Deus . Cf. J. A. Gomes
MACHADO, André Gonçalves. Pintura do Barroco Português, Lisboa, 1955, p. 195.
6
7
Hipótese que não pude confirmar até ao presente mas que uma ulterior pesquisa poderá certamente esclarecer.
Este códice conserva-se na Biblioteca Nacional de França.
8
“O Pecado”, Francisco de HOLANDA, De aetatibus mundi imagines, fol. 9 r, Séc. XVI, Biblioteca Nacional de
Madrid
9
A hagiografia cristã atribui igualmente a Santa Marta, irmã de Lázaro e uma das santas mulheres que acompanharam
Jesus Cristo no Calvário, a vitória sobre o dragão que assolava as terras do Sul de França onde esta discípula de Cristo
teria chegado com o seu irmão, fugindo da primeira perseguição aos cristãos na Judeia. Aí teria enfrentado sozinha o
terrível monstro, que dominou fazendo o sinal da cruz e aspergindo-o com água benta, conduzindo-o em seguida, atado
com o seu cinto, até Tarrascon, assim iniciando com este milagre a evangelização da antiga Occitânia. Como vemos, são
evidentes as contaminações entre esta tradição milagrosa e a lenda de S. Jorge e a Donzela. O dragão é igualmente um
emblema iconográfico de Santa Marta presente na maioria das suas representações, de que é exemplo, em Lisboa, a
pintura do tecto do coro do antigo mosteiro de clarissas, actualmente Hospital de Santa Marta, bem como o pequeno
painel de azulejo colocado numa das paredes exteriores deste hospital. No entanto, esta bela lenda sagrada, conservada
na tradição provençal, não parece ter deixado qualquer marca no corpus lendário português.
10
Paolo UCCELLO, S. Jorge e o Dragão, c. 1470, National Gallery, Londres.
11
Na época da batalha de Aljubarrota, S. Jorge era já o patrono do exército português, substituindo S. Tiago, padroeiro
dos reinos peninsulares. Segundo alguns historiadores, esta alteração, que sublinhava a independência de Portugal
relativamente a Castela, poderá ter-se dado por influência inglesa durante as guerras de D. Fernando com Castela em
que participaram cavaleiros ingleses. Outros autores atribuem-na igualmente à influência inglesa, situando-a, contudo,
no reinado de D. João I, casado com D. Filipa da Casa de Lencastre.
12
O desembargador Veríssimo de Mendonça Manuel fez construir em 1741 a capela do Horta do Ourives, atribuída a
Diogo Tavares, e que tem no interior outros trabalhos em massa, provavelmente da mesma oficina. Cf. Tânia PEREIRA,
“A Horta do Ourives”, Revista Monumentos, nº 24, Revista Semestral de Edifícios e Monumentos, Março de 2006, pp.
116-12.
13
Cf. Tânia PEREIRA, op. cit..
14
Navegações de S. Brandão, ms. Ashmole, fol. 86 v., 1511, Bodleian Library, Oxford.
15
Speculum Maritium Super Navigatione Maris Occidentalis, 1612, B. N. P., Lisboa
16
Bartolomeu VELHO, Carta do Índico e Extremo Oriente, 1561, Inst. e Museo di Storia della Scienza, Florença.
17
Cf. J. E., Horta CORREIA, “A Horta dos Cães”, Revista Monumentos, nº 24, Revista Semestral de Edifícios e
30
Monumentos, Março de 2006, pp. 114 -115.
18
Na fixação da imagem alegórica da América teve papel determinante a gravura da Icnologia de Cesare RIPA. Cf.
Horta CORREIA, op. cit..
19
A encomenda da série de painéis figurativos da Basílica de Castro Verde data de 1727. A atribuição da sua autoria ao
importante mestre de azulejo conhecido pela sigla PMP deve-se a José MECO, ilustre especialista do azulejo, Cf. M. L.
CIDRAES, A tradição lendária de Afonso Henriques e as memórias do rei fundador em Castro Verde, 2008, p.84.
20
São várias as lendárias aparições de Santiago como “miles Christi” recordadas na tradição peninsular e em cantares
épicos e crónicas medievais: em socorro do rei Ramiro na batalha de Clavijo (c. 844), ao lado de Ramiro II em
Simancas (939) e em apoio do conde Fernão Gonçalves de Castela nas guerras contra Almansor. Cf. J. A. FALCÃO e F.
A. B. PEREIRA o Alto Relevo de Santiago Combatendo os Mouros da Igreja Matriz de Santiago do Cacém, 2001 (com
extensa bibliografia).
21
Tenho notícia da existência no Baixo Alentejo de outro quadro com o mesmo tema sobre o qual não consegui obter
mais informações.
22
A presença de ursos em Portugal é referida depois do séc. XVII mas apenas nas regiões do norte do país,
provavelmente em resultado de migrações de montanhas da vizinha Espanha.
23
Cf. VASCONCELOS, op. cit., pp. 629-630.
24
Segundo outra versão, o corpo de S. Torpes teria arribado a Saint Torpez, no sul de França, o que explicaria a
origem deste topónimo.
25
Quando Lisboa foi escolhida para capital do reino, no tempo de D. Afonso III, a barca dos corvos passou a ser o
emblema das armas da nova capital.
26
As lendas de imagens “andarilhas”, descobertas por um pastor, um frade ou uma criança numa gruta ou em árvores
da flora peninsular (azinheira, oliveira, espinheiro, zambujeiro, carvalho, etc.), são tão numerosas que constituem uma
sub-classe das lendas sagradas na classificação proposta no APL.
Os grandes painéis de azulejo figurativo datados do sec. XVIII, que decoram a nave da Igreja de Nª Sª da Piedade
da Merceana, aludem ao milagre do boi Merciano. Encontram-se enquadrados por molduras polícromas que José
MECO situa no final de oitocentos, atribuindo-as à Fábrica do Rato e ao pintor Francisco Paulo de Oliveira.
Agradecimentos
À Comissão Organizadora do Colóquio BIichos e outras maravilhas, Convento de
S. Paulo Hotel / Museu, 26 e 27 de Maio de 2012, onde foi apresentada a comunicação
que deu origem ao presente artigo.
A todas as entidades que permitiram a captação e / ou divulgação de imagens sem
o que este pequeno texto ficaria incompleto: Arquivo Histórico da Câmara Municipal de
Lisboa, Instituto de Odivelas Infante D. Afonso, Museu Municipal de Barcelos, Museu
Municipal de Faro, Museu Municipal de Óbidos e Município de Óbidos, Basílica Real de
Castro Verde, Convento de Santo António do Varatojo, Igreja da Lamalonga, Igreja de
Nossa Senhora da Piedade da Merceana, Igreja do Menino Deus, Lisboa, Igreja do
Mosteiro de S. João de Tarouca, Igreja Paroquial de Baleizão, Confraria da Rainha Santa
Isabel, Coimbra, Confraria do Senhor Jesus da Piedade, Elvas, Real Irmandade da
Rainha Santa Mafalda, Arouca.
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