CAIU DE BOCA - Antonio Miranda
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CAIU DE BOCA - Antonio Miranda
Conto de Antonio Miranda Ilustração de Zenilton de Jesus Gayoso Miranda CAIU DE BOCA A Senhora Diretora circulava pelos corredores, atravessava portas e subia escadas. Podia olhar o pátio pelas janelas entreabertas, ouvir as conversas que vinham do fundo dos salões. Chegava sempre sem avisar, quando os funcionários estavam contando piadas, comentando programas de televisão, falando ao telefone, lendo revistas femininas, recebendo visitas de amigos ou de vendedores de bijuterias. Olhava sempre com olhos de reprovação e saia calada, rancorosa. Ela preferia falar por insinuações: alguém chega sempre atrasado, sabe-se que outros saem antes da hora, há indícios de usos inadequados de material de escritório. Outros vão aos sanitários com excessiva freqüência e não consta que andem doentes, a produtividade é baixa, nem sempre valem o salário que recebem. Empregado público é assim mesmo. Magérrima. Mais velha do que a própria idade, uns vestidos lisos, opacos, discretos, mesmo quando novos já parecem usados. Para ela, o bom exemplo é chegar antes da hora, não ter hora para sair e levar trabalho para casa. Sempre há o que fazer. - Quem paga o nosso salário é o pobre povo venezuelano. Ela nem venezuelana era. Nascera na Colômbia, fora criada na Espanha, de origem belga. Ou holandesa, talvez dinamarquesa. Na terra dos seus antepassados viveu Hamlet e havia ali uma torre medieval, de pedra, com uma subida interna em círculo, como um parafuso. É o que ela lembrava ter ouvido da avó, dizia numa das raríssimas vezes em que falava sobre a família e sua própria vida. Na Europa as pessoas valorizam o trabalho, não perdem tempo, odeiam o desperdício. Viveram a dura fatalidade das guerras, pão escasso e sabem que apenas o trabalho justifica a existência do homem diante de Deus. Dizem que inspecionava os armários do pessoal da limpeza, que vasculhava as gavetas das secretárias, que contava as lapiseiras e os rolos de papel higiênico que saiam das despensas, que controlava as chamadas telefônicas para saber os destinatários e os tempos de conversação. Telefone é um instrumento de trabalho. Por que algumas pessoas são tão desligadas de suas obrigações, usam envelopes oficiais para enviar correspondência privada? Os passos da Senhora Diretora eram sempre leves, suspensos no ar, andava sobre tapetes plúmbeos, pé ante pé, imperceptíveis, formando trajetos circulares, inspecionando lugares, rincões, porões. Estava em toda parte, aonde seus pés miúdos e prudentes a levassem. Iam sozinhos, orientados pela rotina de supervisionamentos, surpresas, ataques relâmpagos no dia-a-dia da instituição. “Ia passando, decidi entrar”. Havia relógios de ponto, relatórios minuciosos, tarefas programadas, monitoramentos. Manuais de serviços, normas a serem cumpridas. Em contrapartida, havia também o recurso das dispensas médicas freqüentes. Infame, execrável. Dona Leontina jura que a perseguição da Senhora Diretora continuava depois do expediente, atravessava a noite e aparecia em forma de pesadelos constantes. O despertador tinha a voz dela, aquela voz ranzinza, de cobrança (de cobra!!!) e sentença. Odiava-a desde o dia em que foi descontada por faltar dois dias seguidos, sem justificativa médica. Estivera em Barquisimeto no casamento de uma sobrinha e não tivera como regressar antes. Preferira faltar de qualquer jeito a ter que enfrentar o não da Senhora Diretora que certamente iria considerar a razão da viagem, no mínimo, trivial e injustificável. A imagem do esqueleto da velha Diretora aparecia-lhe no meio da noite como a uma coruja insone ou pela manhã, demasiado cedo, como uma sirena de ambulância, perturbadora. - Que se muera de infarto! – suspirava em tom de vingança. O pior é que a Senhora Diretora, em seis anos de mandato, nunca tirara férias e vivia gabando-se de sua assiduidade ao trabalho, como uma forma permanente de agressão aos subordinados. - Mal amada, megera – vociferavam os mais irritados. As escadas tinham marcas de suas passagens, ainda que silentes, os corredores sabiam suas andanças inquisitórias. Pior só nos sermões, ou sessões de admoestações – ou seriam reuniões? As pessoas caladas, fingindo um mutismo cúmplice. Ás vezes alguns riam de suas (dela, da Senhora Diretora) piadas moralizantes. Dizia-se católica fervorosa mas, na prática, devia ser uma luterana de província, com a autoridade no sangue, exercida na família desde as sombras de um passado autoritário, de colonizadores moralistas, com as entranhas nas terras nórdicas e glaciais, diziam outros. As reuniões eram hieráticas, dramáticas. A senhora Diretora pregava a devoção ao trabalho para ouvidos surdos, olhos assustados. O que é que ela queria deles, afinal? Por acaso, não estavam ali, há tantos anos, bem antes dela chegar?! Alguns à espera da aposentadoria, outros esperando chefias protetoras para melhorar os seus parcos salários e que nunca chegavam e, pela amostra, talvez não viessem nunca. Ela queria o quê, que se esforçassem num trabalho cuja paga era ínfima, aviltante, injusta, insuficiente? Só mesmo a estabilidade no emprego e as ameaças de punição mobilizava-os, enquanto alguns até já freqüentavam, paralelamente, e no mesmo horário, outras ocupações, alhures. Ela – a Senhora Diretora – ia de sala em sala perguntando pelos funcionários, parecia conferir as presenças já que as faltas ficavam mesmo por conta da mecânica do cartão de ponto. Depois inventou o livro de presença nas reuniões em que ela ficava em posição estratégica observando a entrada e a saída. E, na mesma linha de inspeção, chegava ao extremo de postar-se na portaria, em visitas de surpresa, na horas de maior movimento. - Justo no dia que eu cheguei atrasado por causa do trânsito – queixou-se o homem do almoxarifado. O primeiro atraso nesses últimos seis meses! Depois veio a idéia do relatório mensal que logo virou semanal e, por último, diário. Melhor seria nos dois expedientes, assinalando-se o tempo gasto no almoço. Duas horas para almoçar?! Por que não incentivar o treinamento em serviço, ocupar o tempo ocioso com alguma atividade produtiva? Talvez criando-se oficinas de estudos, grupos de discussão, quem sabe palestras de especialistas convidados? Melhor seria criar tarefas, requerer leituras, pequenos seminários de educação continuada para a atualização de conhecimentos. Se trabalhavam numa biblioteca, numa grande e importante biblioteca, por que não aproveitar a oportunidade para ampliar o auto-aprendizado, para dar respostas à própria ignorância? Havia tanto por aprender!! E havia milhares de livros à disposição. Assim como os pizzaiolos devem odiar pizzas, assim também os funcionários da biblioteca científica pareciam odiar os livros, afirmava a Diretora para os seus colaboradores mais íntimos, quando não fazia-o para todos, ainda que de forma indireta, nos seus discursos moralizantes (mais bem desmoralizantes, afirmavam os mais críticos nas cada vez mais curtas paradas para o café ou chá). - Tem gente que vai fazer compras na hora do expediente... Em certa visita às gavetas de seus assistentes encontrou revistas de palavras cruzadas, de histórias em quadrinhos, de fofocas de artistas de TV e até pornografia, além de fotos de família, extratos bancários, livros escolares e até rádio de pilha... Incrível o que as pessoas fazem na hora em que deviam estar trabalhando, afirmou para a platéia insegura, com as barbas de molho, numa de suas palestras recentes no auditório. - Eu fiz os cálculos – disse noutra oportunidade, a Senhora Diretora – estão usando 5 metros per capita de papel higiênico enquanto o público leitor não gasta em média nem 5 cm! - Se limpian el culo con la mano cuando falta papel... – pensou o porteiro da Biblioteca, sabedor das contenções de gastos. O mejor, se limpian con las páginas de los libros a su alcance – completou o raciocínio. Nos banheiros públicos, freqüentados também por funcionários, a grafitagem não se limitava aos desenhos de pênis, às palavras de ordem, às propostas de encontros e aos versos pícaros, havia sempre pragas e ofensas à honra da Senhora Diretora, tratada com uma bruxa assim como sua respectiva mãe e todos os seus ascendentes. Palavrões de todo calado e tonelagem. Do patriotismo exacerbado, a Senhora Diretora passou a apelar para o fervor religioso na sua catequese de consciências entre empregados e cientistas que usavam a biblioteca. Não foi sem susto que o motorista Daniel, que era evangélico, viu os pintores grafando a célebre frase “Deus Morreu”, assinada por Nietzsche, à entrada da grande salão de leitura. Ninguém entendeu aquela reviravolta na cabeça da sempre magra senhora, justamente no momento em que se anunciava sua eleição para o Conselho Nacional de Cultura por causa de sua feliz iniciativa, louvada pela imprensa, da publicação de uma série de livros dedicada às origens da ciência na Venezuela. Mas logo o mistério foi resolvido. À saída do majestático salão apareceu a inscrição “Nietzsche Morreu, assinado: Deus”. Nem era uma idéia original, era um vulgar plágio do que já existia numa universidade norteamericana. Fosse de onde fosse a idéia, chegou aos jornais e à televisão, causando registros curiosos e até alguma polêmica. Seguiu na mesma linha patriótico-religiosa mandando publicar milhares de marcadores de livros com frases de escritores e próceres nacionais, apelando para os nobres valores da nacionalidade, incentivando a leitura dos clássicos e a fé no cristianismo. Sentenças judiciosas, exaltando a família como pilar da sociedade sadia e a amizade como alicerce das boas relações humanas, sem faltar algumas que mais pareciam ameaças. Nos últimos tempos seu pendor para o protecionismo chegara ao clímax com o episódio da secretária Ana Mercedes que – todo mundo já sabia mas a Senhora Diretora custara a perceber – andava de amores com o jovem José Juan, uma espécie de office-boy da Diretoria e, nas horas vagas – se alguma existisse ainda – recolocador de livros nas estantes. Um verdadeiro escândalo na percepção da Senhora Diretora pois o jovem ajudante tinha apenas 17 anos e a secretária já caminhava para os 50. Não obstante, no apogeu das suas carnes, queimadas ao sol, em sua voluminosidade generosa, nas ardentes praias do Caribe. Todo mundo sabia de suas preferências sexuais mais íntimas de há muito tempo, de outras administrações, pois eram conhecidas suas relações mais próximas com ex-diretores aos quais prestara os seus serviços, nos bons tempos em que a direção da biblioteca era privilégio exclusivo de cientistas e pesquisadores famosos, antes de converter-se em reduto de bibliotecárias graduadas. Nos bons tempos também no sentido em que ainda era jovem a fogosa secretária. A reação da Senhora Diretora não tardou: o garotão foi despachado para os porões da biblioteca onde passou a exercer as tarefas de empacotador da seção de intercâmbio, com a expressa proibição de ir ao terceiro andar em que estava instalada a diretoria. Nada impedia que a secretária descesse as escadas em busca do namorado. A exuberante secretária, foi então exilada na seção de obras raras, numa obscura sala no outro extremo do prédio, bem longe das vistas da veneranda diretora que, no entanto, continuou a receber notícias daquele relacionamento pedófilo e de mau exemplo. Não era incomum sua intromissão na vida das colaboradoras mais próximas, já que ela opinava sobre moda, decoração, educação dos filhos e vida familiar em geral e até mesmo sobre investimentos imobiliários posto que havia censurado a chefa do setor de referência por ter adquirido um apartamento no emergente bairro de El Cafetal, considerando-o um refugio de chivos, ou de bodes, por estar encarapitado no cume da montanha. Ninguém sabia – além dos boatos maledicentes e das histórias inventadas pelo seus detratores, que se contavam às dúzias – de sua vida particular. Vivia sozinha, era solteira, não recebia visitas de parentes nem amigos íntimos, não fazia telefonemas para pessoas fora de seu círculo profissional. Nem freqüentava a casa de pessoas conhecidas, nem era convidada... Em certa ocasião, tiveram que montar um esquema para que ela não fosse convidada para uma piñata, um tipo de festa infantil e de aniversário do filho de uma das funcionárias, em que os colegas de trabalho ajudaram na organização. Temiam que a presença da Senhora Diretora fosse constrangedora e motivo de ausência de muita gente... De qualquer forma, sua vida privada era um mistério, um segredo guardado a sete chaves. Aconteceu, então, o terrível terremoto de Caracas do fim da década de 60. Devastador. Em plena semana, na hora do almoço, quando a biblioteca estava cheia de leitores e com quase todos os funcionários trabalhando. Chegavam notícias horrendas de edifícios tombados, de novos tremores, de vítimas fatais, de corpos mutilados ingressando nos hospitais, ruídos de sirenas dos bombeiros, uma nuvem de pó saindo de um dos costados da própria biblioteca, depois de um barulho ensurdecedor. Uma das extremidades do velho prédio da biblioteca acabara de desabar, havia pânico, o público correndo para a rua que já estava repleta de gente assustada e temerosa. Espanto e horror entre os refugiados e feridos buscando socorro por toda parte e a tragédia estava também ali mesmo no espaço da biblioteca. A ala do desabamento no edifício colonial ficava mais ao fundo; felizmente, não incluía os salões de leitura nem os grandes depósitos de livros. Havia por ali algumas salas de guarda de materiais diversos e os banheiros públicos. Sorte, pensavam os funcionários, tentando reconhecer os colegas em meio à multidão de desvalidos. Lá no alto estava a sala da Diretoria, intacta. Os bombeiros que interditaram o edifício começaram a evacuar o local, mas já não havia quase ninguém lá dentro, depois do tumulto. Falava-se de milhares de vítimas em imensas regiões de destroços e ruínas. A cidade congestionada, o transporte público interrompido e restrições para a movimentação de veículos particulares, visando facilitar as operações de resgate e de apoio aos vitimados. Muita gente caminhando, tentando localizar os parentes e amigos, um colapso quase total nas vias telefônicas. A noite foi longa e repleta de angústias e especulações de toda ordem, além dos sobressaltos de novos tremores de terra. Começaram de imediato as escavações nos pontos mais críticos em busca de sobreviventes. A ação devastadora acompanhara uma linha reta pelo vale de Caracas, a partir de um epicentro próximo às franjas de El Ávila, a imponente cadeia de montanhas que separa a capital venezuelana do litoral caribenho. Desde as guerras de Independência que não se via um terremoto daquelas proporções. Só três dias depois do cismo é que começaram as buscas por sobreviventes nos escombros da biblioteca, que continuava fechada para o público. Logo nas primeiras investidas encontraram dois corpos sobrepostos. A imprensa e a televisão acompanharam o árduo trabalho dos bombeiros. Logo de saída o fato pareceu muito estranho aos jornalistas e aos profissionais da defesa civil: eram corpos de um casal quando as informações davam conta de tratar-se dos sanitários femininos pois os masculinos estavam intactos, no outro extremo do corredor semi-destruído. A sujeira impedia o reconhecimento mas os camerógrafos e fotógrafos documentaram, com a avidez ou morbidez da ocasião, o inusitado achado. Em seguida, depois de remover restos de paredes e de portas, descobriu-se que a mulher estava vestida e o homem quase nu, pelo menos da cintura para baixo. Ele estava caído sobre o sanitário destruído, com o rosto sujo e irreconhecível mas dava para ver que se tratava de um jovem, bem jovem. Branco, de boa estatura, físico bem formado. A mulher estava de bruço, caída com o rosto entre as pernas desnudas do jovem. O fato insólito mereceu fotos tomadas de todos os ângulos. Era o tipo de matéria jornalística de efeito sensacionalista que todo repórter de rua adoraria encontrar em suas atividades profissionais. Cheirava a escândalo, com apelos à mórbida especulação de um público católico e moralista. A imprensa, antes de saber os nomes das vítimas, começou a levantar hipóteses e a buscar explicações. “Castigo” parecia ser a palavra mais recorrente diante do episódio tão grotesco que os noticiários da TV, sem fazer referência direta à cena, deixava-a explícita pelos registros das câmeras. O que mais se comentava era o fato de ter acontecido numa biblioteca científica! Quem eram e que estavam fazendo aquelas criaturas, naquela posição, naquele momento fatídico?! Não tardou muito para que os personagens do episódio insólito fossem identificados. O corpo do jovem era do ex-office-boy José Juan que a Senhora Diretora havia deportado para os porões do edifício, para apartá-lo da amante gorducha. Os banheiros femininos estavam a escassos metros de sua nova área de serviço. Pelo vestido e pelo volume do corpo, ainda que de costa, deu para ver que era a Senhora Diretora o segundo cadáver. Seguiram-se dias de comentários maledicentes. Que estava fazendo a hirsuta e circunspecta senhora entre as pernas do imberbe mancebo?! Quem não comentava o episódio era a amante do falecido, a sensual Ana Mercedes. Estava mais assustada do que pesarosa. Evitava todo e qualquer contato com os colegas, corroída por uma culpa velada e secreta que a afligia o tempo todo. Quando a biblioteca reabriu suas portas ao público, com a área do sinistro isolada para uma futura reparação, ela entrou com um pedido de licença médica – aquele expediente que a ex-Diretora execrava – para não enfrentar a realidade, alegando abalo emocional. Ana Mercedes era devota de Nossa Senhora. Dirigiu-se para a igreja mais próxima em que havia uma imagem de La Virgen del Coromoto e a fitou com desolada e assustada tristeza. Na confusão de suas idéias e sensações não sabia se chorava a morte do fogoso amante ou se sofria a dor de seu íntimo silêncio sobre os minutos que antecederam aquela tragédia pública. Fez uma revisão nervosa dos momentos anteriores ao terremoto, desde o instante em que José Juan passou pelo corredor seguido, à distância, por uma mulher. Ela já andava desconfiada das atividades sexuais do seu jovem preferido, que a enganava de maneira descarada. Flertava com as moças da limpeza, vivia insinuando-se para as leitoras que desciam ao porão em busca de informações e havia sempre recados telefônicos de mulheres desconhecidas tentando localizá-lo. Só que agora, ou naquele momento, ela estava ao encalço dele, numa situação concreta. José Juan entrara no banheiro feminino, a mulher seguiu-o e refugiaram-se no apertado sanitário, sem fechar a porta por dentro, se é que havia ali alguma fechadura funcionando. Ana Mercedes abriu a porta violentamente para flagrar a traição do namorado. A jovem que estava com ele ficou muito assustada e saiu correndo. José Juan estava diante dela, com as calças arriadas, ainda excitado. Ouviu-se então o ruído de alguém entrando no banheiro. Foram segundos de vacilação: ela não sabia se se trancava com o namorado no cubículo mas nem teve tempo para tomar uma decisão pois logo deparou-se com a figura da Senhora Diretora. Ficou lívida e pasma e a única reação foi a de sair apressada, fugindo ao confronto com a sua detratora. A velha Senhora logo deparou com a presença do jovem funcionário ainda tentando levantar as calças mas José Juan ficou petrificado pelo olhar justiceiro e perturbador da autoridade diante dele. Mas ainda assim esboçou aquele sorriso cretino que era sua característica permanente mesmo nas situações em que estava em desvantagem. Ana Mercedes recapitulava aquele episódio embaraçoso diante da Virgem, em silêncio. Quantos segundos seguiram-se à sua abrupta saída do banheiro feminino da biblioteca até o seu total desmoronamento? Ela só sentiu a força do tremor que levou àquela destruição, a meio caminho para a sua sala de trabalho, a uns 200 metros de distância. Suas pernas tremiam tanto, sua cabeça estava tão confusa que ela não sabia se o trajeto fora vencido com rapidez ou não. Lembrava que desejara voltar ao local, enfrentar a situação, dizer que não era ela que estava ali com ele no ato libidinoso, que a Senhora Diretora certamente cruzara com a jovem fugitiva no corredor mas não conseguira organizar seus pensamentos nem agir conforme os seus desejos. Estava em jogo o seu emprego, sua reputação. Diante da Virgem explicava-se que seria capaz de tudo para conquistar um homem mas que jamais iria com ele aos sanitários de seu local de trabalho. No fundo, apesar de apresentar uma certa obstinação sensual, era uma romântica idiota, crente de estar diante de um amor verdadeiro e definitivo sempre que se relacionava com alguém. Por quê a Senhora Diretora condenou-a ao porão da biblioteca, tornando mais evidente ainda uma relação que era do conhecimento de todos e que era uma questão alheia à sua autoridade, que dizia respeito apenas aos seus mais íntimos sentimentos – aliás, tão frágeis e tão inseguros. As traições do amante só agudizavam o ridículo público de seu ostracismo! Por que punir um servidor jovem, cheio de vida que, não obstante suas fantasias sexuais, estava a seu serviço, na Diretoria, sob sua proteção, que atendia de forma diligente suas obrigações e, nos seus limites, era competente? Por que? Estas eram as perguntas que fazia à Virgem de sua devoção, na penumbra culposa e estremecedora da Catedral, confessando-se com a certeza de poder conservar os seus segredos e os seus mistérios. Conto de Antonio Miranda Ilustração de Zenilton de Jesus Gayoso Miranda MEMÓRIAS DE ADOLESCENTE OU AS CONFISSÕES DO ABSURDO Quando eu era um rapaz magro e cheio de fantasias e projetos de vida, eu inventei o verbo aindar. Não sabia exatamente o significado nem para que servia mas intuía o que ele representava: a rotina de certos hábitos em meio a um caleidoscópio de situações novas, de novas leituras, novas amizades, descobertas fascinantes de um aprendizado constante. Isso: constante é o que significava o verbo aindar. E o verbo tinha uma origem simpática, fraterna, curiosa: a revelação de um amigo venezuelano que era fanático pelo carnaval e que vinha ao Brasil todos os anos para sair de sua timidez e tornar-se um excêntrico, extrovertido. Em seu país ele passava o ano inteiro na sua condição de reprimido, numa outra fantasia que ele não tinha escolhido e que assumia pelas circunstâncias, precisava de uma válvula de escape, ainda que fosse a intervalos. Mas não era disso que eu queria falar senão de sua relação com o verbo aindar. Relação que ele nunca percebeu. Aprendia sempre palavras novas do português do Brasil, que soava suave, doce aos seus ouvidos. Gostava, adorava a palavra ainda. Que palavra gostosa, deleitável! Ainda! Em espanhol o aún é duro, rigoroso, de ressonâncias mouras, áridas, como um trabalengua, difícil de pronunciar, de ouvir. “Ainda”, ao contrário, fluía, escorregava pela garganta, dava curso musical à sua existência. Diríamos que “ainda” prolongava-se, aindando... Quando alguém perguntava ao venezuelano o que ele achava do Rio de Janeiro, ele respondia, com toda a satisfação do universo, de quem estava apaixonado e feliz com a cidade carioca: - Ainda! Se alguém queria saber quanto tempo ele pretendia ficar na nossa terra, ele respondia: - Ainda... E expressava tudo com isso, era o bastante para dizer da permanência e continuidade daquele estado de graça. Tempos depois eu inventei a palavra – de novo, um verbo – noitediar. Isso foi lá pelos idos, vejamos, recapitulemos, lá pelo felicíssimo ano de 1958. Não é brincadeira: o ano de 1958 foi o ano mais feliz da vida dos brasileiros em geral e dos cariocas em particular, mas sobre isso já existe um livro no mercado, inteirinho dedicado a provar a assertiva. Eu era a prova mais cabal daquela felicidade geral. Não que eu fosse de todo feliz – tinha os meus problemas, minhas carências – mas reconhecia a felicidade geral daquele tempo. Como eu amava a vida fora de casa, nas praias, nos becos de Copacabana, nas ruelas da Cinelândia, nos bares de Ipanema e nos cinemas da Praça Saenz Peña, e o meu dia era mais longo do que a minha resistência física. Eu saía de dia, varava a noite e via o novo dia nascer do mar, foi então que surgiu a idéia do noitediar que, por causa das horas de vazio e até de certo tédio e cansaço, gerou o tediar do noitediar. Eram palavras secretas, para uso próprio, íntimo, que eu nem partilhava com os outros, valia-me delas em minhas ruminações, nos lotações e nos bondes, nas areias ardentes das praias e nas horas desencontradas em que dormia e sonhava e, sobretudo, quando fazia apontamentos, confissões escritas, diários narcisistas. Havia tantas palavras nos dicionários e eu a inventar palavras! Inventava também pessoas. Elas nunca eram como eu queria eu elas fossem... Preferia idealizá-las e sonhá-las de conformidade com os meus desejos, tinha-as numa dimensão maior, mais livre, mais perfeita, ajustada ao sonho e ao delírio. Devorava-as e ruminava-as acordado e possuía-as até dormindo, em efervescentes simulações, situações mais do que verdadeiras porque imaginárias. Amoldavam-se aos meus caprichos e ao tê-las no plano (dito) real havia sempre um certo desapontamento mas era um situação contornável porque logo a fantasia metamorfoseava o episódio e alcançava os parâmetros ideais. Um canibalismo, um fetichismo recôndito mas permanente. Não sei se as lembranças que conservo no cofre são das imagens que criei ou das que de verdade (???) vivi: o certo é que elas aindam, são verdadeiras. Algumas nem existiam! Buscava-as nas pessoas de meus relacionamentos e algo delas havia em umas e outras, ainda que de forma fracionária, dispersa, atomizada. Era um jogo hedonista mas não tinha muita consciência disso, até porque o envolvimento físico e psíquico acabava superando toda e qualquer racionalidade, materializando-se ou horizontalizando-se até sublimar-se na extrema unção dos sentimentos em combustão e, em seguida, banalizando-se. E daí? O sensual, o erotismo decorrente, o êxtase da contemplação e das relações mundanas é um estudo estético antes de ser um estado anímico. A forma é sempre sensual em sua angulosidade, em seu volume omnisciente, em sua sugestibilidade antecipatória de desfrute e gozo. O olho é um órgão sexual. Se é estético também é anímico, ou melhor, só é anímico porque é estético. Nada de novo. Na pragmaticidade de minhas aventuras juvenis, o prazer começava na contemplação do objeto, na sua posse pela análise - subliminar, subjacente, intuitiva – da figura diante de mim, sujeita à conquista e ao relacionamento. Podia acontecer ou não mas já era um prazer enorme! Às vezes nem dava para acontecer, nem valia a pena. O Geraldo – um burguesão amigo meu que iniciava a sua função sexual ao mesmo tempo que travava uma batalha contra a acne – esteve apaixonado perdidamente por uma vizinha que era fulgurante, exibidíssima em seu trajar provocativo, um “reclame” como ele chamava tais exuberâncias. Ela era mais velha do que ele mas o garotão era alto, parecia mais velho, mais maduro. Era insistente, persistente, não era de desistir mesmo, era desses chatos de plantão, obstinado. A insistência e desfaçatez do acosso era, assim, ostensivo e a mulher sentia-se nua naquela contemplação descarada, à princípio incômoda, logo envolvente, aguçando sua libido. Como resistir àquele narigão fálico?! Um polichinelo exuberante, promíscuo, escancarado, com o sexo na cara: não resistiu. Mas dissipou-se logo o que era doce. O Geraldo perdeu a tesão diante da mulher nua: ela tinha os quadris quadrados, nada daquelas suaves curvas de seu sonho febril, nada daqueles abismo insondáveis, resvaladiços... Eram arestas truncadas, interseções abruptas. Nem masturbando-se conseguiu gozar. Eu também era fissurado em formas adivinhatórias. Mário era diferente. Bonitão, com cara de menino rico mas nunca carregava um tostão no bolso. Numa época em que as mulheres só iam para a cama depois do casamento, ele cultuava o fracasso nas abordagens sexuais: mulher que dava fácil era um brochante para ele. A excitação só existia na perspectiva do não. Pior do que isso: todo o fracasso das “cantadas”, das investidas ao pudor das inocentes namoradas valiam mais a posteriori do que na hora da conquista. Era um ruminador. Pior ainda, um contador de histórias verdadeiras e falsas. Tinha mais prazer contando as suas abordagens sexuais do que praticando-as. O detalhamento das ações erotizava-o mais do que os atos praticados, se é que realmente aconteciam. Contava tudo para os amigos, reavivava cada cena de suas relações como se fosse um cineasta da Nouvelle Vague, lambia cada palavra que servisse para prolongar cada gesto, cada ação. Uma perna, uma coxa, uma curva do seio tinha mais ângulos do que de fato tinham, viravam peças cubistas em que a ação, o movimento, ficava cristalizado na tela do pintor. No caso, nas narrativas reiterativas, nas minúcias e firulas semânticas, nas descrições hiperbólicas. A namorada parecia ter uma dúzia de tetas como as vacas holandesas, as vaginas eram múltiplas como aquelas gavetas no corpo da mulher retratada surrealisticamente pelo genial Salvador Dali. Uma mulher só vagina!’ Quanto maior a resistência ao assédio maior a excitação. Chegava a gastar todo o vocabulário para ir com a mão aos segredos mais íntimos da namorada. Ela segurando a mão dele cada vez com mais força enquanto ele redobrava a potência para invadir o terreno proibido. Chegava ao orgasmo! Se ela dava mostras de resistência fingida, se aquiescia enlevada pela sedução, se ela deixava-se invadir com certa facilidade ainda que apaixonada, Mário gelava, esmaecia, perdia o interesse. A coitada era abandonada com a sensação constrangedora de um julgamento rigoroso, como uma acusação excessiva de ser uma folgazã, uma depravada. Eu era o confidente, o ouvidor. O confessionário era o quarto da casa dele em que me hospedava quando ia a Copacabana. Era um luxo ter um quarto só para si, poder trazer alguma namorada até ali nas ausências do pais! Mas essa devia ser uma perspectiva impossível para ele porque, se alguma namorada aceitasse ir até lá, neutralizaria, ipso facto, sua excitação... Que viesse em circunstâncias dissimuladas, pensando que a família estava em casa, coisas assim... Eu ouvia como quem participava do assédio, como se também desfrutasse das situações mais do que ele porque, quando ele desistia do assédio quando a presa acedia aos seus apelos, quem finalizava o ato era eu, ainda que fosse na imaginação. Pedia mais detalhes e gozava na hora enquanto ele continuava masturbando-se pelo resto da noite. Eu dormia em seguida e ele, sem ter a quem ouvir o eco de suas palavras, não sei a que expedientes estimuladores usava para consumar a ejaculação. Mas não era só sexo gravitando em nosso imaginário. Havia praia – agente erotizador por excelência! -, havia festinhas – conseqüentemente... – e havia uma certa intelectualidade que nos unia naquela juventude. Havia cineclubes, havia livros, espetáculos teatrais – experimentais, é óbvio - e longos debates e conversas tentando descobrir o sexo dos anjos. Ou seja, tudo acabava em sexo, ainda que solitário ou solidário nas masturbações coletivas. A regra era não haver homossexualidade alguma naquelas exibições públicas de virilismo mas é justo reconhecer que havia muita sensualidade naquela prática coletiva, naquele ritmo contagiante, ao uníssono. Acho que isso merece uma explicação. Ninguém estava pensando em trocar a fantasia pela realidade e transformar-se ou metamorfosear-se na amada do outro. A regra não permitia essa concessão, nem havia pretendentes, ela romperia o equilíbrio da ação coletiva que ficava sempre nos limites do individualismo. Complicado, mas era assim. De qualquer forma, vale a pena traçar um paralelo. Comparar com outra situação, aquela em que um de nós decidia urinar enquanto todos os demais, sem saber porque, também mijavam incontinentes. Por que sentíamos vontade de urinar quando outro estava urinando?! Analogamente, sentíamos mais prazer masturbando-nos quanto também os outros o faziam, embalados pelo mesmo clima, pelo mesmo ritmo... Melhor do que revista pornográfica até porque, àquela época, era matéria escassa e nem sempre tão explícita... Um parêntese: o Mário só gostava de revistas pornográficas ilustradas. Nada de fotos: eram óbvias demais. Geraldo preferia o óbvio: quanto mais realistas as fotos maior o estímulo. Para mim servia qualquer uma mas devo confessar que preferia os exemplares in natura, sem intermediações literárias e iconográficas. Como já confessei antes, o ideal era a imaginação sobre a matéria mas, ao contrário de meus amigos, havia conquistado a capacidade ou habilidade de transcender o objeto mesmo fazendo uso do objeto. Um metaobjeto do prazer, sei lá, uma superação do carnal sem renunciar à própria carne. Não havia muito espaço para a filosofia mas operava assim, num ardil de estímulos, dissimulos e afirmações constantes, próprio da natureza dos jovens. Vencendo a insegurança, a carência, a relutância do medo diante do novo, do desconhecido, a própria inexperiência. Ainda sem o cinismo ou o pragmatismo da ação continuada, da experiência acumulada, da seriação reveladora de regularidades e exceções. Sensações muito complicadas as minhas naqueles tempos de buços e vergonhas sigilosas. Não gostava de palavrões. O Geraldo, ao contrário, usava-os para tudo, para externar seu machismo, com certo voluntarismo grosseiro, com uma certa violência verbal para mostrar força, independência, maturidade. - É isso, porra, vocês entendem, porra, não preciso me justificar, porra. Porra era uma vírgula. Entulhava o discurso com porras e porras. Acho que eram pausas para reflexão, enquanto buscava outras palavras para revelar seus pensamentos confusos e imaturos. Eram para ser adivinhados ou decifrados a partir de um código verbal incompleto, estereotipado, fragmentado entre vírgulas e porras. Mas era um grande sujeito, não apenas na altura avantajada. Grande até no nariz, que chegava a toda parte antes dele. Só o falo, quando enrijecido, ia mais adiante. Só mesmo o pênis dele vencia a competição com o nariz mas não consta que andasse pelado e excitado pelas ruas de Copacabana. Mas não se gabava de sua superioridade física nem jamais cruelizava o Mário por sua brevidade instrumental, nem a mim, que ficava a meio termo entre as extremidades. Certo que medíamos os nossos símbolos a todo tempo na expectativa de que crescessem. Dizem que a masturbação dilata os tecidos, disso estávamos absolutamente convencidos até porque isso justificava e absolvia os nossos pecados. Só havia régua de 20 cm ao nosso alcance mas, com exceção do Geraldo que exigia uns centímetros a mais, era o suficiente para a nossa estatística de desenvolvimento. Mas o Mário tinha uma ótima explicação para o caso: na hora da verdade, na intimidade de uma vagina para valer, qualquer pênis cresce mais de 5 centímetros além do normal. Era uma teoria compensatória, prête-a-porter, sob encomenda para massagear nosso ego. Gostávamos muito dos “inferninhos” da Zona Sul mas só éramos admitidos nas matinês, salvo o Geraldo que parecia bem mais velho mas ele preferia ficar conosco. Difícil era conseguir mulher lá dentro porque elas iam com os namorados ou então acompanhadas dos irmãos mais velhos. Todas elas exibiam irmãos, mesmo quando era filhas únicas. Imagino que as desafortunadas que não tinham irmãos para acompanhá-las às festas só podiam namorar na sala de visitas de suas casas. Tocava Ray Conniff e não havia em quem encostar o rosto, o tal de face-to-face. Muito romântico. Depois vinha o chá-chá-chá e acabava no rock´n´roll que era o máximo, as pernas tremelicando como num acesso de epilepsia, os olhos vidrando. Foi então que eu conheci a Dagmar, que veio de Vigário Geral com a turma dela. Loura, sob medida para a minha estatura mediana, uma cara de quem era decidida e voluntariosa. Ela é que escolhia os parceiros para dançar e quando voltava a rodada de boleros e sambas-canção era ela que dirigia o passo mesmo que o acompanhante parecesse fazê-lo. O corpo dela é que determinava o ritmo ainda que estivesse sendo conduzida pelo partner. Confesso que eu fiquei um pouco medroso de continuar dançando com ela, temendo a reação da turma que a secundava mas logo percebi que a jovem era líder, não parecia dar satisfação de seus atos. Parecia mover-se com uma liberdade e uma autoridade não tão comum naqueles tempos. Das alucinações do Little Richard passamos para as baladas de Pat Boone e logo estávamos pegados no cheak-to-cheak de não-sei-mais-de-quem-era. Sentia o hálito achicletado dela e ela um pouco do suor que dava brilho ao meu rosto naquela tarde tórrida de março de 1959. Dali fomos para a sacada do prédio onde já havia outros casais beijando-se. Em verdade, fui conduzido até lá e imprensado contra uma pilastra e beijado com fúria. Meus lábios eram sugados por uma sanguessuga com dentes, que mordeu-me até provocar dor e certa apreensão. Para meu espanto, ela colou o corpo ao meu e levou-me ao desassossego total quando começou a alisar as minhas nádegas, a meter a mão pelas minhas calças adentro até uma região de vergonhas e constrangimentos. Nunca imaginei que isso pudesse acontecer comigo mas não reagi, possuído pela volúpia daquela guerreira de motocicletas. Ainda passou pela minha cabeça a suspeita de estar sendo possuído por um travesti mas logo a minha mão andou por zonas que não deixavam dúvidas de estar realmente com uma garota da pesada. Legal pacas, não é assim que se dizia naqueles tempos de juventude transviada? Mas eu tampouco era dado a gírias e modismos. - Vem com a gente a uma festinha na casa de uma moçada amiga nossa? A onda vai ser legal. Tem que ajudar a comprar umas cocas e uma garrafa de rum para o cuba-libre. - Estou com o Geraldo e o Mário. - Então casa de uma vez com eles... Dagmar voltou para o salão e eu voltei aos poucos, dissimuladamente, tentando recompor-me. Geraldo e Mário olharam-me com certa admiração e inveja, encostados pelas paredes com uns copos plásticos, tomando guaraná. Mas os olhos do Geraldo estavam arregalados como se tivesse tomado algo mais, o que era possível nos corredores mais discretos do inferninho. Notaram a minha desfaçatez mas não fizeram perguntas. Logo percebi que à vampira havia desaparecido com a sua turma. No quarto do Mário, quebrando a regra, acabei contando o ocorrido, para o deleite dele cujo morbo ficava exacerbado com tais confissões. Omiti o detalhe da mão dela nas minhas intimidades nem tanto por pudor ou vergonha mas temendo interpretações desfavoráveis. Confessei que senti sangue na minha boca depois de ter sido literalmente chupado, que os lábios ficaram doendo e que havia sentido uma sensação estranha de humilhação e de violação. Geraldo ficou tão excitado com o relato que foi para um canto masturbar-se, ainda sob os efeitos das bebidas, logo seguido pelo Mário. Eu fui para casa sem saber se havia gostado ou não daquela inusitada experiência. Acredito que sim porque logo a fantasia instalou-se na minha insônia, Dagmar ganhou novos contornos e faces diferentes e eu acabei dormindo em estado de assombro e felicidade. Conto de Antonio Miranda Ilustração de Zenilton de Jesus Gayoso Miranda O POETA NO ESPELHO O poeta é, antes de tudo, um fingidor pois finge que não sente a dor que deveras sente... Quem foi que escreveu versos tão despistadores?! E que músico fala do sonho em que se sonha? O poeta – acredita piamente o nosso personagem – não tem porque revelar os seus sentimentos, ao contrário, deve é estimular os sentimentos alheios. Melhor é virar personagem de suas criações e viver as sensações que o poeta projetou para os demais, como se fosse cobaia da própria criação. Aliás, os poetas do romantismo viveram e sofreram na carne os entes desesperados que imaginavam, chegavam até a morrer tuberculosos em decorrência de suas encarnações fantasiosas. É injusto dizer que o poeta é um ser alienado do mundo mesmo quando está engajado no processo revolucionário de transformação da sociedade. Nosso poeta sempre esteve muito consciente de sua ventriloqüia, de sua pantomima no palco da vida, vivendo duas vidas paralelas, sem maiores constrangimentos. Numa veste-se com roupas diáfanas e anda nu pelos versos, na outra usa terno e gravata nos despachos no Palácio do Buriti, ou mais apropriadamente, no da Aclamação. Estudou o método brechtiano de fazer teatro em que o ator-autor guarda um prudente distanciamento de seu personagem, guarda uma perspectiva crítica da realidade. Ele representa. Que horror, ser brechtiano e burocrático ao mesmo tempo! Ué, o Carlos Drummond de Andrade não foi chefe de gabinete de ministro? Parece que o Rimbaud, depois de levar Verlaine ao desespero, foi ser traficante de escravas ou de diamantes no norte da África. O nosso personagem tem uma teoria sobre esse dualismo, sobre a questão da dupla personalidade do poeta, ele acredita na dialética da própria vida, afirma que a vida só se dá pela fricção dos contrários, no equilíbrio das contradições. “No fundo da alma de todo homem piedoso existe um criminoso em potencial, todo homem correto e leal deve ter uma alma de canalha”. Não sei se ele realmente acredita no que apregoa, se é mais um de seus disfarces, de seus despistamentos. Ora – desabafa – o poeta não tem porque acreditar no que escreve, não tem porque defender suas teses, nem pode levar muito a sério os manifestos que assina publicamente. O poeta só existe em sua poesia. Então, vejamos o que escreveu. MEMÓRIA DO SER Das vastidões de mares esquecidos sobrados, ancoradouros juramentos preteridos – o homem à beira do desassossego renúncias, rancores, talvez amores esmaecidos. A vida passada a limpo. Clamores, vozes soterradas no abismo releituras, livros abandonados baús profanados, temores. O homem diante de si. Haja palavras para averbar memórias pródigas, peremptórias redentoras. Diários delirantes, saudades dilacerantes sentimentos errantes. Haja fé, discernimento. Haja paz. Colinas ondulantes, horizontes. Vê-se que o poeta não renunciou à rima, ao ritmo, embora fracionando o discurso, fazendo intercalações evocativas, justapondo imagens e pensamentos. No fundo está pintando a cena, transferindo uma visão de mundo e de existência que deve ser de quem lê enquanto é de quem verseja. Algumas palavras, principalmente na concreção simbólica dos substantivos, funcionam como tijolos numa arquitetura de idéias, que ficam suspensas no ar, no espaço íntimo da leitura, no diálogo silente com o outro, com o público, com ele mesmo no extremo de sua encenação. No fundo, o poeta dialoga com os eus em que se multiplica, se estende e se propaga. ”Mas há quem leia para o espelho” – o do monólogo interior, introspectivo, o fechado-emsi-mesmo, mas parece que esse não é poeta. O poeta também mente, até quando é sincero. ME ESQUECI Me esqueci de ser feliz durante estes anos de tarefas imp ossíveis: ser amigo, ser pai, ser cidadão diálogos obtusos e jargões sem sentido mas feliz, sem sabê-lo, na banalidade das convenções comezinhas no escuro das salas de projeção em que revia o meu próprio ridículo no ridículo alheio feliz talvez entre nãos sutis e sins reticentes relendo juras de amor esquecidas em correspondências oxidadas: feliz até no amor preterido e nas conquistas que resultaram em fracasso tanto faz feliz, afinal entre pessoas carcomidas e devastadas soterradas no fundo da memória fugaz / tenaz teliz talvez por que não? Ainda bem que o poeta não tem que ser necessariamente coerente, nem óbvio, nem convincente no seu raciocínio tortuoso, de contraponto, pois ele pode vagar pelos simbolismos, pelas antíteses, pelas metáforas e dissonâncias, refugiar-se em certo hermetismo e nem precisa disfarçar o seu hedonismo e até a perversão de nossos valores. O poeta assume a sua precariedade filosófica e a sua inconsistência ideológica, sem nenhum constrangimento. É do poeta esconder-se nos abismos em que ele mesmo não consegue penetrar. Pode até ser coloquial para transcender, ser melífluo e etéreo nas afirmações mais positivistas. É de sua natureza a hibridez, as articulações impossíveis e a ponte sobre o vazio absoluto. O poeta escreve versos eternos sobre a areia da praia como aquele catequisador. Constrói densas estruturas com águas correntes. Proclama a sua frágil ossatura na medida em que busca a imortalidade, esqueleto de nuvens, descrença e fé sem contrição, negações de negações. Pode até mesmo ser um tanto discursivo como no poema que escreveu, no confronto dos contrários irreconciliáveis – feliz no amor preterido / no fracasso das conquistas felizes. Depois de criar o croniconto pode, muito bem, fundar o conto-ensaio, o memorialismo da invenção de si mesmo, sendo outros, assumindo vidas alheias e sentimentos que não eram seus, crenças e convicções com as quais nunca comungou: DEUS Deus não pode ser esse monstro concebido à semelhança e imagem do homem: vingativo, furioso, punitivo. Deus não pode ser esse todo-poderoso, onipotente, autoritário – super-ego dos mandatários avalista de confabulações palacianas, papais. Um deus mesquinho, rancoroso, guardando por milênios o azedume de pecados originais. Um deus-estátua, vociferando ameaças, brandindo espadas sentenciosas, ameaçando. Avaliado em 10, em 100, em 1000 fiel apenas com seus seguidores bajuladores, fiéis depositários de suas riquezas mandatários, sicários.. Um deus de guerras, das provações, dos dilúvios, privações e cataclismos justiceiros, um super-homem talhado nos moldes humanos, com cabeça, tronco, membros e sem coração. Deus guardião das moralidades comezinhas, exigindo jejuns, abstenções, humilhações. Deus com família, descendentes, herdades, hierarquias. Menos humano que seus criadores, credores. Um deus fálico, machista, com todos os defeitos gregos e troianos. Deus a serviço do poder, dos fanáticos, deus assassino, exterminador. Deus nos livre desse deus! Mais explícito, impossível e, no entanto, sem abrir o jogo, sem declarar seu ateísmo ou religiosidade, que não vale a pena ser revelada, que não interessa. Quem está interessado na crença no poeta, quem quer saber de sua ideologia?! O poema não é dele, é nosso. É um jogo de argumentos, de frases, construindo um significado, assumindo sua dúvida que é todos, sua convicção que é de ninguém. Palavra-puxa-palavra, poema puxa poema, tem derivações e confissões, tem aquela terrível e incontrolável necessidade de afirmação, de definição, de contestação, de contradição, de... DEPOIS DA MORTE - o nada, certamente talvez solidão e liberdade. Quem sabe prados e montanhas, quem sabe nuvens, ociosidade. O medo é de acordar, de recordar. ou seria um estado total de amnésia? Sem Deus, vagando pelo espaço vazio. Ou mais bem, preso à terra, debatendo-se com os vermes, pensando por inteiro, derradeiro. Sem asas, voando. Rindo eternamente, sem graça, sem testemunho. Sem pernas de andar, sem pênis, mudo diante de ex-mulheres, ex-maridos em concílio familiar sem argumentos. Talvez muito frio, sem dúvida inodoro mas nunca igualitário porque mortos e vivos guardam suas hierarquias. Ou mesmo inconsciente de possíveis transcendências , salvações, assistindo o desintegrar-se das células, sem qualquer reação ou desassossego. Até a morte parece finita, sujeita à decomposição inexorável e à desmemória. Depois da morte, o quê? E depois do poema, indaga o poeta. Finita ou infinita, com Deus ou sem Deus, in dubio pro reo.. O poeta tenta definir-se mas só faz perguntas, buscando as respostas que apenas balbucia, falseia, intui ou instrui. A única convicção que tem – ou nem mesmo esta – é a de que o poema não está no poema, está mais adiante, mais além, mais embaixo. Seria um exercício de racionalismo, discurso esquizofrênico, de fanático? Aí ele sai pela tangente e afirma que só acredita na poesia, em mais nada. Conseqüentemente, os poetas são demoníacos, adoradores de mitos que criaram no lugar das pessoas, da natureza, de Deus. Melhor seria descontruir e reconstruir tudo, num exercício de infinitas combinações: MEMÓRIA DE DEUS O homem à beira do desassossego, talvez amores esmaecidos, a vida passada a limpo revendo o próprio ridículo feliz até no amor preterido talvez vociferando ameaças, guardião das moralidades comezinhas. O homem diante de si. Colinas ondulantes, horizontes. Renúncias, rancores, talvez amores Esmaecidos. Haja fé, discernimento. Haja paz. O poeta lúdico, jogando um lance de dados, fazendo da página em branco um púlpito blasfemo ou piedoso – tanto faz -, confessando-se, demolindo, reconstruindo, exorcizando-se.