Fanhais, Banda do Casaco, João Afonso, Fausto
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Fanhais, Banda do Casaco, João Afonso, Fausto
Fanhais, Banda do Casaco, João Afonso, Fausto, Pedro Barroso Arquivo de letras de música 28 de Janeiro de 2002 1 Conteúdo A chusma salva-se assim . . . . . . . A flóber . . . . . . . . . . . . . . . . A ilha . . . . . . . . . . . . . . . . . Ai se a Luzia . . . . . . . . . . . . . Ao longo de um claro rio de água doce Atrás dos tempos . . . . . . . . . . . A tua presença . . . . . . . . . . . . . Caixinhas . . . . . . . . . . . . . . . Canção para desfazer equívocos . . . Cantar brejeiro . . . . . . . . . . . . Cantar é . . . . . . . . . . . . . . . . Canto de amor e trabalho . . . . . . . Carteiro em bicicleta . . . . . . . . . Cavalo de várias cores . . . . . . . . . Coça barriga . . . . . . . . . . . . . . Comboio malandro . . . . . . . . . . Como um sonho acordado . . . . . . Daqui desta Lisboa . . . . . . . . . . embora os meus olhos sejam . . . . . É ouvi-los . . . . . . . . . . . . . . . Eu não sei que faz o sol . . . . . . . . Eu tenho um fraquinho por ti . . . . . Horas de ponta e mola . . . . . . . . . Mariana das sete saias . . . . . . . . . Menina dos olhos de água . . . . . . . Menina e moça . . . . . . . . . . . . namoro . . . . . . . . . . . . . . . . Não canto porque sonho . . . . . . . . Não sou o vosso rei . . . . . . . . . . Natação obrigatória . . . . . . . . . . O barco vai de saída . . . . . . . . . . O homem e a burla . . . . . . . . . . Oh pastor que choras . . . . . . . . . O mar . . . . . . . . . . . . . . . . . O menino negro não entrou na roda . . Pão de pedras . . . . . . . . . . . . . Por este rio acima . . . . . . . . . . . Porque . . . . . . . . . . . . . . . . . Porque não me vês . . . . . . . . . . P’ró que der e vier . . . . . . . . . . . Protesto . . . . . . . . . . . . . . . . Quatro quadras soltas . . . . . . . . . Roda da senhora rainha . . . . . . . . Rosie . . . . . . . . . . . . . . . . . Se tu fores ver o mar (Rosalinda) . . . Soldadim Catrapim . . . . . . . . . . S. Simão . . . . . . . . . . . . . . . . 2 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4 7 8 9 10 12 14 16 17 18 19 20 21 22 23 26 28 30 31 32 33 34 36 37 39 40 41 43 44 45 47 49 50 51 52 53 54 57 58 60 62 65 68 69 70 72 73 Uma cantiga de desemprego Uma cantiga de desemprego . . . . . . . . . . . . Letra e música: Fausto Francisco Machado Fumo um cigarro deirado no mês de Janeiro fecho a cortina da vida espreguiço em Fevereiro e procuro trabalho nesta esperança de Março já me farta de tanto Abril e aquilo que não faço espreito por um funil a promessa de Maio porque esperar prometido nessa eu já não caio queimo os dias de Junho no sol quente de Julho esfrego as mãos de contente num sorriso de entulho para teu grande desgosto janto contigo em silêncio e lentamente esquecido digo-te adeus em Agosto meu Setembro perdido numa esquina que eu roço e penso em Outubro o menos que posso mas quando sinto a verdade daquilo que cansa nunca houve vontade do tempo de andança sinto força em Novembro juro luta em Dezembro 74 3 74 A chusma salva-se assim S. Simão Letra e música: Fausto In: ’Crónicas da terra ardente’ Música: João Afonso Letra: popular Intérprete: João Afonso In: ’Novas vos trago’,1999 (Amélia Muge, Brigada Victor Jara, Gaiteiros de Lisboa, João Afonso, Sérgio Godinho) (romance) Luís Quinta Já anda a gente do mar a fazer fardos e trouxas arrombando porões a roubar arcas e caixões e abandonam as mulheres os filhos desamparados que choram muito assustados sem outra consolação que uns abraçados com outros incham das águas aos poucos dos tragos salgados da morte imploram a Deus outra sorte às arfadas aos arrancos em prantos e às golfadas e uns se afogam de vez deixando-se ir ao fundo e se entregam assim ao sono mais profundo outros gritam aos céus pela absolvição e se enforcam depois com suas próprias mãos perneando com a morte as pernas descarnadas feitas em rachas em lanhos e tão estilhaçadas que por esta parte em destroços lhes vão caindo os tutanos dos ossos e sem saberem nadar sem a nau sem tábua nem pau vai o mundo adornar cai ao mar cai ao mar João Moças, jj Em Castela há um santo que se chama S. Simão onde vão frades e freiras ouvir a missa e sermão; e também D. Maria, das mais altas que lá vão. Ao entrar para a igreja sete frades namorou; o que estava a dizer missa logo para trás olhou; o que mudou o missal sete folhas lhe rasgou; o que dava as galhetes todo o vinho lhe arramou; e o que tocava o sino do campanário saltou; quebrava sete costelas e um braço deslocou! Mal haja a D. Maria e mais quem na cá passou; em tão poucochinho tempo tento mal ela causou! Nota: segundo o livro (de 60 paginas!) que acompanha o disco, Este romance encontra-se documentado já no século XVI em folhetos de cordel. Daquela assada do barco constroem seu salvamento amarrou-se a gente ao troço p’la cintura p’lo pescoço indo assim tão carregada ferem com facas e lanças 4 73 Soldadim Catrapim Música: A. P. Braga Letra: Carlos Rodrigues In: António Pedro Braga - 1970 (Movieplay SON 100.008) Que linda menina, que vem de avental, Criadinha linda tem o general. Que lindo mancebo, de bota engraxada, Que olhos que deita à linda criada. Ai soldado, soldadim, catrapim ! Minha mão não te dou não, catrapão ! Não te dou deste meu peito A dor do meu coração. Que lindo navio, no cais a aprontar, Adeus soldadinho, que não vais voltar. Que linda menina, no cais a chorar, Adeus soldadinho, que não vais voltar. Ai soldado, soldadim, catrapim ! Minha mão não te dou não, catrapão ! Não te dou deste meu peito A dor do meu coração. as mulheres as crianças que se aferram à jangada mas rezam avé-marias padre-nossos litanias p’las almas dos mutilados que p’ra ali são abandonados às arfadas em arrancos em prantos e às golfadas cheio vai o batel e quase a afundar p’ra alijarem a carga botam gente ao mar engole uma vez de vinho e da marmelada um bocado o pobre de um marinheiro mesmo antes de ser lançado deixou-se então atirar com os braços cruzados e se ofereceu todo à morte tão quieto e calado e o piloto logo abençoou os seus dois filhos que ele próprio lançou e sem saberem nadar sem a nau sem a tábua nem pau vai o mundo a adornar cai ao mar cai ao mar Pequena era a tua filha e não a quiseram salvar ficou ao colo da ama no barco grande a afundar suplicas da jangada enfim ergues teus braços de mãe mas não te escuta ninguém a chusma salva-se assim Gaspar Ximenes calado não chores alto cuidado tu chora só no coração ou também vais como o teu irmão às arfadas aos arrancos 72 5 em prantos e às golfadas passam dias a fio à pura fome e sede assim falou um senhor tem cuidado E há quem vá tragando urina e morra do que bebe outros da água salgada falecem dos sentidos gritando sempre por água lançam-se ao mar ressequidos vai-se o soldado e o china não fica dor nem mágoa botou-se Estêvão mulato com a mesma sede de água e na tarde daquela aridez atirou-se o padre e o piloto outra vez e sem saberem nadar sem a nau sem tábua nem pau vai o mundo a adornar cai ao mar cai ao mar Nota: História Trágico-Marítima ’Carregada a nau no fundo do mar por cobiça e cuidando então que fosse ao fundo por quão rota e aberta ia, começaram por confessar-se sumariamente a alguns clérigos, sem tino e sem ordem, que o confessor chega a tapar a boca ao alienado que vai gritando alto os seus pecados. E a gente do mar, por natureza inumana e mal inclinada, embarcava em jangadas que construíam , roubando e destruindo tudo, e defendendo as embarcações dos quais que as vinham demandar, à força das espadas e de safanões. Foi o espectáculo deste dia o mais triste e lastimoso que se podia ver. E aquela gente toda aos arrecifes agarrada, e que a maré enchendo os afogava, bradavam pelos do batel e das jangadas nomeando muitos por seus nomes, toda a noite num perpétuo grito tamanho que penetrava os céus. ’ 6 71 Se tu fores ver o mar (Rosalinda) A flóber Letra e música: Fausto Música: Fausto; A. P. Braga Letra: Mário Henrique Leiria In: ’Fausto - atrás dos tempos vêm tempos’, 1996 Francisco Machado Rosalinda se tu fores à praia se tu fores ver o mar cuidado não te descaia o teu pé de catraia em óleo sujo à beira-mar Ainda me lembro. O melhor presente que tive foi sem dúvida aquela flóber. Toda a garotada da terra colaborou no meu entusiasmo. Íamos para o campo, pam pam, pardal aqui, pam pam, pardal ali. a branca areia de ontem está cheiinha de alcatrão as dunas de vento batidas são de plástico e carvão e cheiram mal como avenidas vieram para aqui fugidas a lama a putrefacção as aves já voam feridas e outras caem ao chão Mas na verdade Rosalinda nas fábricas que ali vês o operário respira ainda envenenado a desmaiar o que mais há desta aridez pois os que mandam no mundo só vivem querendo ganhar mesmo matando aquele que morrendo vive a trabalhar tem cuidado... A única arrelia que tive com ela foi quando um dia, sem querer, pam, acertei em cheio na tia Albertina. Para castigo não me deixaram ir ao enterro nota: gravações ’Fausto - P’ro que der e vier’-1974 (LP Orfeu STAT 025) ’Fausto - o Melhor dos Melhores’ -1994 (CD Moviplay MM 37 039) Rosalinda se tu fores à praia se tu fores ver o mar cuidado não te descaia o teu pé de catraia em óleo sujo à beira-mar Em Ferrel lá p´ra Peniche vão fazer uma central que para alguns é nuclear mas para muitos é mortal os peixes hão-de vir à mão um doente outro sem vida não tem vida o pescador morre o sável e o salmão isto é civilização 70 7 A ilha Rosie Letra e música: Fausto In: ’Por este rio acima’ Música: Fausto; A. P. Braga Letra: Reinaldo Ferreira In: ’Atrás dos tempos vêm tempos’, 1996 Serafim Faria Olhamos tudo em silêncio na linha da praia De olhos na noite suspensos do céu que desmaia; Ai lua nova de Outubro, trazes as chuvas e ventos, A alma a segredar, a boca a murmurar tormentos! Descem de nuvens de assombro taínhas e bagres Se as aves embalam os peixes em certos milagres; Levita-se o corpo da alma, no choro das ladainhas, Na reza dos condenados, nas pragas dos sitiados, Na ilha dos ladrões, quem sai? E leva este recado ao cais: São penas, são sinais. Adeus. Livra-me da fome que me consome, deste frio; Livra-me do mal desse animal que é este cio; Livra-me do fado e se puderes abençoado Leva-me a mim a voar pelo ar! Como se houvesse um encanto, uma estranha magia, O sol lentamente flutua nas margens do dia. Despe o meu corpo corsário, seca-me a veia maruja, Morde-me o peito aos ais, das brigas, dos punhais, Da ilha dos ladrões, quem sai? E leva este recado ao cais: São penas, são sinais. Adeus. Andamos nus e descalços, amantes, sedentos Se o véu da noite se deita na curva do tempo. Ai lua nova de Outubro, Os medos são medos das chuvas e ventos, Da alma a segredar, da boca a murmurar Eu, Rosie, eu se falasse eu dir-te-ia Que partout, everywhere, em toda a parte, A vida égale, idêntica, the same, É sempre um esforço inútil, Um voo cego a nada. Mas dancemos; dancemos Já que temos A valsa começada E o Nada Deve acabar-se também, Como todas as coisas. Tu pensas Nas vantagens imensas De um par Que paga sem falar; Eu, nauseado e grogue, Eu penso, vê lá bem, Em Arles e na orelha de Van Gogh... E assim entre o que eu penso e o que tu sentes A ponte que nos une - é estar ausentes. Nota: gravações Fausto - ’Histórias de Viajeiros’ ? - 19?? (LP ??) Fausto - ’o melhor dos melhores’ - 1994 (CD Movieplay MM 37 039) Fausto - ’atrás dos tempos vêm tempos’ - 1996 (CD Columbia COL 486826 2) Sheila - ?? (19??) (LP ??) Adeus 8 69 Roda da senhora rainha Ai se a Luzia Música: A. P. Braga Letra: Carlos Rodrigues In: António Pedro Braga - 1970 (Movieplay SON 100.008) Música: Nuno Rodrigues (?) Letra: António Avelar Pinho (?) Intérprete: Banda do Casaco In: Banda do Casaco: ’No Jardim da Celeste’ (1980) José João Senhora rainha, Deste seu reinado, Escolha a linda prenda Para o seu afilhado. Ai se a Luzia Ai se a Luzia Ai se a Luzia Ai se a Luzia Dos livros que tem, Se lhe tem amor, Dê-lhe todos eles Que o faça doutor. Ai se a Luzia soubesse que vinhas Ai como depois tu vieste Ai mandaria soprar pela rua Ai três vendavais lá do Nordeste Das terras que tem, Desta sesmaria, Dê-lhe todas elas Vossa senhoria. Ai se a Luzia um dia soubesse Ai se a Luzia um dia sonhasse Ai se a Luzia um dia a saber viesse Melhor seria que um mau caruncho em mim entrasse Do ouro que tem, Das jóias reais, Dê-lhe todas elas Não serão demais. Ai se a Luzia sonhasse a metade Ai das coisas que nós fizemos Ai rogaria um livro de pragas Ai uma antologia dos demos Das armas que tem, Vosso regimento, Dê-lhe todas elas Será o sargento. Ai se a Luzia um dia soubesse ... Ai se a Luzia contasse os cabelos Ai que de ti tenho guardados Ai não chegaria nem a vida inteira Ai para tê-los todos contados Do pão guardais No real celeiro Dê-lhe todo ele Que é o primeiro. Ai se a Luzia um dia soubesse ... A coroa que tendes, Do vosso mandar, Ao vosso afilhado A ide entregar. 68 9 Ao longo de um claro rio de água doce Letra e música: Fausto In: ’Crónicas da terra ardente’ Luís Quinta E parecia aquele Tejo este rio doirado parecia até que tu vinhas comigo a meu lado ou seria das flores e das matas cheirosas das madressilvas dos frutos das ervas babosas O i o ai, nós queremos é justiça o i o ai, e dinheiro para o bife o i o ai e não esta coboiada em que é tudo do sherife Nota: Em 1979 Sérgio Godinho gravava um disco chamado ’Campolide’ e numa das canções cantavam, Adriano Correia de Oliveira, Zeca Afonso e Fausto. Essa canção chama-se ’Quatro quadras soltas’ e nas quadras, cada um dos convidados canta conforme o mencionado. E pareciam campinas vales tão estendidos pareciam mesmo os teus braços que me abraçam cingidos ou seria das silvas do gengibre do benjoim do cheiro daquela chuva dos cacimbos enfim porque haveria de ter saudades tuas ao longo de um claro rio de água doce E parecia verão no imenso arvoredo parecia até que dizias qualquer coisa em segredo ou seria dos dias muito quedos sem fim das noites muito melhor assombradas assim porque haveria de ter saudades tuas ao longo de um claro rio de água doce 10 67 o i o ai, quando uma cobra tem sede o i o ai, corta-lhe logo a cabeça encosta-a bem à parede Das restantes quadras soltas não tinha sequer noticia dirigi-me a uma esquadra e descrevi-as a um policia Respondeu-me: com efeito nós temos aqui retida uma quadra sem papeis que encontramos na má vida Nota: História Trágico-Marítima ’E tomou-se a boca do rio de S.Lourenço, achando por novas que numa povoação acima estavam alguns portugueses no resgate do marfim. E foi-se por ele, muito quietamente, entre margens povoadas de altas e espessas árvores que levam entretecidas os braços em formosa folhagem. E as matas de diversas cores cheiravam a tigres, onças, leões elefantes e gatos de algália. As flores em cachos amarelos fazem um suave rugido que aos três sentidos enche e farta. Cheirava a oregãos, fetos, agriões, poejos, malvas, alecrim... alecrim...’ Diz que é uma quadra oral sem identificação que uma quadra popular não precisa de cartão Se diz que pertence ao povo o povo que venha cá que eu quero ver a licença o registo e o alvará [Fausto:] O i o, Quando se embebeda o pobre o i o ai, dizem olha o borracho o i o ai, quando se emborracha o rico acham graça ao figurão Fui com a quadra popular À procura da restante quando o policia de longe disse: venha aqui um instante Temos aqui uma outra não sei se você conhece desrespeita a autoridade e diz o que lhe apetece Tem uma rima forçada e palavras estrangeiras e semeia a confusão entre as outras prisioneiras Se for sua leve-a já que é pior que erva daninha olhe bem pra ela é sua? Olhei bem pra ela: é minha 66 11 Atrás dos tempos Quatro quadras soltas Letra e música: Fausto Letra e música: Sérgio Godinho In: ’Campolide’, 79 Francisco Machado Victor Almeida eu pego na minha viola e canto assim esta vida a correr eu sei que é pouco e não consola nem cozido à portuguesa há sequer quem canta sempre se levanta calados é que podemos cair com vinho molha-se a garganta se a lua nova está para subir que atrás dos tempos vêm tempos e outros tempos hão-de vir eu sei de histórias verdadeiras umas belas outras tristes de assombrar do marinheiro morto em terra em luta por melhor vida no mar da velha criada despedida que enlouqueceu e se pôs a cantar e do trapeiro da avenida mal dormido se pôs a ouvir que atrás dos tempos vêm tempos e outros tempos hão-de vir sei vitórias e derrotas nesta luta que vamos vencer se quem trabalha não se esgota tem seu salário sempre a descer olha o polícia olha o talher olha o preço da vida a subir mas quem mal faz por mal espere o tirano fez janela p´ra fugir que atrás dos tempos vêm tempos e outros tempos hão-de vir mas esse tempo que há-de vir não se espera como a noite espera o dia nasce da força de braços e pernas em harmonia já basta tanta desgraça que a gente tem no peito a cair não é do povo nem da raça mas do modo como vês o porvir 12 Eu vi quatro quadras soltas À solta lá numa herdade amarrei-as com uma corda e carreguei-as p’rá cidade Cheguei com elas a um largo e logo ao largo se puseram foram ter com a família e com os amigos que ainda o eram Viram fados, viram viras viram canções de revolta e encontraram bons amigos em mais que uma quadra solta Uma viu um livro chamado ’Este livro que vos deixo’ e reviu velhas amizades eram quadras do Aleixo [Adriano:] O i o ai, há já menos quem se encolha o i o ai, muita gente fala e canta o i o ai, já se vai soltando a rolha que nos tapava a garganta Ora bem tinha marcado encontro com as quadras soltas pois sim, fiquei pendurado como um tolo ali às voltas Chegou uma e disse: Andei a cumprimentar parentes e eu aqui a enxotar moscas vocês são mesmo indecentes Respondeu-me: ó patrãozinho desculpe lá esta seca estive a beber um copinho com uma quadra do Zeca [e é o próprio sôr Zeca Afonso que vai cantar aqui] O i o ai, disse-me um dia um careca 65 sicais: uma cujo autor ignoro e ouvi pela primeira vez em 1970, por um dos ’trovadores’ anónimos que na época apareciam e de que não existem gravações em disco e uma outra que ouvi cantar numa sessão com o então Padre Francisco Fanhais , alguns anos depois. Suponho também que Fanhais nunca chegou a gravá-la em disco (em CD muito menos, como é óbvio: ninguém sabia o que isso era). Ouvi várias opiniões sobre o autor destes versos, que não sei identificar. Em qualquer dos casos, o estilo musical das versões que conheci não tinha raízes de Coimbra. Chamemoslhe apenas canção de protesto. um abraço. Fernando Pais 64 13 A tua presença Letra e música: Fausto In: ’Crónicas da terra ardente’ discursos, salmão, lagosta pão duro, desespero e crosta e sorrisos de hospedeiras e assassínios de ceifeiras Luís Quinta [Refrão] Eu já nada sinto e afinal eu gosto de não sentir nada sozinho na calma das horas passadas tão só numa outra quietude num sossego tão so’ sossegado e esquecido eu me esqueça de mim aos bocados adormece-me um sono dormente que aos poucos se apaga um sonho qualquer mas não me acordes não mexas não me embales sequer eu quero estar mesmo como eu estou quietamente ausente assim a viagem que eu não vou nunca chega até ao fim é longe longe tão longe que de repente tu chegas tu brilhas e luzes na cor das laranjas tu coras e tinges a mancha da marca na alma da luz da sombra que finges e tu já não me largas saudade tu queres-me tanto e se eu lembro tu mexes comigo tu andas cá dentro à volta do meu coração no meu pensamento também e por mais que eu não queira tu queres-me bem e desdobras os mundos em cores 14 Ai não há dúvida continuam ainda a existir até ao raio que há-de partir até ao raio que os há-de partir Nota: história deste Protesto Para o caso de ter interesse a sua publicação, envio uma ’cantiga de protesto’. Escrevo-a de memória, pode eventualmente faltar um ou outro verso. A crise estudantil e de acentuada contestação ao regime vigente culmina em Coimbra com a greve aos exames no ano lectivo de 1968/69. A partir da visita do então Presidente Américo Tomás à inauguração do edifício das Matemáticas (17 de Abril, se não erro), sessão em que consegui então estar presente, sendo presidente da Associação o actual deputado Alberto Martins, meu colega de curso nesse ano, as coisas complicaram-se. O presidente da Associação Académica pediu a palavra, que lhe foi recusada pelo Almirante. Depois, já no exterior da sala, nos corredores do novo edifício, houve vaias e recordo-me de um outro colega nosso, africano, lhe ter chamado à sua passagem sepulcro caiado (o Almirante vestia de branco). Isto para além de outros mimos. A polícia de choque não interveio logo ali, o que teria tido consequências muito graves, talvez pelo facto do Ministro da Justiça de então, prof. da Faculdade de Direito de Coimbra Mário Júlio de Almeida e Costa), estar ali presente e ter evitado que tal acontecesse. Esta foi pelo menos a versão que correu entre os estudantes. Uma das formas de mobilização dos estudantes passava pelo convívio em que participavam alguns dos cantores de protesto, como foi o caso de Adriano ou de José Afonso. Como diz um poeta espanhol, a poesia é uma arma carregada de futuro e os versos eram então uma das armas possíveis de combate. A par das canções do Adriano ou do Zeca, hoje conhecidas porque delas existem registos gravados, outras eram cantadas, algumas demasiado ’fortes’ para poderem ser sequer gravadas. Dos versos que escrevo a seguir conheci duas versões mu- 63 Protesto Letra e música: ? Intérprete: Francisco Fanhais (canção de Coimbra) Fernando Pais ’Palhaço lacrimogéneo’ Ai não há dúvida vocês existem ,vocês persistem vocês existem com grémios e tribunais medidas de segurança e capitais plenários, mercenários, festivais grades torturas verbenas cativeiros de longas penas com vistas para o mar para matar para matar [Refrão] Palhaço lacrimogéneo capacete de aço palhaço lacrimogéneo capacete de aço Vocês existem, baionetas e chá com bolos cooperativas, clubes de mães concursos de gatos e cães cães de luxo para lamber cães policias polícias cães para morder barracas de lata para viver trapos suor e lodo amáveis conversas de casaca e sobre as nossas cabeças a matraca a matraca a matraca... e levas-me pela tua mão cativando o meu corpo a minha alma a razão só a tua presença é que me inquieta aquela outra ausência dói como um passado projecta aquele futuro que se foi p’ra longe longe tão longe que nunca se acaba esta inquietação se evitas momentos já quase finais e ficas comigo ainda e sempre um pouco mais tu nunca me deixas saudade tu nunca me deixas Nota: História Trágico-Marítima ’Entrados nas calmarias mornas daquela terra doentia por jazer debaixo do Trópico de Cancro, dormíamos debaixo de árvores, estirados nos matos, muito ausentes e numa prostração muito queda. E assim estando nós, numa tarde, chegou um homem com quatro ou cinco laranjas dizendo: ’Eis aqui a fruta da nossa terra’; com a qual se fez um novo pranto e choro. E foi então que decidimos partir deste lugar onde estivéramos todo este tempo com muito bom agasalho’. [Refrão] Vocês existem bordados a ponto cruz fazendo a guerra sugando o povo sorvendo a luz com Estoris, cocktails, recepções whisky, cascatas e rallies trapeiras e esconsos saguões 62 15 Caixinhas Música: Letra: A. P. Braga In: António Pedro Braga - 1972 (Movieplay SP 20.013) (versão portuguesa de ’Litle Boxes’ de M. Reynolds) Caixinhas, Caixinhas de tic-tac São caixinhas pequeninas, Caixinhas todas iguais Umas brancas, outras verdes, Outras de cor azul, Todas são de tic-tac Iguaizinhas todas são A gente que mora nelas Foi toda para a universidade Onde os meteram em caixas Ficaram todos iguais. Engenheiros, advogados, Médicos e administradores Todos são de tic-tac Iguaizinhos como são. Aos domingos vão ao futebol E bebem Martini dry, Têm filhos que são machos E também hão-de estudar. Ao findarem o liceu Irão para a universidade, Onde os vão meter em caixas Vão ficar todos iguais. Os meninos vão para a vida Casam-se e têm bébés Em caixas, pequenas caixas, Caixinhas todas iguais. Umas brancas, outras verdes, Outras de cor azul, Todas são de tic-tac, Iguaizinhas como são... 16 61 P’ró que der e vier Canção para desfazer equívocos Letra e música: Fausto; A. P. Braga In: ’Fausto - o melhor dos melhores’, 1994 Letra e música: A. P. Braga In: António Pedro Braga - 1970 (Movieplay SON 100.008) Tenho a cabeça espetada entre a noite e a madrugada. Tenho um braço deitado entre o perfeito e o enjeitado. E um canhão apontado para qualquer lado enfeudado. Venha lá quem quiser estou p´ró que der e vier. Irmão, irmão doutra cor, Não estranhes que te chame irmão. Tu lutas pela liberdade Que os brancos não te querem dar. E estranhas, que sendo um deles, Eu venha chamar-te irmão. De manhã mal acordado, de noite pouco ensonado. Para a aventura que teço encontro os dias do avesso. Na terra do perder Deus é dinheiro Diabo é não o ter. Seja homem ou mulher estou p´ró que der e vier. Dia a dia num aperto que mais parece um deserto. No descalabro do medo mal se levanta um dedo. Aconteça o que acontecer não temos nada a perder, dê no que vier a dar assim não podemos ficar. Irmão, irmão doutra cor, Ouve o que quero dizer. A nossa luta é a mesma, Contra os homens que exploram homens E não nos deixam ser homens, Sejam eles brancos ou não. Irmão, irmão doutra cor, Já vês porque te chamo irmão ? Vamos dar as nossas mãos E um dia que já não vem longe, Os homens já saberão Que somos irmãos. Hei-de ser a barricada, arma, fogo, despedida. Hei-de ser ferro forjado, dia e noite amor calado. Hei-de ser punho cerrado e ternura docemente e haja lá o que houver estou p´ró que der e vier. nota: gravações Fausto - p’rÓ que der e vier - 1974 (LP Orfeu STAT 025) Fausto - o melhor dos melhores - 1994 (CD Movieplay MM 37 039) 60 17 Cantar brejeiro Nota: Texto inspirador Letra e música: Pedro Barroso In: ’Cantos à Terra Madre’, 1982 O meu desejo seria sair desta viagem muito rico em pouco tempo sem pensar quão arriscada eu então levaria a vida, confiado nesta promessa e enganado nesta esperança. Na cidade de Diu, preparava-se então a guerra por suspeita que se tinha da vinda da armada do turco. Parti de Portugal na primavera e, navegando todos os barcos pela sua rota, cheguei ao mar da outra banda do oceano. A Índia. Fernão Mendes Pinto, in ’Peregrinação’ Victor Almeida Passei de longe para ver se não te via Se me esquecia do teu doce bamboleio Mas por má sorte caminhaste para mim Olhos gulosos e assim Com o vento a colar teu seio Olha a perninha, a perninha da menina Olha a perninha, a perninha a dar a dar Cabeça não tem juízo e a perna é que vai pagar Cabeça não tem juízo e a perna é que vai pagar Amor de verão que foi no tempo das colheitas E o teu perfume tinha a naturalidade De quem descansa dos trabalhos e maleitas Nos derriços mais gostosos de uma breve mocidade Olha a perninha, a perninha da menina Olha a perninha, a perninha a dar a dar Cabeça não tem juízo e a perna é que vai pagar Cabeça não tem juízo e a perna é que vai pagar Mas da seara cortada fez-se farinha Dessa farinha com fermento fiz o pão Ficou-me ao peito essa trigueira rainha Que me roubou alegria ao meu canto e coração Olha a perninha, a perninha da menina Olha a perninha, a perninha a dar a dar Cabeça não tem juízo e a perna é que vai pagar Cabeça não tem juízo e a perna é que vai pagar 18 59 Porque não me vês Cantar é Letra e música: Fausto In: Por este rio acima Letra e música: Pedro Barroso In: ’Água mole em pedra dura’, 1978 Versos de segunda Victor Almeida Meu amor adeus Tem cuidado Se a dor é um espinho Que espeta sozinho Do outro lado Meu bem desvairado Tão aflito Se a dor é um dó Que desfaz o nó E desata um grito Um mau olhado Um mal pecado E a saudade é uma espera É uma aflição Se é Primavera É um fim de Outono Um tempo morno É quase Verão Em pleno Inverno É um abandono Porque não me vês Maresia Se a dor é um ciúme Que espalha um perfume Que me agonia Vem me ver amor De mansinho Se a dor é um mar Louco a transbordar Noutro caminho Quase a espraiar Quase a afundar E a saudade é uma espera É uma aflição Se é Primavera É um fim de Outono Um tempo morno É quase Verão Em pleno Inverno É um abandono Estou aqui meus senhores para vos dizer CANTAR não pode ter regulamento só canta de encomenda quem quiser quem faz uma canção tem que a assumir e não apenas querer passar o tempo CANTAR, CANTAR, CANTAR CANTAR não é redoma lucro ou montra é ter uma intenção e ter coragem não é a lantejoula luzida o que mais conta Mas ter por arma uma viola na bagagem e ter um povo inteiro na viagem CANTAR, CANTAR, CANTAR é acreditar CANTAR é alma, é dedos, dor e riso CANTAR é acto de combate colectivo pela acusação, pelo despertar e pelo aviso CANTAR é uma maneira de ser povo CANTAR é uma maneira de estar vivo CANTAR, CANTAR CANTAR, CANTAR é acreditar 58 19 Canto de amor e trabalho Porque Intérprete: Banda do Casaco Música: Francisco Fanhais(?) Letra: Sofia de Melo Breyner Intérprete: Francisco Fanhais; Adriano Correia de Oliveira (?) jj (Poder ser tocado com uma única posição de viola!!!) [arre burra] Já lá vai o sol Já lá vai o dia [anda bonita, anda burra] Já me chega a noite Já se vê a aldeia [é bonita toma lá mais rédea] [ah que nos doi o corpo] A meranda é pouca E o trabalho e o trabalho é duro A mulher á espera Já se fez noitinha E a menina é já dormindo E a menina está dormindo E O teu pai vem do trabalho Meu amor vem da campina Ao chegar o caldinho ao burralho Para não acordar a menina Porque os outros se mascaram mas tu não Porque os outros usam a virtude Para comprar o que não tem perdão Porque os outros têm medo mas tu não Porque os outros são os túmulos caiados Onde germina calada a podridão. Porque os outros se calam mas tu não. Porque os outros se compram e se vendem E os seus gestos dão sempre dividendo. Porque os outros são hábeis mas tu não. Porque os outros vão à sombra dos abrigos E tu vais de mãos dadas com os perigos. Porque os outros calculam mas tu não. Sophia de Mello Breyner [arre burra é bonita vamos embora] Ai o frio já aperta Vai-se o verão vem o inverno [arreda que vai doido brrr] Terra brava terra farta Terra que te quero bem Terra que te quero bem [eh bonita dá mais rédea, ah já se vê a casa] Eh a ceia no braseiro Já lhe sinto o gosto Já lhe sinto o cheiro E a mulher à espera E a menina está dormindo [oh bonita] Ai a menina está dormindo O teu pai vem do trabalho Meu amor vem da campina Ao chegar o caldinho ao burralho Para não acordar a menina 20 57 Carteiro em bicicleta Nota: Texto inspirador Letra e música: João Afonso In: ’Missanga’, Maio 97 ’Continuando nosso caminho por este rio acima, tudo quanto a vista alcançava era embarcações com toldos de seda e muitos estandartes, guiões e bandeiras e varandas pintadas de diversas pinturas. Ali se trocam e oferecem todas as sortes de caças e carnes quantas se criam na terra, que nós andávamos como pasmados como requeria tão espantosa e quase incrível maravilha. Noutras embarcações vêm grande soma de amas para crianças enjeitadas e outras, pelo tempo que cada um quiser, mulheres velhas que servem de parteiras dando mézinhas para botarem crianças, e fazerem parir ou não parir. Noutros barcos há homens honrados que servem de correctores de casamentos e consolam mulheres enlutadas por morte de maridos e filhoes e outras coisas desta maneira. Em barcaças de muitas cores, com invenções de muitos perfumes e cheiros muito suaves vêm homens e mulheres tangendo em vários instrumentos para darem música a quem os quiser ouvir. Na terra do labirinto das trinta e duas leis, nesta terra toda lavrada de rios, a China, há uma tamanha observância da justiça e um governo tão igual e tão excelente, que todas as outras, por mais grandiosas que sejam, ficam escuras e sem lustro.’ Fernão Mendes Pinto, in ’Peregrinação’ Luís Garção Nunes G Quando for grande vou ser C D quero ser um realejo G C Ter um pedaço de terra D G fogo que salta ao braseiro G C dormir no fundo da serra D G quero ser um realejo C Carteiro em bicicleta D G leva recados de amor (F#) Em C vem o sono com a música D G ao som do... realejo Quando for grande vou ser quero ser um realejo Ter um burro viola e cão chamar a dança dos sapos correr com a bola na mão quero ser um realejo Quando for grande vou ser quero ser um realejo colher amêndoa em telhados dar banana às andorinhas dobrar o cabo do mundo quero ser um realejo 56 21 Cavalo de várias cores Música: A. P. Braga Letra: Reinaldo Ferreira In: António Pedro Braga - 1972 (Movieplay SP 20.013) Quero um cavalo de várias cores, Quero-o depressa que vou partir. Esperam-me prados com tantas flores, Que só cavalos de várias cores Podem servir. Quero uma sela feita de restos Dalguma nuvem que ande no céu. Quero-a evasiva - nimbos e cerros Sobre os valados, sobre os aterros, Que o mundo é meu. Quero que as rédeas façam prodígios: Voa, cavalo, galopa mais, Trepa às camadas do céu sem fundo, Rumo àquele ponto, exterior ao mundo, Para onde tendem as catedrais. Deixem que eu parta, agora, já, Antes que murchem todas as flores. Tenho a loucura, sei o caminho, Mas como posso partir sózinho Sem um cavalo de várias cores ? Que eu também meu bem Por este rio acima isto que é de uns Também é de outros Não é mais nem menos Nascidos foram todos Do suor da fêmea Do calor do macho Aquilo que uns tratam Não hão-de tratar Outros de outra coisa Pois o que vende o fresco Não vende o salgado Nem também o seco Na terra em harmonia Perfeita e suave das margens do rio Por este rio acima Meu sonho Quanto eu te quero Eu nem sei Eu nem sei Fica um bocadinho mais Que eu também Que eu também meu bem Por este rio acima Deixando para trás A côncava funda Da casa do fumo Cheguei perto do sonho Flutuando nas águas Dos rios dos céus Escorre o gengibre e o mel Sedas porcelanas Pimenta e canela Recebendo ofertas De músicas suaves Em nossas orelhas leve como o ar A terra a navegar Meu bem como eu vou Por este rio acima 22 55 Por este rio acima Coça barriga Letra e música: Fausto In: Por este rio acima/gravado em 82 Letra e música: Fausto In: ’O Despertar dos Alquimistas’, 1985 Versos de segunda(Fev, 96) Victor Almeida Eu venho das horas do diabo venho mais negro do que a vida quem me deitou um mau olhado com a boca posta de lado com sete pragas rangidas não foi bruxo nem feiticeira namoradeira nem foi Deus nem foi Belzebu lá estás tu foi esta cidade esse muro aquele estranho futuro a tropeçar na avenida eu já me lancei na bebida trago o corpo esquinado a insinuar um bailado vou-me rir muito vou gozar mais vou cantar o sol-e-dó perder-me em doses fatais tu vais ver só o pé de vento que se vai levantar comigo a rodopiar Por este rio acima Deixando para trás A côncava funda Da casa do fumo Cheguei perto do sonho Flutuando nas águas Dos rios dos céus Escorre o gengibre e o mel Sedas porcelanas Pimenta e canela Recebendo ofertas De músicas suaves Em nossas orelhas leve como o ar A terra a navegar Meu bem como eu vou Por este rio acima Por este rio acima Os barcos vão pintados De muitas pinturas Descrevem varandas E os cabelos de Inês Desenham memórias Ao longo da água Bosques enfeitiçados Soutos laranjeiras Campinas de trigo Amores repartidos Afagam as dores Quando são sentidos Monstros adormecidos Na esfera do fogo Como nasce a paz Por este rio acima Coça, coça a barriga pantominas Coça, coça a barriga Patavinas eu sou o ’Coça Barriga’ coça, coça a barriga vitaminas coça, coça a barriga nicotinas Eu sou o ’Coça Barriga’ os meus olhos são vaga-lumes inquietos num claro vazio vacilam em noites suicidas insinuam despedidas à deriva meu navio amanhã não sei o que virá Meu sonho Quanto eu te quero Eu nem sei Eu nem sei Fica um bocadinho mais Que eu também 54 23 o que será dá saudades minhas lá no bairro Cara-Linda vou partir como um condenado amargo e desfuturado achincalhando no fundo e ao chegar à beira mundo abrir então os meus braços p’ra me lançar no espaço vou-me rir muito vou gozar mais vou cantar o sol-e-dó perder-me em doses fatais tu vais ver só o pé de vento que se vai levantar comigo a rodopiar Coça, coça a barriga pantominas Coça, coça a barriga Patavinas eu sou o ’Coça Barriga’ coça, coça a barriga vitaminas coça, coça a barriga nicotinas Eu sou o ’Coça Barriga’ Pão de pedras Letra e música: Pedro Barroso In: ’Quem canta seus males espanta’, 1980 jj já são horas meus senhores de lançar o grão à terra n’é com ercas da regueira que a gente ganha a guerra verdes campos verdes prados p’la ’nha mão aqui plantei vejo estevas vejo cardos crescerem des’qu’abalei a cavar em terra allheia ganho pedras não sementes não sei fazer pão de pedras p’ra fome que a gente sente bate forte meu coração salta minha fera encurralada já ninguém ouve o teu pregão tua mais linda canção futurando as madrugadas vou fugir contigo p’ra Manágua Olhos-d’Água ainda um dia destes sou feliz por um triz darei largas à minha loucura e já ninguém me segura quando eu voltar sonhador eu hei-de ser belo e sedutor tu vais por uso e costume enlouquecer de ciúmes vou-me rir muito vou gozar mais vou cantar o sol-e-dó perder-me em doses fatais tu vais ver só 24 53 O menino negro não entrou na roda Música: Luís Cília Letra: Geraldo Bessa Victor Intérprete: A. P. Braga O menino negro não entrou na roda das crianças brancas - as crianças brancas que brincavam todas numa roda viva de canções festivas, gargalhadas francas... O menino negro não entrou na roda. o pé de vento que se vai levantar comigo a rodopiar Coça, coça a barriga pantominas Coça, coça a barriga Patavinas eu sou o ’Coça Barriga’ coça, coça a barriga vitaminas coça, coça a barriga nicotinas Eu sou o ’Coça Barriga’ E chegou o vento junto das crianças - e bailou com elas e cantou com elas as canções e danças das suaves brisas, as canções e danças das brutais procelas. O menino negro não entrou na roda. Pássaros, em bando, voaram chilreando sobre as cabecinhas lindas dos meninos e pousaram todos em redor. bailaram seus vôos, cantando seus hinos ... O menino negro não entrou na roda. ’Venha cá, pretinho, venha cá brincar’ - disse um dos meninos com seu ar feliz. A mamã, zelosa, logo fez reparo; o menino branco já não quis, não quis ... o menino negro não entrou na roda. O menino negro não entrou na roda das crianças brancas. ficou só, parado com olhar cego, ficou só, calado com voz de morto. Nota: Gravações: Luís Cília - 196? (??) António Pedro Braga - 1970 (Movieplay SON 100.008) 52 25 Comboio malandro O mar Música: Fausto Letra: António Jacinto In: ’Pró que der e vier’, 74 Letra e música: Fausto In: ’Crónicas da terra ardente’ Luís Quinta Victor Almeida (António Jacinto - poeta angolano) O comboio malandro passa passa sempre c’oa força dele u-u hi-hi te-que-tem te-que-tem nas janelas muita gente ah boa viagée adeus homée n’ganas bonitas quintandeiras de lenço encarnado levam cana no Luanda p’ra vender u-u hi-hi aquele vagon de grades tem bois mu mu mu tem outro igual com este dos bois leva gente muita gente como eu cheio de poeira gente triste como os bois gente que vai no contrato tem bois que morre no viagée mas preto não morre canta como é criança mulondé iakessoa! uadibalée uadibalée uadibalée esse comboio malandro sozinho na estrada de ferro passa passa sem respeito u-u hi-hi com muito fumo no trás tem-que-tem tem-que-tem E todo o mar se cobriu de infinitas riquezas de anil e sedas e jóias e de odoríferas drogas de si deitava nas praias moscatéis e licores adoçando de sua bravura o mar nas margens adamascadas andam náufragos dispersos mariscando lagostas ostras choupas taínhas e bebem vinhos distintos de singulares aromas se anda ao longo da costa em ofertas o mar E entregou Leonor seus cabelos aos ventos na quietude tão só tão ausente de tudo e mais quieta era a luz no sossego das águas e uma música escorre dos céus devagar E fazem tendas de aduelas de alcatifas majestosas de outras peças de ouro e prata de cambraias e cetins cobertas de colchas vermelhas de rosários de cristal mas mais garrido do que toda aquela praia o mar e fazem velas das camisas e outras de damasco verde as amarras de outros panos de veludo carmesim de um remo fizeram o mastro e a enxárcia de uma linha e tão docemente embala este batel o mar Comboio malandro o fogo que sai no corpo dele vai no capim e queima vai nas casas dos preto e queima esse comboio malandro já queimou meu milho Nota: História Trágico-Marítima Se na lavra do milho tem pacaças eu faço armadilha no chão se na lavra tem Kiombos eu tiro espingarda de Kimbundo ’Ao outro dia, e depois que amanheceu, estava toda a praia cheia de coisas preciosas numa confusa ordem com que a desaventura tinha tudo aquilo ordenado. E havia gente na fralda do mar com vista espalhada pelas praias e arrecifes porque em saindo o sol, o abrandou de sua fúria e braveza. ’ 26 Se todo o mar se cobriu de infinitas riquezas 51 Oh pastor que choras e mato neles! Música: Fausto Letra: José Gomes Ferreira Intérprete: Né Ladeiras In: ’Todo este céu’, 1997 Mas se vai lá fogo de comboio malandro deixa só fica fumo muito fumo mesmo... Victor Almeida Mas espera só quando esse comboio malandro descarrilar e os branco chamar os preto p’ra empurrar eu vou... mas não empurro Oh pastor que choras o teu rebanho onde está? Deita as mágoas fora, carneiros é o que mais há uns de finos modos outros vis por desprazer... Mas carneiros todos com carne de obedecer. Quem te pôs na orelha essas cerejas, pastor? São de cor vermelha, vai pintá-las de outra cor. Vai pintar os frutos, as amoras, os rosais... Vai pintar de luto, as papoilas dos trigais. Nem com o chicote finjo só que faço força comboio malandro você vai ver só o castigo vai dormir mesmo no meio do caminho! 50 27 Como um sonho acordado O homem e a burla Letra e música: Fausto In: ’Por este rio acima’; gravado em 82 Letra e música: Fausto; A. P. Braga In: ’Fausto - o melhor dos melhores’, 1994 José João Como se a Terra corresse Inteirinha atrás de mim O medo ronda-me os sentidos Por abaixo da minha pele Ao esgueirar-se viscoso Escorre pegajoso E sai Pelos meus poros Pelos meus ais Ele penetra-me nos ossos Ao derramar-se sedento Nas entranhas sinuosas Entre as vísceras mordendo Salta e espalha-se no ar Vai e volta Delirante Tão delirante É como um sonho acordado Esse vulto besuntado A revolver-se no lodo A deslizar de uma larva Emergindo lá no fundo Tenho medo ó medo Leva tudo é tudo teu Mas deixa-me ir Arrasta-me à côncava do fundo Do grande lago da noite Cruzando as grades de fogo Entre o Céu e o Inferno Até à boca escancarada Esfaimada Atrás de mim Atrás de mim É como um sonho acordado Esses olhos no escuro Das carpideiras viúvas Pelo pai assassinado Desventrado por seu filho Que possuiu lascivo A sua própria mãe E sua amante 28 Tira o laço de melaço, que amordaça uma farsa, e passo a passo estica o braço no compasso de um abraço, Oh pá ! Disseram-lhe que fosse mas nunca que ficava tosse, tosse ou coce, coce O fosse é uma foice mas ficava é uma fava. Éh ! É um forno, que transtorno, a nuvem vermelha da outra banda mas p’ra quem manda. Só não para quem vai no passo de quem anda. Bum ! Tanto acena que faz pena e tem certo toque de escroque. Troque, troque Toda burla é uma gula e a toca é muito foca. Talvez um dia a engula ! nota: gravações Fausto - p’rÓ que der e vier - 1974 (LP Orfeu STAT 025) Fausto - o melhor dos melhores - 1994 (CD Movieplay MM 37 039) 49 são noites, são dias Vou no espantoso trono das águas vou no tremendo assopro dos ventos vou por cima dos meus pensamentos arrepia arrepia e arrepia sim senhor que vida boa era a de Lisboa O mar das águas ardendo o delírio do céu a fúria do barlavento arreia a vela e vai marujo ao leme vira o barco e cai marujo ao mar vira o barco na curva da morte e olha a minha sorte e olha o meu azar e depois do barco virado grandes urros e gritos na salvação dos aflitos estala, mata, agarra, ai quem me ajuda reza, implora, escapa, ai que pagode rezam tremem heróis e eunucos são mouros são turcos são mouros acode! Aquilo é uma tempestade medonha aquilo vai p’ra lá do que é eterno aquilo era o retrato do inferno vai ao fundo vai ao fundo e vai ao fundo sim senhor que vida boa era a de Lisboa 48 Meu amor quando eu morrer Ó linda Veste a mais garrida saia Se eu vou morrer no mar alto Ó linda E eu quero ver-te na praia Mas afasta-me essas vozes Linda Tens medo dos vivos E dos mortos decepados Pelos pés e pelas mãos E p’lo pescoço e pelos peitos Até ao fio do lombo Como te tremem as carnes Fernão Mendes Nota: Diário da viagem, Fernão Mendes Pinto Como um sonho acordado ’Embarcado num jurupango, com o Mouro Coja Ale, feitor do capitão de Malaca, fomos surgir no rio de Parles no Reino de Quedá. Nesse tempo, estava o rei celebrando com grande aparato e pompa fúnebre as exéquias da morte de seu pai, que ele matara às punhaladas para casar com a sua mãe que já estava prenhe dele. Para evitar murmurações mandou lançar pregão que sob gravíssimas mortes ninguém falasse no que já era feito. Mas Coja Ale era de sua natureza solto de língua e muito atrevido em falar o que lhe vinha à sua vontade. E foi assim que preso por soldados fui chamado ao rei e olhando para onde ele me acenava, vi jazer de bruços no chão muitos corpos mortos todos metidos num charco de sangue. Entre eles o mouro Coja Ale. Por mais de uma grande hora estive como pasmado, debaixo de abano, sem poder falar, arremessado aos pés do elefante em que el-rei estava. Depois de perdoado pelas lamentações e desculpas toscas, mas que vinham ao momento muito a propósito, me fiz à vela muito depressa pelo grande medo e risco de morte em que me vira’. 29 Daqui desta Lisboa O barco vai de saída Música: Fausto; A. P. Braga Letra: Alexandre O’Neill In: ’atrás dos tempos vêm tempos’, 1996 Letra e música: Fausto In: ’Por este rio acima’ gravado em 82 José João AP Braga Daqui, desta Lisboa compassiva, Nápoles por Suíços habitada, onde a tristeza vil, e apagada, se disfarça de gente mais activa; Daqui, deste pregão de voz antiga, deste traquejo feroz de motoreta ou do outro de gente mais selecta que roda a quatro a nalga e a barriga; Daqui, deste azulejo incandescente, da soleira da vida e piaçaba, da sacada suspensa no poente, do ramudo tristôlho que se apaga; Daqui, só paciência, amigos meus ! Peguem lá o soneto e vão com Deus... nota: gravações FAUSTO - P’RÓ QUE DER E VIER - 1974 (LP Orfeu STAT 025) FAUSTO - atrás dos tempos vêm tempos - 1996 (CD Columbia COL 486826 2) O barco vai de saída Adeus ao cais de Alfama Se agora ou de partida Levo-te comigo ó cana verde Lembra-te de mim ó meu amor Lembra-te de mim nesta aventura P’ra lá da loucura P’ra lá do Equador Ah mas que ingrata ventura Bem me posso queixar da Pátria a pouca fartura Cheia de mágoas ai quebra-mar Com tantos perigos ai minha vida Com tantos medos e sobressaltos Que eu já vou aos saltos Que eu vou de fugida Sem contar essa história escondida Por servir de criado essa senhora Serviu-se ela também tão sedutora Foi pecado Foi pecado E foi pecado sim senhor Que vida boa era a de Lisboa Gingão de roda batida corsário sem cruzado ao som do baile mandado em terra de pimenta e maravilha com sonhos de prata e fantasia com sonhos da cor do arco-íris desvaira se os vires desvairas magias Já tenho a vela enfunada marrano sem vergonha judeu sem coisa nem fronha vou de viagem ai que largada só vejo cores ai que alegria só vejo piratas e tesouros são pratas, são ouros, 30 47 nota: embora os meus olhos sejam Esta canção foi bastante escandalosa; Mas tenho de lhe dar razão: natação obrigatória Música: Francisco Fanhais Letra: António Aleixo Intérprete: Francisco Fanhais jj (letra escrita de memória=pouco fiável) Embora os meus olhos sejam os mais pequenos do mundo o que importa é que eles vejam o que os homens são no fundo Que importa perder a vida na luta contra a traição se a razão mesmo vencida não deixa de ser razão Vós que lá do vosso império prometeis um mundo novo calai-vos que pode o povo querer um mundo novo a sério Eu não tenho vistas largas nem grande sabedoria mas dão-me as horas amargas lições de filosofia 46 31 É ouvi-los Natação obrigatória Música: Nuno Rodrigues Letra: António Avelar Pinho Intérprete: Banda do Casaco In: Banda do Casaco: ’No Jardim da Celeste’ (1980) Música: Nuno Rodrigues Letra: António Avelar Pinho Intérprete: Banda do Casaco In: Banda do Casaco: ’No Jardim da Celeste’ (1980) José João José João É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los numa faina de enganar o pé ai numa faina de enganar o pão Viemos do fundapique passámos no tudasaque não há mal que mal nos fique nem há cu que não dê traque mal a gente vem ao mundo logo a gente vai ao fundo É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los numa teima de enganar o Zé ai numa teima de enganar o Zé até mais não Andámos no malsalgado brigámos no daceleste e o escorbuto mal curado com tratamento indigesto mal a gente vem ao mundo logo a gente vai ao fundo É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los numa farda com espingarda ai é ai numa farsa com espingarda na mão [refrão=] Natação obrigatória na introdução à instrução primária natação obrigatória para a salvação é condição necessária não há cu que não dê traque não há cu que não dê traque mal a gente vem ao mundo logo a gente vai ao fundo É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los numa treta de pasmar até ai numa treta de pasmar até um cão Pusemos a cachimónia em papas de sarrabulho e quando as noites são de insónia damos voltas ao entulho mal a gente vem ao mundo logo a gente vai ao fundo Aprendizes da política só na tática do ’empocha’ vem a tempestade mítica e s cabeça dá na rocha mal a gente vem ao mundo logo a gente vai ao fundo [refrão] 32 45 Não sou o vosso rei Eu não sei que faz o sol Letra e música: Fausto In: ’Por este rio acima’ Letra e música: João Afonso In: ’Missangas’, 1997 Victor Almeida Victor Almeida Não sou o vosso rei Nem o Tom Michel Eu sou um português Que limpa o cu ao papel Eu não sei que faz o sol que não dá na minha rua hei-de me vestir de branco que de branco anda a lua É uma loucura, é uma loucura Não vi ribeira sem água nem praça sem pelourinho nem donzelas sem amores nem padres sem beber vinho Nota: O Fausto nos quatro ou cinco álbuns mais recentes costuma (na primeira edição dos discos) meter uma musiquita que nem consta no ’cardápio’. É sempre uma brincadeira em que no final das músicas desatam todos a rir às gargalhas. Esta é do ’Por este rio acima’ e dura 30 segundos Lindos olhos de pau preto nariz de pena aparada dentes de letra miúda boca de carta cerrada Lindos olhos tem a cobra quando olha de repente mais vale um bom desengano que andar enganado sempre 44 33 Eu tenho um fraquinho por ti Não canto porque sonho Letra e música: Fausto Música: Fausto; A. P. Braga Letra: Eugénio de Andrade In: ’atrás dos tempos vêm tempos’, 1996 Francisco Machado Eu tenho um fraquinho por ti tu não me dás atenção tu não me passas cartão quando me ponho a teu lado tremo nervoso de agrado e meto os pés pelas mãos tu vais gozando um bocado a beber vinho tostão eu com o discurso engasgado fico a um canto, que arrelia de toda a cervejaria onde vais rasgar a noite se te olho com ternura olhas-me do alto da burra que mais parece um açoite é um susto um arrepio que me malha em ferro frio. AP Braga Não canto porque sonho. Canto porque és real. Canto o teu olhar maduro, teu sorriso puro, a tua graça animal. Canto porque sou homem. Se não cantasse seria mesmo bicho sadio embriagado na alegria da tua vinha sem vinho. Eu tenho um fraquinho por ti que me vai de lés a lés tu dás-me sempre com os pés quando me atiro enamorado num estilo desajeitado disfarço em bagaço e café tu fumas o teu cruzado e fazes troça, pois é, já tenho o caldo entornado esqueces-me da noite p´ro dia em alegre companhia de batidas e rodadas tu ficas nas sete quintas marimbas, estás-te nas tintas p´ra que eu ande às três pancadas basta um toque sedutor eu cá sou um pinga-amor. Canto porque o amor apetece. Porque o feno amadurece nos teus braços deslumbrados. Porque o meu corpo estremece ao vê-los nus e suados. nota: gravações Fausto - p’rÓ que der e vier - 1974 (LP Orfeu STAT 025) Fausto - atrás dos tempos vêm tempos - 1996 (CD Columbia COL 486826 2) Eu tenho um fraquinho por ti que me abrasa o coração quase me arrasa a razão a tua risada rasteira põe-me de rastos, à beira do enfarte da congestão encharco-me em chá de cidreira mofas de mim atiras-te ao chão 34 43 que o seu pé deixou para que fizesse um feitiço bem forte e seguro e dele nascesse um amor como o meu e o feitiço falhou zombando à tua maneira lá fazes a despedida ao grupo que vai de saída dos amigos da Trindade mas no fim da noite, à noitinha, tu ficas triste e sozinha à procura de amizade e como é costume teu chamas o parvo que sou eu. Andei barbado, sujo e descalço como um monangamba procuraram por mim não viu ai não viu ai não viu Benjamim e perdido me deram no morro da Samba Afino uma voz de tenor ensaio um ar duro de macho quando estás na mó de baixo quero ver-te arrependida mas numa manobra atrevida rufia, muito mansinha, dás-me um beijo e uma turrinha que me põe num molho num cacho estremeço com pele de galinha e gosto de ti trapaceira da tua piada certeira do teu aparte final do teu jeito irreverente do teu aspecto contente do teu modo bestial noutra palavra mais quente eu tenho um fraquinho por ti. Para me distrair levaram-me ao baile do Sr. Januário, mas ela lá estava num canto a rir, contando o meu caso às moças mais lindas do bairro operário Tocaram a rumba e dancei com ela e num passo maluco voamos na sala qual uma estrela riscando o céu e a malta gritou ’Aí Benjamim’ Olhei-a nos olhos sorriu para mim pedi-lhe um beijo lá lá lá lá lá lá lá lá lá lá E ela disse que sim 42 35 Horas de ponta e mola namoro Música: Nuno Rodrigues Letra: António Avelar Pinho Intérprete: Banda do Casaco In: ’Dos Benefícios dum Vendido no Reino dos Binifácios’, 1994 Música: Fausto Letra: Viriato Cruz Intérprete: Sérgio Godinho In: De pequenino se torce o destino, 1976 Victor Almeida jj É um sujeito é um escritório uma gravata, um suspensório uma conversa de latrina é um verbete, uma aldrabice é um trabalho , uma chatice entre fumo e aspirina Mandei-lhe uma carta em papel perfumado e com letra bonita dizia ela tinha um sorriso luminoso tão triste e gaiato como o sol de Novembro brincando de artista nas acácias floridas na fímbria do mar É numa rua o pôr da sola calçada nas horas de ponta e mola são conversas de cotovelo é um eléctrico um pendura um regresso e uma tontura é um sorrir muito amarelo É uma casa uma família uma torrada um chá de tília uma conversa de fastídio é um chinelo e um menino televisão com o Vitorino a lentidão de um suicídio É numa rua o pôr da sola calçada nas horas de ponta e mola é um silencio e um ritual são os lacaios do comendador são as gravatas sem côr na procissão dum funeral Sua pele macia era suma-uma sua pele macias cheirando a rosas seus seios laranja laranja do Loge eu mandei-lhe essa carta e ela disse que não Mandei-lhe um cartão que o amigo maninho tipografou ’por ti sofre o meu coração’ num canto ’sim’ noutro canto ’não’ e ela o canto do ’não’ dobrou Mandei-lhe um recado pela Zefa do sete pedindo e rogando de joelhos no chão pela Sra do Cabo, pela Sta Efigénia me desse a ventura do seu namoro e ela disse que não Mandei à Vó Xica, quimbanda de fama a areia da marca 36 41 Menina e moça Mariana das sete saias Música: Fausto Frazão Letra: popular Intérprete: António Menano (fado de Coimbra) Letra e música: Fausto Francisco Machado Sete saias tem Mariana e um emprego em Miraflores viveu ontem de recados mas hoje vive de amores Fernando Pais É preciso ter sofrido e ter-se de amores chorado para se entender o sentido que há na tristeza do fado. sete carros vão chegando pelas tardes de Belém com sete homens que a beijam entre Sintra e o Cacém Numa noite de luar sob um céu doce e calado nada se pode igualar à mágoa de um triste fado. não tenho amores nem tenho amantes pois quantos amados não sei tenho alguns amadores olha para mim lá na terra onde morei escutava pela rádio o folhetim sete saias tem Mariana à noite no Parque Mayer dança bolero em dó menor ali num cantinho qualquer «ai de mim» - diz Mariana se um dia amor me faltar ao almoço eu já não como e como menos ao jantar não tenho amores nem tenho amantes pois quantos amados não sei tenho alguns amadores e sustento dois lá na terra onde morei sem trabalho que é da vida p´ra depois sete saias tem Mariana nesta roda de contraste a tua vida serve bem aqueles que nunca amaste Mariana das sete saias 40 37 Menina dos olhos de água se sopra o vento suão deixas de ser uma almofada entre o mandado e o mandão Letra e música: Pedro Barroso In: ’Cantos da Borda D’Água’,1986 cai-te essa flor do cabelo e amores do coração Creissac & amigos(ago.96) C Am Menina em teu peito sinto o Tejo Dm G e vontades marinheiras de aproar Menina em teus lábios sinto fontes de água doce que corre sem parar Menina em teus olhos vejo espelhos e em teus cabelos nuvens de encantar E em teu corpo inteiro sinto feno rijo e tenro que nem sei explicar Se houver alguém que não goste não gaste, deixe ficar que eu só por mim quero te tanto que não vai haver menina para sobrar Aprendi nos ’esteiros’ com Soeiro e aprendi na ’fanga’ com Redol Tenho no rio grande o mundo inteiro e sinto o mundo inteiro no teu colo Aprendi a amar a madrugada que desponta em mim quando sorris És um rio cheio de água lavada e dás rumo à fragata que escolhi Se houver alguém que não goste não gaste, deixe ficar que eu só por mim quero te tanto que não vai haver menina para sobrar 38 39