CAIU DE BOCA - Antonio Miranda

Transcrição

CAIU DE BOCA - Antonio Miranda
Conto de Antonio Miranda
Ilustração de Zenilton de Jesus Gayoso Miranda
CAIU DE BOCA
A Senhora Diretora circulava pelos corredores, atravessava portas e subia escadas.
Podia olhar o pátio pelas janelas entreabertas, ouvir as conversas que vinham do fundo dos
salões.
Chegava sempre sem avisar, quando os funcionários estavam contando piadas,
comentando programas de televisão, falando ao telefone, lendo revistas femininas,
recebendo visitas de amigos ou de vendedores de bijuterias. Olhava sempre com olhos de
reprovação e saia calada, rancorosa.
Ela preferia falar por insinuações: alguém chega sempre atrasado, sabe-se que
outros saem antes da hora, há indícios de usos inadequados de material de escritório. Outros
vão aos sanitários com excessiva freqüência e não consta que andem doentes, a
produtividade é baixa, nem sempre valem o salário que recebem. Empregado público é
assim mesmo.
Magérrima. Mais velha do que a própria idade, uns vestidos lisos, opacos, discretos,
mesmo quando novos já parecem usados. Para ela, o bom exemplo é chegar antes da hora,
não ter hora para sair e levar trabalho para casa. Sempre há o que fazer.
- Quem paga o nosso salário é o pobre povo venezuelano.
Ela nem venezuelana era. Nascera na Colômbia, fora criada na Espanha, de origem
belga. Ou holandesa, talvez dinamarquesa. Na terra dos seus antepassados viveu Hamlet e
havia ali uma torre medieval, de pedra, com uma subida interna em círculo, como um
parafuso. É o que ela lembrava ter ouvido da avó, dizia numa das raríssimas vezes em que
falava sobre a família e sua própria vida. Na Europa as pessoas valorizam o trabalho, não
perdem tempo, odeiam o desperdício. Viveram a dura fatalidade das guerras, pão escasso e
sabem que apenas o trabalho justifica a existência do homem diante de Deus.
Dizem que inspecionava os armários do pessoal da limpeza, que vasculhava as
gavetas das secretárias, que contava as lapiseiras e os rolos de papel higiênico que saiam
das despensas, que controlava as chamadas telefônicas para saber os destinatários e os
tempos de conversação. Telefone é um instrumento de trabalho. Por que algumas pessoas
são tão desligadas de suas obrigações, usam envelopes oficiais para enviar correspondência
privada?
Os passos da Senhora Diretora eram sempre leves, suspensos no ar, andava sobre
tapetes plúmbeos, pé ante pé, imperceptíveis, formando trajetos circulares, inspecionando
lugares, rincões, porões. Estava em toda parte, aonde seus pés miúdos e prudentes a
levassem. Iam sozinhos, orientados pela rotina de supervisionamentos, surpresas, ataques
relâmpagos no dia-a-dia da instituição. “Ia passando, decidi entrar”.
Havia
relógios
de
ponto,
relatórios
minuciosos,
tarefas
programadas,
monitoramentos. Manuais de serviços, normas a serem cumpridas. Em contrapartida, havia
também o recurso das dispensas médicas freqüentes. Infame, execrável. Dona Leontina jura
que a perseguição da Senhora Diretora continuava depois do expediente, atravessava a
noite e aparecia em forma de pesadelos constantes. O despertador tinha a voz dela, aquela
voz ranzinza, de cobrança (de cobra!!!) e sentença. Odiava-a desde o dia em que foi
descontada
por
faltar
dois
dias
seguidos,
sem
justificativa
médica.
Estivera
em
Barquisimeto no casamento de uma sobrinha e não tivera como regressar antes. Preferira
faltar de qualquer jeito a ter que enfrentar o não da Senhora Diretora que certamente iria
considerar a razão da viagem, no mínimo, trivial e injustificável. A imagem do esqueleto da
velha Diretora aparecia-lhe no meio da noite como a uma coruja insone ou pela manhã,
demasiado cedo, como uma sirena de ambulância, perturbadora.
- Que se muera de infarto! – suspirava em tom de vingança.
O pior é que a Senhora Diretora, em seis anos de mandato, nunca tirara férias e vivia
gabando-se de sua assiduidade ao trabalho, como uma forma permanente de agressão aos
subordinados.
- Mal amada, megera – vociferavam os mais irritados.
As escadas tinham marcas de suas passagens, ainda que silentes, os corredores
sabiam suas andanças inquisitórias. Pior só nos sermões, ou sessões de admoestações – ou
seriam reuniões?
As pessoas caladas, fingindo um mutismo cúmplice. Ás vezes alguns
riam de suas (dela, da Senhora Diretora) piadas moralizantes. Dizia-se católica fervorosa
mas, na prática, devia ser uma luterana de província, com a autoridade no sangue, exercida
na família desde as sombras de um passado autoritário, de colonizadores moralistas, com as
entranhas nas terras nórdicas e glaciais, diziam outros.
As reuniões eram hieráticas, dramáticas. A senhora Diretora pregava a devoção ao
trabalho para ouvidos surdos, olhos assustados. O que é que ela queria deles, afinal? Por
acaso, não estavam ali, há tantos anos, bem antes dela chegar?! Alguns à espera da
aposentadoria, outros esperando chefias protetoras para melhorar os seus parcos salários e
que nunca chegavam e, pela amostra, talvez não viessem nunca. Ela queria o quê, que se
esforçassem num trabalho cuja paga era ínfima, aviltante, injusta, insuficiente? Só mesmo a
estabilidade no emprego e as ameaças de punição mobilizava-os, enquanto alguns até já
freqüentavam, paralelamente, e no mesmo horário, outras ocupações, alhures. Ela – a
Senhora Diretora – ia de sala em sala perguntando pelos funcionários, parecia conferir as
presenças já que as faltas ficavam mesmo por conta da mecânica do cartão de ponto.
Depois inventou o livro de presença nas reuniões em que ela ficava em posição estratégica
observando a entrada e a saída. E, na mesma linha de inspeção, chegava ao extremo de
postar-se na portaria, em visitas de surpresa, na horas de maior movimento.
- Justo no dia que eu cheguei atrasado por causa do trânsito – queixou-se o homem
do almoxarifado. O primeiro atraso nesses últimos seis meses!
Depois veio a idéia do relatório mensal que logo virou semanal e, por último, diário.
Melhor seria nos dois expedientes, assinalando-se o tempo gasto no almoço. Duas horas
para almoçar?! Por que não incentivar o treinamento em serviço, ocupar o tempo ocioso
com alguma atividade produtiva? Talvez criando-se oficinas de estudos, grupos de
discussão, quem sabe palestras de especialistas convidados? Melhor seria criar tarefas,
requerer leituras, pequenos seminários de educação continuada para a atualização de
conhecimentos. Se trabalhavam numa biblioteca, numa grande e importante biblioteca, por
que não aproveitar a oportunidade para ampliar o auto-aprendizado, para dar respostas à
própria ignorância? Havia tanto por aprender!! E havia milhares de livros à disposição.
Assim como os pizzaiolos devem odiar pizzas, assim também os funcionários da
biblioteca científica pareciam odiar os livros, afirmava a Diretora para os seus
colaboradores mais íntimos, quando não fazia-o para todos, ainda que de forma indireta,
nos seus discursos moralizantes (mais bem desmoralizantes, afirmavam os mais críticos nas
cada vez mais curtas paradas para o café ou chá).
- Tem gente que vai fazer compras na hora do expediente...
Em certa visita às gavetas de seus assistentes encontrou revistas de palavras
cruzadas, de histórias em quadrinhos, de fofocas de artistas de TV e até pornografia, além
de fotos de família, extratos bancários, livros escolares e até rádio de pilha... Incrível o que
as pessoas fazem na hora em que deviam estar trabalhando, afirmou para a platéia insegura,
com as barbas de molho, numa de suas palestras recentes no auditório.
- Eu fiz os cálculos – disse noutra oportunidade, a Senhora Diretora – estão usando
5 metros per capita de papel higiênico enquanto o público leitor não gasta em média nem 5
cm!
- Se limpian el culo con la mano cuando falta papel... – pensou o porteiro da
Biblioteca, sabedor das contenções de gastos. O mejor, se limpian con las páginas de los
libros a su alcance – completou o raciocínio.
Nos banheiros públicos, freqüentados também por funcionários, a grafitagem não se
limitava aos desenhos de pênis, às palavras de ordem, às propostas de encontros e aos
versos pícaros, havia sempre pragas e ofensas à honra da Senhora Diretora, tratada com
uma bruxa assim como sua respectiva mãe e todos os seus ascendentes. Palavrões de todo
calado e tonelagem.
Do patriotismo exacerbado, a Senhora Diretora passou a apelar para o fervor
religioso na sua catequese de consciências entre empregados e cientistas que usavam a
biblioteca. Não foi sem susto que o motorista Daniel, que era evangélico, viu os pintores
grafando a célebre frase “Deus Morreu”, assinada por Nietzsche, à entrada da grande salão
de leitura. Ninguém entendeu aquela reviravolta na cabeça da sempre magra senhora,
justamente no momento em que se anunciava sua eleição para o Conselho Nacional de
Cultura por causa de sua feliz iniciativa, louvada pela imprensa, da publicação de uma série
de livros dedicada às origens da ciência na Venezuela. Mas logo o mistério foi resolvido. À
saída do majestático salão apareceu a inscrição “Nietzsche Morreu, assinado: Deus”. Nem
era uma idéia original, era um vulgar plágio do que já existia numa universidade norteamericana. Fosse de onde fosse a idéia, chegou aos jornais e à televisão, causando registros
curiosos e até alguma polêmica.
Seguiu
na
mesma
linha
patriótico-religiosa
mandando
publicar
milhares
de
marcadores de livros com frases de escritores e próceres nacionais, apelando para os nobres
valores da nacionalidade, incentivando a leitura dos clássicos e a fé no cristianismo.
Sentenças judiciosas, exaltando a família como pilar da sociedade sadia e a amizade como
alicerce das boas relações humanas, sem faltar algumas que mais pareciam ameaças.
Nos últimos tempos seu pendor para o protecionismo chegara ao clímax com o
episódio da secretária Ana Mercedes que – todo mundo já sabia mas a Senhora Diretora
custara a perceber – andava de amores com o jovem José Juan, uma espécie de office-boy
da Diretoria e, nas horas vagas – se alguma existisse ainda –
recolocador de livros nas
estantes. Um verdadeiro escândalo na percepção da Senhora Diretora
pois o jovem
ajudante tinha apenas 17 anos e a secretária já caminhava para os 50. Não obstante, no
apogeu das suas carnes, queimadas ao sol, em sua voluminosidade generosa, nas ardentes
praias do Caribe. Todo mundo sabia de suas preferências sexuais mais íntimas de há muito
tempo, de outras administrações, pois eram conhecidas suas relações mais próximas com
ex-diretores aos quais prestara os seus serviços, nos bons tempos em que a direção da
biblioteca era privilégio exclusivo de cientistas e pesquisadores famosos, antes de
converter-se em reduto de bibliotecárias graduadas. Nos bons tempos também no sentido
em que ainda era jovem a fogosa secretária. A reação da Senhora Diretora não tardou: o
garotão foi despachado para os porões da biblioteca onde passou a exercer as tarefas de
empacotador da seção de intercâmbio, com a expressa proibição de ir ao terceiro andar em
que estava instalada a diretoria. Nada impedia que a secretária descesse as escadas em
busca do namorado. A exuberante secretária, foi então exilada na seção de obras raras,
numa obscura sala no outro extremo do prédio, bem longe das vistas da veneranda diretora
que, no entanto, continuou a receber notícias daquele relacionamento pedófilo e de mau
exemplo.
Não era incomum sua intromissão na vida das colaboradoras mais próximas, já que
ela opinava sobre moda, decoração, educação dos filhos e vida familiar em geral e até
mesmo sobre investimentos imobiliários posto que havia censurado a chefa do setor de
referência por ter adquirido um apartamento no emergente bairro de El Cafetal,
considerando-o um refugio de chivos, ou de bodes, por estar encarapitado no cume da
montanha.
Ninguém sabia – além dos boatos maledicentes e das histórias inventadas pelo seus
detratores, que se contavam às dúzias – de sua vida particular. Vivia sozinha, era solteira,
não recebia visitas de parentes nem amigos íntimos, não fazia telefonemas para pessoas
fora de seu círculo profissional. Nem freqüentava a casa de pessoas conhecidas, nem era
convidada... Em certa ocasião, tiveram que montar um esquema para que ela não fosse
convidada para uma piñata, um tipo de festa infantil e de aniversário do filho de uma das
funcionárias, em que os colegas de trabalho ajudaram na organização. Temiam que a
presença da Senhora Diretora fosse constrangedora e motivo de ausência de muita gente...
De qualquer forma, sua vida privada era um mistério, um segredo guardado a sete chaves.
Aconteceu, então, o terrível terremoto de Caracas do fim da década de 60.
Devastador. Em plena semana, na hora do almoço, quando a biblioteca estava cheia de
leitores e com quase todos os funcionários trabalhando. Chegavam notícias horrendas de
edifícios tombados, de novos tremores, de vítimas fatais, de corpos mutilados ingressando
nos hospitais, ruídos de sirenas dos bombeiros, uma nuvem de pó saindo de um dos
costados da própria biblioteca, depois de um barulho ensurdecedor. Uma das extremidades
do velho prédio da biblioteca acabara de desabar, havia pânico, o público correndo para a
rua que já estava repleta de gente assustada e temerosa. Espanto e horror entre os
refugiados e feridos buscando socorro por toda parte e a tragédia estava também ali mesmo
no espaço da biblioteca.
A ala do desabamento no edifício colonial ficava mais ao fundo; felizmente, não
incluía os salões de leitura nem os grandes depósitos de livros. Havia por ali algumas salas
de guarda de materiais diversos e os banheiros públicos. Sorte, pensavam os funcionários,
tentando reconhecer os colegas em meio à multidão de desvalidos. Lá no alto estava a sala
da Diretoria, intacta. Os bombeiros que interditaram o edifício começaram a evacuar o
local, mas já não havia quase ninguém lá dentro, depois do tumulto.
Falava-se de milhares de vítimas em imensas regiões de destroços e ruínas. A
cidade congestionada, o transporte público interrompido e restrições para a movimentação
de veículos particulares, visando facilitar as operações de resgate e de apoio aos vitimados.
Muita gente caminhando, tentando localizar os parentes e amigos, um colapso quase total
nas vias telefônicas.
A noite foi longa e repleta de angústias e especulações de toda ordem, além dos
sobressaltos de novos tremores de terra. Começaram de imediato as escavações nos pontos
mais críticos em busca de sobreviventes. A ação devastadora acompanhara uma linha reta
pelo vale de Caracas, a partir de um epicentro próximo às franjas de El Ávila, a imponente
cadeia de montanhas que separa a capital venezuelana do litoral caribenho. Desde as
guerras de Independência que não se via um terremoto daquelas proporções.
Só três dias depois do cismo é que começaram as buscas por sobreviventes nos
escombros da biblioteca, que continuava fechada para o público. Logo nas primeiras
investidas encontraram dois corpos sobrepostos. A imprensa e a televisão acompanharam o
árduo trabalho dos bombeiros.
Logo de saída o fato pareceu muito estranho aos jornalistas e aos profissionais da
defesa civil: eram corpos de um casal quando as informações davam conta de tratar-se dos
sanitários femininos pois os masculinos estavam intactos, no outro extremo do corredor
semi-destruído. A sujeira impedia o reconhecimento mas os camerógrafos e fotógrafos
documentaram, com a avidez ou morbidez da ocasião, o inusitado achado.
Em seguida, depois de remover restos de paredes e de portas, descobriu-se que a
mulher estava vestida e o homem quase nu, pelo menos da cintura para baixo. Ele estava
caído sobre o sanitário destruído, com o rosto sujo e irreconhecível mas dava para ver que
se tratava de um jovem, bem jovem. Branco, de boa estatura, físico bem formado. A mulher
estava de bruço, caída com o rosto entre as pernas desnudas do jovem. O fato insólito
mereceu fotos tomadas de todos os ângulos. Era o tipo de matéria jornalística de efeito
sensacionalista que todo repórter de rua adoraria encontrar em suas atividades profissionais.
Cheirava a escândalo, com apelos à mórbida especulação de um público católico e
moralista. A imprensa, antes de saber os nomes das vítimas, começou a levantar hipóteses e
a buscar explicações. “Castigo” parecia ser a palavra mais recorrente diante do episódio tão
grotesco que os noticiários da TV, sem fazer referência direta à cena, deixava-a explícita
pelos registros das câmeras. O que mais se comentava era o fato de ter acontecido numa
biblioteca científica!
Quem eram e que estavam fazendo aquelas criaturas, naquela posição, naquele
momento fatídico?!
Não
tardou
muito
para
que
os
personagens
do
episódio
insólito
fossem
identificados. O corpo do jovem era do ex-office-boy José Juan que a Senhora Diretora
havia deportado para os porões do edifício, para apartá-lo da amante gorducha. Os
banheiros femininos estavam a escassos metros de sua nova área de serviço.
Pelo vestido e pelo volume do corpo, ainda que de costa, deu para ver que era a
Senhora Diretora o segundo cadáver.
Seguiram-se dias de comentários maledicentes. Que estava fazendo a hirsuta e
circunspecta senhora entre as pernas do imberbe mancebo?!
Quem não comentava o episódio era a amante do falecido, a sensual Ana Mercedes.
Estava mais assustada do que pesarosa. Evitava todo e qualquer contato com os colegas,
corroída por uma culpa velada e secreta que a afligia o tempo todo. Quando a biblioteca
reabriu suas portas ao público, com a área do sinistro isolada para uma futura reparação, ela
entrou com um pedido de licença médica – aquele expediente que a ex-Diretora execrava –
para não enfrentar a realidade, alegando abalo emocional.
Ana Mercedes era devota de Nossa Senhora. Dirigiu-se para a igreja mais próxima
em que havia uma imagem de La Virgen del Coromoto e a fitou com desolada e assustada
tristeza. Na confusão de suas idéias e sensações não sabia se chorava a morte do fogoso
amante ou se sofria a dor de seu íntimo silêncio sobre os minutos que antecederam aquela
tragédia pública.
Fez uma revisão nervosa dos momentos anteriores ao terremoto, desde o instante em
que José Juan passou pelo corredor seguido, à distância, por uma mulher. Ela já andava
desconfiada das atividades sexuais do seu jovem preferido, que a enganava de maneira
descarada. Flertava com as moças da limpeza, vivia insinuando-se para as leitoras que
desciam ao porão em busca de informações e havia sempre recados telefônicos de mulheres
desconhecidas tentando localizá-lo. Só que agora, ou naquele momento, ela estava ao
encalço dele, numa situação concreta. José Juan entrara no banheiro feminino, a mulher
seguiu-o e refugiaram-se no apertado sanitário, sem fechar a porta por dentro, se é que
havia ali alguma fechadura funcionando. Ana Mercedes abriu a porta violentamente para
flagrar a traição do namorado. A jovem que estava com ele ficou muito assustada e saiu
correndo. José Juan estava diante dela, com as calças arriadas, ainda excitado. Ouviu-se
então o ruído de alguém entrando no banheiro. Foram segundos de vacilação: ela não sabia
se se trancava com o namorado no cubículo mas nem teve tempo para tomar uma decisão
pois logo deparou-se com a figura da Senhora Diretora. Ficou lívida e pasma e a única
reação foi a de sair apressada, fugindo ao confronto com a sua detratora.
A velha Senhora logo deparou com a presença do jovem funcionário ainda tentando
levantar as calças mas José Juan ficou petrificado pelo olhar justiceiro e perturbador da
autoridade diante dele. Mas ainda assim esboçou aquele sorriso cretino que era sua
característica permanente mesmo nas situações em que estava em desvantagem.
Ana Mercedes recapitulava aquele episódio embaraçoso diante da Virgem, em
silêncio. Quantos segundos seguiram-se à sua abrupta saída do banheiro feminino da
biblioteca até o seu total desmoronamento? Ela só sentiu a força do tremor que levou
àquela destruição, a meio caminho para a sua sala de trabalho, a uns 200 metros de
distância. Suas pernas tremiam tanto, sua cabeça estava tão confusa que ela não sabia se o
trajeto fora vencido com rapidez ou não. Lembrava que desejara voltar ao local, enfrentar a
situação, dizer que não era ela que estava ali com ele no ato libidinoso, que a Senhora
Diretora certamente cruzara com a jovem fugitiva no corredor mas não conseguira
organizar seus pensamentos nem agir conforme os seus desejos. Estava em jogo o seu
emprego, sua reputação. Diante da Virgem explicava-se que seria capaz de tudo para
conquistar um homem mas que jamais iria com ele aos sanitários de seu local de trabalho.
No fundo, apesar de apresentar uma certa obstinação sensual, era uma romântica idiota,
crente de estar diante de um amor verdadeiro e definitivo sempre que se relacionava com
alguém.
Por quê a Senhora Diretora condenou-a ao porão da biblioteca, tornando mais
evidente ainda uma relação que era do conhecimento de todos e que era uma questão alheia
à sua autoridade, que dizia respeito apenas aos seus mais íntimos sentimentos – aliás, tão
frágeis e tão inseguros. As traições do amante só agudizavam o ridículo público de seu
ostracismo!
Por que punir um servidor jovem, cheio de vida que, não obstante suas fantasias
sexuais, estava a seu serviço, na Diretoria, sob sua proteção, que atendia de forma diligente
suas obrigações e, nos seus limites, era competente?
Por que? Estas eram as perguntas que fazia à Virgem de sua devoção, na penumbra
culposa e estremecedora da Catedral, confessando-se com a certeza de poder conservar os
seus segredos e os seus mistérios.
Conto de Antonio Miranda
Ilustração de Zenilton de Jesus Gayoso Miranda
MEMÓRIAS DE ADOLESCENTE
OU AS CONFISSÕES DO ABSURDO
Quando eu era um rapaz magro e cheio de fantasias e projetos de vida, eu inventei o
verbo aindar. Não sabia exatamente o significado nem para que servia mas intuía o que ele
representava: a rotina de certos hábitos em meio a um caleidoscópio de situações novas, de
novas leituras, novas amizades, descobertas fascinantes de um aprendizado constante. Isso:
constante é o que significava o verbo aindar. E o verbo tinha uma origem simpática,
fraterna, curiosa: a revelação de um amigo venezuelano que era fanático pelo carnaval e
que vinha ao Brasil todos os anos para sair de sua timidez e tornar-se um excêntrico,
extrovertido. Em seu país ele passava o ano inteiro na sua condição de reprimido, numa
outra fantasia que ele não tinha escolhido e que assumia pelas circunstâncias, precisava de
uma válvula de escape, ainda que fosse a intervalos. Mas não era disso que eu queria falar
senão de sua relação com o verbo aindar. Relação que ele nunca percebeu. Aprendia
sempre palavras novas do português do Brasil, que soava suave, doce aos seus ouvidos.
Gostava, adorava a palavra ainda. Que palavra gostosa, deleitável! Ainda! Em espanhol o
aún é duro, rigoroso, de ressonâncias mouras, áridas, como um trabalengua, difícil de
pronunciar, de ouvir. “Ainda”, ao contrário, fluía, escorregava pela garganta, dava curso
musical à sua existência. Diríamos que “ainda” prolongava-se, aindando...
Quando alguém perguntava ao venezuelano o que ele achava do Rio de Janeiro, ele
respondia, com toda a satisfação do universo, de quem estava apaixonado e feliz com a
cidade carioca:
- Ainda!
Se alguém queria saber quanto tempo ele pretendia ficar na nossa terra, ele
respondia:
- Ainda...
E expressava tudo com isso, era o bastante para dizer da permanência e
continuidade daquele estado de graça.
Tempos depois eu inventei a palavra – de novo, um verbo – noitediar. Isso foi lá
pelos idos, vejamos, recapitulemos, lá pelo felicíssimo ano de 1958. Não é brincadeira: o
ano de 1958 foi o ano mais feliz da vida dos brasileiros em geral e dos cariocas em
particular, mas sobre isso já existe um livro no mercado, inteirinho dedicado a provar a
assertiva. Eu era a prova mais cabal daquela felicidade geral. Não que eu fosse de todo feliz
– tinha os meus problemas, minhas carências – mas reconhecia a felicidade geral daquele
tempo. Como eu amava a vida fora de casa, nas praias, nos becos de Copacabana, nas
ruelas da Cinelândia, nos bares de Ipanema e nos cinemas da Praça Saenz Peña, e o meu dia
era mais longo do que a minha resistência física. Eu saía de dia, varava a noite e via o novo
dia nascer do mar, foi então que surgiu a idéia do noitediar que, por causa das horas de
vazio e até de certo tédio e cansaço, gerou o tediar do noitediar.
Eram palavras secretas, para uso próprio, íntimo, que eu nem partilhava com os
outros, valia-me delas em minhas ruminações, nos lotações e nos bondes, nas areias
ardentes das praias e nas horas desencontradas em que dormia e sonhava e, sobretudo,
quando fazia apontamentos, confissões escritas, diários narcisistas.
Havia tantas palavras nos dicionários e eu a inventar palavras!
Inventava também pessoas. Elas nunca eram como eu queria eu elas fossem...
Preferia idealizá-las e sonhá-las de conformidade com os meus desejos, tinha-as numa
dimensão maior, mais livre, mais perfeita, ajustada ao sonho e ao delírio. Devorava-as e
ruminava-as acordado e possuía-as até dormindo, em efervescentes simulações, situações
mais do que verdadeiras porque imaginárias. Amoldavam-se aos meus caprichos e ao tê-las
no plano (dito) real havia sempre um certo desapontamento mas era um situação
contornável porque logo a fantasia metamorfoseava o episódio e alcançava os parâmetros
ideais. Um canibalismo, um fetichismo recôndito mas permanente.
Não sei se as lembranças que conservo no cofre são das imagens que criei ou das
que de verdade (???) vivi: o certo é que elas aindam, são verdadeiras.
Algumas nem existiam! Buscava-as nas pessoas de meus relacionamentos e algo
delas havia em umas e outras, ainda que de forma fracionária, dispersa, atomizada. Era um
jogo hedonista mas não tinha muita consciência disso, até porque o envolvimento físico e
psíquico
acabava
superando
toda
e
qualquer
racionalidade,
materializando-se
ou
horizontalizando-se até sublimar-se na extrema unção dos sentimentos em combustão e, em
seguida, banalizando-se. E daí?
O sensual, o erotismo decorrente, o êxtase da contemplação e das relações
mundanas é um estudo estético antes de ser um estado anímico. A forma é sempre sensual
em sua angulosidade, em seu volume omnisciente, em sua sugestibilidade antecipatória de
desfrute e gozo. O olho é um órgão sexual.
Se é estético também é anímico, ou melhor, só é anímico porque é estético. Nada de
novo. Na pragmaticidade de minhas aventuras juvenis, o prazer começava na contemplação
do objeto, na sua posse pela análise - subliminar, subjacente, intuitiva – da figura diante de
mim, sujeita à conquista e ao relacionamento. Podia acontecer ou não mas já era um prazer
enorme! Às vezes nem dava para acontecer, nem valia a pena. O Geraldo – um burguesão
amigo meu que iniciava a sua função sexual ao mesmo tempo que travava uma batalha
contra a acne – esteve apaixonado perdidamente por uma vizinha que era fulgurante,
exibidíssima em seu trajar provocativo, um “reclame” como ele chamava tais exuberâncias.
Ela era mais velha do que ele mas o garotão era alto, parecia mais velho, mais maduro. Era
insistente, persistente, não era de desistir mesmo, era desses chatos de plantão, obstinado. A
insistência e desfaçatez do acosso era, assim, ostensivo e a mulher sentia-se nua naquela
contemplação descarada, à princípio incômoda, logo envolvente, aguçando sua libido.
Como resistir àquele narigão fálico?! Um polichinelo exuberante, promíscuo, escancarado,
com o sexo na cara: não resistiu. Mas dissipou-se logo o que era doce. O Geraldo perdeu a
tesão diante da mulher nua: ela tinha os quadris quadrados, nada daquelas suaves curvas de
seu sonho febril, nada daqueles abismo insondáveis, resvaladiços... Eram arestas truncadas,
interseções abruptas. Nem masturbando-se conseguiu gozar.
Eu também era fissurado em formas adivinhatórias.
Mário era diferente. Bonitão, com cara de menino rico mas nunca carregava um
tostão no bolso. Numa época em que as mulheres só iam para a cama depois do casamento,
ele cultuava o fracasso nas abordagens sexuais: mulher que dava fácil era um brochante
para ele. A excitação só existia na perspectiva do não. Pior do que isso: todo o fracasso das
“cantadas”, das investidas ao pudor das inocentes namoradas valiam mais a posteriori do
que na hora da conquista. Era um ruminador. Pior ainda, um contador de histórias
verdadeiras e falsas. Tinha mais prazer contando as suas abordagens sexuais do que
praticando-as. O detalhamento das ações erotizava-o mais do que os atos praticados, se é
que realmente aconteciam. Contava tudo para os amigos, reavivava cada cena de suas
relações como se fosse um cineasta da Nouvelle Vague, lambia cada palavra que servisse
para prolongar cada gesto, cada ação. Uma perna, uma coxa, uma curva do seio tinha mais
ângulos do que de fato tinham, viravam peças cubistas em que a ação, o movimento, ficava
cristalizado na tela do pintor. No caso, nas narrativas reiterativas, nas minúcias e firulas
semânticas, nas descrições hiperbólicas. A namorada parecia ter uma dúzia de tetas como
as vacas holandesas, as vaginas eram múltiplas como aquelas gavetas no corpo da mulher
retratada surrealisticamente pelo genial Salvador Dali. Uma mulher só vagina!’
Quanto maior a resistência ao assédio maior a excitação. Chegava a gastar todo o
vocabulário para ir com a mão aos segredos mais íntimos da namorada. Ela segurando a
mão dele cada vez com mais força enquanto ele redobrava a potência para invadir o terreno
proibido. Chegava ao orgasmo! Se ela dava mostras de resistência fingida, se aquiescia
enlevada pela sedução, se ela deixava-se invadir com certa facilidade ainda que apaixonada,
Mário gelava, esmaecia, perdia o interesse. A coitada era abandonada com a sensação
constrangedora de um julgamento rigoroso, como uma acusação excessiva de ser uma
folgazã, uma depravada. Eu era o confidente, o ouvidor. O confessionário era o quarto da
casa dele em que me hospedava quando ia a Copacabana. Era um luxo ter um quarto só
para si, poder trazer alguma namorada até ali nas ausências do pais! Mas essa devia ser uma
perspectiva impossível para ele porque, se alguma namorada aceitasse ir até lá,
neutralizaria, ipso facto, sua excitação... Que viesse em circunstâncias dissimuladas,
pensando que a família estava em casa, coisas assim... Eu ouvia como quem participava do
assédio, como se também desfrutasse das situações mais do que ele porque, quando ele
desistia do assédio quando a presa acedia aos seus apelos, quem finalizava o ato era eu,
ainda que fosse na imaginação. Pedia mais detalhes e gozava na hora enquanto ele
continuava masturbando-se pelo resto da noite. Eu dormia em seguida e ele, sem ter a quem
ouvir o eco de suas palavras, não sei a que expedientes estimuladores usava para consumar
a ejaculação.
Mas não era só sexo gravitando em nosso imaginário. Havia praia – agente
erotizador por excelência! -, havia festinhas – conseqüentemente... – e havia uma certa
intelectualidade
que
nos
unia
naquela
juventude.
Havia
cineclubes,
havia
livros,
espetáculos teatrais – experimentais, é óbvio - e longos debates e conversas tentando
descobrir o sexo dos anjos. Ou seja, tudo acabava em sexo, ainda que solitário ou solidário
nas masturbações coletivas. A regra era não haver homossexualidade alguma naquelas
exibições públicas de virilismo mas é justo reconhecer que havia muita sensualidade
naquela prática coletiva, naquele ritmo contagiante, ao uníssono. Acho que isso merece
uma explicação. Ninguém estava pensando em trocar a fantasia pela realidade e
transformar-se ou metamorfosear-se na amada do outro. A regra não permitia essa
concessão, nem havia pretendentes, ela romperia o equilíbrio da ação coletiva que ficava
sempre nos limites do individualismo. Complicado, mas era assim.
De qualquer forma, vale a pena traçar um paralelo. Comparar com outra situação,
aquela em que um de nós decidia urinar enquanto todos os demais, sem saber porque,
também mijavam incontinentes. Por que sentíamos vontade de urinar quando outro estava
urinando?!
Analogamente, sentíamos mais prazer masturbando-nos quanto também os
outros o faziam, embalados pelo mesmo clima, pelo mesmo ritmo... Melhor do que revista
pornográfica até porque, àquela época, era matéria escassa e nem sempre tão explícita...
Um parêntese: o Mário só gostava de revistas pornográficas ilustradas. Nada de
fotos: eram óbvias demais. Geraldo preferia o óbvio: quanto mais realistas as fotos maior o
estímulo. Para mim servia qualquer uma mas devo confessar que preferia os exemplares in
natura, sem intermediações literárias e iconográficas. Como já confessei antes, o ideal era a
imaginação sobre a matéria mas, ao contrário de meus amigos, havia conquistado a
capacidade ou habilidade de transcender o objeto mesmo fazendo uso do objeto. Um metaobjeto do prazer, sei lá, uma superação do carnal sem renunciar à própria carne.
Não havia muito espaço para a filosofia mas operava assim, num ardil de estímulos,
dissimulos e afirmações constantes, próprio da natureza dos jovens. Vencendo a
insegurança, a carência, a relutância do medo diante do novo, do desconhecido, a própria
inexperiência. Ainda sem o cinismo ou o pragmatismo da ação continuada, da experiência
acumulada,
da
seriação reveladora de regularidades e exceções. Sensações muito
complicadas as minhas naqueles tempos de buços e vergonhas sigilosas.
Não gostava de palavrões. O Geraldo, ao contrário, usava-os para tudo, para
externar seu machismo, com certo voluntarismo grosseiro, com uma certa violência verbal
para mostrar força, independência, maturidade.
- É isso, porra, vocês entendem, porra, não preciso me justificar, porra.
Porra era uma vírgula. Entulhava o discurso com porras e porras. Acho que eram
pausas para reflexão, enquanto buscava outras palavras para revelar seus pensamentos
confusos e imaturos. Eram para ser adivinhados ou decifrados a partir de um código verbal
incompleto, estereotipado, fragmentado entre vírgulas e porras. Mas era um grande sujeito,
não apenas na altura avantajada. Grande até no nariz, que chegava a toda parte antes dele.
Só o falo, quando enrijecido, ia mais adiante. Só mesmo o pênis dele vencia a competição
com o nariz mas não consta que andasse pelado e excitado pelas ruas de Copacabana. Mas
não se gabava de sua superioridade física nem jamais cruelizava o Mário por sua brevidade
instrumental, nem a mim, que ficava a meio termo entre as extremidades. Certo que
medíamos os nossos símbolos a todo tempo na expectativa de que crescessem. Dizem que a
masturbação dilata os tecidos, disso estávamos absolutamente convencidos até porque isso
justificava e absolvia os nossos pecados. Só havia régua de 20 cm ao nosso alcance mas,
com exceção do Geraldo que exigia uns centímetros a mais, era o suficiente para a nossa
estatística de desenvolvimento. Mas o Mário tinha uma ótima explicação para o caso: na
hora da verdade, na intimidade de uma vagina para valer, qualquer pênis cresce mais de 5
centímetros além do normal. Era uma teoria compensatória, prête-a-porter, sob encomenda
para massagear nosso ego.
Gostávamos muito dos “inferninhos” da Zona Sul mas só éramos admitidos nas
matinês, salvo o Geraldo que parecia bem mais velho mas ele preferia ficar conosco. Difícil
era conseguir mulher lá dentro porque elas iam com os namorados ou então acompanhadas
dos irmãos mais velhos. Todas elas exibiam irmãos, mesmo quando era filhas únicas.
Imagino que as desafortunadas que não tinham irmãos para acompanhá-las às festas só
podiam namorar na sala de visitas de suas casas.
Tocava Ray Conniff e não havia em quem encostar o rosto, o tal de face-to-face.
Muito romântico. Depois vinha o chá-chá-chá e acabava no rock´n´roll que era o máximo,
as pernas tremelicando como num acesso de epilepsia, os olhos vidrando. Foi então que eu
conheci a Dagmar, que veio de Vigário Geral com a turma dela. Loura, sob medida para a
minha estatura mediana, uma cara de quem era decidida e voluntariosa. Ela é que escolhia
os parceiros para dançar e quando voltava a rodada de boleros e sambas-canção era ela que
dirigia o passo mesmo que o acompanhante parecesse fazê-lo. O corpo dela é que
determinava o ritmo ainda que estivesse sendo conduzida pelo partner.
Confesso que eu fiquei um pouco medroso de continuar dançando com ela, temendo
a reação da turma que a secundava mas logo percebi que a jovem era líder, não parecia dar
satisfação de seus atos. Parecia mover-se com uma liberdade e uma autoridade não tão
comum naqueles tempos. Das alucinações do Little Richard passamos para as baladas de
Pat Boone e logo estávamos pegados no cheak-to-cheak de não-sei-mais-de-quem-era.
Sentia o hálito achicletado dela e ela um pouco do suor que dava brilho ao meu rosto
naquela tarde tórrida de março de 1959. Dali fomos para a sacada do prédio onde já havia
outros casais beijando-se. Em verdade, fui conduzido até lá e imprensado contra uma
pilastra e beijado com fúria. Meus lábios eram sugados por uma sanguessuga com dentes,
que mordeu-me até provocar dor e certa apreensão. Para meu espanto, ela colou o corpo ao
meu e levou-me ao desassossego total quando começou a alisar as minhas nádegas, a meter
a mão pelas minhas calças adentro até uma região de vergonhas e constrangimentos. Nunca
imaginei que isso pudesse acontecer comigo mas não reagi, possuído pela volúpia daquela
guerreira de motocicletas. Ainda passou pela minha cabeça a suspeita de estar sendo
possuído por um travesti mas logo a minha mão andou por zonas que não deixavam
dúvidas de estar realmente com uma garota da pesada. Legal pacas, não é assim que se
dizia naqueles tempos de juventude transviada? Mas eu tampouco era dado a gírias e
modismos.
- Vem com a gente a uma festinha na casa de uma moçada amiga nossa? A onda vai
ser legal. Tem que ajudar a comprar umas cocas e uma garrafa de rum para o cuba-libre.
- Estou com o Geraldo e o Mário.
- Então casa de uma vez com eles...
Dagmar voltou para o salão e eu voltei aos poucos, dissimuladamente, tentando
recompor-me. Geraldo e Mário olharam-me com certa admiração e inveja, encostados pelas
paredes com uns copos plásticos, tomando guaraná. Mas os olhos do Geraldo estavam
arregalados como se tivesse tomado algo mais, o que era possível nos corredores mais
discretos do inferninho. Notaram a minha desfaçatez mas não fizeram perguntas. Logo
percebi que à vampira havia desaparecido com a sua turma. No quarto do Mário, quebrando
a regra, acabei contando o ocorrido, para o deleite dele cujo morbo ficava exacerbado com
tais confissões. Omiti o detalhe da mão dela nas minhas intimidades nem tanto por pudor
ou vergonha mas temendo interpretações desfavoráveis. Confessei que senti sangue na
minha boca depois de ter sido literalmente chupado, que os lábios ficaram doendo e que
havia sentido uma sensação estranha de humilhação e de violação. Geraldo ficou tão
excitado com o relato que foi para um canto masturbar-se, ainda sob os efeitos das bebidas,
logo seguido pelo Mário. Eu fui para casa sem saber se havia gostado ou não daquela
inusitada experiência. Acredito que sim porque logo a fantasia instalou-se na minha
insônia, Dagmar ganhou novos contornos e faces diferentes e eu acabei dormindo em
estado de assombro e felicidade.
Conto de Antonio Miranda
Ilustração de Zenilton de Jesus Gayoso Miranda
O POETA NO ESPELHO
O poeta é, antes de tudo, um fingidor pois finge que não sente a dor que deveras
sente... Quem foi que escreveu versos tão despistadores?! E que músico fala do sonho em
que se sonha?
O poeta – acredita piamente o nosso personagem – não tem porque revelar os seus
sentimentos, ao contrário, deve é estimular os sentimentos alheios.
Melhor é virar personagem de suas criações e viver as sensações que o poeta
projetou para os demais, como se fosse cobaia da própria criação. Aliás, os poetas do
romantismo viveram e sofreram na carne os entes desesperados que imaginavam, chegavam
até a morrer tuberculosos em decorrência de suas encarnações fantasiosas.
É injusto dizer que o poeta é um ser alienado do mundo mesmo quando está
engajado no processo revolucionário de transformação da sociedade. Nosso poeta sempre
esteve muito consciente de sua ventriloqüia, de sua pantomima no palco da vida, vivendo
duas vidas paralelas, sem maiores constrangimentos. Numa veste-se com roupas diáfanas e
anda nu pelos versos, na outra usa terno e gravata nos despachos no Palácio do Buriti, ou
mais apropriadamente, no da Aclamação. Estudou o método brechtiano de fazer teatro em
que o ator-autor guarda um prudente distanciamento de seu personagem, guarda uma
perspectiva crítica da realidade. Ele representa.
Que horror, ser brechtiano e burocrático ao mesmo tempo! Ué, o Carlos Drummond
de Andrade não foi chefe de gabinete de ministro? Parece que o Rimbaud, depois de levar
Verlaine ao desespero, foi ser traficante de escravas ou de diamantes no norte da África.
O nosso personagem tem uma teoria sobre esse dualismo, sobre a questão da dupla
personalidade do poeta, ele acredita na dialética da própria vida, afirma que a vida só se dá
pela fricção dos contrários, no equilíbrio das contradições. “No fundo da alma de todo
homem piedoso existe um criminoso em potencial, todo homem correto e leal deve ter uma
alma de canalha”.
Não sei se ele realmente acredita no que apregoa, se é mais um de seus disfarces, de
seus despistamentos. Ora – desabafa – o poeta não tem porque acreditar no que escreve,
não tem porque defender suas teses, nem pode levar muito a sério os manifestos que assina
publicamente. O poeta só existe em sua poesia.
Então, vejamos o que escreveu.
MEMÓRIA DO SER
Das vastidões de mares esquecidos
sobrados, ancoradouros
juramentos preteridos –
o homem à beira do desassossego
renúncias, rancores, talvez amores
esmaecidos.
A vida passada a limpo.
Clamores, vozes soterradas no abismo
releituras, livros abandonados
baús profanados, temores.
O homem diante de si.
Haja palavras para averbar memórias
pródigas, peremptórias
redentoras.
Diários delirantes, saudades
dilacerantes
sentimentos errantes.
Haja fé, discernimento.
Haja paz.
Colinas ondulantes, horizontes.
Vê-se que o poeta não renunciou à rima, ao ritmo, embora fracionando o discurso,
fazendo intercalações evocativas, justapondo imagens e pensamentos. No fundo está
pintando a cena, transferindo uma visão de mundo e de existência que deve ser de quem lê
enquanto é de quem verseja. Algumas palavras, principalmente na concreção simbólica dos
substantivos, funcionam como tijolos numa arquitetura de idéias, que ficam suspensas no
ar, no espaço íntimo da leitura, no diálogo silente com o outro, com o público, com ele
mesmo no extremo de sua encenação.
No fundo, o poeta dialoga com os eus em que se multiplica, se estende e se propaga.
”Mas há quem leia para o espelho” – o do monólogo interior, introspectivo, o fechado-emsi-mesmo, mas parece que esse não é poeta.
O poeta também mente, até quando é sincero.
ME ESQUECI
Me esqueci de ser feliz
durante estes anos de tarefas imp ossíveis:
ser amigo, ser pai, ser cidadão
diálogos obtusos e jargões sem sentido
mas feliz, sem sabê-lo, na banalidade
das convenções comezinhas
no escuro das salas de projeção
em que revia o meu próprio ridículo
no ridículo alheio
feliz
talvez
entre nãos sutis e sins reticentes
relendo juras de amor esquecidas
em correspondências oxidadas:
feliz até no amor preterido
e nas conquistas que resultaram em fracasso
tanto faz
feliz, afinal
entre pessoas carcomidas e devastadas
soterradas no fundo da memória
fugaz / tenaz
teliz talvez
por que não?
Ainda bem que o poeta não tem que ser necessariamente coerente, nem óbvio, nem
convincente no seu raciocínio tortuoso, de contraponto, pois ele pode vagar pelos
simbolismos,
pelas
antíteses,
pelas
metáforas
e dissonâncias, refugiar-se em certo
hermetismo e nem precisa disfarçar o seu hedonismo e até a perversão de nossos valores.
O poeta assume a sua precariedade filosófica e a sua inconsistência ideológica, sem
nenhum constrangimento. É do poeta esconder-se nos abismos em que ele mesmo não
consegue penetrar. Pode até ser coloquial para transcender, ser melífluo e etéreo nas
afirmações mais positivistas. É de sua natureza a hibridez, as articulações impossíveis e a
ponte sobre o vazio absoluto.
O poeta escreve versos eternos sobre a areia da praia como aquele catequisador.
Constrói densas estruturas com águas correntes. Proclama a sua frágil ossatura na medida
em que busca a imortalidade, esqueleto de nuvens, descrença e fé sem contrição, negações
de negações.
Pode até mesmo ser um tanto discursivo como no poema que escreveu, no confronto
dos contrários irreconciliáveis – feliz no amor preterido / no fracasso das conquistas
felizes.
Depois de criar o croniconto pode, muito bem, fundar o conto-ensaio, o
memorialismo da invenção de si mesmo, sendo outros, assumindo vidas alheias e
sentimentos que não eram seus, crenças e convicções com as quais nunca comungou:
DEUS
Deus não pode ser
esse monstro
concebido à semelhança e imagem
do homem:
vingativo, furioso, punitivo.
Deus não pode ser
esse todo-poderoso, onipotente,
autoritário –
super-ego dos mandatários
avalista de confabulações
palacianas, papais.
Um deus mesquinho,
rancoroso, guardando por milênios
o azedume de pecados originais.
Um deus-estátua, vociferando
ameaças, brandindo espadas
sentenciosas,
ameaçando.
Avaliado em 10, em 100, em 1000
fiel apenas com seus seguidores
bajuladores, fiéis
depositários de suas riquezas
mandatários, sicários..
Um deus de guerras, das provações,
dos dilúvios, privações e cataclismos justiceiros,
um super-homem
talhado nos moldes humanos,
com cabeça, tronco, membros
e sem coração.
Deus guardião
das moralidades comezinhas,
exigindo jejuns, abstenções,
humilhações.
Deus com família, descendentes,
herdades, hierarquias.
Menos humano
que seus criadores,
credores.
Um deus fálico,
machista,
com todos os defeitos
gregos e troianos.
Deus a serviço do poder,
dos fanáticos,
deus assassino, exterminador.
Deus nos livre desse deus!
Mais explícito, impossível e, no entanto, sem abrir o jogo, sem declarar seu
ateísmo ou religiosidade, que não vale a pena ser revelada, que não interessa. Quem
está interessado na crença no poeta, quem quer saber de sua ideologia?!
O poema não é dele, é nosso. É um jogo de argumentos, de frases, construindo um
significado, assumindo sua dúvida que é todos, sua convicção que é de ninguém.
Palavra-puxa-palavra, poema puxa poema, tem derivações e confissões, tem aquela
terrível e incontrolável necessidade de afirmação, de definição, de contestação, de
contradição, de...
DEPOIS DA MORTE
- o nada, certamente
talvez solidão e liberdade.
Quem sabe prados e montanhas,
quem sabe nuvens, ociosidade.
O medo é de acordar,
de recordar.
ou seria um estado total de amnésia?
Sem Deus,
vagando pelo espaço vazio.
Ou mais bem, preso à terra,
debatendo-se com os vermes,
pensando por inteiro,
derradeiro.
Sem asas, voando.
Rindo eternamente, sem graça,
sem testemunho.
Sem pernas de andar,
sem pênis, mudo
diante de ex-mulheres, ex-maridos
em concílio familiar
sem argumentos.
Talvez muito frio,
sem dúvida inodoro
mas nunca igualitário
porque mortos e vivos
guardam suas hierarquias.
Ou mesmo inconsciente
de possíveis transcendências ,
salvações,
assistindo o desintegrar-se
das células, sem qualquer
reação ou desassossego.
Até a morte parece finita,
sujeita à decomposição
inexorável
e à desmemória.
Depois da morte, o quê? E depois do poema, indaga o poeta. Finita ou infinita, com
Deus ou sem Deus, in dubio pro reo.. O poeta tenta definir-se mas só faz perguntas,
buscando as respostas que apenas balbucia, falseia, intui ou instrui. A única convicção que
tem – ou nem mesmo esta – é a de que o poema não está no poema, está mais adiante, mais
além, mais embaixo. Seria um exercício de racionalismo, discurso esquizofrênico, de
fanático? Aí ele sai pela tangente e afirma que só acredita na poesia, em mais nada.
Conseqüentemente, os poetas são demoníacos, adoradores de mitos que criaram no lugar
das pessoas, da natureza, de Deus.
Melhor seria descontruir e reconstruir tudo, num exercício de infinitas combinações:
MEMÓRIA DE DEUS
O homem à beira do desassossego,
talvez amores esmaecidos,
a vida passada a limpo
revendo o próprio ridículo
feliz até no amor preterido
talvez
vociferando ameaças,
guardião das moralidades comezinhas.
O homem diante de si.
Colinas ondulantes, horizontes.
Renúncias, rancores, talvez amores
Esmaecidos.
Haja fé, discernimento.
Haja paz.
O poeta lúdico, jogando um lance de dados, fazendo da página em branco um
púlpito blasfemo ou piedoso – tanto faz -, confessando-se, demolindo, reconstruindo,
exorcizando-se.