Fanhais, Banda do Casaco, João Afonso, Fausto

Transcrição

Fanhais, Banda do Casaco, João Afonso, Fausto
Fanhais, Banda do Casaco, João
Afonso, Fausto, Pedro Barroso
Arquivo de letras de música
28 de Janeiro de 2002
1
Conteúdo
A chusma salva-se assim . . . . . . .
A flóber . . . . . . . . . . . . . . . .
A ilha . . . . . . . . . . . . . . . . .
Ai se a Luzia . . . . . . . . . . . . .
Ao longo de um claro rio de água doce
Atrás dos tempos . . . . . . . . . . .
A tua presença . . . . . . . . . . . . .
Caixinhas . . . . . . . . . . . . . . .
Canção para desfazer equívocos . . .
Cantar brejeiro . . . . . . . . . . . .
Cantar é . . . . . . . . . . . . . . . .
Canto de amor e trabalho . . . . . . .
Carteiro em bicicleta . . . . . . . . .
Cavalo de várias cores . . . . . . . . .
Coça barriga . . . . . . . . . . . . . .
Comboio malandro . . . . . . . . . .
Como um sonho acordado . . . . . .
Daqui desta Lisboa . . . . . . . . . .
embora os meus olhos sejam . . . . .
É ouvi-los . . . . . . . . . . . . . . .
Eu não sei que faz o sol . . . . . . . .
Eu tenho um fraquinho por ti . . . . .
Horas de ponta e mola . . . . . . . . .
Mariana das sete saias . . . . . . . . .
Menina dos olhos de água . . . . . . .
Menina e moça . . . . . . . . . . . .
namoro . . . . . . . . . . . . . . . .
Não canto porque sonho . . . . . . . .
Não sou o vosso rei . . . . . . . . . .
Natação obrigatória . . . . . . . . . .
O barco vai de saída . . . . . . . . . .
O homem e a burla . . . . . . . . . .
Oh pastor que choras . . . . . . . . .
O mar . . . . . . . . . . . . . . . . .
O menino negro não entrou na roda . .
Pão de pedras . . . . . . . . . . . . .
Por este rio acima . . . . . . . . . . .
Porque . . . . . . . . . . . . . . . . .
Porque não me vês . . . . . . . . . .
P’ró que der e vier . . . . . . . . . . .
Protesto . . . . . . . . . . . . . . . .
Quatro quadras soltas . . . . . . . . .
Roda da senhora rainha . . . . . . . .
Rosie . . . . . . . . . . . . . . . . .
Se tu fores ver o mar (Rosalinda) . . .
Soldadim Catrapim . . . . . . . . . .
S. Simão . . . . . . . . . . . . . . . .
2
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Uma cantiga de desemprego
Uma cantiga de desemprego . . . . . . . . . . . .
Letra e música: Fausto
Francisco Machado
Fumo um cigarro deirado
no mês de Janeiro
fecho a cortina da vida
espreguiço em Fevereiro
e procuro trabalho
nesta esperança de Março
já me farta de tanto Abril
e aquilo que não faço
espreito por um funil
a promessa de Maio
porque esperar prometido
nessa eu já não caio
queimo os dias de Junho
no sol quente de Julho
esfrego as mãos de contente
num sorriso de entulho
para teu grande desgosto
janto contigo em silêncio
e lentamente esquecido
digo-te adeus em Agosto
meu Setembro perdido
numa esquina que eu roço
e penso em Outubro
o menos que posso
mas quando sinto a verdade
daquilo que cansa
nunca houve vontade
do tempo de andança
sinto força em Novembro
juro luta em Dezembro
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A chusma salva-se assim
S. Simão
Letra e música: Fausto
In: ’Crónicas da terra ardente’
Música: João Afonso
Letra: popular
Intérprete: João Afonso
In: ’Novas vos trago’,1999 (Amélia Muge, Brigada Victor Jara,
Gaiteiros de Lisboa, João Afonso, Sérgio Godinho)
(romance)
Luís Quinta
Já anda a gente do mar
a fazer fardos e trouxas
arrombando porões
a roubar arcas e caixões
e abandonam as mulheres
os filhos desamparados
que choram muito assustados
sem outra consolação
que uns abraçados com outros
incham das águas aos poucos
dos tragos salgados da morte
imploram a Deus outra sorte
às arfadas
aos arrancos
em prantos
e às golfadas
e uns se afogam de vez
deixando-se ir ao fundo
e se entregam assim
ao sono mais profundo
outros gritam aos céus
pela absolvição
e se enforcam depois
com suas próprias mãos
perneando com a morte
as pernas descarnadas
feitas em rachas em lanhos
e tão estilhaçadas
que por esta parte em destroços
lhes vão caindo os tutanos dos ossos
e sem saberem nadar
sem a nau
sem tábua nem pau
vai o mundo adornar
cai ao mar
cai ao mar
João Moças, jj
Em Castela há um santo que se chama S. Simão
onde vão frades e freiras ouvir a missa e sermão;
e também D. Maria, das mais altas que lá vão.
Ao entrar para a igreja sete frades namorou;
o que estava a dizer missa logo para trás olhou;
o que mudou o missal sete folhas lhe rasgou;
o que dava as galhetes todo o vinho lhe arramou;
e o que tocava o sino do campanário saltou;
quebrava sete costelas e um braço deslocou!
Mal haja a D. Maria e mais quem na cá passou;
em tão poucochinho tempo tento mal ela causou!
Nota:
segundo o livro (de 60 paginas!) que acompanha o disco,
Este romance encontra-se documentado já no século XVI em
folhetos de cordel.
Daquela assada do barco
constroem seu salvamento
amarrou-se a gente ao troço
p’la cintura p’lo pescoço
indo assim tão carregada
ferem com facas e lanças
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Soldadim Catrapim
Música: A. P. Braga
Letra: Carlos Rodrigues
In: António Pedro Braga - 1970 (Movieplay SON 100.008)
Que linda menina, que vem de avental,
Criadinha linda tem o general.
Que lindo mancebo, de bota engraxada,
Que olhos que deita à linda criada.
Ai soldado, soldadim, catrapim !
Minha mão não te dou não, catrapão !
Não te dou deste meu peito
A dor do meu coração.
Que lindo navio, no cais a aprontar,
Adeus soldadinho, que não vais voltar.
Que linda menina, no cais a chorar,
Adeus soldadinho, que não vais voltar.
Ai soldado, soldadim, catrapim !
Minha mão não te dou não, catrapão !
Não te dou deste meu peito
A dor do meu coração.
as mulheres as crianças
que se aferram à jangada
mas rezam avé-marias
padre-nossos litanias
p’las almas dos mutilados
que p’ra ali são abandonados
às arfadas
em arrancos
em prantos
e às golfadas
cheio vai o batel
e quase a afundar
p’ra alijarem a carga
botam gente ao mar
engole uma vez de vinho
e da marmelada um bocado
o pobre de um marinheiro
mesmo antes de ser lançado
deixou-se então atirar
com os braços cruzados
e se ofereceu todo à morte
tão quieto e calado
e o piloto logo abençoou
os seus dois filhos
que ele próprio lançou
e sem saberem nadar
sem a nau
sem a tábua nem pau
vai o mundo a adornar
cai ao mar
cai ao mar
Pequena era a tua filha
e não a quiseram salvar
ficou ao colo da ama
no barco grande a afundar
suplicas da jangada
enfim
ergues teus braços de mãe
mas não te escuta ninguém
a chusma salva-se assim
Gaspar Ximenes
calado
não chores alto
cuidado
tu chora só no coração
ou também vais como o teu irmão
às arfadas
aos arrancos
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em prantos
e às golfadas
passam dias a fio
à pura fome e sede
assim falou um senhor
tem cuidado
E há quem vá tragando urina
e morra do que bebe
outros da água salgada
falecem dos sentidos
gritando sempre por água
lançam-se ao mar ressequidos
vai-se o soldado e o china
não fica dor nem mágoa
botou-se Estêvão mulato
com a mesma sede de água
e na tarde daquela aridez
atirou-se o padre
e o piloto outra vez
e sem saberem nadar
sem a nau
sem tábua nem pau
vai o mundo a adornar
cai ao mar
cai ao mar
Nota: História Trágico-Marítima
’Carregada a nau no fundo do mar por cobiça e cuidando então que fosse ao fundo por quão rota e aberta ia, começaram
por confessar-se sumariamente a alguns clérigos, sem tino e
sem ordem, que o confessor chega a tapar a boca ao alienado
que vai gritando alto os seus pecados. E a gente do mar, por
natureza inumana e mal inclinada, embarcava em jangadas
que construíam , roubando e destruindo tudo, e defendendo
as embarcações dos quais que as vinham demandar, à força
das espadas e de safanões. Foi o espectáculo deste dia o mais
triste e lastimoso que se podia ver. E aquela gente toda aos arrecifes agarrada, e que a maré enchendo os afogava, bradavam
pelos do batel e das jangadas nomeando muitos por seus nomes, toda a noite num perpétuo grito tamanho que penetrava
os céus. ’
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Se tu fores ver o mar (Rosalinda)
A flóber
Letra e música: Fausto
Música: Fausto; A. P. Braga
Letra: Mário Henrique Leiria
In: ’Fausto - atrás dos tempos vêm tempos’, 1996
Francisco Machado
Rosalinda
se tu fores à praia
se tu fores ver o mar
cuidado não te descaia
o teu pé de catraia
em óleo sujo à beira-mar
Ainda me lembro. O melhor presente
que tive foi sem dúvida aquela flóber.
Toda a garotada da terra colaborou no meu
entusiasmo. Íamos para o campo,
pam pam, pardal aqui, pam pam, pardal ali.
a branca areia de ontem
está cheiinha de alcatrão
as dunas de vento batidas
são de plástico e carvão
e cheiram mal como avenidas
vieram para aqui fugidas
a lama a putrefacção
as aves já voam feridas
e outras caem ao chão
Mas na verdade Rosalinda
nas fábricas que ali vês
o operário respira ainda
envenenado a desmaiar
o que mais há desta aridez
pois os que mandam no mundo
só vivem querendo ganhar
mesmo matando aquele
que morrendo vive a trabalhar
tem cuidado...
A única arrelia que tive com ela foi
quando um dia, sem querer, pam,
acertei em cheio na tia Albertina.
Para castigo não me deixaram ir ao enterro
nota: gravações
’Fausto - P’ro que der e vier’-1974 (LP Orfeu STAT 025)
’Fausto - o Melhor dos Melhores’ -1994 (CD Moviplay MM
37 039)
Rosalinda
se tu fores à praia
se tu fores ver o mar
cuidado não te descaia
o teu pé de catraia
em óleo sujo à beira-mar
Em Ferrel lá p´ra Peniche
vão fazer uma central
que para alguns é nuclear
mas para muitos é mortal
os peixes hão-de vir à mão
um doente outro sem vida
não tem vida o pescador
morre o sável e o salmão
isto é civilização
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A ilha
Rosie
Letra e música: Fausto
In: ’Por este rio acima’
Música: Fausto; A. P. Braga
Letra: Reinaldo Ferreira
In: ’Atrás dos tempos vêm tempos’, 1996
Serafim Faria
Olhamos tudo em silêncio na linha da praia
De olhos na noite suspensos do céu que desmaia;
Ai lua nova de Outubro, trazes as chuvas e ventos,
A alma a segredar, a boca a murmurar tormentos!
Descem de nuvens de assombro taínhas e bagres
Se as aves embalam os peixes em certos milagres;
Levita-se o corpo da alma, no choro das ladainhas,
Na reza dos condenados, nas pragas dos sitiados,
Na ilha dos ladrões, quem sai?
E leva este recado ao cais:
São penas, são sinais. Adeus.
Livra-me da fome que me consome, deste frio;
Livra-me do mal desse animal que é este cio;
Livra-me do fado e se puderes abençoado
Leva-me a mim a voar pelo ar!
Como se houvesse um encanto, uma estranha magia,
O sol lentamente flutua nas margens do dia.
Despe o meu corpo corsário, seca-me a veia maruja,
Morde-me o peito aos ais, das brigas, dos punhais,
Da ilha dos ladrões, quem sai?
E leva este recado ao cais:
São penas, são sinais. Adeus.
Andamos nus e descalços, amantes, sedentos
Se o véu da noite se deita na curva do tempo.
Ai lua nova de Outubro,
Os medos são medos das chuvas e ventos,
Da alma a segredar, da boca a murmurar
Eu, Rosie, eu se falasse eu dir-te-ia
Que partout, everywhere, em toda a parte,
A vida égale, idêntica, the same,
É sempre um esforço inútil,
Um voo cego a nada.
Mas dancemos; dancemos
Já que temos
A valsa começada
E o Nada
Deve acabar-se também,
Como todas as coisas.
Tu pensas
Nas vantagens imensas
De um par
Que paga sem falar;
Eu, nauseado e grogue,
Eu penso, vê lá bem,
Em Arles e na orelha de Van Gogh...
E assim entre o que eu penso e o que tu sentes
A ponte que nos une - é estar ausentes.
Nota: gravações
Fausto - ’Histórias de Viajeiros’ ? - 19?? (LP ??)
Fausto - ’o melhor dos melhores’ - 1994 (CD Movieplay MM
37 039)
Fausto - ’atrás dos tempos vêm tempos’ - 1996 (CD Columbia COL 486826 2)
Sheila - ?? (19??) (LP ??)
Adeus
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Roda da senhora rainha
Ai se a Luzia
Música: A. P. Braga
Letra: Carlos Rodrigues
In: António Pedro Braga - 1970 (Movieplay SON 100.008)
Música: Nuno Rodrigues (?)
Letra: António Avelar Pinho (?)
Intérprete: Banda do Casaco
In: Banda do Casaco: ’No Jardim da Celeste’ (1980)
José João
Senhora rainha,
Deste seu reinado,
Escolha a linda prenda
Para o seu afilhado.
Ai se a Luzia
Ai se a Luzia
Ai se a Luzia
Ai se a Luzia
Dos livros que tem,
Se lhe tem amor,
Dê-lhe todos eles
Que o faça doutor.
Ai se a Luzia soubesse que vinhas
Ai como depois tu vieste
Ai mandaria soprar pela rua
Ai três vendavais lá do Nordeste
Das terras que tem,
Desta sesmaria,
Dê-lhe todas elas
Vossa senhoria.
Ai se a Luzia um dia soubesse
Ai se a Luzia um dia sonhasse
Ai se a Luzia um dia a saber viesse
Melhor seria que um mau caruncho em mim entrasse
Do ouro que tem,
Das jóias reais,
Dê-lhe todas elas
Não serão demais.
Ai se a Luzia sonhasse a metade
Ai das coisas que nós fizemos
Ai rogaria um livro de pragas
Ai uma antologia dos demos
Das armas que tem,
Vosso regimento,
Dê-lhe todas elas
Será o sargento.
Ai se a Luzia um dia soubesse
...
Ai se a Luzia contasse os cabelos
Ai que de ti tenho guardados
Ai não chegaria nem a vida inteira
Ai para tê-los todos contados
Do pão guardais
No real celeiro
Dê-lhe todo ele
Que é o primeiro.
Ai se a Luzia um dia soubesse
...
A coroa que tendes,
Do vosso mandar,
Ao vosso afilhado
A ide entregar.
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9
Ao longo de um claro rio de água doce
Letra e música: Fausto
In: ’Crónicas da terra ardente’
Luís Quinta
E parecia aquele Tejo
este rio doirado
parecia até que tu vinhas
comigo a meu lado
ou seria das flores
e das matas cheirosas
das madressilvas dos frutos
das ervas babosas
O i o ai, nós queremos é justiça
o i o ai, e dinheiro para o bife
o i o ai e não esta coboiada
em que é tudo do sherife
Nota:
Em 1979 Sérgio Godinho gravava um disco chamado ’Campolide’ e numa das canções cantavam, Adriano Correia de
Oliveira, Zeca Afonso e Fausto. Essa canção chama-se ’Quatro quadras soltas’ e nas quadras, cada um dos convidados
canta conforme o mencionado.
E pareciam campinas
vales tão estendidos
pareciam mesmo os teus braços
que me abraçam cingidos
ou seria das silvas
do gengibre do benjoim
do cheiro daquela chuva
dos cacimbos enfim
porque haveria de ter
saudades tuas
ao longo de um claro rio
de água doce
E parecia verão
no imenso arvoredo
parecia até que dizias
qualquer coisa em segredo
ou seria dos dias
muito quedos
sem fim
das noites
muito melhor
assombradas
assim
porque haveria de ter
saudades tuas
ao longo de um claro rio
de água doce
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67
o i o ai, quando uma cobra tem sede
o i o ai, corta-lhe logo a cabeça
encosta-a bem à parede
Das restantes quadras soltas
não tinha sequer noticia
dirigi-me a uma esquadra
e descrevi-as a um policia
Respondeu-me: com efeito
nós temos aqui retida
uma quadra sem papeis
que encontramos na má vida
Nota: História Trágico-Marítima
’E tomou-se a boca do rio de S.Lourenço, achando por novas que numa povoação acima estavam alguns portugueses
no resgate do marfim. E foi-se por ele, muito quietamente,
entre margens povoadas de altas e espessas árvores que levam
entretecidas os braços em formosa folhagem. E as matas de
diversas cores cheiravam a tigres, onças, leões elefantes e gatos de algália. As flores em cachos amarelos fazem um suave
rugido que aos três sentidos enche e farta. Cheirava a oregãos,
fetos, agriões, poejos, malvas, alecrim... alecrim...’
Diz que é uma quadra oral
sem identificação
que uma quadra popular
não precisa de cartão
Se diz que pertence ao povo
o povo que venha cá
que eu quero ver a licença
o registo e o alvará
[Fausto:]
O i o, Quando se embebeda o pobre
o i o ai, dizem olha o borracho
o i o ai, quando se emborracha o rico
acham graça ao figurão
Fui com a quadra popular
À procura da restante
quando o policia de longe
disse: venha aqui um instante
Temos aqui uma outra
não sei se você conhece
desrespeita a autoridade
e diz o que lhe apetece
Tem uma rima forçada
e palavras estrangeiras
e semeia a confusão
entre as outras prisioneiras
Se for sua leve-a já
que é pior que erva daninha
olhe bem pra ela é sua?
Olhei bem pra ela: é minha
66
11
Atrás dos tempos
Quatro quadras soltas
Letra e música: Fausto
Letra e música: Sérgio Godinho
In: ’Campolide’, 79
Francisco Machado
Victor Almeida
eu pego na minha viola
e canto assim esta vida a correr
eu sei que é pouco e não consola
nem cozido à portuguesa há sequer
quem canta sempre se levanta
calados é que podemos cair
com vinho molha-se a garganta
se a lua nova está para subir
que atrás dos tempos vêm tempos
e outros tempos hão-de vir
eu sei de histórias verdadeiras
umas belas outras tristes de assombrar
do marinheiro morto em terra
em luta por melhor vida no mar
da velha criada despedida
que enlouqueceu e se pôs a cantar
e do trapeiro da avenida
mal dormido se pôs a ouvir
que atrás dos tempos vêm tempos
e outros tempos hão-de vir
sei vitórias e derrotas
nesta luta que vamos vencer
se quem trabalha não se esgota
tem seu salário sempre a descer
olha o polícia olha o talher
olha o preço da vida a subir
mas quem mal faz por mal espere
o tirano fez janela p´ra fugir
que atrás dos tempos vêm tempos
e outros tempos hão-de vir
mas esse tempo que há-de vir
não se espera como a noite espera o dia
nasce da força de braços e pernas em harmonia
já basta tanta desgraça
que a gente tem no peito a cair
não é do povo nem da raça
mas do modo como vês o porvir
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Eu vi quatro quadras soltas
À solta lá numa herdade
amarrei-as com uma corda
e carreguei-as p’rá cidade
Cheguei com elas a um largo
e logo ao largo se puseram
foram ter com a família
e com os amigos que ainda o eram
Viram fados, viram viras
viram canções de revolta
e encontraram bons amigos
em mais que uma quadra solta
Uma viu um livro chamado
’Este livro que vos deixo’
e reviu velhas amizades
eram quadras do Aleixo
[Adriano:]
O i o ai, há já menos quem se encolha
o i o ai, muita gente fala e canta
o i o ai, já se vai soltando a rolha
que nos tapava a garganta
Ora bem tinha marcado
encontro com as quadras soltas
pois sim, fiquei pendurado
como um tolo ali às voltas
Chegou uma e disse: Andei
a cumprimentar parentes
e eu aqui a enxotar moscas
vocês são mesmo indecentes
Respondeu-me: ó patrãozinho
desculpe lá esta seca
estive a beber um copinho
com uma quadra do Zeca
[e é o próprio sôr Zeca Afonso que vai cantar aqui]
O i o ai, disse-me um dia um careca
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sicais: uma cujo autor ignoro e ouvi pela primeira vez em
1970, por um dos ’trovadores’ anónimos que na época apareciam e de que não existem gravações em disco e uma outra que ouvi cantar numa sessão com o então Padre Francisco Fanhais , alguns anos depois. Suponho também que
Fanhais nunca chegou a gravá-la em disco (em CD muito menos, como é óbvio: ninguém sabia o que isso era).
Ouvi várias opiniões sobre o autor destes versos, que não
sei identificar. Em qualquer dos casos, o estilo musical das
versões que conheci não tinha raízes de Coimbra. Chamemoslhe apenas canção de protesto.
um abraço. Fernando Pais
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A tua presença
Letra e música: Fausto
In: ’Crónicas da terra ardente’
discursos, salmão, lagosta
pão duro, desespero e crosta
e sorrisos de hospedeiras
e assassínios de ceifeiras
Luís Quinta
[Refrão]
Eu já nada sinto
e afinal
eu gosto de não sentir nada
sozinho na calma das horas passadas
tão só numa outra quietude
num sossego tão so’ sossegado
e esquecido
eu me esqueça de mim
aos bocados
adormece-me um sono dormente
que aos poucos se apaga
um sonho qualquer
mas não me acordes
não mexas
não me embales sequer
eu quero estar mesmo como eu estou
quietamente
ausente
assim
a viagem que eu não vou
nunca chega até ao fim
é longe
longe
tão longe
que de repente tu chegas
tu brilhas e luzes
na cor das laranjas
tu coras e tinges
a mancha da marca
na alma da luz
da sombra que finges
e tu já não me largas
saudade
tu queres-me tanto
e se eu lembro
tu mexes comigo
tu andas cá dentro
à volta do meu coração
no meu pensamento
também
e por mais que eu não queira
tu queres-me bem
e desdobras os mundos em cores
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Ai não há dúvida
continuam ainda a existir
até ao raio que há-de partir
até ao raio que os há-de partir
Nota: história deste Protesto
Para o caso de ter interesse a sua publicação, envio uma ’cantiga de protesto’. Escrevo-a de memória, pode eventualmente
faltar um ou outro verso.
A crise estudantil e de acentuada contestação ao regime
vigente culmina em Coimbra com a greve aos exames no ano
lectivo de 1968/69. A partir da visita do então Presidente
Américo Tomás à inauguração do edifício das Matemáticas
(17 de Abril, se não erro), sessão em que consegui então estar
presente, sendo presidente da Associação o actual deputado
Alberto Martins, meu colega de curso nesse ano, as coisas
complicaram-se. O presidente da Associação Académica pediu a palavra, que lhe foi recusada pelo Almirante. Depois,
já no exterior da sala, nos corredores do novo edifício, houve
vaias e recordo-me de um outro colega nosso, africano, lhe ter
chamado à sua passagem sepulcro caiado (o Almirante vestia
de branco). Isto para além de outros mimos. A polícia de
choque não interveio logo ali, o que teria tido consequências
muito graves, talvez pelo facto do Ministro da Justiça de então, prof. da Faculdade de Direito de Coimbra Mário Júlio
de Almeida e Costa), estar ali presente e ter evitado que tal
acontecesse. Esta foi pelo menos a versão que correu entre os
estudantes.
Uma das formas de mobilização dos estudantes passava
pelo convívio em que participavam alguns dos cantores de
protesto, como foi o caso de Adriano ou de José Afonso.
Como diz um poeta espanhol, a poesia é uma arma carregada
de futuro e os versos eram então uma das armas possíveis de
combate.
A par das canções do Adriano ou do Zeca, hoje conhecidas porque delas existem registos gravados, outras eram cantadas, algumas demasiado ’fortes’ para poderem ser sequer
gravadas.
Dos versos que escrevo a seguir conheci duas versões mu-
63
Protesto
Letra e música: ?
Intérprete: Francisco Fanhais
(canção de Coimbra)
Fernando Pais
’Palhaço lacrimogéneo’
Ai não há dúvida
vocês existem ,vocês persistem
vocês existem com grémios e tribunais
medidas de segurança e capitais
plenários, mercenários, festivais
grades torturas verbenas
cativeiros de longas penas
com vistas para o mar
para matar
para matar
[Refrão]
Palhaço lacrimogéneo capacete de aço
palhaço lacrimogéneo capacete de aço
Vocês existem,
baionetas e chá com bolos
cooperativas, clubes de mães
concursos de gatos e cães
cães de luxo para lamber
cães policias
polícias cães
para morder
barracas de lata para viver
trapos suor e lodo
amáveis conversas de casaca
e sobre as nossas cabeças
a matraca
a matraca
a matraca...
e levas-me pela tua mão
cativando o meu corpo
a minha alma
a razão
só a tua presença
é que me inquieta
aquela outra ausência
dói
como um passado projecta
aquele futuro que se foi
p’ra longe
longe
tão longe
que nunca se acaba
esta inquietação
se evitas momentos
já quase finais
e ficas comigo
ainda e sempre
um pouco mais
tu nunca me deixas
saudade
tu nunca me deixas
Nota: História Trágico-Marítima
’Entrados nas calmarias mornas daquela terra doentia por jazer debaixo do Trópico de Cancro, dormíamos debaixo de árvores, estirados nos matos, muito ausentes e numa prostração muito queda. E assim estando nós, numa tarde, chegou
um homem com quatro ou cinco laranjas dizendo: ’Eis aqui
a fruta da nossa terra’; com a qual se fez um novo pranto e
choro. E foi então que decidimos partir deste lugar onde estivéramos todo este tempo com muito bom agasalho’.
[Refrão]
Vocês existem
bordados a ponto cruz
fazendo a guerra
sugando o povo
sorvendo a luz
com Estoris, cocktails, recepções
whisky, cascatas e rallies
trapeiras e esconsos saguões
62
15
Caixinhas
Música:
Letra: A. P. Braga
In: António Pedro Braga - 1972 (Movieplay SP 20.013)
(versão portuguesa de ’Litle Boxes’ de M. Reynolds)
Caixinhas,
Caixinhas de tic-tac
São caixinhas pequeninas,
Caixinhas todas iguais
Umas brancas, outras verdes,
Outras de cor azul,
Todas são de tic-tac
Iguaizinhas todas são
A gente que mora nelas
Foi toda para a universidade
Onde os meteram em caixas
Ficaram todos iguais.
Engenheiros, advogados,
Médicos e administradores
Todos são de tic-tac
Iguaizinhos como são.
Aos domingos vão ao futebol
E bebem Martini dry,
Têm filhos que são machos
E também hão-de estudar.
Ao findarem o liceu
Irão para a universidade,
Onde os vão meter em caixas
Vão ficar todos iguais.
Os meninos vão para a vida
Casam-se e têm bébés
Em caixas, pequenas caixas,
Caixinhas todas iguais.
Umas brancas, outras verdes,
Outras de cor azul,
Todas são de tic-tac,
Iguaizinhas como são...
16
61
P’ró que der e vier
Canção para desfazer equívocos
Letra e música: Fausto; A. P. Braga
In: ’Fausto - o melhor dos melhores’, 1994
Letra e música: A. P. Braga
In: António Pedro Braga - 1970 (Movieplay SON 100.008)
Tenho a cabeça espetada
entre a noite e a madrugada.
Tenho um braço deitado
entre o perfeito e o enjeitado.
E um canhão apontado
para qualquer lado enfeudado.
Venha lá quem quiser
estou p´ró que der e vier.
Irmão, irmão doutra cor,
Não estranhes que te chame irmão.
Tu lutas pela liberdade
Que os brancos não te querem dar.
E estranhas, que sendo um deles,
Eu venha chamar-te irmão.
De manhã mal acordado,
de noite pouco ensonado.
Para a aventura que teço
encontro os dias do avesso.
Na terra do perder Deus é dinheiro
Diabo é não o ter.
Seja homem ou mulher
estou p´ró que der e vier.
Dia a dia num aperto
que mais parece um deserto.
No descalabro do medo
mal se levanta um dedo.
Aconteça o que acontecer
não temos nada a perder,
dê no que vier a dar
assim não podemos ficar.
Irmão, irmão doutra cor,
Ouve o que quero dizer.
A nossa luta é a mesma,
Contra os homens que exploram homens
E não nos deixam ser homens,
Sejam eles brancos ou não.
Irmão, irmão doutra cor,
Já vês porque te chamo irmão ?
Vamos dar as nossas mãos
E um dia que já não vem longe,
Os homens já saberão
Que somos irmãos.
Hei-de ser a barricada,
arma, fogo, despedida.
Hei-de ser ferro forjado,
dia e noite amor calado.
Hei-de ser punho cerrado
e ternura docemente
e haja lá o que houver
estou p´ró que der e vier.
nota: gravações
Fausto - p’rÓ que der e vier - 1974 (LP Orfeu STAT 025)
Fausto - o melhor dos melhores - 1994 (CD Movieplay MM
37 039)
60
17
Cantar brejeiro
Nota: Texto inspirador
Letra e música: Pedro Barroso
In: ’Cantos à Terra Madre’, 1982
O meu desejo seria sair desta viagem muito rico em pouco
tempo sem pensar quão arriscada eu então levaria a vida, confiado nesta promessa e enganado nesta esperança. Na cidade
de Diu, preparava-se então a guerra por suspeita que se tinha
da vinda da armada do turco. Parti de Portugal na primavera
e, navegando todos os barcos pela sua rota, cheguei ao mar da
outra banda do oceano. A Índia.
Fernão Mendes Pinto, in ’Peregrinação’
Victor Almeida
Passei de longe para ver se não te via
Se me esquecia do teu doce bamboleio
Mas por má sorte caminhaste para mim
Olhos gulosos e assim
Com o vento a colar teu seio
Olha a perninha, a perninha da menina
Olha a perninha, a perninha a dar a dar
Cabeça não tem juízo e a perna é que vai pagar
Cabeça não tem juízo e a perna é que vai pagar
Amor de verão que foi no tempo das colheitas
E o teu perfume tinha a naturalidade
De quem descansa dos trabalhos e maleitas
Nos derriços mais gostosos de uma breve mocidade
Olha a perninha, a perninha da menina
Olha a perninha, a perninha a dar a dar
Cabeça não tem juízo e a perna é que vai pagar
Cabeça não tem juízo e a perna é que vai pagar
Mas da seara cortada fez-se farinha
Dessa farinha com fermento fiz o pão
Ficou-me ao peito essa trigueira rainha
Que me roubou alegria ao meu canto e coração
Olha a perninha, a perninha da menina
Olha a perninha, a perninha a dar a dar
Cabeça não tem juízo e a perna é que vai pagar
Cabeça não tem juízo e a perna é que vai pagar
18
59
Porque não me vês
Cantar é
Letra e música: Fausto
In: Por este rio acima
Letra e música: Pedro Barroso
In: ’Água mole em pedra dura’, 1978
Versos de segunda
Victor Almeida
Meu amor adeus
Tem cuidado
Se a dor é um espinho
Que espeta sozinho
Do outro lado
Meu bem desvairado
Tão aflito
Se a dor é um dó
Que desfaz o nó
E desata um grito
Um mau olhado
Um mal pecado
E a saudade é uma espera
É uma aflição
Se é Primavera
É um fim de Outono
Um tempo morno
É quase Verão
Em pleno Inverno
É um abandono
Porque não me vês
Maresia
Se a dor é um ciúme
Que espalha um perfume
Que me agonia
Vem me ver amor
De mansinho
Se a dor é um mar
Louco a transbordar
Noutro caminho
Quase a espraiar
Quase a afundar
E a saudade é uma espera
É uma aflição
Se é Primavera
É um fim de Outono
Um tempo morno
É quase Verão
Em pleno Inverno
É um abandono
Estou aqui meus senhores para vos dizer
CANTAR não pode ter regulamento
só canta de encomenda quem quiser
quem faz uma canção tem que a assumir
e não apenas querer passar o tempo
CANTAR, CANTAR, CANTAR
CANTAR não é redoma lucro ou montra
é ter uma intenção e ter coragem
não é a lantejoula luzida o que mais conta
Mas ter por arma uma viola na bagagem
e ter um povo inteiro na viagem
CANTAR, CANTAR, CANTAR é acreditar
CANTAR é alma, é dedos, dor e riso
CANTAR é acto de combate colectivo
pela acusação, pelo despertar e pelo aviso
CANTAR é uma maneira de ser povo
CANTAR é uma maneira de estar vivo
CANTAR, CANTAR
CANTAR, CANTAR é acreditar
58
19
Canto de amor e trabalho
Porque
Intérprete: Banda do Casaco
Música: Francisco Fanhais(?)
Letra: Sofia de Melo Breyner
Intérprete: Francisco Fanhais; Adriano Correia de Oliveira (?)
jj (Poder ser tocado com uma única posição de viola!!!)
[arre burra]
Já lá vai o sol
Já lá vai o dia
[anda bonita, anda burra]
Já me chega a noite
Já se vê a aldeia
[é bonita toma lá mais rédea]
[ah que nos doi o corpo]
A meranda é pouca
E o trabalho e o trabalho é duro
A mulher á espera
Já se fez noitinha
E a menina é já dormindo
E a menina está dormindo
E
O teu pai vem do trabalho
Meu amor vem da campina
Ao chegar o caldinho ao burralho
Para não acordar a menina
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
Sophia de Mello Breyner
[arre burra é bonita vamos embora]
Ai o frio já aperta
Vai-se o verão vem o inverno
[arreda que vai doido brrr]
Terra brava terra farta
Terra que te quero bem
Terra que te quero bem
[eh bonita dá mais rédea, ah já se vê a casa]
Eh a ceia no braseiro
Já lhe sinto o gosto
Já lhe sinto o cheiro
E a mulher à espera
E a menina está dormindo
[oh bonita]
Ai a menina está dormindo
O teu pai vem do trabalho
Meu amor vem da campina
Ao chegar o caldinho ao burralho
Para não acordar a menina
20
57
Carteiro em bicicleta
Nota: Texto inspirador
Letra e música: João Afonso
In: ’Missanga’, Maio 97
’Continuando nosso caminho por este rio acima, tudo quanto
a vista alcançava era embarcações com toldos de seda e muitos estandartes, guiões e bandeiras e varandas pintadas de diversas pinturas. Ali se trocam e oferecem todas as sortes de
caças e carnes quantas se criam na terra, que nós andávamos
como pasmados como requeria tão espantosa e quase incrível
maravilha. Noutras embarcações vêm grande soma de amas
para crianças enjeitadas e outras, pelo tempo que cada um
quiser, mulheres velhas que servem de parteiras dando mézinhas para botarem crianças, e fazerem parir ou não parir.
Noutros barcos há homens honrados que servem de correctores de casamentos e consolam mulheres enlutadas por morte
de maridos e filhoes e outras coisas desta maneira. Em barcaças de muitas cores, com invenções de muitos perfumes e
cheiros muito suaves vêm homens e mulheres tangendo em
vários instrumentos para darem música a quem os quiser ouvir. Na terra do labirinto das trinta e duas leis, nesta terra
toda lavrada de rios, a China, há uma tamanha observância da
justiça e um governo tão igual e tão excelente, que todas as
outras, por mais grandiosas que sejam, ficam escuras e sem
lustro.’
Fernão Mendes Pinto, in ’Peregrinação’
Luís Garção Nunes
G
Quando for grande vou ser
C
D
quero ser um realejo
G
C
Ter um pedaço de terra
D
G
fogo que salta ao braseiro
G
C
dormir no fundo da serra
D
G
quero ser um realejo
C
Carteiro em bicicleta
D
G
leva recados de amor
(F#)
Em
C
vem o sono com a música
D
G
ao som do... realejo
Quando for grande vou ser
quero ser um realejo
Ter um burro viola e cão
chamar a dança dos sapos
correr com a bola na mão
quero ser um realejo
Quando for grande vou ser
quero ser um realejo
colher amêndoa em telhados
dar banana às andorinhas
dobrar o cabo do mundo
quero ser um realejo
56
21
Cavalo de várias cores
Música: A. P. Braga
Letra: Reinaldo Ferreira
In: António Pedro Braga - 1972 (Movieplay SP 20.013)
Quero um cavalo de várias cores,
Quero-o depressa que vou partir.
Esperam-me prados com tantas flores,
Que só cavalos de várias cores
Podem servir.
Quero uma sela feita de restos
Dalguma nuvem que ande no céu.
Quero-a evasiva - nimbos e cerros Sobre os valados, sobre os aterros,
Que o mundo é meu.
Quero que as rédeas façam prodígios:
Voa, cavalo, galopa mais,
Trepa às camadas do céu sem fundo,
Rumo àquele ponto, exterior ao mundo,
Para onde tendem as catedrais.
Deixem que eu parta, agora, já,
Antes que murchem todas as flores.
Tenho a loucura, sei o caminho,
Mas como posso partir sózinho
Sem um cavalo de várias cores ?
Que eu também
meu bem
Por este rio acima
isto que é de uns
Também é de outros
Não é mais nem menos
Nascidos foram todos
Do suor da fêmea
Do calor do macho
Aquilo que uns tratam
Não hão-de tratar
Outros de outra coisa
Pois o que vende o fresco
Não vende o salgado
Nem também o seco
Na terra em harmonia
Perfeita e suave
das margens do rio
Por este rio acima
Meu sonho
Quanto eu te quero
Eu nem sei
Eu nem sei
Fica um bocadinho mais
Que eu também
Que eu também
meu bem
Por este rio acima
Deixando para trás
A côncava funda
Da casa do fumo
Cheguei perto do sonho
Flutuando nas águas
Dos rios dos céus
Escorre o gengibre e o mel
Sedas porcelanas
Pimenta e canela
Recebendo ofertas
De músicas suaves
Em nossas orelhas
leve como o ar
A terra a navegar
Meu bem como eu vou
Por este rio acima
22
55
Por este rio acima
Coça barriga
Letra e música: Fausto
In: Por este rio acima/gravado em 82
Letra e música: Fausto
In: ’O Despertar dos Alquimistas’, 1985
Versos de segunda(Fev, 96)
Victor Almeida
Eu venho das horas do diabo
venho mais negro do que a vida
quem me deitou um mau olhado
com a boca posta de lado
com sete pragas rangidas
não foi bruxo
nem feiticeira
namoradeira
nem foi Deus
nem foi Belzebu
lá estás tu
foi esta cidade
esse muro
aquele estranho futuro
a tropeçar na avenida
eu já me lancei na bebida
trago o corpo esquinado
a insinuar um bailado
vou-me rir muito
vou gozar mais
vou cantar o sol-e-dó
perder-me em doses fatais
tu vais ver só
o pé de vento que se vai levantar
comigo a rodopiar
Por este rio acima
Deixando para trás
A côncava funda
Da casa do fumo
Cheguei perto do sonho
Flutuando nas águas
Dos rios dos céus
Escorre o gengibre e o mel
Sedas porcelanas
Pimenta e canela
Recebendo ofertas
De músicas suaves
Em nossas orelhas
leve como o ar
A terra a navegar
Meu bem como eu vou
Por este rio acima
Por este rio acima
Os barcos vão pintados
De muitas pinturas
Descrevem varandas
E os cabelos de Inês
Desenham memórias
Ao longo da água
Bosques enfeitiçados
Soutos laranjeiras
Campinas de trigo
Amores repartidos
Afagam as dores
Quando são sentidos
Monstros adormecidos
Na esfera do fogo
Como nasce a paz
Por este rio acima
Coça, coça a barriga
pantominas
Coça, coça a barriga
Patavinas
eu sou o ’Coça Barriga’
coça, coça a barriga
vitaminas
coça, coça a barriga
nicotinas
Eu sou o ’Coça Barriga’
os meus olhos são vaga-lumes
inquietos num claro vazio
vacilam em noites suicidas
insinuam despedidas
à deriva meu navio
amanhã não sei o que virá
Meu sonho
Quanto eu te quero
Eu nem sei
Eu nem sei
Fica um bocadinho mais
Que eu também
54
23
o que será
dá saudades minhas lá no bairro
Cara-Linda
vou partir como um condenado
amargo e desfuturado
achincalhando no fundo
e ao chegar à beira mundo
abrir então os meus braços
p’ra me lançar no espaço
vou-me rir muito
vou gozar mais
vou cantar o sol-e-dó
perder-me em doses fatais
tu vais ver só
o pé de vento que se vai levantar
comigo a rodopiar
Coça, coça a barriga
pantominas
Coça, coça a barriga
Patavinas
eu sou o ’Coça Barriga’
coça, coça a barriga
vitaminas
coça, coça a barriga
nicotinas
Eu sou o ’Coça Barriga’
Pão de pedras
Letra e música: Pedro Barroso
In: ’Quem canta seus males espanta’, 1980
jj
já são horas meus senhores
de lançar o grão à terra
n’é com ercas da regueira
que a gente ganha a guerra
verdes campos verdes prados
p’la ’nha mão aqui plantei
vejo estevas vejo cardos
crescerem des’qu’abalei
a cavar em terra allheia
ganho pedras não sementes
não sei fazer pão de pedras
p’ra fome que a gente sente
bate forte meu coração
salta minha fera encurralada
já ninguém ouve o teu pregão
tua mais linda canção
futurando as madrugadas
vou fugir contigo p’ra Manágua
Olhos-d’Água
ainda um dia destes sou feliz
por um triz
darei largas à minha loucura
e já ninguém me segura
quando eu voltar sonhador
eu hei-de ser belo e sedutor
tu vais por uso e costume
enlouquecer de ciúmes
vou-me rir muito
vou gozar mais
vou cantar o sol-e-dó
perder-me em doses fatais
tu vais ver só
24
53
O menino negro não entrou na roda
Música: Luís Cília
Letra: Geraldo Bessa Victor
Intérprete: A. P. Braga
O menino negro não entrou na roda
das crianças brancas - as crianças brancas
que brincavam todas numa roda viva
de canções festivas, gargalhadas francas...
O menino negro não entrou na roda.
o pé de vento que se vai levantar
comigo a rodopiar
Coça, coça a barriga
pantominas
Coça, coça a barriga
Patavinas
eu sou o ’Coça Barriga’
coça, coça a barriga
vitaminas
coça, coça a barriga
nicotinas
Eu sou o ’Coça Barriga’
E chegou o vento junto das crianças
- e bailou com elas e cantou com elas
as canções e danças das suaves brisas,
as canções e danças das brutais procelas.
O menino negro não entrou na roda.
Pássaros, em bando, voaram chilreando
sobre as cabecinhas lindas dos meninos
e pousaram todos em redor.
bailaram seus vôos, cantando seus hinos ...
O menino negro não entrou na roda.
’Venha cá, pretinho, venha cá brincar’
- disse um dos meninos com seu ar feliz.
A mamã, zelosa, logo fez reparo;
o menino branco já não quis, não quis ...
o menino negro não entrou na roda.
O menino negro não entrou na roda
das crianças brancas.
ficou só, parado com olhar cego,
ficou só, calado com voz de morto.
Nota:
Gravações: Luís Cília - 196? (??)
António Pedro Braga - 1970 (Movieplay SON 100.008)
52
25
Comboio malandro
O mar
Música: Fausto
Letra: António Jacinto
In: ’Pró que der e vier’, 74
Letra e música: Fausto
In: ’Crónicas da terra ardente’
Luís Quinta
Victor Almeida (António Jacinto - poeta angolano)
O comboio malandro passa
passa sempre c’oa força dele
u-u hi-hi te-que-tem te-que-tem
nas janelas muita gente
ah boa viagée adeus homée
n’ganas bonitas
quintandeiras de lenço encarnado
levam cana no Luanda p’ra vender
u-u hi-hi
aquele vagon de grades tem bois
mu mu mu
tem outro igual
com este dos bois
leva gente muita gente como eu
cheio de poeira
gente triste como os bois
gente que vai no contrato
tem bois que morre no viagée
mas preto não morre
canta como é criança
mulondé iakessoa!
uadibalée uadibalée uadibalée
esse comboio malandro
sozinho na estrada de ferro passa
passa sem respeito
u-u hi-hi
com muito fumo no trás
tem-que-tem tem-que-tem
E todo o mar se cobriu de infinitas riquezas
de anil e sedas e jóias e de odoríferas drogas
de si deitava nas praias moscatéis e licores
adoçando de sua bravura
o mar
nas margens adamascadas andam náufragos dispersos
mariscando lagostas ostras choupas taínhas
e bebem vinhos distintos de singulares aromas
se anda ao longo da costa em ofertas
o mar
E entregou Leonor
seus cabelos aos ventos
na quietude tão só
tão ausente de tudo
e mais quieta era a luz
no sossego das águas
e uma música escorre dos céus
devagar
E fazem tendas de aduelas de alcatifas majestosas
de outras peças de ouro e prata de cambraias e cetins
cobertas de colchas vermelhas de rosários de cristal
mas mais garrido do que toda aquela praia
o mar
e fazem velas das camisas e outras de damasco verde
as amarras de outros panos de veludo carmesim
de um remo fizeram o mastro
e a enxárcia de uma linha
e tão docemente embala este batel
o mar
Comboio malandro
o fogo que sai no corpo dele
vai no capim e queima
vai nas casas dos preto e queima
esse comboio malandro
já queimou meu milho
Nota: História Trágico-Marítima
Se na lavra do milho
tem pacaças
eu faço armadilha no chão
se na lavra tem Kiombos
eu tiro espingarda de Kimbundo
’Ao outro dia, e depois que amanheceu, estava toda a praia
cheia de coisas preciosas numa confusa ordem com que a desaventura tinha tudo aquilo ordenado. E havia gente na fralda
do mar com vista espalhada pelas praias e arrecifes porque
em saindo o sol, o abrandou de sua fúria e braveza. ’
26
Se todo o mar se cobriu de infinitas riquezas
51
Oh pastor que choras
e mato neles!
Música: Fausto
Letra: José Gomes Ferreira
Intérprete: Né Ladeiras
In: ’Todo este céu’, 1997
Mas se vai lá fogo
de comboio malandro deixa
só fica fumo
muito fumo mesmo...
Victor Almeida
Mas espera só
quando esse comboio malandro descarrilar
e os branco chamar os preto
p’ra empurrar
eu vou... mas não empurro
Oh pastor que choras
o teu rebanho onde está?
Deita as mágoas fora,
carneiros é o que mais há
uns de finos modos
outros vis por desprazer...
Mas carneiros todos
com carne de obedecer.
Quem te pôs na orelha
essas cerejas, pastor?
São de cor vermelha,
vai pintá-las de outra cor.
Vai pintar os frutos,
as amoras, os rosais...
Vai pintar de luto,
as papoilas dos trigais.
Nem com o chicote
finjo só que faço força
comboio malandro
você vai ver só o castigo
vai dormir mesmo no meio do caminho!
50
27
Como um sonho acordado
O homem e a burla
Letra e música: Fausto
In: ’Por este rio acima’; gravado em 82
Letra e música: Fausto; A. P. Braga
In: ’Fausto - o melhor dos melhores’, 1994
José João
Como se a Terra corresse
Inteirinha atrás de mim
O medo ronda-me os sentidos
Por abaixo da minha pele
Ao esgueirar-se viscoso
Escorre pegajoso
E sai
Pelos meus poros
Pelos meus ais
Ele penetra-me nos ossos
Ao derramar-se sedento
Nas entranhas sinuosas
Entre as vísceras mordendo
Salta e espalha-se no ar
Vai e volta
Delirante
Tão delirante
É como um sonho acordado
Esse vulto besuntado
A revolver-se no lodo
A deslizar de uma larva
Emergindo lá no fundo
Tenho medo ó medo
Leva tudo é tudo teu
Mas deixa-me ir
Arrasta-me à côncava do fundo
Do grande lago da noite
Cruzando as grades de fogo
Entre o Céu e o Inferno
Até à boca escancarada
Esfaimada
Atrás de mim
Atrás de mim
É como um sonho acordado
Esses olhos no escuro
Das carpideiras viúvas
Pelo pai assassinado
Desventrado por seu filho
Que possuiu lascivo
A sua própria mãe
E sua amante
28
Tira o laço de melaço,
que amordaça uma farsa,
e passo a passo
estica o braço no compasso de um abraço,
Oh pá !
Disseram-lhe que fosse
mas nunca que ficava
tosse, tosse ou coce, coce
O fosse é uma foice mas ficava é uma fava.
Éh !
É um forno, que transtorno,
a nuvem vermelha da outra banda
mas p’ra quem manda.
Só não para quem vai no passo de quem anda.
Bum !
Tanto acena que faz pena
e tem certo toque de escroque.
Troque, troque
Toda burla é uma gula
e a toca é muito foca.
Talvez um dia a engula !
nota: gravações
Fausto - p’rÓ que der e vier - 1974 (LP Orfeu STAT 025)
Fausto - o melhor dos melhores - 1994 (CD Movieplay MM
37 039)
49
são noites, são dias
Vou no espantoso trono das águas
vou no tremendo assopro dos ventos
vou por cima dos meus pensamentos
arrepia
arrepia
e arrepia sim senhor
que vida boa era a de Lisboa
O mar das águas ardendo
o delírio do céu
a fúria do barlavento
arreia a vela e vai marujo ao leme
vira o barco e cai marujo ao mar
vira o barco na curva da morte
e olha a minha sorte
e olha o meu azar
e depois do barco virado
grandes urros e gritos
na salvação dos aflitos
estala, mata, agarra, ai quem me ajuda
reza, implora, escapa, ai que pagode
rezam tremem heróis e eunucos
são mouros são turcos
são mouros acode!
Aquilo é uma tempestade medonha
aquilo vai p’ra lá do que é eterno
aquilo era o retrato do inferno
vai ao fundo
vai ao fundo
e vai ao fundo sim senhor
que vida boa era a de Lisboa
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Meu amor quando eu morrer
Ó linda
Veste a mais garrida saia
Se eu vou morrer no mar alto
Ó linda
E eu quero ver-te na praia
Mas afasta-me essas vozes
Linda
Tens medo dos vivos
E dos mortos decepados
Pelos pés e pelas mãos
E p’lo pescoço e pelos peitos
Até ao fio do lombo
Como te tremem as carnes
Fernão Mendes
Nota: Diário da viagem, Fernão Mendes Pinto
Como um sonho acordado
’Embarcado num jurupango, com o Mouro Coja Ale, feitor do capitão de Malaca, fomos surgir no rio de Parles no
Reino de Quedá. Nesse tempo, estava o rei celebrando com
grande aparato e pompa fúnebre as exéquias da morte de seu
pai, que ele matara às punhaladas para casar com a sua mãe
que já estava prenhe dele. Para evitar murmurações mandou
lançar pregão que sob gravíssimas mortes ninguém falasse no
que já era feito. Mas Coja Ale era de sua natureza solto de
língua e muito atrevido em falar o que lhe vinha à sua vontade. E foi assim que preso por soldados fui chamado ao rei e
olhando para onde ele me acenava, vi jazer de bruços no chão
muitos corpos mortos todos metidos num charco de sangue.
Entre eles o mouro Coja Ale. Por mais de uma grande hora
estive como pasmado, debaixo de abano, sem poder falar, arremessado aos pés do elefante em que el-rei estava. Depois
de perdoado pelas lamentações e desculpas toscas, mas que
vinham ao momento muito a propósito, me fiz à vela muito
depressa pelo grande medo e risco de morte em que me vira’.
29
Daqui desta Lisboa
O barco vai de saída
Música: Fausto; A. P. Braga
Letra: Alexandre O’Neill
In: ’atrás dos tempos vêm tempos’, 1996
Letra e música: Fausto
In: ’Por este rio acima’ gravado em 82
José João
AP Braga
Daqui, desta Lisboa compassiva,
Nápoles por Suíços habitada,
onde a tristeza vil, e apagada,
se disfarça de gente mais activa;
Daqui, deste pregão de voz antiga,
deste traquejo feroz de motoreta
ou do outro de gente mais selecta
que roda a quatro a nalga e a barriga;
Daqui, deste azulejo incandescente,
da soleira da vida e piaçaba,
da sacada suspensa no poente,
do ramudo tristôlho que se apaga;
Daqui, só paciência, amigos meus !
Peguem lá o soneto e vão com Deus...
nota: gravações
FAUSTO - P’RÓ QUE DER E VIER - 1974 (LP Orfeu STAT
025)
FAUSTO - atrás dos tempos vêm tempos - 1996 (CD Columbia COL 486826 2)
O barco vai de saída
Adeus ao cais de Alfama
Se agora ou de partida
Levo-te comigo ó cana verde
Lembra-te de mim ó meu amor
Lembra-te de mim nesta aventura
P’ra lá da loucura
P’ra lá do Equador
Ah mas que ingrata ventura
Bem me posso queixar
da Pátria a pouca fartura
Cheia de mágoas ai quebra-mar
Com tantos perigos ai minha vida
Com tantos medos e sobressaltos
Que eu já vou aos saltos
Que eu vou de fugida
Sem contar essa história escondida
Por servir de criado essa senhora
Serviu-se ela também tão sedutora
Foi pecado
Foi pecado
E foi pecado sim senhor
Que vida boa era a de Lisboa
Gingão de roda batida
corsário sem cruzado
ao som do baile mandado
em terra de pimenta e maravilha
com sonhos de prata e fantasia
com sonhos da cor do arco-íris
desvaira se os vires
desvairas magias
Já tenho a vela enfunada
marrano sem vergonha
judeu sem coisa nem fronha
vou de viagem ai que largada
só vejo cores ai que alegria
só vejo piratas e tesouros
são pratas, são ouros,
30
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nota:
embora os meus olhos sejam
Esta canção foi bastante escandalosa;
Mas tenho de lhe dar razão: natação obrigatória
Música: Francisco Fanhais
Letra: António Aleixo
Intérprete: Francisco Fanhais
jj (letra escrita de memória=pouco fiável)
Embora os meus olhos sejam
os mais pequenos do mundo
o que importa é que eles vejam
o que os homens são no fundo
Que importa perder a vida
na luta contra a traição
se a razão mesmo vencida
não deixa de ser razão
Vós que lá do vosso império
prometeis um mundo novo
calai-vos que pode o povo
querer um mundo novo a sério
Eu não tenho vistas largas
nem grande sabedoria
mas dão-me as horas amargas
lições de filosofia
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É ouvi-los
Natação obrigatória
Música: Nuno Rodrigues
Letra: António Avelar Pinho
Intérprete: Banda do Casaco
In: Banda do Casaco: ’No Jardim da Celeste’ (1980)
Música: Nuno Rodrigues
Letra: António Avelar Pinho
Intérprete: Banda do Casaco
In: Banda do Casaco: ’No Jardim da Celeste’ (1980)
José João
José João
É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los
É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los
É ouvi-los numa faina
de enganar o pé
ai numa faina
de enganar o pão
Viemos do fundapique
passámos no tudasaque
não há mal que mal nos fique
nem há cu que não dê traque
mal a gente vem ao mundo
logo a gente vai ao fundo
É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los
É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los
É ouvi-los numa teima
de enganar o Zé
ai numa teima
de enganar o Zé até mais não
Andámos no malsalgado
brigámos no daceleste
e o escorbuto mal curado
com tratamento indigesto
mal a gente vem ao mundo
logo a gente vai ao fundo
É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los
É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los
É ouvi-los numa farda
com espingarda ai é
ai numa farsa
com espingarda na mão
[refrão=]
Natação obrigatória
na introdução à instrução primária
natação obrigatória
para a salvação é condição necessária
não há cu que não dê traque
não há cu que não dê traque
mal a gente vem ao mundo
logo a gente vai ao fundo
É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los
É ouvi-los É ouvi-los É ouvi-los
É ouvi-los numa treta
de pasmar até
ai numa treta
de pasmar até um cão
Pusemos a cachimónia
em papas de sarrabulho
e quando as noites são de insónia
damos voltas ao entulho
mal a gente vem ao mundo
logo a gente vai ao fundo
Aprendizes da política
só na tática do ’empocha’
vem a tempestade mítica
e s cabeça dá na rocha
mal a gente vem ao mundo
logo a gente vai ao fundo
[refrão]
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Não sou o vosso rei
Eu não sei que faz o sol
Letra e música: Fausto
In: ’Por este rio acima’
Letra e música: João Afonso
In: ’Missangas’, 1997
Victor Almeida
Victor Almeida
Não sou o vosso rei
Nem o Tom Michel
Eu sou um português
Que limpa o cu ao papel
Eu não sei que faz o sol
que não dá na minha rua
hei-de me vestir de branco
que de branco anda a lua
É uma loucura, é uma loucura
Não vi ribeira sem água
nem praça sem pelourinho
nem donzelas sem amores
nem padres sem beber vinho
Nota:
O Fausto nos quatro ou cinco álbuns mais recentes costuma
(na primeira edição dos discos) meter uma musiquita que nem
consta no ’cardápio’. É sempre uma brincadeira em que no
final das músicas desatam todos a rir às gargalhas. Esta é do
’Por este rio acima’ e dura 30 segundos
Lindos olhos de pau preto
nariz de pena aparada
dentes de letra miúda
boca de carta cerrada
Lindos olhos tem a cobra
quando olha de repente
mais vale um bom desengano
que andar enganado sempre
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Eu tenho um fraquinho por ti
Não canto porque sonho
Letra e música: Fausto
Música: Fausto; A. P. Braga
Letra: Eugénio de Andrade
In: ’atrás dos tempos vêm tempos’, 1996
Francisco Machado
Eu tenho um fraquinho por ti
tu não me dás atenção
tu não me passas cartão
quando me ponho a teu lado
tremo nervoso de agrado
e meto os pés pelas mãos
tu vais gozando um bocado
a beber vinho tostão
eu com o discurso engasgado
fico a um canto, que arrelia
de toda a cervejaria
onde vais rasgar a noite
se te olho com ternura
olhas-me do alto da burra
que mais parece um açoite
é um susto um arrepio
que me malha em ferro frio.
AP Braga
Não canto porque sonho.
Canto porque és real.
Canto o teu olhar maduro,
teu sorriso puro,
a tua graça animal.
Canto porque sou homem.
Se não cantasse seria
mesmo bicho sadio
embriagado na alegria
da tua vinha sem vinho.
Eu tenho um fraquinho por ti
que me vai de lés a lés
tu dás-me sempre com os pés
quando me atiro enamorado
num estilo desajeitado
disfarço em bagaço e café
tu fumas o teu cruzado
e fazes troça, pois é,
já tenho o caldo entornado
esqueces-me da noite p´ro dia
em alegre companhia
de batidas e rodadas
tu ficas nas sete quintas
marimbas, estás-te nas tintas
p´ra que eu ande às três pancadas
basta um toque sedutor
eu cá sou um pinga-amor.
Canto porque o amor apetece.
Porque o feno amadurece
nos teus braços deslumbrados.
Porque o meu corpo estremece
ao vê-los nus e suados.
nota: gravações
Fausto - p’rÓ que der e vier - 1974 (LP Orfeu STAT 025)
Fausto - atrás dos tempos vêm tempos - 1996 (CD Columbia
COL 486826 2)
Eu tenho um fraquinho por ti
que me abrasa o coração
quase me arrasa a razão
a tua risada rasteira
põe-me de rastos, à beira
do enfarte da congestão
encharco-me em chá de cidreira
mofas de mim atiras-te ao chão
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que o seu pé deixou
para que fizesse um feitiço
bem forte e seguro
e dele nascesse
um amor como o meu
e o feitiço falhou
zombando à tua maneira
lá fazes a despedida
ao grupo que vai de saída
dos amigos da Trindade
mas no fim da noite, à noitinha,
tu ficas triste e sozinha
à procura de amizade
e como é costume teu
chamas o parvo que sou eu.
Andei barbado,
sujo e descalço
como um monangamba
procuraram por mim
não viu ai não viu ai
não viu Benjamim
e perdido me deram
no morro da Samba
Afino uma voz de tenor
ensaio um ar duro de macho
quando estás na mó de baixo
quero ver-te arrependida
mas numa manobra atrevida
rufia, muito mansinha,
dás-me um beijo e uma turrinha
que me põe num molho num cacho
estremeço com pele de galinha
e gosto de ti trapaceira
da tua piada certeira
do teu aparte final
do teu jeito irreverente
do teu aspecto contente
do teu modo bestial
noutra palavra mais quente
eu tenho um fraquinho por ti.
Para me distrair
levaram-me ao baile
do Sr. Januário,
mas ela lá estava
num canto a rir,
contando o meu caso
às moças mais lindas
do bairro operário
Tocaram a rumba
e dancei com ela
e num passo maluco
voamos na sala
qual uma estrela
riscando o céu
e a malta gritou
’Aí Benjamim’
Olhei-a nos olhos
sorriu para mim
pedi-lhe um beijo
lá lá lá lá lá
lá lá lá lá lá
E ela disse que sim
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Horas de ponta e mola
namoro
Música: Nuno Rodrigues
Letra: António Avelar Pinho
Intérprete: Banda do Casaco
In: ’Dos Benefícios dum Vendido no Reino dos Binifácios’, 1994
Música: Fausto
Letra: Viriato Cruz
Intérprete: Sérgio Godinho
In: De pequenino se torce o destino, 1976
Victor Almeida
jj
É um sujeito é um escritório
uma gravata, um suspensório
uma conversa de latrina
é um verbete, uma aldrabice
é um trabalho , uma chatice
entre fumo e aspirina
Mandei-lhe uma carta
em papel perfumado
e com letra bonita
dizia ela tinha
um sorriso luminoso
tão triste e gaiato
como o sol de Novembro
brincando de artista
nas acácias floridas
na fímbria do mar
É numa rua o pôr da sola
calçada nas horas de ponta e mola
são conversas de cotovelo
é um eléctrico um pendura
um regresso e uma tontura
é um sorrir muito amarelo
É uma casa uma família
uma torrada um chá de tília
uma conversa de fastídio
é um chinelo e um menino
televisão com o Vitorino
a lentidão de um suicídio
É numa rua o pôr da sola
calçada nas horas de ponta e mola
é um silencio e um ritual
são os lacaios do comendador
são as gravatas sem côr
na procissão dum funeral
Sua pele macia
era suma-uma
sua pele macias
cheirando a rosas
seus seios laranja
laranja do Loge
eu mandei-lhe essa carta
e ela disse que não
Mandei-lhe um cartão
que o amigo maninho tipografou
’por ti sofre o meu coração’
num canto ’sim’
noutro canto ’não’
e ela o canto do ’não’
dobrou
Mandei-lhe um recado
pela Zefa do sete
pedindo e rogando
de joelhos no chão
pela Sra do Cabo,
pela Sta Efigénia
me desse a ventura
do seu namoro
e ela disse que não
Mandei à Vó Xica,
quimbanda de fama
a areia da marca
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Menina e moça
Mariana das sete saias
Música: Fausto Frazão
Letra: popular
Intérprete: António Menano
(fado de Coimbra)
Letra e música: Fausto
Francisco Machado
Sete saias tem Mariana
e um emprego em Miraflores
viveu ontem de recados
mas hoje vive de amores
Fernando Pais
É preciso ter sofrido
e ter-se de amores chorado
para se entender o sentido
que há na tristeza do fado.
sete carros vão chegando
pelas tardes de Belém
com sete homens que a beijam
entre Sintra e o Cacém
Numa noite de luar
sob um céu doce e calado
nada se pode igualar
à mágoa de um triste fado.
não tenho amores
nem tenho amantes pois
quantos amados não sei
tenho alguns amadores
olha para mim
lá na terra onde morei
escutava
pela rádio o folhetim
sete saias tem Mariana
à noite no Parque Mayer
dança bolero em dó menor
ali num cantinho qualquer
«ai de mim» - diz Mariana
se um dia amor me faltar
ao almoço eu já não como
e como menos ao jantar
não tenho amores
nem tenho amantes pois
quantos amados não sei
tenho alguns amadores
e sustento dois
lá na terra onde morei
sem trabalho
que é da vida p´ra depois
sete saias tem Mariana
nesta roda de contraste
a tua vida serve bem
aqueles que nunca amaste
Mariana das sete saias
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Menina dos olhos de água
se sopra o vento suão
deixas de ser uma almofada
entre o mandado e o mandão
Letra e música: Pedro Barroso
In: ’Cantos da Borda D’Água’,1986
cai-te essa flor do cabelo
e amores do coração
Creissac & amigos(ago.96)
C
Am
Menina em teu peito sinto o Tejo
Dm
G
e vontades marinheiras de aproar
Menina em teus lábios sinto fontes
de água doce que corre sem parar
Menina em teus olhos vejo espelhos
e em teus cabelos nuvens de encantar
E em teu corpo inteiro sinto feno
rijo e tenro que nem sei explicar
Se houver alguém que não goste
não gaste, deixe ficar
que eu só por mim quero te tanto
que não vai haver menina para sobrar
Aprendi nos ’esteiros’ com Soeiro
e aprendi na ’fanga’ com Redol
Tenho no rio grande o mundo inteiro
e sinto o mundo inteiro no teu colo
Aprendi a amar a madrugada
que desponta em mim quando sorris
És um rio cheio de água lavada
e dás rumo à fragata que escolhi
Se houver alguém que não goste
não gaste, deixe ficar
que eu só por mim quero te tanto
que não vai haver menina para sobrar
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