Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN - LTDS

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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN - LTDS
Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
Publicada em Março de 2009
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
Publicada em Março de 2009
Editorial
É preciso popularizar a Ciência?
Roberto Bartholo
Elizabeth Tunes
Qual é a imagem da ciência no mundo atual? Positiva ou negativa? De indiferença ou de fascínio?
Se, de um lado, verifica-se uma indiferença a assuntos que dizem respeito às ciências, de outro, constatase um fascínio de tal magnitude que chega a atingir o deslumbramento. O homem comum parece ser
alheio aos modos de produção da ciência, mas vê com bons olhos os seus produtos: o celular, as
conquistas médicas que nos fazem parecer mais jovens e prolongam nossa vida, as viagens mais rápidas,
o conforto propiciado pelos alimentos e vestuários mais adequados, para citar apenas alguns exemplos.
Ver com bons olhos os produtos da ciência não é uma atitude condenável em si mesma.
Ser alheio aos modos de produção da ciência significa ignorar como ela funciona e, portanto, suas
limitações e suas outras possibilidades. Ignorar isso, por sua vez, implica o deixar-se conduzir por ela,
ou por aqueles que a conduzem. Essa ignorância, aliada à atitude de fascínio diante de seus produtos,
torna o homem um mero consumidor da ciência e, portanto, seu escravo. A essa dupla atitude do
homem diante da ciência que ele próprio criou – ignorar como funciona e apenas consumir o que
produz – poderíamos chamar de cienciolatria.
A cienciolatria é muito praticada entre os homens comuns, mas também o é entre os próprios cientistas,
quando estes ignoram os contextos determinadores de sua produção e, ao mesmo tempo, deslumbramse diante do que foi produzido. Assim, eles também são escravos da ciência.
Divulgar a ciência implica escolher entre as condições que propiciam a cienciolatria ou as condições
que possibilitam romper com esta, o que inclui, primordialmente, uma atitude de questionamento
constante sobre os limites da ciência. Em última instância, isso significa instaurar a possibilidade da
dúvida. E, para concluir com a mesma inspiração em Flusser, justificamos: “A ingenuidade e inocência
do espírito se dissolvem no ácido corrosivo da dúvida.”
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ISSN: 1808-6535
Publicada em Março de 2009
Apresentação
É preciso popularizar a Ciência?
O presente número examina algumas questões a respeito da divulgação do conhecimento científico,
às vezes também chamada de vulgarização ou popularização da Ciência. Ele foi organizado por Roberto
Ribeiro da Silva e aborda alguns aspectos relacionados à divulgação da Ciência em espaços
institucionalizados
Atualmente, no mundo ocidental, entre grande parte dos jovens e da população, há um desinteresse
notável em relação aos assuntos das Ciências. Para alguns estudiosos, esse fato pode ser atribuído, em
parte, à má qualidade do ensino de Ciências nas escolas, uma vez que a educação científica tem deixado
muito a desejar. Ao mesmo tempo, outros autores entendem que esse desinteresse liga-se a uma
inadequada divulgação do conhecimento científico.
O investimento em museus e espaços científicos interativos é uma das tentativas de aumentar o interesse
da população, em geral, e dos jovens, em particular, pela Ciência. De fato, sempre que essas iniciativas
acontecem, os resultados são animadores, uma vez que o número de visitantes é sempre crescente. O
pressuposto básico dessas iniciativas é que há por parte dos visitantes uma apropriação da cultura e do
discurso da ciência, o que leva as pessoas a compreenderem as realizações científicas e, por isso,
interessar-se por elas.
Por outro lado, a divulgação da Ciência, muitas vezes, conduz a imagens deformadas da mesma.
Alguns estudiosos sugerem que, juntamente à formação científica, seja propiciada uma incursão refletida
na História da Ciência e da Tecnologia como uma possível estratégia para minimizar essas deformações.
Nessa incursão, seria possível esclarecer como, ao longo da história da humanidade, o conhecimento
científico e tecnológico desenvolve-se e como acontecem as inter-relações entre ciência, tecnologia e
sociedade.
Mas, cabe uma reflexão: até que ponto os resultados obtidos e os esforços desprendidos têm contribuído
efetivamente para mudar a imagem da Ciência?
Espera-se que os trabalhos que constam deste número contribuam para essa reflexão.
Boa Leitura!
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A Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais é uma publicação científica gratuita, de periodicidade
quadrimestral, do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social (Programa de Engenharia de
Produção da COPPE/UFRJ).
Dedica-se a divulgar trabalhos voltados para a apresentação e análise de propostas e experiências
ligadas à gestão social. Pretende manter uma atitude prospectiva, apontando possíveis tendências
nesse campo.
Como seções fixas, reúne artigos, reportagens, entrevistas, apresentação de casos e resenhas críticas.
Procura utilizar ao máximo os recursos oferecidos pelo formato de periódico on-line, explorando as
possibilidades do meio eletrônico para oferecer e trocar informações, em particular o recurso do
hipertexto e oferecendo sempre que possível indicação de fontes de informação complementar
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O título abreviado da revista é Revista Virtual GIS, forma a ser utilizada em bibliografias, notas e
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Os conceitos emitidos em artigos são de exclusiva responsabilidade de seus autores, não refletindo,
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Permite-se a reprodução total ou parcial dos trabalhos, desde que seja indicada explicitamente a sua
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CORPO EDITORIAL
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Expediente
Editor responsável
Roberto dos Santos Bartholo Jr. - Professor do Programa Engenharia de Produção - COPPE/UFRJ e
Coordenador do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social
Comitê editorial
Carlos Renato Mota - professor do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador do Laboratório de
Tecnologia e Desenvolvimento Social da COPPE/UFRJ
Arminda Eugenia Marques Campos - pesquisadora do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento
Social da COPPE/UFRJ
Conselho Editorial
Geraldo de Souza Ferreira - DEGEO/UFOP, Ouro Preto, MG
Marcel Bursztyn - CDS/UnB, Brasília, DF
Maurício Cesar Delamaro - FEG/UNESP, Guaratinguetá, SP
Michel Thiollent - COPPE/UFRJ, Rio de Janeiro, RJ
Paulo Márcio Melo - UERJ, Rio de Janeiro, RJ
Susana Finquelievich - Fac. Ciências Sociais, Universidade de Buenos Aires, Argentina
Organização e redação
Elizabeth Tunes (Coordenação Geral)
Gabriela Tunes da Silva
Tereza Hamendani Mudado
Maria Carmen Villela Rosa Tacca
Secretaria
Maria Joselina de Barros
Concepção do projeto gráfico
Ivan Bursztyn
Webdesign
Marise Carpenter Elias e Beatriz Watanabe
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Sumário
Resenha Crítica
SHAMOS, MORRIS. The myth of scientific literacy - Por Gabriela Tunes da Silva ................................07
Artigos
Educação científica e tecnológica: um compromisso de educadores e cientistas para o desenvolvimento
da ciência e tecnologia no Brasil
Wildson Luiz Pereira dos Santos.........................................................................................................................12
Incursões no discurso da ciência: a popularização da ciência nos espaços dos museus
Roque Moraes.....................................................................................................................................................18
Por que divulgar o conhecimento científico e tecnológico?
Maria Helena da Silva Carneiro.........................................................................................................................29
A História da Ciência e o ensino de ciências
Cláudio Luiz Nóbrega Pereira e Roberto Ribeiro da Silva...................................................................................34
A experiência do Espaço COPPE Miguel de Simoni Tecnologia e Desenvolvimento Humano
Roberto Bartholo e Arminda Campos....................................................................................................................47
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Resenha Crítica
Morris Shamos. The myth of scientific literacy. Rutgers University
Press, New Jersey, 1995
Gabriela Tunes da Silva*
Sobre o autor
Morris Shamos é físico e educador, professor
emérito de física na Universidade de Nova Iorque;
já foi presidente da New York Academy of
Sciences e da National Science Teachers
Association.
Sobre o livro
O objetivo principal do livro é discutir a real
necessidade de se levar o conhecimento científico
ao público em geral. É difundida a idéia de que a
educação científica é crucial para a formação dos
cidadãos, por diversos motivos, dentre os quais
são comumente citados o desenvolvimento tanto
da capacidade de questionamento crítico, quanto
da razão e do intelecto em geral. Além disso, a
ciência e a tecnologia adquiriram, ao longo do
século XX, grande importância na economia das
nações, de forma que são elementos estratégicos
para que os países consigam boas colocações na
ordem mundial. Esses, entre outros fatores,
contribuem para que a ciência e a tecnologia
desempenhem papéis cada vez mais importantes
na civilização contemporânea.
Não é por acaso, portanto, que o século XX viu
crescer o espaço dado à educação científica, cuja
meta é, segundo Shamos, atingir o letramento científico
universal, ou seja, chegar ao ponto em que todos
os indivíduos sejam capazes de conhecer a
natureza da ciência, e discutir, com clareza e
profundidade, seus dilemas e controvérsias.
Todavia, ele alerta para o fato de que, embora
esforços tenham sido empreendidos para levar a
ciência ao público por quase um século, a
população norte-americana pode ser considerada
cientificamente iletrada. Isso evidencia que todos
os programas de educação científica falharam. Para
ele, se se deseja comunicar a ciência para o público
geral, é preciso procurar uma abordagem
radicalmente nova. O livro de Shamos tem por
objetivo contribuir para essa discussão.
Para ele, a nova abordagem deve analisar três
pontos: i) esclarecer o propósito da educação
científica; ii) examinar a história e o significado
do letramento científico; e iii) identificar os
motivos das falhas em se atingir o letramento
universal. Uma das questões importantes que
Shamos levanta é radicalmente simples, e está na
raiz dos problemas relacionados ao letramento
científico. Resume-se à pergunta: por que
ensinamos ciência? Essa questão desdobra-se em
uma série de outras, igualmente importantes.
Dentre elas, destacamos: é realmente necessário
levar o conhecimento científico a todas as pessoas?
Qual ciência devemos ensinar para qual tipo de
público? O quê significa realmente ser letrado em
ciência? O letramento científico é mesmo
essencial? É possível de ser realizado?
Segundo o autor, a resposta à primeira questão é
NÃO. Ele defende a idéia de que o letramento
científico universal não é necessário, é impossível
de ser realizado e, por conseguinte, é um mito.
Observamos que sua abordagem desse tema
aparentemente questiona o lugar e a importância
da ciência na civilização contemporânea. O
argumento de Shamos, com base no que foi até
agora exposto, parece refletir um modo de pensar
que não coloca a ciência como único conhecimento
válido, e que, por isso, não precisa ser do domínio
*
Gabriela Tunes é graduada em Biologia, mestre em Ecologia e doutora em
Desenvolvimento Sustentável, títulos obtidos na Universidade de Brasília.
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de todos. Poderíamos imaginar que Shamos acredita que
conhecimentos de naturezas não-científicas talvez fossem
necessários e/ou suficientes para que as pessoas comuns
levassem uma vida com qualidade e dignidade. Todavia,
conforme o livro se desenrola, observamos que Shamos
constrói um argumento para justificar perigosas práticas
antidemocráticas na gestão da ciência e tecnologia, que
colocariam a comunidade científica numa posição de
inquestionável poder. A seguir, faremos breve exposição
do conteúdo do livro.
No Capítulo 1, Shamos discorre sobre uma crise
na educação científica norte-americana que,
embora tenha sempre existido, veio à tona em
meados da década de 1980, a partir de um relatório
elaborado por um comitê especialmente designado
para isso. A crise caracterizava-se pela carência de
professores qualificados, pela queda nas avaliações
e pela falta de interesse dos estudantes nas carreiras
científicas. Ao tentar identificar as razões da crise,
Shamos aponta, no Capítulo 2, para as dificuldades
inerentes em entender a ciência. Segundo ele, a
ciência difere das disciplinas "literárias" não
somente pelo conteúdo, mas por exigir uma
"forma de pensar" incomum. O livro enfatiza que
as preocupações em tornar a população em geral
letrada em ciência começam a existir a partir do
século XX, quando o desenvolvimento científico
e tecnológico passou a ser estratégico para a
economia das nações. De fato, essa preocupação
resultou em algumas mudanças: se no início do
século XX apenas uma parcela ínfima da
população estudava além do primário, a partir de
1950, praticamente todos os norte-americanos
chegavam ao high school; se em 1956 havia cerca de
um milhão de cientistas e engenheiros nos EUA,
hoje eles somam 3 a 4 milhões. Apesar disso, 90%
dos norte-americanos são cientificamente
iletrados.
No Capítulo 4, Shamos volta a argumentar que a
ciência, por sua natureza, não é facilmente
compreendida. Por isso, ele defende que conhecer
a ciência do mesmo modo como os cientistas não
é necessário para o letramento científico. Para ele,
o letramento científico requer que se saiba o que é
a ciência, sem necessidade de conhecê-la em
detalhes; em outras palavras, o letramento
científico requer apenas que se conheça como a
ciência funciona e como é a prática dos cientistas.
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É preciso entender que a ciência não é somente
uma questão de descrição detalhada das coisas e
de ampliação dos sentidos por meio de
instrumentos e ferramentas, pois o seu objetivo é
construir esquemas conceituais, modelos e teorias.
Nesse ponto reside outra dificuldade para o
letramento científico: as teorias, os modelos e os
esquemas conceituais, que são a fundação da
ciência, são particularmente difíceis de serem
compreendidos porque requerem um modo de
pensamento que foge do senso comum. E à
medida que o conhecimento científico avança, esse
problema se agrava, pois é notável a complexidade
das teorias da ciência contemporânea. Acresce-se
a todas essas dificuldades a questão da matemática,
linguagem formal da ciência, e verdadeiro algoz
dos estudantes. Por todas essas dificuldades,
Shamos defende que é impossível atingir altos
níveis de letramento científico. Afirma também
que é mentira que vivemos em uma era científica,
pois a ciência e a matemática não fazem parte da
vida cotidiana das pessoas. De fato, vivemos em
uma sociedade humanística, porque nossos
pensamentos são conformados mais por uma
cultura humanista do que por uma científica.
Shamos chega ao ápice do simplismo com a
assertiva de que o público em geral responde mais à
emoção do que à razão, à fantasia do que aos fatos, e às
palavras mais do que às idéias. Enfim, nossa cultura se
apóia mais nos sentidos do que na mente (p. 65).
Shamos aponta, então, para as dificuldades
inerentes ao entendimento da ciência como os
principais empecilhos ao letramento científico da
população. Por que, então, existe certa
preocupação em tornar o público informado sobre
a ciência, se ela é impalatável? O autor afirma que
o movimento do letramento científico se
fortaleceu muito no pós-guerra, no contexto em
que algumas catástrofes (principalmente a bomba
atômica) ligadas à ciência evidenciaram que a
ciência e a tecnologia acumulavam poderes capazes
de destruir a humanidade. Alguns cientistas
acreditavam que uma forma de evitar essas
catástrofes seria educar o público, de forma a criar
um "controle civil" da ciência. Neste ponto do
livro, Shamos começa a realmente desvelar sua real
preocupação e seu ponto de vista acerca da ciência
e da tecnologia. Para ele, é impossível que o
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público possua o conhecimento necessário para
realizar tal controle, já que o entendimento da
ciência é algo difícil de ser atingido, pela
complexidade inerente ao conhecimento
científico. Portanto, ele considera importante
encontrar outras formas de realizar esse controle.
Ele afirma também que não se deve excluir por
completo a educação científica das escolas,
tampouco eliminar os programas de letramento
científico para o público em geral. Isso porque,
segundo ele, o analfabetismo científico dá
espaço para que grupos anti-ciência, que se
aproveitam da ignorância do público, realizem
campanhas contra a ciência, podendo impedir
o seu progresso. Essa é, de fato, a principal
preocupação de Shamos: como garantir que o público
leigo e ignorante não se intrometa nos assuntos dos
cientistas. A partir desse ponto, o autor inicia a
desqualificação de todas as correntes que apresentam
alguma crítica à ciência contemporânea. Segundo ele,
existem dois tipos de resistência à ciência. Uma é
passiva e diz respeito à simples falta de interesse e à
dificuldade em assimilar seus conteúdos; a outra, mais
perigosa, é ativa e diz respeito a indivíduos e grupos
abertamente contrários à ciência, que a acusam de
ser responsável por uma série de problemas da
civilização contemporânea (poluição, desastres
ecológicos, armas militares). Shamos afirma que é
preciso entender que a culpa desses problemas não
é da ciência, mas dos usos que a sociedade faz do
conhecimento científico e da tecnologia. A culpa
seria, portanto, da própria sociedade.
O autor, então, apresenta e caracteriza, no Capítulo
5, segundo sua própria opinião, os diversos tipos
de grupos anti-ciência que costumam se manifestar
nos EUA. O primeiro deles é o grupo dos neoluditas que, segundo ele, desejam o retrocesso às
tecnologias primitivas e afirmam que todas as
tecnologias são nocivas. Outro grupo é o dos antitecnologistas, que alertam para o potencial
desumanizante da tecnologia e da técnica; Shamos
afirma que são guiados mais pela emoção do que
pela razão; então, acreditam em superstições e na
pseudociência. Shamos cita, também, filósofos e
outros pensadores críticos da ciência. Um de seus
alvos preferidos é Paul Feyerabend, que ele acusa
de acreditar na astrologia. Feyerabend afirma que
a ciência é uma ameaça à democracia, e defende
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que seja supervisionada pela população. Outros
grupos, filósofos, humanistas e críticos da ciência
em geral são apresentados e desqualificados por
Shamos, que se baseia no argumento de que são
ignorantes e desconhecem a ciência. Ele afirma
que esses críticos são, em geral, cientistas sociais e
humanistas. Sobre eles, argumenta que, tendo em
vista que sua ignorância em ciência os impede de
contribuir efetivamente para seu progresso, eles
tendem a produzir críticas infundadas, a propor a
desconstrução da ciência ou a sua total
reestruturação (p. 119). Ele alega ainda que os
chamados humanistas (pesquisadores das áreas das
ciências humanas e sociais) são iletrados em
ciência; porém, os cientistas (físicos, matemáticos,
biólogos, etc.) são profundamente letrados nas
humanidades. Com isso, Shamos demonstra que
seu pensamento está eivado de preconceito e de
um estranho complexo de superioridade, já que
ele próprio é físico. Outros grupos anti-ciência
citados por Shamos são aqueles ligados aos direitos
dos animais. Ele concorda com os movimentos
que limitam o trabalho animal e os espetáculos
circenses e afins, mas discorda da limitação do uso
de animais nas pesquisas, porque, segundo seu
fraco argumento, o número de animais utilizados
em pesquisas é irrisório. Shamos conclui o
Capítulo 5 afirmando que os grupos anti-ciência
causam repercussão porque as pessoas gostam de
confrontar o governo, as grandes empresas, os
médicos, os cientistas e os advogados. Segundo
ele, a mídia reforça e contribui para essa
repercussão, uma vez que sua cobertura sobre a
ciência é mais sensacionalista do que educativa.
Diante desse cenário, em que a ciência é atacada
por grupos anti-ciência, que tentam impedir seu
progresso, é preciso levar algum conhecimento
científico à população, para que ela não se deixe
levar pelos argumentos desses grupos. Assim, a
justificativa dada por Shamos para a necessidade
do letramento científico é impedir que o império
da ignorância ataque a ciência, que, segundo ele, é
a mais racional e bem-sucedida das empreitadas
humanas. Mas é preciso reconhecer que todos os
esforços realizados ao longo de um século visando
ao letramento científico da população fracassaram.
Assim, novas abordagens para o letramento
científico se fazem necessárias. Ele reconhece que
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houve avanços na educação científica.
Primeiramente, menciona as abordagens que
tentam aproximar a ciência do cotidiano das
crianças no ensino fundamental. Segundo ele, elas
aumentam o interesse pela ciência; todavia, a falta
de formação dos professores impede que dêem
bons resultados. Para o ensino secundário, Shamos
afirma que aproximar a ciência do cotidiano pode
não ser suficiente para despertar o interesse dos
adolescentes. Segundo ele, é preciso considerar que
a educação científica é autoritária, no sentido em
que dá pouco espaço para a expressão das opiniões
pessoais, de forma que os estudantes são passivos
no processo de ensino/aprendizagem. Então, a
educação científica no ensino secundário deve
estar centrada na interface ciência/tecnologia/
sociedade, possibilitando o envolvimento mais
ativo dos estudantes.
Ele aponta dois caminhos possíveis para o
letramento científico: i) entender que é impossível
atingir o letramento científico universal, e
abandonar a idéia de ensino científico
compulsório, deixando a escolha aos indivíduos;
ou ii) acreditar que a educação científica ainda pode
melhorar, pois não atingiu seu ápice. Obviamente,
Shamos defende o segundo caminho. Propõe,
contudo, mudanças radicais na abordagem da
educação científica. Primeiramente, observa que
se deve alterar o objetivo da educação científica de
crianças e jovens, que não mais deve ser tentar se
atingir o letramento científico universal, mas
somente criar um grande público apreciador da
ciência. Juntamente com isso, em vez de buscar o
letramento científico universal, a educação
científica deve visar ampliar a população letrada
em ciência de 3 a 6% (taxa atual) para 20% (taxa
ideal). Para isso, ele afirma que a educação
científica deve estar centrada no professor, e não
no currículo, e defende investimentos na formação
de professores.
Porque Shamos considera que 20% da população
letrada em ciência é uma taxa ideal?
Acompanhemos seu raciocínio: hoje em dia, com
a taxa de indivíduos letrados em ciência variando
entre 3 a 6%, a probabilidade de existir uma pessoa
cientificamente letrada em grupos de debates
políticos (que definem, inclusive, coisas
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relacionadas à ciência e tecnologia) é menor do
que 10%; desse modo, segundo o autor, decisões
são tomadas tendo por base a mais pura ignorância,
e são facilmente manipuladas pelos grupos anticiência. Se a taxa de indivíduos letrados em ciência
for ampliada para 20% da população, essa
probabilidade se torna maior do que 90%, mesmo
nos grupos pequenos. Se isso ocorrer, os debates
políticos, conforme seu raciocínio, se tornarão
esclarecidos.
Então, não é necessário total letramento científico
para alterar profundamente o modo como a
sociedade lida com a ciência e a tecnologia. Desse
modo, os objetivos da educação científica seriam:
i) criar uma "audiência apreciativa" da ciência, que
entenda que investir muito esforço e dinheiro em
ciência e tecnologia é importante para o país; ii)
deixar a sociedade mais confortável com o
desenvolvimento da ciência e da tecnologia, para
que possa reconhecer de fato seus benefícios e
seus riscos; iii) ampliar a taxa de letramento
científico da população. O quê significa
exatamente o segundo objetivo apontado por
Shamos? Nesse ponto, o autor realmente revela
sua postura. Segundo ele, tornar a sociedade
confortável em relação à ciência e tecnologia não
significa que as pessoas necessitem realmente
conhecer a ciência a ponto de serem capazes de
emitir opiniões fundamentadas sobre ela. Significa
criar uma sociedade que não tem medo dos riscos
oferecidos pela ciência. Mas por quê? Porque,
segundo ele, a sociedade pode aprender a confiar
nos especialistas. Então, o cerne da proposta de
Shamos para o letramento científico é torná-lo uma
ferramenta capaz de ajudar as pessoas a
ganharem confiança nos indivíduos, grupos
de interesse e agências governamentais que
controlam os fundos para a ciência e a
tecnologia. Observamos, portanto, que a
preocupação do autor não é com a sociedade, ou
com os benefícios que a educação científica possa
trazer para a vida das pessoas comuns, mas sim
com o financiamento da ciência, que pode ficar
ameaçado caso o movimento anti-ciência comece
a ganhar maiores dimensões.
Com efeito, a proposta de Shamos é
veementemente criticada por uma série de setores
da sociedade, inclusive dentro dos próprios meios
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acadêmicos, porque ela pode tornar as pessoas e a
sociedade profundamente dependentes dos
especialistas. Shamos afirma que esse tipo de crítica
parte de argumentos irracionais e fantasiosos, de
pessoas que se negam a admitir que o crescimento
da ciência e da tecnologia é inexorável. Essa sua
proposta baseia-se no projeto do físico Arthur
Kantrowitz, que pretendia criar uma corte científica,
responsável por julgar assuntos controversos
relacionados à ciência e tecnologia. O julgamento
seria realizado após a separação dos aspectos
puramente científicos daqueles morais e políticos.
A proposta de Kantrowitz não prosperou, pois
esbarrou em severas críticas, que se baseavam
principalmente no argumento da inexistência da
neutralidade moral e política da ciência. Apesar
disso, Shamos retoma essa discussão, e afirma que
as críticas a Kantrowitz foram feitas por pessoas
que preferem que decisões importantes fossem
tomadas tendo como base a ignorância do público
em geral, em vez de aceitar a possibilidade da
existência do conhecimento científico neutro e
isento de valores. Para Shamos, mesmo que os
cientistas não sejam moralmente neutros, a ciência
certamente o é.
Publicada em Março de 2009
relação à ciência e à tecnologia sem, contudo, a
necessidade de que dominem seus conteúdos. Isso
significa criar um modelo de educação científica
que vise sobretudo a criar confiança na ciência, para
que as pessoas não a rejeitem. E deixar que as
decisões importantes, que envolvem assuntos
polêmicos, inclusive aqueles que ofereçam riscos
de qualquer natureza, a comitês científicos,
imparciais, neutros e confiáveis, ou seja,
absolutamente soberanos. A proposta de Shamos
parte das premissas da supremacia do
conhecimento científico e de seu valor absoluto,
que justificariam enormes investimentos visando
ao seu desenvolvimento. Reduzindo todo o seu
livro à sua simples linha de raciocínio, que é, de
fato, sua essência, fica evidente que Shamos, assim
como os políticos, empresários e toda a sorte de
profissionais considerados mesquinhos e
individualistas, antes de defender uma "nobre"
causa, a do progresso da ciência, advoga em favor
próprio, visando a garantir para si e para seus pares,
os cientistas, aquilo que é mais importante na
civilização ocidental, sobretudo nos EUA: o
dinheiro.
Portanto, o autor defende que, como o letramento
científico universal é impossível, conforme
demonstrou ao longo de seu livro, a criação de
comitês científicos é a melhor solução para
informar os debates políticos e os processos
decisórios. Tais comitês, formados por cientistas,
seriam imparciais e confiáveis, de forma que suas
opiniões e decisões seriam respeitadas pelos
políticos e pelo público em geral.
Observamos, portanto, que Shamos gasta seu livro
praticamente inteiro demonstrando que é
impossível levar o conhecimento científico a toda
a população, por causa, principalmente, da
complexidade da ciência, que a torna impalatável
para a maioria das pessoas. Todavia, a ignorância
completa em termos de ciência pode promover o
crescimento de grupos anti-ciência, o que, por sua
vez, pode provocar uma rejeição à ciência por parte
da população e dos políticos, resultando na
diminuição dos investimentos na ciência, e
impedindo seu progresso. Por isso, é preciso
alguma educação científica, que ao menos seja
capaz de deixar as pessoas mais confortáveis em
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Artigo
Educação científica e tecnológica: um compromisso de educadores e
cientistas para o desenvolvimento da ciência e tecnologia no Brasil
Wildson Luiz Pereira dos Santos*
Resumo
Como desafio para o desenvolvimento científico e tecnológico brasileiro que possa contribuir para
nossa projeção enquanto nação propõe-se uma educação científica crítica de toda a população que
reflita sobre as implicações sociais da ciência e tecnologia (C&T). A partir do quadro atual do ensino
de ciências, caracterizado por uma descontextualização e ausência de educação tecnológica, discute-se
uma proposta de educação crítica que questione modelos e valores de desenvolvimento em C&T.
Nesse contexto, aponta-se como os educadores e a comunidade científica podem assumir o
compromisso de discutir os rumos da C&T no Brasil, por meio de ações no sistema formal e nãoformal de educação dirigido a toda população.
Palavras-chave: educação científica e tecnológica, letramento científico e tecnológico,
educação para cidadania, CTS (Ciência-Tecnologia-Sociedade), aspectos sociocientíficos
Abstract
The brazilian scientific and technological development requires a critical science education based on
the social implications of science and technology. Starting from the present type of science teaching,
based on the lack of contextualization and technological education, it is proposed a critical education
that argues against the models and values used in science and technology development. It is also
pointed how educators and the scientific community can discuss the directions of science and technology
in Brazil, by means of articulated actions in all forms of education for the general public.
Key words: scientific and technological educational, scientific and technological literacy,
education for citizenship, STS (Science-Technology-Society), socioscientific issues
O Brasil tem conquistado, nos últimos 20 anos,
avanços significativos em termos de aumento de
matrículas na educação básica, aumento do nível
de escolarização da população, bem como
destaque no crescimento da produção científica e
tecnológica, ainda que muito tenhamos que
caminhar para alcançar os índices que almejamos.
Com a estabilidade e o crescimento econômico
nos últimos anos, temos tido a oportunidade de
ocuparmos uma posição de destaque internacional
no novo cenário que vai se delineando. Nesse
sentido, podemos fazer diferença se buscarmos
novos modelos de desenvolvimento científico e
tecnológico que garantam qualidade de vida e
sustentabilidade ambiental.
Sem dúvida. O nosso grande desafio enquanto
nação está em superar o dramático quadro de
indicadores sociais e ainda muito temos que
investir em ciência e tecnologia (C&T). Em uma
visão estritamente econômica, tem se pensado em
políticas sociais de distribuição de renda, de
*Doutor em Ensino de Ciências pela Leeds Metropolitan University, Inglaterra (2001).
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências (Instituto de
Química) e Programa de Pós-Graduação em Educação (Faculdade de Educação)
da Universidade de Brasília.
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distribuição de bolsas assistenciais, de
investimentos em construção de escolas, de
políticas de acesso e permanência escolar
(merenda, transporte, livros escolares), de
formação de professores, de investimentos
em C&T etc.
Tais políticas são essenciais, mas defendemos o
ponto de vista de que faz diferença para o
desenvolvimento da nação mudar a visão do
modelo de desenvolvimento científico e
tecnológico em relação aos outros países. Buscar
um desenvolvimento socialmente sustentável fará
sem dúvida uma grande diferença.
Essa mudança de visão passa obrigatoriamente por
uma mudança na concepção de educação científica
e tecnológica. No presente artigo, levantam-se
desafios para a construção de um novo modelo de
educação científica e tecnológica que vise à
preparação de cidadãos que assumam uma nova ética
de consumo responsável, projetando um
desenvolvimento econômico comprometido com a
justiça e igualdade social. Para essa educação devem
estar comprometidos educadores e cientistas.
Quadro atual da educação científica
e tecnológica
Apesar dos índices de matrícula e permanência
escolar estarem melhorando ano a ano, os dados
de exames avaliativos têm demonstrado que a
qualidade da educação encontra-se num nível
muito baixo. Na média nacional, os alunos
concluem o ensino médio com nível abaixo de
proficiência. Isso significa que nossos alunos
concluem o ensino médio com domínio de leitura
e interpretação de textos simples.
Assim, certamente, nossos alunos vão ter
dificuldade em compreender informações mais
complexas contidas em manuais de instruções de
equipamentos eletrônicos, em rótulos de produtos
químicos e em reportagens de análise das
implicações de C&T na sociedade.
Os alunos não só têm saído com nível crítico em
língua portuguesa e em matemática, mas
certamente em conhecimentos científicos. A
grande falta de professores com formação nas
Publicada em Março de 2009
disciplinas científicas de química, física e biologia
certamente tem contribuído para essa situação.
Sabe-se que os conteúdos de ciências geralmente
veiculados nas escolas se restringem a sistemas
classificatórios, definições de termos científicos e
resoluções algorítmicas de questões clássicas de
ciências. Esses conteúdos são tratados de maneira
descontextualizada, sem discussão sobre sua
relevância e seu significado, de forma ritualizada
e sua aprendizagem se limita ao uso de recursos
de memorização. Esse ensino clássico de ciências,
descontextualizado, tem se caracterizado como um
ensino com pouca utilidade para o cidadão como
tem discutido Chassot (2000).
Em relação aos conteúdos tecnológicos, pode-se
afirmar que o currículo escolar brasileiro não tem
contemplado adequadamente a educação
tecnológica. O que se teve a partir da década de
1930 foi um sistema escolar que separou a
educação técnica da educação acadêmica.
Enquanto os currículos propedêuticos ficaram
esvaziados de conteúdos tecnológicos, os
currículos das escolas técnicas se restringiram ao
ensino de técnicas básicas para o processamento
tecnológico. Isso ocorreu em um modelo de
ensino de transferência tecnológica por meio da
instrução de pacotes tecnológicos de know how
importados, em um processo de educação restrito
de aplicação de determinadas técnicas, mas sem
uma compreensão clara mais ampla do papel da
tecnologia na sociedade.
Na década de 1980, por ocasião da discussão da
nova Constituição do Brasil e de uma nova Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
pedagogos brasileiros começaram a propor que o
trabalho fosse inserido no currículo da Educação
Básica como princípio educativo (KUENZER,
1988). Ao final dos anos 90, com a incorporação
no discurso curricular das denominadas
competências e publicação das Diretrizes e
Parâmetros Curriculares da educação básica,
começaram a surgir tentativas de inserção no
currículo de conteúdos tecnológicos por meio
da incorporação de princípios da
contextualização e interdisciplinaridade.
Todavia, mesmo tendo sido incluídas nas
Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino
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Médio as tecnologias nas diferentes áreas do
conhecimento, pode-se considerar que os
currículos escolares brasileiros continuam
estruturados de forma clássica, muito longe do que
se esperaria de uma educação tecnológica.
Os professores parecem entender que educação
tecnológica se restringe ao conhecimento de
princípios sobre como funciona determinados
aparatos tecnológicos. O pouco que a escola tem
procurado fazer é mencionar aos alunos exemplos
de aplicações do conhecimento científico em
diferentes recursos tecnológicos de seu cotidiano.
Isso está muito longe do que seria a proposta de
Kuenzer (1998) de compreender as condições
sociais do trabalho em nossa sociedade capitalista,
bem como do que se tem discutido sobre uma
educação tecnológica em uma proposta de ensino
de ciências com ênfase nas inter-relações em
Ciência-Tecnologia-Sociedade (CTS).
Por uma educação científica e
tecnológica crítica
Currículos com ênfase em CTS têm sido propostos
em todo o mundo, desde a década de 1970
(BAZZO, 1998). Esses currículos têm como
objetivo central promover a educação científica e
tecnológica dos cidadãos, auxiliando o aluno a
construir conhecimentos, habilidades e valores
necessários para tomar decisões responsáveis sobre
questões de C&T na sociedade e atuar na solução
de tais questões (SANTOS e MORTIMER, 2000).
Dentre esses objetivos, temos destacado o
desenvolvimento de valores (SANTOS e
SCHNETZLER, 1997). Esses valores estão
vinculados aos interesses coletivos, como os de
solidariedade, de fraternidade, de consciência do
compromisso social, de reciprocidade, de
respeito ao próximo e de generosidade. Tais
valores são, assim, relacionados às necessidades
humanas, o que significa um questionamento à
ordem capitalista, na qual valores econômicos
se impõem aos demais.
Será por meio da discussão desses valores que
contribuiremos na formação de cidadãos críticos
comprometidos com a sociedade. As pessoas, por
exemplo, lidam diariamente com dezenas de
Publicada em Março de 2009
produtos químicos e têm que decidir qual devem
consumir e como fazê-lo. Essa decisão deveria ser
tomada levando-se em conta não só a eficiência dos
produtos para os fins que se desejam, mas também
os seus efeitos sobre a saúde, os seus efeitos
ambientais, o seu valor econômico, as questões éticas
relacionadas à sua produção e comercialização.
Hoje, vivemos em uma época de supervalorização
da ciência, caracterizada pelo cientificismo. Como
conseqüência dessa visão cientificista, criou-se o
mito da salvação da humanidade, ao considerar
que todos os problemas humanos podem ser
resolvidos cientificamente, e o mito da
neutralidade científica que isenta a ciência de
refletir sobre suas consequências sociais
(JAPIASSU, 1999).
Tais crenças tiveram repercussões no ensino de
ciências, como por exemplo, a orientação
curricular de formar um minicientista por meio
da vivência do "método científico", que teve
grande influência sobre o ensino de ciências a partir
do final dos anos de 1950. Nessa visão, acreditavase que a sociedade seria melhor se os seus cidadãos
agissem e pensassem como cientistas.
Contrapondo-nos a esses modelos cientificistas,
temos defendido uma educação científica e
tecnológica crítica, a qual é denominada por Auler
e Delizoicov (2001) como perspectiva ampliada.
Esses autores consideram que a alfabetização
científica e tecnológica - ACT pode ser vista em
duas perspectivas: a reducionista e a ampliada.
Segundo afirmam:
A reducionista, em nossa análise, desconsidera a
existência de construções subjacentes à produção do
conhecimento científico-tecnológico, tal como aquela que
leva a uma concepção de neutralidade da CiênciaTecnologia. Relacionamos a esta compreensão de
neutralidade os denominados mitos: superioridade do
modelo de decisões tecnocráticas, perspectiva
salvacionista da Ciência-Tecnologia e o determinismo
tecnológico. A perspectiva ampliada, proposta neste
trabalho, busca a compreensão das interações entre
Ciência-Tecnologia- Sociedade (CTS), associando o
ensino de conceitos à problematização desses mitos.
(AULER e DELIZOICOV, 2001, p. 105).
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O mito da superioridade das decisões tecnocráticas
está assentado em uma visão cientificista da ciência
que desconsidera a participação democrática na
tomada de decisão, e é calcada exclusivamente em
valores tecnocráticos. O mito da perspectiva
salvacionista se traduz na concepção unidirecional
de que o progresso científico gera progresso
tecnológico, que, por sua vez, gera progresso
econômico e este, progresso social, (GARCIA,
CEREZO e LÓPEZ, 1996). O mito do
determinismo tecnológico tem como base a
mesma concepção do mito anterior, a de que o
desenvolvimento tecnológico conduz ao
desenvolvimento humano, mas acrescido da
crença na autonomia da tecnologia sem a
influência da sociedade. Nessa perspectiva, há uma
superideologia inculcada pela mídia que induz a
sociedade a consumir passivamente os aparatos
tecnológicos, tornando irreversível o
desenvolvimento tecnológico (AULER e
DELIZOICOV, 2001).
Consideramos que pensar em uma educação
científica e tecnológica crítica significa fazer uma
abordagem com a função social de questionar
modelos e valores de desenvolvimento científico
e tecnológico em nossa sociedade. Isso implica
introduzir no currículo questões sociais, políticas,
econômicas, culturais e ambientais relativas à
ciência e tecnologia que temos denominado de
aspectos sociocientíficos (SANTOS, 2007).
Aqui, cabe ampliar o conceito de tecnologia, que, muitas
vezes, tem sido considerado no seu sentido restrito.
Pacey (1990) considera a prática tecnológica como
sendo constituída pelos seguintes aspectos centrais:
1. aspecto técnico: conhecimentos, habilidades
e técnicas; instrumentos, ferramentas e máquinas;
recursos humanos e materiais; matérias-primas,
produtos obtidos, dejetos e resíduos;
2. aspecto organizacional: atividade econômica
e industrial; atividade profissional dos engenheiros,
técnicos e operários da produção; usuários e
consumidores; sindicatos;
3. aspecto cultural: objetivos; sistema de valores
e códigos éticos; crenças sobre o progresso,
consciência e criatividade.
Publicada em Março de 2009
Em geral, o sentido a que se reporta a educação
tecnológica é o restrito, que leva em conta apenas
o seu aspecto técnico. Todavia, na educação
tecnológica, é fundamental a identificação dos
aspectos organizacionais e culturais da tecnologia,
os quais permitirão ao cidadão compreender como
a tecnologia é dependente dos sistemas
sociopolíticos e dos valores e ideologias da cultura
em que está inserida.
Grinspun (1999), ao discutir o que se pode
entender por educação tecnológica, destaca que
ela não pode ser compreendida como apenas se
referindo ao ensino técnico-profissional. Para ela,
a educação tecnológica deve ser também
vivenciada em todos os segmentos de ensino,
visando à formação de cidadãos críticos que
possam transformar o modelo de desenvolvimento
tecnológico de nossa sociedade atual.
Uma pessoa tecnologicamente educada teria o
poder e a liberdade de usar os seus conhecimentos
para examinar e questionar temas de importância
na sociotecnologia. Isso implica ser crítico no uso
da tecnologia, ou seja, ter habilidade intelectual
de examinar prós e contras de aparatos
tecnológicos, analisar o potencial de seus
benefícios e de seus custos e perceber o que está
por detrás das forças políticas e sociais que
orientam seu desenvolvimento. Isso vai além do
conhecimento científico e técnico específico sobre
o uso da tecnologia. Isso significa a participação
comprometida na vida de uma sociedade que
carrega a marca da tecnociência, tendo autonomia
nas decisões (FOUREZ, 1997).
Educação científica e tecnológica
para todos: compromisso de
educadores e da comunidade
científica
Se desejamos fazer diferença nesse mundo
globalizado, precisamos lembrar o que nos advertia
Vargas (1994): "uma nação adquire autonomia
tecnológica não necessariamente quando domina
um ramo de alta tecnologia, mas quando consegue
uma ampla e harmoniosa interação entre [os]
subsistemas tecnológicos, sob o controle,
orientação e decisão dos 'filtros sociais'" (p. 186).
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Ter o controle social sobre a tecnologia implica a
educação de nossos cidadãos para uma reflexão
crítica sobre suas consequências sociais. Isso exige
conhecimento científico e tecnológico que vai
além da memorização de sistemas classificatórios,
definições e resolução de exercícios, mas a
compreensão do papel da ciência e da tecnologia na
sociedade, como por exemplo, a compreensão de
sua filosofia, como muito bem discute Morais (1988)
em seu livro "Filosofia da Ciência e da Tecnologia".
Shamos (1995), em seu livro, levanta o debate se
seria possível de fato alfabetizar/letrar os cidadãos
em C&T, o que poderia ser considerado um mito.
O seu debate conduz a reflexões sobre qual seria
o papel da educação científica e tecnológica. Nessa
perspectiva, temos proposto que o propósito da
educação em ciências deveria ser o de letrar o
cidadão no sentido de fornecer um ensino de
ciências contextualizado, discutindo aspectos
sociocientíficos, por meio da prática de leitura de
textos científicos que possibilitem a compreensão
das relações ciência-tecnologia-sociedade e que
auxiliem os alunos a tomarem decisões pessoais e
coletivas (SANTOS, 2007).
Temos que investir sim no sistema educacional e
na infra-estrutura em C&T, mas precisamos
repensar com urgência o modelo de educação
científica e tecnológica. Para isso não dependemos
de novos investimentos, mas de uma mudança
filosófica sobre os princípios da educação, o que
precisa ser repensado pelos que trabalham com
cursos de formação de professores e pelos
responsáveis por discussões curriculares.
Deve-se lembrar, contudo, que conteúdos de C&T
necessários para o cidadão na perspectiva crítica que
aqui apontamos não são cobrados em vestibular.
Nesse sentido, enquanto a sociedade continuar
reduzindo a função da educação básica à de
preparatória para o ensino superior, continuaremos
com um modelo de ensino distanciado daquilo que
a nossa sociedade necessita para que possamos
mudar os rumos do País.
Nesse contexto, os cientistas e divulgadores da
ciência, enfim, os que trabalham com a educação
não-formal, possuem uma agenda importante em seu
trabalho. Essa agenda consiste em difundir para toda
a população, incluindo a escolar (por meio de
Publicada em Março de 2009
programas especiais dirigidas as escolas), reflexões
críticas sobre as implicações sociais e ambientais de
C&T em direção à construção de uma sociedade
sustentável, justa e igualitária.
Repensar a educação científica e tecnológica é um
desafio para a educação formal e não-formal, como
já discutia Barros (1998). Em nossa avaliação, não se
trata de um mito, mas de uma mudança de concepção
sobre o papel da educação em ciências para a
cidadania, o que vem desafiando educadores de todo
o mundo (MARTINS, 2002).
Está mais do que na hora de publicarmos artigos em
jornais e revistas de alcance do grande público e
produzirmos programas e entrevistas nas quais
possamos discutir a necessidade de investimentos em
C&T e analisar o rumo de nossos programas
científicos e os impactos dos programas tecnológicos
em nossa sociedade. Essa é uma tarefa que não cabe
somente aos educadores, mas a todos aqueles que se
preocupam com o destino da C&T no Brasil.
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Publicada em Março de 2009
Artigo
Incursões no discurso da ciência: a popularização da ciência nos
espaços dos museus
Roque Moraes*
Resumo
Mais do que armazenar novos conhecimentos, uma popularização efetiva da ciência em museus de
ciências precisa ser entendida como apropriação do discurso e da cultura científicos. Argumenta-se
que isto implica ir além da idéia de descobrir, assumindo-se que aprender nesses espaços é tornar mais
complexo o que já é conhecimento do visitante, seja do senso comum, seja científico. Defende-se
ainda que as aprendizagens a ocorrerem nos museus exigem mediação, especialmente diálogos com
outros mais capazes. São também facilitadas quando os visitantes são envolvidos em pesquisa e
desafiados a procurarem respostas para seus questionamentos. Finalmente, discute-se como uma
popularização da ciência a partir desta perspectiva possibilita o desenvolvimento de uma cidadania
consciente e crítica.
Palavras-chave: popularização da ciência, museus de ciências, apropriação discursiva,
aprendizagem como reconstrução, mediação
Abstract
More than to store new knowledge, an effective popularization of science in museums needs do be
understood as a process of culture and discourse appropriation. It is argued that this implies do go
beyond the idea of discovering, assuming that to learn in these settings is to transform the visitors'
knowledge into more complex understanding, be it common knowledge or scientific. It is also stated
that the reconstructions to be produced in the museums call for mediation, specially dialogues with
more capable others. The learning is also improved when the visitors are involved in investigations
and challenged to search answers to their questions. Finally, it is discussed how the implementation of
a popularization of science in this perspective leads to the development of a conscious and critical
citizenship.
Key words: popularization of science, science museums, discourse appropriation, learning
as reconstruction, mediation
A popularização da ciência dentro dos espaços de
museus pode ser entendida como se dando a partir
de uma apropriação mediada do discurso e da
cultura científicos, processo em que se
reconstroem conhecimentos e competências dos
visitantes, possibilitando contribuir para a
emergência de uma cidadania com qualidade
formal e política.
Na defesa dessa idéia, inicia-se argumentando
sobre a necessidade de superar o entendimento
de que se aprende armazenando conhecimentos,
para defender uma abordagem sociocultural como
modo de apropriação do discurso e da cultura da
ciência. Exigindo operar a partir do que os
*Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil (1991).
Pós-Doutorado pela Universidade de Sevilla, Espanha (2002). Professor titular da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil.
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visitantes já trazem, ainda que conhecimento do
senso comum, é assumido que o desafio nos
museus de ciências é tornar mais complexo o que
já é conhecido. Dando destaque à pesquisa e ao
lúdico, defende-se que os museus de ciências se
constituam em espaços de popularização efetiva
da ciência, com contribuição importante para a
formação de cidadãos críticos e participativos.
1- Do armazenar conhecimentos
para a apropriação de discursos
Superando entendimentos de transmissão de
conhecimentos é importante que uma popularização
efetiva da ciência nos espaços de exposição de museus
se dê a partir de um processo mais amplo, de
apropriação do discurso e da cultura científicos,
processo que ocorre de forma auto-organizada e
natural por meio de interações na linguagem.
Ser cientificamente alfabetizado é conseguir
movimentar-se com competência no discurso da
ciência. Museus de ciência são espaços de vivência e
apropriação desse discurso, espaços em que ocorrem
aprendizagens não formais a partir de incursões nos
experimentos e outros modos de exposição.
É importante não entender os museus como
reservatórios de conhecimento da ciência, mas
como espaços em que os visitantes podem
movimentar-se no discurso da ciência, podendo
desafiar seus conhecimentos e modos de perceber
o mundo no sentido de torná-los mais complexos.
Ingressar num museu de ciências é mergulhar num
discurso diferente daquele do senso comum e
capaz de possibilitar uma leitura alternativa do
mundo em que os visitantes vivem. É abrir outra
janela para a compreensão da realidade.
Nesse sentido, a popularização da ciência precisa
ocorrer a partir dos interesses e questionamentos
dos cidadãos, possibilitando a eles ampliarem os
tipos de explicações que conseguem dar aos
fenômenos e diversificarem as soluções que
conseguem produzir para os problemas que
enfrentam no dia-a-dia a partir da interação com
o conhecimento da ciência.
Pelo envolvimento em atividades e na interação
com os que vivem próximos a nós nos
Publicada em Março de 2009
apropriamos do discurso do senso comum e da
cultura dos contextos em que nos desenvolvemos.
Da mesma forma é pela impregnação no discurso
da ciência e de suas práticas que nos apropriamos
do pensar científico e dos modos de ação e
conhecer da ciência.
Incursões no discurso da ciência que serve de
fundamento para a organização dos museus
possibilitam uma apropriação desse discurso, ao
mesmo tempo criando condições de participar na
sua transformação. Nos museus de ciências podem
ser criadas as condições para aprendizagens num
sentido sócio-cultural.
Tendo em vista as dificuldades encontradas nos
contextos escolares na superação de modelos de
ensino de ciências, centrados ainda excessivamente
na transmissão de uma ciência asséptica e
formalizada, os museus de ciências têm se
destacado na implementação de uma
popularização da ciência dentro de perspectivas
como as que estamos propondo.
Ainda que os museus possam organizar diferentes
tipos de incursões em seus espaços de exposição,
o simples perambular no museu é modo de
impregnação na cultura da ciência. Mesmo que
alguns entendam que o aspecto lúdico e de
aparente desorganização dos movimentos de
crianças nos museus não possam propiciar
realmente aprendizagens, entrar num museu e
interagir com os elementos expostos, em qualquer
forma que seja, constitui apropriação do discurso
da ciência. Essas aprendizagens se aproximam dos
modos naturais de aprender de crianças e de adultos.
Na vida não há ninguém que direcione e organize
nossas aprendizagens. São auto-organizadas.
Alfabetizar-se em ciências nesta perspectiva é
apropriar-se da cultura científica, aprendendo a
valorizar e compreender o discurso da ciência.
Nisso se evidencia uma forma importante de
popularização da ciência e de ampliação dos
espaços de atuação dos cidadãos.
"Conhecer, pensar e aprender emergem da interação com
um mundo estruturado social e culturalmente" (Lave;
Wenger, 1999, p.51). É no intercâmbio com nossa
cultura e ambiente social que aprendemos e damos
significado ao nosso mundo. É desta forma que
seria importante pensar as aprendizagens nos
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museus, recuperando o tipo de aprendizagem que se
realiza antes de ingressar na escola, apropriações que se
dão principalmente por interações na linguagem.
A apropriação do discurso e da cultura da ciência
nos museus dá-se pelo envolvimento em espaços
estruturados a partir de pressupostos da ciência.
Neles são produzidos e reconstruídos significados
nos visitantes, consistindo o processo em modo
natural de aprender, sempre a partir de interações
sociais aí possibilitadas.
As aprendizagens nos museus dão-se por meio da
linguagem. Pelo envolvimento intenso no discurso
da ciência, por meio da fala e leitura, ocorre uma
ampliação da compreensão de mundo dos
visitantes, tendo como referência o discurso e a
cultura científicos.
Publicada em Março de 2009
Ainda que não seja objetivo da educação nos
museus competir com espaços formais de
educação, as aprendizagens escolares podem
qualificar-se por uma integração com os museus.
É interessante, entretanto, que a complementação
da educação científica formal nos espaços não
formais dos museus consiga trabalhar aspectos que
normalmente não são focalizados nas escolas.
Também é importante que nesses espaços se
superem epistemologias de aprender ainda
soberanamente presentes nas escolas,
especialmente a idéia de que é possível transmitir
o conhecimento de um sujeito a outro, do livro
didático para a mente dos alunos.
A linguagem tem uma função central na
popularização da ciência nos espaços dos museus
Esse papel, entretanto, não se relaciona tanto com
o domínio vocabular e de interpretação de modos
de comunicação da ciência, mas está ligado à
aquisição de competências em saber movimentarse no discurso da ciência, sabendo utilizar tanto o
conhecimento como os processos da ciência em
situações concretas do dia-a-dia.
Em síntese, os museus podem constituir-se em
espaços inovadores para uma educação científica
e para uma popularização da ciência em novas
perspectivas. Superando idéias de aprender como
transmissão e absorção de conhecimentos, é
importante conceber os museus de ciências como
ambientes em que os visitantes podem mergulhar
no discurso da ciência, aprendendo a movimentarse com base na cultura científica. Nisso lhes é
possibilitada a abertura de uma nova janela para o
mundo, novo modo de compreender a realidade
em que vivem e de participar na sua transformação.
A leitura de mundo pelo olhar da ciência
corresponde a uma ampliação de possibilidades
de compreensão da realidade e de saber
movimentar-se dentro dela.
2-Para além da descoberta, a
apropriação do discurso
Nessa perspectiva, as aprendizagens nos museus não
se dão de forma linear, por transferências organizadas
de conhecimentos para os visitantes. Dão-se de forma
não consciente pelo envolvimento no discurso da
ciência, processos auto-organizados que possibilitam
compreensões mais complexas do mundo na medida
em que ocorrem.
Ainda que nossas aprendizagens sejam mediadas,
não são dirigidas. Não é possível linearizar o
aprender, mas ele ocorre por auto-organização. O
outro aprende não o que queremos lhe ensinar,
mas o que tem condições de aprender. Por esta
razão, também nos museus de ciências, é
importante oferecer oportunidades diversificadas
de contato com o discurso da ciência e deixar que
as aprendizagens dos visitantes ocorram dentro
das possibilidades de cada um.
Tendo em vista a ênfase dada à apropriação do
discurso e da cultura que defendemos, a
popularização da ciência nos museus precisa ser
organizada a partir de uma visão crítica sobre a
natureza da ciência. Nesses ambientes não se pode
assumir que a realidade é descoberta e que os
experimentos ensinam por si mesmos. A
apropriação do discurso e da cultura da ciência
precisa ainda superar aspectos meramente
cognitivos para envolver também habilidades,
atitudes e valores da ciência.
Apropriar-se do discurso da ciência implica
apreender sua natureza e seus modos de
funcionamento. Significa compreender e conseguir
pôr em ação seus diversificados modos de
produção de conhecimento e de solucionar
problemas, utilizando as ferramentas da ciência
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para reconstruir conhecimentos já anteriormente
construídos e para resolver problemas emergentes
nas realidades dos cidadãos.
Compreender a ciência em sua natureza e modos
de atuação é entendê-la como atividade humana,
interpretando seus sucessos e tomando consciência
de seus benefícios e prejuízos. É compreender que
é permeada de interesses, não podendo ser neutra,
mas sempre implicando direta ou indiretamente
quem atua com base em suas normas e princípios.
Para uma cidadania participativa e crítica, objetivo
de uma popularização efetiva da ciência, mais do
que o acúmulo de informação e conhecimento
científico, o que se requer é compreender a
natureza da atividade científica e saber operar com
suas ferramentas no contexto cotidiano. Quando
o cidadão aprende ciências nesta perspectiva, ele
experimenta novos modos de proceder, de
solucionar problemas. Explora novos caminhos,
aprende investigando (Dutra, 2000).
A popularização da ciência nos espaços de museus
precisa mostrar entendimentos atualizados de
ciência, com superação, principalmente, do
empirismo. Não há uma realidade pronta
esperando ser descoberta. O mundo que podemos
conhecer é uma realidade criada na linguagem, sem
que tenhamos acesso direto para saber como as
coisas efetivamente são.
De modo especial, nos museus interativos de
ciências, é preciso compreender que nenhum
experimento em exposição ensina por si mesmo,
por mais interativo que seja. A realidade não
transmite verdades, mas estas são produzidas pela
atividade racional e lingüística do homem,
envolvendo um esforço intenso de construção e
reconstrução que gradativamente produzem
entendimentos de mundo aceitos pela comunidade
científica. Da mesma forma, os visitantes de um
museu precisam envolver-se intensamente com os
experimentos, tanto pelos sentidos como pelo
intelecto, para que possam ampliar conhecimentos
que já construíram anteriormente.
Ser alfabetizado em ciências não é ser capaz de
descobrir um mundo já pronto, mas é criar
competências de participar de sua construção e
reconstrução, processo que se dá essencialmente
Publicada em Março de 2009
na linguagem. Isso constitui a apropriação do
discurso da ciência que defendemos.
Ao ingressar num museu de ciências, os visitantes
estão incursionando num discurso em que podem
perceber não só o conhecimento da ciência, mas
também as habilidades que se requerem ao
trabalhar com ela, as atitudes e valores implicados
na atividade científica.
"... um dos desafios dos museus interativos é superar
o simples foco do conhecimento, para atingir o aprender
a aprender, o aprender a pensar de modo crítico e o
saber procurar novos conhecimentos, quando deles se
tem necessidade" (Moraes, 2003, p.49).
Apropriar-se do discurso e da cultura científicos é
mais do que apenas adquirir alguns conhecimentos
novos. A popularização da ciência inclui também
compreender e saber movimentar-se nos
processos da ciência, internalizando seus modos
de funcionamento. Como o modo básico de
funcionamento da ciência é a pesquisa, uma efetiva
alfabetização científica exige o pesquisar, tanto nos
museus como em outros contextos.
Apropriar-se dos processos da ciência exige
mergulhar em seu conhecimento, desenvolver
habilidades e atitudes científicas e orientar-se pelos
seus valores. Ser alfabetizado cientificamente é
conhecer e saber utilizar as ferramentas da ciência
no dia a dia. Não é necessariamente ser ou
transformar-se em cientista, mas é conhecer
suficientemente os modos de agir da ciência
para participar no cotidiano de decisões e
práticas que envolvam a ciência, seus
conhecimentos e seus valores.
O que defendemos em relação à popularização
da ciência por meio dos museus é que, ao ingressar
em um museu, os visitantes se impregnem do
discurso da ciência, apropriando-se gradativamente
dos conceitos, das habilidades, competências e
atitudes características da ciência. Nisso
assumimos que um cidadão alfabetizado
cientificamente consegue viver mais plenamente
no mundo atual, estruturado em grande parte com
base na ciência e em seus produtos.
Seria um grande desperdício organizar os espaços
dos museus de ciências na mesma epistemologia
em que está sistematizada a maior parte da
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ISSN: 1808-6535
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educação científica formal. É importante superar
a estrutura disciplinar e a epistemologia empirista
que impera nesses espaços, organizando-os a partir
de entendimentos atualizados sobre os modos
como produzimos nossos conhecimentos. Esses
novos modos de organização valorizam de modo
especial a linguagem e a mediação como modos
de apropriação do discurso e da cultura científicos.
partir da realidade para, por meio de conceitos científicos,
compreender a realidade de forma mais plena.
3-Entre o senso comum e o
conhecimento científico
Mais do que saber distinguir o conhecimento
científico de outros tipos de conhecimento, os
espaços de educação não formal deveriam desafiar
seus visitantes a pôr em movimento e a
reconstruírem seus conhecimentos, tornando seus
saberes mais complexos pela confrontação com o
conhecimento científico.
O cidadão integra-se no discurso e na cultura da
ciência a partir dos conhecimentos que já construiu
anteriormente, a partir da cultura em que já está
envolvido. Tornar-se cientificamente alfabetizado
corresponde a uma qualificação dos conhecimentos
e das práticas cotidianos a partir da interação com a
ciência, pelo diálogo com especialistas e por conversas
com quem conhece ciências.
Apropriar-se do discurso da ciência não exige
abandonar o discurso de senso comum e suas
práticas. É, entretanto, pôr em dúvida o que já é
conhecido e modos de ação do cotidiano no
sentido de ir além deles. Uma popularização da
ciência efetiva precisa partir do senso comum e
por meio de um diálogo com a ciência tornar mais
complexos conhecimentos e práticas
anteriormente apropriados, qualificando-as com
base na ciência.
"A ciência moderna construiu-se contra o senso comum
que considerou superficial, ilusório e falso. A ciência
pós-moderna procura reabilitar o senso comum por
reconhecer nesta forma de conhecimento algumas
virtualidades para enriquecer a nossa relação com o
mundo. É certo que o conhecimento do senso comum
tende a ser um conhecimento mistificado e mistificador,
mas, apesar disso e apesar de ser conservador, tem
uma dimensão utópica e libertadora que pode ser
ampliada através do diálogo com o conhecimento
científico" (Santos, 2002, p.56).
O pensamento científico é mais abstrato e rigoroso
do que o pensamento cotidiano. Entretanto, como
colocam Freire e Faundez (1985), precisa ser
elaborado a partir do pensamento ingênuo. É
preciso assumir a ingenuidade para ultrapassá-la,
Não deve ser, pois, pretensão dos museus de
ciências substituir o conhecimento cotidiano pelo
científico. O que devem propor-se é possibilitar a
expressão do conhecimento dos visitantes e criar
espaços para sua transformação, a partir da
perspectiva da ciência. Isso implica, também, trazer
o conhecimento científico para o cotidiano.
Nos museus de ciências é preciso respeitar e fazer
emergir o conhecimento do senso comum,
produzindo ao mesmo tempo uma interação com o
conhecimento científico. A qualificação do
conhecimento dos visitantes constitui reconstrução
do que já conhecem, sejam conhecimentos do
cotidiano, sejam conhecimentos científicos
anteriormente apropriados.
Nesta perspectiva, nos museus de ciências, o
aprendizado está associado ao acesso ampliado dos
visitantes ao conhecimento e aos modos de
atuação da ciência, capazes de pôr em xeque seus
conhecimentos. Sejam pesquisadores ou
monitores, seja por meio de outros mecanismos de
mediação e comunicação, o que se solicita nesses
espaços são diálogos com especialistas de diferentes
áreas da ciência, interações que possam pôr em
movimento conhecimentos anteriormente
apropriados pelos visitantes visando reconstruí-los.
Ser alfabetizado em ciências é conseguir conversar
com quem entende de ciências, produzindo
argumentos que sejam aceitos pela comunidade
científica. Conseguir estabelecer este tipo de
conversa implica dominar gradativamente o
discurso da ciência, tanto em termos dos
conhecimentos que envolvem, quanto dos
processos de funcionamento da ciência e de seus
valores. Esse é um processo gradativo de
reconstrução, tanto de conhecimentos como de
modos de agir. Nunca se conhece apenas da
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ISSN: 1808-6535
perspectiva da ciência, nunca se age somente com
base na ciência. O que se espera da popularização
da ciência é que possibilite aos cidadãos ampliarem
cada vez mais seus modos de interação com a
ciência e a utilização de suas ferramentas, visando
à qualificação de suas ações cotidianas.
A popularização da ciência nos museus por meio
da apropriação do discurso da ciência não deve
pretender desvalorizar e desconsiderar o
conhecimento cotidiano dos visitantes visando
substituí-lo pelo conhecimento científico.
Valorizando ambos os conhecimentos, o que se
pretende é a qualificação e complexificação do
conhecimento dos visitantes. Pela interação com
experimentos e mediadores, os visitantes vão
adicionando mais sentidos àquilo que já
conseguem compreender e fazer, reconstruindo
desta forma, seus conhecimentos e práticas.
4-Tornando mais complexo o que já
se conhece
Aprender em museus implica, dentro da
perspectiva assumida, colocar em movimento o
conhecimento dos visitantes, possibilitando que
seus conhecimentos possam evoluir. As
aprendizagens são mediadas pelas diferenças de
significados entre parceiros em interação, a partir
de incursões no discurso da ciência. Superando a
idéia de armazenar novos conhecimentos, o que
se solicita é saber movimentar-se no discurso da
ciência, compreendendo seus métodos, praticando
suas habilidades e assumindo seus valores.
Não será a mera exposição a conhecimentos
abstratos e desvinculados do interesse dos
visitantes que vai conseguir acionar o que já é
conhecido. Um modo importante de fazê-lo é o
questionamento e proposição de desafios a serem
trabalhados e respondidos enquanto os visitantes
percorrem o museu. Responder a uma pergunta,
solucionar um problema, implica operar com o
conhecimento de quem se envolve na procura
da resposta ou na solução do problema. Isso
propicia reconstruções.
Aprende-se a partir do já conhecido, adquirindo
competências de movimentar-se em novos
discursos. Pela interação com outros, tanto num
Publicada em Março de 2009
sentido concreto como virtual, os visitantes de
museus de ciências põem em movimento seus
conhecimentos e habilidades no sentido de os
reconstruírem, de tornarem mais complexo o que
já construíram anteriormente.
Novas aprendizagens são reconstruções de
conhecimentos anteriores, que se reformulam com
ampliação de significados:
"... a aquisição cognitiva de um novo conceito,
espontâneo ou científico, é sempre um processo de
construção gradativo que se assenta em alicerces
previamente construídos que, por sua vez, são também
conceitos espontâneos ou científicos". (Gaspar, 2008,
p. 179)
A construção de conceitos, tanto os científicos
como os do cotidiano, constitui processo contínuo
de ampliação de significados. Nisso são de grande
importância vivências socioculturais em que o
questionamento, o diálogo e a pesquisa constituem
estratégias a serem valorizadas. Nos museus, é
preciso que os visitantes possam enfrentar
desafios, que possam experimentar suas idéias,
superando erros e adicionando novos significados
aos conceitos que já elaboraram anteriormente.
Conceitos evoluem lentamente, com novos
significados sendo acrescentados aos já
existentes, sempre em redes de significados com
outros conceitos.
"... quanto mais rica a vivência sociocultural
proporcionada a uma criança, maior a capacidade
lingüística, verbal e simbólica que ela será capaz de
adquirir e maior o acervo cognitivo de percepções
sensoriais que ela poderá acumular". (Gaspar,2008,
p. 181)
Aprendizagens concebidas nesta perspectiva de
ampliação de significados exigem mediação,
solicitam a presença de interlocutores capazes de
ajudarem nas reconstruções: "Aprender é um processo
que ocorre num contexto de participação, não numa mente
individual. Isso significa entre outras coisas, que é mediado
pelas diferenças de perspectivas entre os co-participantes"
(Lave; Wenger, 1999, p. 15). Não constitui ato
individual isolado, mas é processo coletivo,
originado na interação entre participantes.
Na interação entre sujeitos com diferenças entre
seus modos de explicar e compreender o mundo,
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quem conhece mais ajuda na evolução dos
conceitos de quem conhece menos. As
aprendizagens ocorrem mediadas pelas diferenças
entre co-participantes em interação.
Os museus interativos de ciências são espaços por
excelência para se estruturarem os tipos de
interação capazes de irem integrando novos
significados aos conceitos e práticas que os
visitantes já trazem. Entretanto, não podem ser
vistos como espaços em que os experimentos
ensinam por si próprios. Exige-se mediação.
Na educação não formal, as aprendizagens dãose espontaneamente a partir do intercâmbio
dialógico entre um aprendiz e outros sujeitos
com maior conhecimento e competência,
capazes de desafiar quem aprende a avançar
em seus conhecimentos.
Quando se pensa em aprendizagem como
apropriação de um discurso social, como o
discurso científico, por exemplo, o que é preciso
são interações, oportunidades de diálogo com
outros. Isso não precisa ter organização lógica
linear para que aprendizagens possam concretizarse. Ao contrário, conversas desordenadas podem ser
muito produtivas.
"A expressão conversas desordenadas parece ser uma
maneira muito adequada de descrever os casos de fala
dentro de um discurso, que ao estarem diretamente
relacionadas aos problemas que enfrentam os
estudantes, são as mais produtivas para o emprego da
fala e do discurso para construir significado e
desenvolver a compreensão. E, quando estas conversas
se dão em contextos de atividades que os estudantes
fizeram suas, estamos próximos de otimizar, na escola,
as condições nas quais estes instrumentos podem ser
dominados." (Wells, 2001, p. 171)
O que vale para a escola em termos desse tipo de
diálogo vale também para os museus de ciências.
Nesses espaços, aprende-se por interação com
parceiros mais capazes. As reconstruções de
conhecimentos ocorrem a partir de intercâmbios
dialógicos. Museus criados numa perspectiva
epistemológica atual valorizam a linguagem e a
interação social, concebendo-se que a apropriação
de algo novo, com mediação de alguém que
conhece mais, dá-se por meio da linguagem.
Publicada em Março de 2009
Por isso, seria importante que tanto nas escolas,
como especialmente em museus, se superasse a
pretensão de ensinar por meio de definições, mas
que os alunos e visitantes de museus fossem
expostos ao discurso da ciência. Pela interação com
especialistas das várias áreas, pela leitura e
experimentação, os alunos das escolas e os
visitantes dos museus, se apropriam de forma mais
efetiva do discurso da ciência, ao mesmo tempo
em que vão construindo conceitos importantes de
forma natural, de modo semelhante ao que ocorre
no cotidiano das pessoas.
O desafio de uma popularização da ciência e de
tornar a ciência um bem comum é de superar os
modelos de educação científica ainda dominantes,
preocupados meramente com "o domínio estrito
vocabular dos termos científicos" (Santos, 2007, p 486).
Nos espaços dos museus não tem sentido querer
ensinar conceitos e definições por mais
importantes que sejam para a ciência. O que se
precisa é expor os visitantes a esses conceitos e
deixar que reconstruam a partir de diferentes tipos
de interação na linguagem seus próprios conceitos.
Não se aprende por definições e estas não
deveriam ser valorizadas como ponto de partida
nos experimentos dos museus. O visitante
somente entende uma definição no momento em
que ele próprio seja capaz de produzi-la
(Northedge, 2002).
Uma alfabetização efetiva em ciências, mais do que
dominar conceitos e teorias, implica atitudes e
competências de abertura para conhecer cada vez
mais sobre a realidade e saber solucionar problemas
emergentes nos contextos em que se vive.
"O aprendiz individual não recebe um corpo discreto
de conhecimento abstrato que irá então transportar e
reaplicar em outros contextos". Em vez disso ele
adquire habilidades de desempenho se engajando em
processos concretos, sob condições atenuadas de
participação periférica legítima. (Lave; Wenger, 1999,
p.14)
Alfabetizar-se na ciência não é armazenar
conhecimento, mas é saber operar com ele
segundo regras determinadas pela
comunidade científica.
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Os espaços de museus são ambientes em que os
visitantes podem interagir com a cultura e o
discurso científicos. Aprendemos a operar com
as ferramentas da ciência a partir de um
envolvimento intenso com esses ambientes.
Aprendemos o significado das palavras e
adquirimos habilidades e atitudes da ciência a partir
de incursões no discurso da ciência. É modo
preferencial de popularização da ciência nos
espaços não formais dos museus.
Aprendizagens em museus de ciências implicam
reconstruções do anteriormente aprendido a partir
da interação lingüística com parceiros de maior
conhecimento. Ao entrar num museu o visitante é
desafiado a pôr em dúvida o que já conhece e, a
partir disso, ampliar os significados que consegue
associar aos conhecimentos que já tem, sempre na
interação com outras vozes. Nisso a pesquisa pode
constituir-se em estratégia preferencial de ação.
5-Reconstruções pela pesquisa, com
mediação
A popularização da ciência a concretizar-se nos
museus precisa promover interações por meio da
linguagem. Tem seus fundamentos mais no
perguntar do que no informar, solicitando
diferentes tipos de mediação.
Cada vez mais a palavra interação está presente
na organização de museus de ciências, implicando
sempre outros agentes, outras vozes que, a partir
da diferença, podem provocar o visitante para
reconstruir o que já conhece e o que já sabe fazer.
Interatividade é palavra-chave na tendência
contemporânea que dá origem aos museus
interativos de ciências. Os diversificados modos
de interação propostos nesses espaços envolvem
tanto o "pôr as mãos" quanto "envolver o
intelecto". Além de muitas outras iniciativas
válidas, defendemos aqui que essas interações se
qualifiquem pela pesquisa, com proposição de
perguntas a serem respondidas pelos visitantes em
seus movimentos nos espaços do museu.
Organizar experimentos em museus interativos a
partir de perguntas, sempre pertinentes aos
visitantes e suas realidades, é modo de qualificar
os espaços de exposição.
Publicada em Março de 2009
É importante que os visitantes nos museus de
ciências percebam a valorização da pergunta, seja
produzida por eles próprios, sejam perguntas
propostas pelos experimentos expostos ou por
mediadores. A pergunta é desencadeadora de
reconstruções, modo de desafiar conhecimentos
e práticas dos visitantes para sua superação.
Envolver os visitantes em pesquisa implica seremlhes propostas perguntas a responder, ou que eles
próprios possam elaborar perguntas a serem
respondidas a partir das visitas. A partir disso é
importante que os visitantes se envolvam eles
próprios na produção de respostas aos
questionamentos e não recebam simplesmente
respostas prontas.
Perguntas conduzem à procura de respostas, seja
de forma individual a partir da interação com
diferentes experimentos, seja de forma coletiva na
interação com outros. Ao proporem-se
questionamentos e ao possibilitar-se a construção
de respostas, está-se envolvendo os visitantes em
pesquisa. Pela solução de problemas se propicia
espaço para a reconstrução de conhecimentos,
além do desenvolvimento de habilidades e
atitudes da ciência.
O tipo de pesquisa que vai do desafio à resposta,
do problema à sua solução, constitui jogo
intelectual capaz de dar novo sentido aos espaços
de exposição dos museus. Jogos de diversos tipos
constituem modos de promover a pesquisa nos
museus, podendo ser organizados em forma de
gincanas ou outras formas lúdicas de envolvimento
dos visitantes. Os jogos constituem modo válido
e importante de ampliar interações nos museus
de ciências. Constituem modo de apropriação do
discurso da ciência.
Ainda que essa apropriação implique também
compreender o rigor com que a ciência atua, nos
museus preocupados com a popularização da
ciência, as aprendizagens dão-se preferencialmente
de forma lúdica, pelo envolvimento ativo e
despreocupado com ações e modos de
compreensão da ciência. É isso que denominamos
mergulhar no discurso da ciência, possibilitando
reconstruir conceitos e apropriar-se das
ferramentas da ciência.
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
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O envolvimento em jogos e em pesquisas num
sentido mais amplo é modo interessante de
mediação, modo de utilizar o conhecimento já
existente e desafiar sua reconstrução.
É uma ilusão muito presente na organização de
museus interativos a idéia de que os alunos
aprendem por si, pela simples interação com
experimentos. Cada visitante somente consegue
tirar de um experimento aquilo que suas próprias
teorias e conhecimentos lhe possibilitam.
Quando não há mediação e questionamento
associado aos experimentos em exposição nos
museus, quando muito, os visitantes apenas
recordam o que já sabem.
Nos processos de interação nos museus, seja em
forma de pesquisas em geral, seja em forma de
jogos, a mediação é processo importante.
Aprendizagens e reconstruções se dão por
mediação. É difícil conceber um jogo envolvendo
diferentes participantes sem interações.
A mediação se dá preferencialmente pela
linguagem em suas várias formas de atuação. Falas
e diálogos com especialistas são modos de
mediação das aprendizagens nos museus, ainda
que a interação dialógica com parceiros de visitas
também possa ser importante forma de mediação
nos museus. Nesse sentido, especialmente pais e
professores são importantes mediadores nos
processos de popularização da ciência nos museus.
Ainda que outras formas de mediação possam ser
incentivadas nos museus, destacamos aqui a
mediação humana. Quando preparados como
parte da organização dos museus, monitores
podem ser importantes mediadores, especialmente
se incentivados para utilizar a pergunta e o desafio
como modos preferenciais de ação, dando a estes
valor maior do que ao informar e ao querer ensinar.
Ainda que a mediação nos museus não necessite
ser feita por agentes humanos de forma direta,
exige-se sempre um encadeamento com os
conhecimentos e teorias que os visitantes já trazem
de suas vivências e aprendizagens anteriores.
A mediação nos museus é modo de provocar
reconstruções de conhecimentos e práticas dos
visitantes. Defendemos que isto possa dar-se por
meio da pesquisa, entendida como emergência de
Publicada em Março de 2009
perguntas que os visitantes são desafiados a
responderem, utilizando nesse processo
conhecimentos e habilidades que já trazem,
implicando ao mesmo tempo sua reconstrução e
complexificação. Aprendizagens, entretanto,
solicitam mediações que, mesmo podendo ser
feitas de forma virtual, requerem,
preferencialmente, agentes humanos.
6-Desenvolvendo uma cidadania
consciente e crítica
Os museus de ciências pensados desta forma
podem ajudar a atingir uma alfabetização científica
qualificada tanto no sentido formal como político.
Nesses espaços de formação, pode atingir-se uma
cidadania mais plena, fundamentada num
conhecimento significativo e de qualidade e numa
participação social e política de maior número de
pessoas dentro dos contextos em que vivem.
"O ensino de ciências é, em geral, pobre de recursos,
desestimulante e desatualizado. Curiosidade,
experimentação e criatividade geralmente não são
valorizadas" (Moreira, 2006, p. 5). Por esta razão, a
popularização da ciência necessita utilizar outros
espaços para sua implementação.
No mundo moderno está cada vez mais clara a
importância do conhecimento científico e
tecnológico dos cidadãos para uma vida mais plena
e daí a necessidade de envolverem-se todos eles
num processo de apropriação do discurso e dos
recursos da ciência.
Os museus de ciências se inserem no esforço
nacional de qualificação da educação científica e
de popularização da ciência. Entretanto, para
efetivamente poderem contribuir neste sentido, é
preciso que ocorra uma adequação na forma de
conceber as aprendizagens nesses espaços
educativos, superando-se epistemologias com bases
empiristas, para estruturá-los com valorização de
entendimentos socioculturais de aprender.
Uma alfabetização científica fundamentada nesse
tipo de pressupostos conduz à formação de um
cidadão "que não apenas sabe ler o vocabulário científico,
mas é capaz de conversar, discutir, ler e escrever coerentemente
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em um contexto não-técnico, mas de forma significativa."
(Santos, 2007, p. 479).
Museus interativos de ciências são espaços
importantes de alfabetização científica.
Concebendo este tipo de alfabetização em seu
sentido amplo de inserção na cultura e no discurso
da ciência, os museus podem possibilitar aos
cidadãos mergulhar no discurso científico,
reconstruindo por meio dessa imersão seus
conhecimentos, suas competências e valores.
Ações de popularização da ciência não apenas
complementam iniciativas da educação formal da
escola, mas possibilitam fazer uma "conexão ativa
entre a ciência e a sociedade, para ampliar a possibilidade
de entendimento que as pessoas têm dos resultados e dos
processos de trabalho da ciência" (HARTMANN;
ZIMMERMANN; DINIZ, 2008, p. 2).
A formação do cidadão alfabetizado na ciência
implica um encadeamento das exposições e
interações propiciadas pelos museus com o dia a
dia dos visitantes, estreitando relações entre o
aprendiz e seu mundo. Fazendo emergir perguntas
a serem respondidas com intenso envolvimento
dos visitantes, a popularização da ciência
concretizada nos museus visa à melhoria de vida
e à inclusão social dos que dela participam. A
popularização da ciência nos museus pode ajudar
a formar o cidadão para o mundo atual.
Publicada em Março de 2009
social e politicamente nos espaços em que vivem,
a qualificação política, dando emergência a
cidadãos mais críticos e participativos.
"Para a educação de qualquer cidadão no mundo
contemporâneo, é fundamental que ele tanto possua
noção, no que concerne à ciência e tecnologia (CT), de
seus principais resultados, de seus métodos e usos,
quanto de seus riscos e limitações e também dos
interesses e determinações (econômicas, políticas,
militares, culturais etc.) que presidem seus processos e
aplicações" (Moreira, 2006, p. 2).
A participação dos museus na popularização da
ciência nesta perspectiva é ajudar na construção
de uma cidadania mais plena, com superação de
desigualdades e inclusão social com autoria e
autonomia. Por meio de uma popularização da
ciência, entendida como apropriação do discurso
da ciência, o cidadão do mundo contemporâneo
adquire um domínio da ciência e tecnologia capaz
de torná-lo participante cada vez mais integrado e
ativo nos contextos em que vive.
Considerações finais
Um cidadão educado cientificamente demonstra
que adquiriu conhecimentos, habilidades e se
apropriou de valores da ciência capazes de auxiliálo a tomar decisões em questões envolvendo a
ciência e a tecnologia em seu contexto social.
Começamos no presente texto a examinar idéias
que mostram que mais do que armazenar
conhecimentos, uma popularização efetiva da
ciência em museus de ciências precisa ser
entendida como apropriação do discurso e da
cultura científicos. Isso implica em ir além da idéia
de descobrir e redescobrir, assumindo que
aprender nesses espaços é tornar mais complexo
o que já é conhecido, seja do senso comum, seja
científico. Argumentamos ainda que as
reconstruções a ocorrerem nos museus necessitam
de mediação. Finalmente, procuramos evidenciar
que uma popularização da ciência a partir desta
perspectiva possibilita o desenvolvimento de uma
cidadania consciente e crítica.
Quando bem conduzida, a alfabetização científica
a ser atingida nos museus caracteriza-se por sua
qualidade formal e política. Ao possibilitar a
aproximação do conhecimento e de habilidades e
atitudes dos visitantes com a cultura científica,
qualificam-se formalmente os saberes dos
visitantes. Nisso os visitantes estarão se
capacitando a participar de forma mais efetiva
Esperamos ter trazido argumentos válidos para
mostrar que a popularização da ciência nos espaços
não formais dos museus precisa ser pensada a
partir de uma epistemologia que concebe as
aprendizagens como apropriação da cultura e do
discurso da ciência. Mais do que armazenar
conhecimento, ser cientificamente alfabetizado é
saber movimentar-se no discurso da ciência, ser
A popularização da ciência implica desenvolver
nos cidadãos competências de uso do
conhecimento científico na solução de problemas
cotidianos, associado com o desenvolvimento de
uma cultura científica.
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capaz de participar de tomadas de decisão
envolvendo a ciência e ter condições de
manifestar-se com competência sobre temas
envolvendo a ciência e a tecnologia. É ser cidadão
do mundo. Os museus de ciências podem dar uma
contribuição significativa para isto.
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ISSN: 1808-6535
Publicada em Março de 2009
Artigo
Por que divulgar o conhecimento científico e tecnológico?
Maria Helena da Silva Carneiro*
Resumo
Trata-se de um texto que discute os argumentos que perpassam o discurso acadêmico em favor da
divulgação científica. Inicialmente, apresentam-se os aspectos históricos buscando evidenciar que esse
tipo de atividade não é um fato novo no cenário mundial. Em seguida, analisam-se as razões que
justificam a divulgação dos conhecimentos científicos e tecnológicos no Brasil.
Palavras chave: divulgação científica, educação não formal, popularização da Ciência
Abstract
The text brings to discussion the arguments that go beyond the academic justification in favor of the
popularization of science. First, it is shown the historical aspects that demonstrate that popularization
of science is not a new fact in the world. Second, the reasons that justify the popularization of scientific
and technological knowledgement in Brazil are analysed.
Key words: science popularization, science education, science literacy
Introdução
A divulgação científica, popularização da Ciência,
vulgarização do conhecimento científico, não
importa a expressão empregada - não vamos entrar
nesse debate - tem sido, nas últimas décadas, no
Brasil, objeto de estudos e discussões no meio
acadêmico. Essa preocupação em aproximar o
conhecimento científico do grande público não é
um fato novo no cenário brasileiro e,
concomitantemente, no mundial.
A divulgação científica surgiu com a Ciência.
Alguns autores que a marcaram em diferentes
épocas escreveram as suas obras usando um estilo
de linguagem acessível ao grande público. Galileu,
por exemplo, em 1624, quando publicou o Diálogo
sobre dois máximos sistemas do mundo Ptolomaico e
Copérnico, escreveu em italiano em vez do latim,
língua oficial da Ciência naquela época. Ao
construir o seu texto na forma de diálogo entre
mestre e aluno, Galileu utilizou reiteradamente a
doutrina platônica da anamnesis (reminiscência) e
a maiêutica socrática, o que ampliou as
possibilidades de leitura e, naturalmente, a
divulgação das idéias científicas de Copérnico.
Charles Darwin, em meados do século XIX,
publicou a sua obra revolucionária As origens das
espécies usando linguagem acessível ao público nãoespecializado. Einstein, em 1916, quando publicou
A teoria da relatividade especial e geral, também usou
linguagem mais simples e vários exemplos, o que
facilitou a leitura do público leigo.
Embora essas obras não sejam consideradas de
divulgação científica, são exemplos que
*Doutora em Didática das disciplinas pelo Paris VII - Reconhecido, França (1992).
Atuação em Ensino-Aprendizagem, com ênfase em Métodos e Técnicas de Ensino.
PROFESSOR ADJUNTO IV da Universidade de Brasília, Brasil.
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ISSN: 1808-6535
evidenciam a preocupação dos pesquisadores no
sentido de amenizar o esoterismo do
conhecimento científico. Além dos cientistas que
escreviam em uma linguagem mais transparente,
outros autores também evidenciavam essa
preocupação. Marie Meurdrac, em 1666, publicou
um livro que tinha como público-alvo as mulheres
da sua época: Chymie Charitable et facile en faveur des
dames. Nele, ela explica em uma linguagem simples
os mais variados processos químicos para a
produção de medicamentos e produtos de beleza.
No início do século XIX, Faraday publicou História
química de uma vela, cujo público-alvo era as crianças.
Além de livros de divulgação científica, já
circulavam na Europa do século XIX e início do
século XX alguns periódicos que tinham como
foco a divulgação do conhecimento científico: Ami
des sciences, 1855; La science pour fous, 1856; Science et
vie, 1913 et L'écho du monde savant, 1934.
No âmbito brasileiro, a divulgação científica
também não é um fato recente. Para Stepan (1976,
p.35), uma das primeiras iniciativas brasileiras com
o objetivo de disseminar os conhecimentos
científicos foi a criação da Sociedade Científica
do Rio de Janeiro em 1772. Segundo a autora, "às
suas primeiras reuniões compareceram quatro
cirurgiões, três médicos, dois farmacêuticos e um
fazendeiro. Os campos da botânica, zoologia,
química, física e mineralogia estavam todos
representados. Em 1799, o grupo mudou seu
nome para Sociedade Literária do Rio de Janeiro,
mas continuou as suas atividades científicas".
Vale ressaltar que a imprensa brasileira foi criada
somente em 1810, com a chegada da família real
portuguesa. Até então, livros, folhetos e jornais
eram impressos na Europa. Com o
estabelecimento da imprensa no Brasil, a
divulgação científica ganhou nova força. Em
meados do século XIX, já se publicavam cerca de
sete mil periódicos dos quais trezentos eram direta
ou indiretamente relacionados à Ciência. Entre
esses periódicos destacamos: Jornal de Sciencias,
Letras e Artes, 1857; Revista do Rio de Janeiro, 1876, e
Ciência para o povo, 1881 (Moreira e Massarani, 2002,
p.46). Além dos periódicos especializados, o
conhecimento científico era veiculado nos
semanários. Para confirmar esse fato, basta ler
alguns jornais brasileiros publicados no século
Publicada em Março de 2009
XIX. Merece ser mencionada as Conferencias
Populares da Glória que teve início em 1873.
Não podemos esquecer que nesse período foi
criado no Brasil o Museu Nacional, considerado
um dos meios de divulgação do conhecimento
científico e tecnológico.
A divulgação científica tem uma história, o que
varia é a forma de divulgação, o seu conteúdo e o
perfil do público ao qual se destina. Enquanto no
século XIX a forma predominante de divulgação
era a oral e a escrita, no século XX, o meio
impresso ganhou novos aliados: os meios
audiovisuais de comunicação - rádio, TV, cinema.
Hoje, o conhecimento científico faz-se presente
em todos os meios de comunicação e incorpora o
ciberespaço como novo veículo de comunicação
e de divulgação do conhecimento científico. O
conteúdo da divulgação científica está diretamente
relacionado ao avanço da Ciência e da Tecnologia.
O público também mudou. Enquanto no século
XIX o público-alvo era restrito, pois a forma de
divulgação predominante era a impressa - livros,
jornais e revistas -, o que exigia o domínio da leitura,
hoje, no século XXI, o público apresenta um perfil
bastante variado, o que constitui um grande desafio
para aquele que pretende divulgar a Ciência.
Mas por que divulgar
conhecimento
científico
tecnológico?
o
e
Não é fácil responder a essa pergunta. Cada
"divulgador", seja ele jornalista, pesquisador ou
qualquer pessoa que se aventure a "traduzir" a
Ciência para uma linguagem mais simples, e assim
torná-la mais acessível para o grande público, tem
as suas próprias razões. Além disso, essas razões
não são imutáveis, podem sofrer transformações
ao longo do tempo. Portanto, as razões podem
ser as mais variadas.
Tendo em vista a diversidade de argumento em
favor da divulgação científica do conhecimento
científico e tecnológico, discutiremos a seguir
apenas os que nos parecem mais presentes na
literatura, ou perpassam o discurso acadêmico.
A divulgação científica como meio de socialização
do conhecimento parece ser consensual. Parte-se
30
Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
do princípio de que existe defasagem entre a
sociedade e a comunidade científica. Hernando
(1997, p.01), um dos defensores desse pressuposto
da divulgação, ressalta que "diante dessa situação,
é importante levar a Ciência ao público, para
atender assim a demanda social de informação
científica e para que os cientistas, jornalistas e
escritores ajudem o homem comum a superar seus
temores em relação à Ciência". Nesse caso, cabe à
divulgação científica, mais especificamente à figura
do divulgador, o papel de decodificar o
conhecimento científico para uma linguagem
acessível ao público e, assim, diminuir a tão
discutida defasagem.
O avanço acelerado da produção do conhecimento
científico e tecnológico tem como implicação a
especialização da Ciência e, ao mesmo tempo, o
aumento da ignorância. Estudo realizado nos anos
noventa destaca a existência de 37 mil áreas ativas
de investigação científica, todas em constante
ebulição (citado em Brunner, 2001) o que significa
que a produção do conhecimento científico deixou
de ser lenta e estável. Essa especialização da
Ciência dificulta a comunicação entre os próprios
cientistas de área vizinhas e, naturalmente,
aumenta a distância entre a sociedade e a Ciência.
Nesse sentido, é difícil afirmar que a defasagem entre
a Ciência e o público será amenizada com a prática
da divulgação científica. Ela continuará existindo!
Estudos realizados pela UNESCO mostram que,
mesmo em países onde a Ciência e a Tecnologia são
amplamente divulgadas e têm baixo índice de
analfabetismo, a distância continua existindo.
Aliado à socialização do saber, surge outro
argumento: o direito à informação, presente na
Declaração Universal dos Direitos Humanos
divulgados pela ONU em 1948. É nessa
perspectiva que o Ministério da Ciência e
Tecnologia (MCT) cria em 2003 a Secretaria de
Ciência e Tecnologia para Inclusão Social com
o objetivo de definir e implementar programas
de popularização da Ciência e da Tecnologia.
Acredita-se que, ao ampliar as possibilidades de
acesso ao conhecimento, as desigualdades
sociais sejam diminuídas.
Defende-se ainda que a divulgação científica deva
iniciar nos centros de produção do conhecimento,
ou seja, cabe ao pesquisador também divulgar o
Publicada em Março de 2009
conhecimento para o público não especializado.
Além disso, seria uma maneira de mostrar para a
sociedade como foi feito o investimento do
dinheiro público. Trata-se, portanto, de direito do
cidadão o de tomar conhecimento dos resultados
dos investimentos feitos em Ciência e Tecnologia.
Seguindo essa linha de pensamento, Hernando
(1997, p.3) é bastante contundente na sua colocação.
Para ele, "os cientistas têm a obrigação moral de
dedicar uma parte do seu trabalho e do seu tempo
a relacionar-se com o público a partir de meios de
informação e pelas demais vias de comunicação".
Quanto à questão do direito à informação é
importante lembrar que o cientista, ao escrever o
relatório de pesquisa e apresentá-lo à agência
financiadora, ao publicar artigos e mesmo ao
ministrar aulas, também está prestando contas à
sociedade. Compete ao pesquisador decidir se deve
ou não decodificar o seu artigo para o público nãoespecializado. Devemos nos lembrar de que essa
é uma das exigências das agências de fomento e
de órgãos governamentais que regulamentam a
pós-graduação no Brasil. Se um cientista não
publica artigos em revistas científicas,
preferencialmente internacionais, não consegue
verbas para pesquisar. Sem verbas, a produção do
conhecimento científico torna-se mais lenta. Além
disso, se a informação científica é um direito do
cidadão por que algumas revistas científicas não
são disponibilizadas para o público?
A Secretaria de Ciência e Tecnologia para Inclusão
Social definiu linhas prioritárias de ações que visam
a apoiar centros e museus de ciências; ampliar a
visibilidade da ciência na mídia e melhorar a
qualidade das informações por ela veiculadas;
colaborar na melhoria do ensino de ciências nas
escolas; apoiar eventos nacionais de divulgação
científica; apoiar a formação e qualificação de
comunicadores em ciências; incentivar ações
junto às universidades e agências de fomentos
para valorização do trabalho em extensão e
Popularização da Ciência e da Tecnologia,
entre outras coisas.
Não resta dúvida de que essa iniciativa do MCT
tem contribuído para o desenvolvimento de ações
que promovem a divulgação do conhecimento
científico e tecnológico no País. Todavia, ainda
estamos muito distantes de ter um programa de
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
divulgação científica que atenda à população
brasileira. Considerando apenas uma das formas
de divulgação, contamos hoje, no Brasil, com
aproximadamente oitenta centros de ciências e
museus de ciências. A literatura de divulgação
científica ainda é muito restrita. O número de livros
infantis, por exemplo, que têm a Ciência como
tema central, ainda é parco.
O incentivo à criação de museus e centros de
ciências é muito louvável. Contudo, temos de nos
lembrar que essas instituições estão concentradas
nos grandes centros urbanos. Uma das suas
características é o grande número de visitantes
provenientes de escolas: crianças e adolescentes,
em visitas organizadas pelos professores ou pelos
próprios museus e centros de ciências. Como
ressalta Moreira (2006, p.13), "apesar de o
crescimento expressivo dos últimos anos, um
número muito pequeno de brasileiros, cerca de
1% da população, visita algum centro ou museu de
ciências a cada ano". Em alguns países da Europa, o
número de visitantes chega a atingir 25% da população.
Esses espaços ainda não foram incorporados na cultura
brasileira enquanto opção de lazer.
Embora se reconheçam os museus e os centros
de ciências como espaços importantes de
divulgação, perguntamo-nos: As atividades
desenvolvidas nessas instituições são
demasiadamente escolarizadas? A predominância
de atividades dirigidas está cerceando a curiosidade
dos alunos, direcionando-a e limitando a sua
liberdade de explorar o espaço mais livremente?
Que espaço é atribuído ao encantamento, ao
deslumbramento e à contemplação? A educação
não formal e informal estaria, aos poucos, sendo
formalizadas? Será que essas atividades tal com
vêm sendo desenvolvidas contribuem realmente
para formar um novo público? Ao priorizar as
atividades dirigidas, os museus e os centros de
ciências estariam repetindo os mesmos "erros" da
escola, tentando homogeneizar grupos de alunos?
Temos a certeza do potencial pedagógico dessas
instituições, de que toda ação pedagógica fora dos
muros da escola que rompe com a rotina tem um
efeito positivo. Não obstante isso, não há garantia
de que sempre haverá aprendizagem.
No que tange à terceira prioridade, colaborar na
melhoria do ensino de ciências nas escolas, a
Publicada em Março de 2009
divulgação científica assume novo papel social:
apoiar a educação científica ministrada na escola.
Não se limita mais a desenvolver ações destinadas
ao grande público. Admite-se oficialmente a
incompetência da escola de cumprir o seu papel.
A questão que se coloca é se atividades tais como
exposições, olimpíadas de física, de genética, de
química, de matemática, feiras de ciências, visitas
guiadas a museus contribuem para a melhoria da
qualidade da educação científica.
Outro aspecto que pode ser inferido a partir da
análise do programa de popularização do MCT é
a visão pragmática do conhecimento científico. O
domínio de conceitos científicos que a escola não
tem sido capaz de ensinar é considerado uma das
condições necessárias à formação do cidadão para
que possa lidar criticamente com as novas
questões que são colocadas com o avanço da
Ciência e da Tecnologia.
Nesse sentido, o MCT destaca um dos seus
objetivos: "É importante que os brasileiros tenham
a oportunidade de um conhecimento básico sobre
a Ciência e o seu funcionamento e que lhes dê
condições de entender o seu entorno (grifo
nosso), de ampliar as suas oportunidades no
mercado de trabalho e de atuar politicamente com
conhecimento de causa".
Essa visão do papel social do conhecimento
científico leva-nos a pensar se para entender o
seu entorno uma comunidade precisa dominar o
conhecimento científico. Citamos como exemplo
uma comunidade brasileira, de descendentes de
escravos, que viveu isoladamente durante quase
um século da chamada civilização e não precisou
do conhecimento científico e tecnológico para
compreender o seu entorno e solucionar os seus
problemas. A acessibilidade aos conhecimentos
científicos e tecnológicos deve ser permitida a
todos, mas a decisão de fazer uso ou não do
conhecimento é individual.
Outro argumento comum reflete a idéia de que a
divulgação ajuda a eliminar o misticismo. Consoante
Vieira (1999, p.12)," uma onda de misticismo sem
precedentes assola o Planeta. Livros esotéricos
encabeçam as listas dos mais vendidos - quando
não ocupam a maioria de suas posições. (...). Cabe
à Ciência, ressaltando as suas conquistas e os seus
32
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ISSN: 1808-6535
limites, desmistificar esses equívocos. A divulgação
científica é uma - talvez a melhor - forma para se
fazer isso junto à opinião pública." Nesse caso,
cabe à divulgação científica faire-face às chamadas
pseudo-ciências, o que não seria tarefa fácil. Esse
tipo de conhecimento é constitutivo de qualquer
sociedade e, particularmente, da brasileira.
Reconhecemos que o conhecimento científico e
tecnológico é um empreendimento social,
portanto, faz parte do patrimônio cultural da
humanidade e, como tal, deveria ser incorporado
à cultura de uma sociedade. Para que isso ocorra
faz-se necessário romper com a tradicional
concepção de divulgação científica, a transmissão
unilateral de informação saindo do céu e
difundindo-se sobre a terra! Acreditamos que a
nova concepção deve privilegiar a confrontação,
a interação e abrir espaços para o questionamento.
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Publicada em Março de 2009
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
Publicada em Março de 2009
Artigo
A História da Ciência e o ensino de ciências
Cláudio Luiz Nóbrega Pereira*
Roberto Ribeiro da Silva**
Resumo
A História da Ciência tem sido apontada como uma ferramenta que pode possibilitar a superação de
problemas relativos ao ensino de Ciências. Esses problemas originam-se nas abordagens focalizadas
apenas na transmissão conceitual. O uso da História da Ciência possibilita a introdução de aspectos
humanistas da cultura científica, contribuindo para romper com imagens deformadas da Ciência e
para uma melhor alfabetização científica.
Palavras-chave: história da ciência, ensino de ciências, alfabetização científica
Abstract
History of Science has been considered a possible tool to overcome some of the problems detected in
science education. These problems have their origin in the strategies of science teaching that focus
only in the transmition of concepts to students. The use of History of Science turns possible the
introduction of the humanistic aspects of scientific culture, reducing the mistaken images of science
and contributing to a better scientific literacy.
Key words: history of science, science teaching, scientific literacy
A História da Ciência tem sido apontada como
uma ferramenta que pode possibilitar a superação
dos problemas relativos ao ensino de ciência. Sua
importância, para a educação contemporânea,
pode ser constatada pelo fato de que, no 5°
Encontro Nacional de Pesquisa e Ensino de
Ciência (ENPEC), realizado em 2005, na cidade
de Bauru - Brasil foi criado o Grupo de Estudo
História da Ciência e Ensino de Ciências. A
motivação para criação de tal grupo deu-se por
conta do grande quantitativo de trabalhos
apresentados sobre o tema. O objetivo deste grupo
consistia em buscar orientações metodológicas e
discutir os resultados das pesquisas referentes ao
uso da história da ciência no ensino de ciência.
Posicionamentos favoráveis ao uso da história da
ciência no ensino são antigos, remontam ao fim
do século XIX e início do século passado. Esta
defesa era feita por eminentes figuras da ciência e
da filosofia. Assim, iremos discutir os argumentos
que alguns destes pensadores utilizaram
para justificar o uso de uma abordagem
histórica no ensino.
Apesar dos argumentos positivos a esta abordagem,
constata-se que por um curto lapso de tempo,
durante o século passado, elementos de caráter
humanista foram postos em segundo plano. Assim,
outras abordagens da educação, de caráter mais
técnico ganharam relevância. Tentaremos, portanto,
caracterizar estas últimas, indicando suas
justificações de ordem epistemológicas, e que
objetivos buscavam atender, além de apontar seus
limites e incongruências.
*Licenciado em Química e Mestre em Ensino de Ciências pela Universidade de Brasília.
**Doutor em Química e professor da Universidade de Brasília.
34
Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
Em resposta às dificuldades apresentadas pelas
abordagens focadas na transmissão conceitual,
como também às mudanças ocorridas no mundo
atual, tanto no que tange aos aspectos políticos e
econômicos quanto na organização interna do
setor produtivo, pretende-se hoje que a escola
trabalhe com maior atenção aspectos humanistas
da cultura. Como conseqüência, o apoio ao uso
da História da Ciência no ensino das disciplinas
desta área voltou à pauta de discussão. Por conta
disto, iremos apresentar também, neste capítulo,
uma avaliação de como os Parâmetros Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM)
abordam o tema, e quais as finalidades estipuladas
para a educação em ciência.
Por último apresentaremos algumas justificativas
para o uso da História da Ciência na educação,
tomando por base o resultado de pesquisas e
reflexões mais recentes. Em geral estas pesquisas
buscam relacionar o uso da História da Ciência
com fins a uma alfabetização científica, que busque
romper com as imagens deformadas de ciência. A
idéia central destas propostas é de que o ensino
de ciências leve o aluno a compreender como se
dá a construção dos conceitos científicos,
percebendo as inter-relações entre ciência,
tecnologia e sociedade.
Esta posição de Ostwald parece refletir claramente
um sentimento latente no fim do século XIX, e
início do século XX, o qual via com certo descrédito
o ensino focado meramente no conteúdo das
ciências, mesmo quando objetivando a formação
de cientistas. Já naquele tempo, compreendia-se que
o mero estudo dos conceitos científicos não seria
capaz de desenvolver nos alunos uma percepção
da importância da ciência, nem tampouco do
método de trabalho usado pelo cientista.
Colocações semelhantes à Ostwald também foram
defendidas por outras figuras eminentes, tais
como: Ernst Mach (ainda no século XIX), John
Dewey, e James B. Conant, conforme afirma Freire
Junior (2002 p 14).
Portela (2006) aponta que a posição de Enerst Mach1
(1910), a favor da inserção da História da Ciência no
ensino de ciências era coerente com sua "defesa
contundente da perspectiva cultural da ciência". O
que pode ser percebido no trecho seguinte:
Um grande benefício que os estudantes podem tirar de
um curso devidamente conduzido em obras clássicas
será abrindo ricos tratados literários da antiguidade,
e ganhando intimidade com concepções e visões de
mundo que tinham duas nações avançadas. Uma
pessoa que tenha lido e entendido autores Gregos e
Romanos sentiu e experimentou mais do que aqueles
que se restringiram às impressões do presente. Ele vê
como os homens fizeram em diferentes circunstâncias
juízos totalmente diferentes para as mesmas coisas que
nós fazemos hoje (Mach, apud Portela, 2006, p.13)
1 Importância da História da
Ciência, um olhar no passado
Os problemas relativos ao ensino de ciência
encontram eco em publicações do início deste
século. Gordon (1926), um dos primeiros editores
do Jornal Chemical Education, já observava que a
sensação de que a educação em ciências vivia uma
crise era comum entre diversos educadores.
Em resposta a esta percepção, discursos favoráveis
ao uso da história da ciência no ensino ciência já eram
feitos. Uma importante referência a este respeito é
apontada por Jaffe (1938), ao citar o eminente
químico Wilhelm Ostwald, segundo o qual havia
um defeito na educação científica atual de nossos jovens.
Isto é uma ausência de senso histórico e uma completa
falta de conhecimento a respeito das grandes pesquisas
sobre as quais o edifício da ciência se apóia (Ostwald,
apud: Jaffe, 1938, p. 383).
Publicada em Março de 2009
Visto desta forma, o conhecimento científico
diferencia-se da perspectiva positivista. A
interpretação dos fatos não é imparcial, depende
de fatores externos que circundam o indivíduo que
observa. A ciência não é vista como uma
construção linear, nem ocorre por mero acumulo
de fatos. Determinadas formas de compreender a
realidade podem ser substituídas por outras
julgadas mais convenientes em dado momento.
Como observa Portela (2006, p. 14) o pensamento
de Mach é importante por que evita "a adoção de
MACH, E. Popular Scientific Lectures. 4ª edição. New York: Open Court Publishing, 1910.
1
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uma perspectiva distorcida da prática científica
pela noção de conhecimento verdadeiro e
imune a transformações".
Também nos parece muito significativa a posição
favorável de Dewey à inserção de História da
Ciência no ensino. Dewey foi um dos mais
proeminentes pedagogos estadunidenses, tendo
tecido críticas contundentes a educação de cunho
meramente conteudista, focada na memorização
e no intelectualismo. Conforme Teitelbaum e
Apple (2001), mesmo considerando as críticas as
sua perspectiva pedagógica, por não ser
questionadora das relações sociais vigentes,
devemos ter em mente que ele foi um forte
defensor dos valores democráticos. Dewey via a
escola como instrumento fundamental de
democratização. Para ele, por meio da educação
poder-se-ia estender a todos os benefícios do
progresso alcançado pela modernização da
sociedade. A educação científica teria um papel
importante no desenvolvimento desta democracia.
Como indicam Teitelbaum e Apple, para Dewey
um público articulado que tenha desenvolvido métodos
de inteligência, não definidos de uma forma
redutora, mas sim de uma forma mais
ampla, relacionada com a capacidade de uma rigorosa
investigação reflexiva (científica), era a base de uma
comunidade democrática. (grifo nosso, Teitelbaum e
Apple, 2001, p. 197-198)
Esta postura de Dewey frente a educação em
ciência, como promotora da cidadania parece
coadunar com as proposições relativas a
alfabetização científica. Conforme Kansar:
os estudantes precisam desenvolver uma filosofia
particular baseada na lógica, verdade, e no entendimento
quiçá em superstições ou desejos cegos. Para isso os
estudantes precisam perceber a relação entre ciência,
sociedade assim como da tecnologia, e de cada individuo
dentro da sociedade (Kansar 1987, p. 932).
E ainda de acordo Matthews a inclusão de história da
ciência depende de certas posturas pedagógicas. Para ele:
a educação deve estar preocupada primordialmente em
desenvolver a compreensão, mediante uma iniciação
nas tradições importantes do pensamento, e em
desenvolver aptidão para o pensamento claro analítico
e crítico (Matthews, 2002, p. 34).
Publicada em Março de 2009
Com o objetivo de entendermos melhor a que tipo
de educação Dewey fazia oposição, e sobre o
destino que as reformas educacionais seguiram,
nos parece importante citar o relato Dyson:
ao longo do século 19 e no primeiro quartel do século
20, ensinava-se pouca ciência nas escolas inglesas. Isso
começou a mudar nas décadas de 20 e 30. Vários
comitês de homens cultos declaram que a Inglaterra
era um país de analfabetos científicos e que algo
precisava ser feito a respeito disso. O que tínhamos de
fazer era banir das escolas o latim e o grego e introduzir
ciência. Quando cheguei ao colegial tínhamos excelentes
professores de ciências e a qualidade do ensino científico
era de primeira. Tive sorte, na metade do curso começou
a guerra e o sistema começou a se desintegrar. No
último ano do colegial eu passava um total de sete
horas semanais na escola. Foi o melhor momento que
eu poderia ter escolhido para estudar. Terminada a
guerra, os professores retornaram e sistema se tornou
mais rigoroso, e hoje ninguém pensa em passar sete
horas semanais na escola. Agora os garotos ficam
acorrentados e se despeja neles com ciência pré-digerida,
exatamente como se faz aqui nos Estados Unidos
(Dyson, 1992, p. 222).
Em conseqüência desta mudança, Dyson observa
que na Inglaterra dos tempos atuais poucos são os
cientistas que podem ser considerados de primeira
linha. Segundo seu ponto de vista, o excesso de
ciências nas escolas afastou as mentes mais
brilhantes do caminho da ciência. O intelectualismo
antes voltado para o ensino de humanidades, e que
fora criticado por Dewey, tornou-se o
intelectualismo voltado para as ciências.
Segundo Santos (2000), o mesmo ocorreu em
nosso país durante a década de 30. O currículo
das escolas, que era predominantemente
humanístico devido a herança recebida da
educação jesuítica, passou a dar maior ênfase as
disciplinas de ciência em conseqüência do processo
de industrialização.
Como visto as críticas a uma educação focada
meramente na transmissão de conceitos não são
recentes, além do que entram em acordo com as
proposições de uma alfabetização científica. De
modo geral o intuito é o de superar uma
perspectiva reduzida do ensino, objetivando levar
o aluno a compreender a ciência de uma forma
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mais abrangente, e não como mera técnica pela qual
se constrange a natureza em busca de respostas, tal
como proposto pelo método indutivo de Bacon.
O que se propõe é descrevê-la como parte do
empreendimento humano. Como destaca Portela
(2006). A ciência é tomada como um dos elementos
essenciais da cultura. E pode desenvolver
habilidades cognitivas que permitam a inserção do
aluno como cidadão ativo na sociedade.
2 A história da ciência nos currículos
do pós-guerra
A despeito desta defesa do uso da história da
ciência no inicio do século passado, Freire Jr (2002,
p. 15), apoiado em Mathews, aponta que ao longo
da história da educação o uso da História e
Filosofia da Ciência não apresentou um
desenvolvimento linear. Após a 2ª guerra, por
conseqüência de um direcionamento da educação
para formação de cientistas passou-se a dar pouca
ênfase ao uso de História e Filosofia da Ciência
no ensino. A este afastamento devemos relacionar
também
a
influência
advinda
do
comportamentalismo sobre a educação neste
período. A educação, fundamentada sobre a idéia
de condicionamento, pouco espaço ofereceu a
elementos de caráter mais humanistas.
Observemos que este afastamento é coerente com
o relato de Dyson (1992), descrito anteriormente.
Como já apontamos a percepção de que o ensino
de ciências passava por dificuldades já era latente
desde o início do século. Todavia, no período da
guerra fria, logo após o lançamento do satélite
artificial Sputnik pelos soviéticos, essa sensação
se exacerbou entre os estadunidenses e seus
aliados. Como resposta a esta sensação de
inferioridade científica os currículos escolares na
década de 1950 foram alterados, resultando em
uma ênfase maior ao ensino de ciências e de
matemática, de forma que este período pode
configurar-se como a "Era Dourada do Ensino
de Ciências" (Wang e Marsh, 2002, p. 170). São
desta época os programas School Mathematics
Study Group (SMSG), de 1958, o Chemical
Estudy Material (CHEMstudy), de 1959, o
Biological Science Curriculum Studies (BSCS)
e Physical Science Study Committee (PSSC).
Publicada em Março de 2009
Estes programas tinham como objetivo gerar
recursos humanos que pudessem, rapidamente,
alavancar o desenvolvimento científico dos países
do bloco capitalista, equiparando-os ao nível que
a ex-União Soviética havia atingido (Nardi, 2005).
Estas propostas em geral fundamentavam-se no
método da descoberta. Tal método respaldava-se
no trabalho do psicólogo de linha construtivista
Gerome Bruner, para o qual:
o ambiente para a aprendizagem por descoberta deve
proporcionar alternativas - resultando no aparecimento
e percepção, pelo aprendiz, de relações de similaridades
entre as idéias apresentadas, que não foram
inicialmente reconhecidas... a descoberta de uma
relação, ou principio, por uma criança, é essencialmente
idêntica - enquanto processo - à descoberta que um
cientista faz em seu laboratório (Bruner, apud
Moreira, 1999, p. 82).
Segundo Mathews (1995, p. 169-172), com
exceção do Projeto de Física de Harvad,
desenvolvido sob orientação de James Conant (exreitor de Harvad), e do BSCS, que sofreu forte
influencia das idéias do filósofo e biólogo Schwab,
todos os grandes projetos do ensino de ciências
da década de 60 deram-se sem a participação de
historiadores ou filósofos da ciência. Conforme
Gil-Perez (1993, p. 198), essas propostas buscavam
aproximar o ensino de ciências ao trabalho do
cientista, e neste sentido, davam grande ênfase à
atividade autônoma dos estudantes e ao uso da
experimentação, sendo esta caracterizada por uma
visão extremada do indutivismo, além da falta de
atenção a especificidades de cada conteúdo.
Consideramos relevante lembrar que no trabalho
de Jaffe (1938) já era possível identificar uma crítica
a perspectiva do uso das atividades práticas com
intuito de formar cientistas. Para ele os
experimentos dos livros didáticos (tal qual os de
nossa época) eram equivalentes a receitas de bolo,
além do que, apontava este autor, os experimentos
de laboratórios não conseguiriam trazer a tona o
contexto das grandes descobertas científicas. Os
alunos não seriam levados, portanto, a perceber a
ciência como uma construção humana, desafiadora
e instigante. A esta forma de conceber o ensino de
ciências Jaffe relacionava a mentalidade pragmática
dos americanos daquela época, em suas palavras:
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
com um país virgem a ser explorado, a mente, as mãos
e a energia do nosso povo estão ocupadas com problemas
práticos de subjugar a terra e ganhar domínio sobre
ela. Fatos e métodos são o que nós necessitamos...
Assim não há espaço para elementos puramente
intelectuais da química quando todo valor da ciência
é mensurado em termos de serviços e funções (tradução
nossa, Jaffe, 1938, p. 383).
A primeira vista o método da descoberta pode
parecer engajar-se com as proposta de Dewey, pois
valorizava o fazer por parte do aluno. Todavia
devemos lembrar que este pedagogo não entendia
a educação como uma preparação para um
objetivo futuro. Aprender, para ele, era a vida em
si, desta forma o ensino deveria estar associado a
realidade próxima do aluno. Além do que, segundo
Souza (2004, p. 82), Dewey foi um crítico do
empirismo, e do próprio pragmatismo. Sua
filosofia foi uma tentativa de conectar o
pensamento reflexivo com as experiências da vida
cotidiana. O método da descoberta, portanto, foi
uma abordagem que se equivocou inclusive quanto
as suas bases pedagógicas.
Com relação a influência da perspectiva
comportamentalista na educação, que no Brasil
se convencionou chamar tecnicismo, Mortimer
(1988, p. 36) aponta que foi especialmente danosa.
Muitos educadores, durante a década de 1970,
apoiados na idéia de que ensinar consistia em
fornecer o estímulo adequado para que se
obtivesse dada resposta, passaram a elaborar
materiais didáticos selecionando aqueles conteúdos
que poderiam ser transformados em questões de
múltipla escolha. Isto acarretou em uma
simplificação excessiva do conteúdo de Química,
já que em nome de uma pretensa objetividade
buscou-se afastar elementos subjetivos.
Verificando a descrição de Mortimer (1988) para
os livros do início do século, fica claro que houve
ao longo dos anos um abandono de aspectos que
não eram de caráter estritamente conceitual. Nos
primeiros livros didáticos de Química, editados em
nosso país, haviam textos bem elaborados, que
introduziam os conceitos inicialmente por meio
de exemplos, deixando as generalizações para uma
etapa seguinte, além do que faziam referências a
tópicos ligados à Filosofia da Ciência, tais como:
a natureza hipotética da teoria de Dalton; e
Publicada em Março de 2009
ressalvas em relação à teoria dualística de Berzélius.
Em oposição, os livros da década de 1970
passaram a apresentar o conteúdo por meio de
textos resumidos e esquemas gráficos, que levavam
o aluno a uma leitura já direcionada, induzindoos a somente memorizar os conceitos.
Esta ênfase, em elementos ligados unicamente a
conceitos químicos, reflete o aspecto a-histórico
dos nossos livros didáticos, e pode ser confirmado
quando olhamos o artigo de Schnetzler (1978).
Esta pesquisadora, mesmo não fazendo referência
direta a História da Química como parâmetro para
análise dos livros didáticos afirma que:
pode-se depreender que um dos principais objetivos da
grande maioria dos livros didáticos analisados é o de
veicular o conhecimento químico "pronto
e acabado", enfatizando mais as conclusões do que
se preocupando em evidenciar a própria elaboração e
utilização daquele conhecimento (grifo nosso,
Schnetzler, 1978, p.12)
Isto reafirma uma completa falta de senso histórico
na elaboração dos livros didáticos da época. O
conhecimento científico, longe de ser um mero
acúmulo de verdades, avança à medida que
determinadas formas de compreender são
questionadas. A ciência tem assim um caráter
eminentemente hipotético, de tentativa.
A busca de objetividade nos materiais didáticos,
como referida por Mortimer acima, corresponde
aos pressupostos da pedagogia tecnicista que se
calcavam, segundo Veiga (1992, p. 34), na
perspectiva de "neutralidade científica, inspirada
nos princípios de racionalidade, eficiência e
produtividade". Ainda, segundo esta autora,
trabalho do professor, seguindo estes princípios,
seria assemelhado ao do operário na fábrica. Ao
professor caberia executar os planos elaborados
por instâncias superiores, buscando da forma mais
eficiente atingir as metas estabelecidas.
Nesta lógica o material didático produzido não
deveria carecer de elementos que fossem além do
essencial ao treinamento dos alunos para que
atingissem os objetivos estipulados pelo sistema.
Herron (1977) aponta que, de fato, uma
dificuldade para a inserção da História da Ciência
no ensino de Química é a necessidade de formas
38
Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
de avaliação que se distanciem daquilo que é uma
rotina nas salas de aula de Química, a resolução
de problemas de lápis e papel. Para ele a avaliação
de aspectos ligados à história da ciência seria
eficiente quando feita através de redações, nas
quais os fatos históricos podem ser sintetizados
pelos alunos. Isto por certo requer do professor de
ciências habilidades que ele não estaria acostumado
a utilizar. Se levarmos isto em conta, dentro do
ambiente que marcou o contexto tecnicista,
podemos compreender porque pouco espaço havia
para tópicos relacionados à História da Ciência.
3 As reformas educacionais e a
História da Ciência no ensino atual
Diante do exposto somos levados a concordar
com Martins (1990), a questão da inserção da
história da ciência no ensino é, sobretudo uma
questão de valores. A opção pelo seu uso esta
condicionada as metas que são estabelecidas para
educação. Segundo este autor "estas metas são
aceitas ou não como válidas (ou inválidas)
dependendo de uma visão de mundo ampla e em
grande parte irracional".
A escolha dos fins (metas) sempre dependerá da
forma como compreendemos o mundo e,
sobretudo, como afirma Castanho (1992, p. 54),
do "contexto macro-estrutural envolvendo os
aspectos sócio-políticos e econômicos". Com isso
a opção pela inserção de elementos culturais, tais
como a História da Ciência, no ensino sempre
ficará a reboque de fatores externos a escola.
Assim, porque o mundo mudou em termos
geopolíticos em relação ao que era durante a guerra
fria. Porque a democracia tornou-se mais forte em
muitos paises, incluindo o nosso. A escola tem
passado por mudanças. E essas mudanças se
devem também porque, conforme afirma Vieira
(2006), o modelo fabril, no qual a escola se
fundamentava, tem sido substituído, devido a
competitividade e as mudanças tecnológicas, pelo
modelo de produção da empresa moderna, no qual
a formação de grupos, a colaboração e o trabalho
criativo, são mais importantes que o
desenvolvimento mecânico de tarefas por
indivíduos sob rígido controle hierárquico.
Publicada em Março de 2009
Uma referência direta a esta questão foi feita nos
Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino
Médio (PCNEM) quando se apontavam os
motivos para as mudanças no ensino médio:
Nas décadas de 60 e 70, considerando o nível de
desenvolvimento da industrialização na América
Latina, a política educacional priorizou, como
finalidade para o Ensino Médio, a formação de
especialistas capazes de dominar a utilização de
maquinarias ou de dirigir processos de produção (...).
Na década de 90, enfrentamos um desafio de outra
ordem. O volume de informações, produzido em
decorrência das novas tecnologias, é constantemente
superado, colocando novos parâmetros para a formação
dos cidadãos (Brasil, 1999, p. 15).
Neste sentido as diretrizes curriculares passam hoje
a dar um status diferenciado ao ensino de ciências
que vai além da mera formação propedêutica ou
profissional. No texto do próprio PCNEM
encontramos a seguinte afirmação:
O sentido do aprendizado na área, uma proposta para
o Ensino Médio que, sem ser profissionalizante,
efetivamente propicie um aprendizado útil à vida e ao
trabalho, no qual as informações, o conhecimento, as
competências, as habilidades e os valores desenvolvidos
sejam instrumentos reais de percepção, satisfação,
interpretação, julgamento, atuação, desenvolvimento
pessoal ou de aprendizado permanente, evitando tópicos
cujos sentidos só possam ser compreendidos em outra
etapa de escolaridade (grifo nosso, Brasil, 1999, p. 203).
Diante desta nova perspectiva para o ensino
médio, e a reboque do que ocorreu em outras
reformas educacionais mundo afora, o currículo
brasileiro também passou a integrar
recomendações diretas ao uso da História da
Ciência no seu ensino. Esta tendência é reafirmada
nas Orientações Educacionais Complementares
aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNEM
+), quando, por exemplo, aponta que a Química
enquanto ciência pode ser entendida como:
instrumento da formação humana que amplia os
horizontes culturais e a autonomia no exercício da
cidadania, se o conhecimento químico for promovido
como um dos meios de interpretar o mundo e intervir
na realidade, se for apresentado como ciência, com seus
conceitos, métodos e linguagem próprios, e como
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ISSN: 1808-6535
construção histórica, relacionada ao desenvolvimento
tecnológico e aos muitos aspectos da vida em sociedade
(Brasil, 2002, p. 87).
Apesar das críticas que possam ser feitas aos
PCNEM e aos PCNEM+, devemos reconhecer
que a visão da História da Ciência que se encontra
em seu corpo é coerente com a moderna
Epistemologia da Ciência. Isto fica nítido quando
analisamos as competências relacionadas à
contextualização sócio-cultural, onde se propõe:
Compreender as ciências como construções humanas,
entendendo como elas se desenvolveram por acumulação,
continuidade ou rupturas de paradigmas, relacionando
desenvolvimento científico com a transformação da
sociedade (Brasil, 1999, p. 217).
Claramente esta é a imagem defendida por Kuhn
(2005) para evolução da ciência. Entende-se que
há períodos no desenvolvimento científico nos
quais o progresso ocorre por meio da ciência
normal. O trabalho do cientista implicaria, nestes
momentos, em acumulo de conhecimento, à
medida que guiados por um paradigma os
cientistas buscam compreender a natureza. E que,
além disto, a há momentos em que estes paradigmas
são postos em causa, por não oferecerem problemas
a serem resolvidos, ou por não serem suficiente para
explicar determinados fenômenos.
Embora Flôr e Souza (2006, p. 5) considerem que
nos PCNEM não há uma referência direta as
diversas abordagens da história das ciências,
entendemos que nas entrelinhas abre-se espaço
para o uso de uma visão externalista do
desenvolvimento da ciência, pela qual se valorizam
os fatores do contexto histórico-social que
influenciam o trabalho de cientista em sua época.
Conforme já indicamos os PCNEM propõem o
uso da história da ciência no ensino, mas em outros
trechos, também orientam para que se explicitem
as relações entre ciência, tecnologia e sociedade,
como na competência expressa abaixo:
Entender a relação entre desenvolvimento de ciências
naturais e o desenvolvimento tecnológico e associar as
diferentes tecnologias aos problemas que se propuser e
se propõe solucionar (Brasil, 1999, p. 217).
Daí então se pode depreender que, mesmo não
sendo mencionada diretamente, o uso da
Publicada em Março de 2009
abordagem externalista da história da ciência para
o ensino encontra respaldo nos PCNEM. Como
Pessoa Jr (1996) indica, no uso de uma história
externalista o professor buscaria explicar como era
a sociedade na época do desenvolvimento de uma
teoria, ou de um descoberta científica, quais eram
as necessidades tecnológicas, que tipos de
problemas enfrentavam, por que tal país era o
centro científico etc. Enfim, todo contexto cultural
e social poderia ser apresentado ao aluno, com o
intuito de leva-lo a compreender por que tal
cientista tomou determinada atitude frente aos
fatos que lhe foram apresentados.
Na esteira da moderna Historiografia da Ciência,
os PCNEM, segundo Flôr e Souza (2006, p. 6)
mostram oposição à visão de "história dos
vencedores". Esta que é uma característica muito
comum em nossos livros didáticos, nos quais
encontramos somente os nomes dos "grandes
expoentes" da ciência e de suas proezas. É uma
visão da história que busca reconstruir os fatos de
maneira a justificar o presente, é o que se chama
de História Whigs2. De forma contraria a esta visão
distorcia, os PCNEM propõe que se apresente a
ciência como uma construção coletiva.
Estes avanços encontrados no corpo dos PCNEM
encontram-se em consonância com outras
reformas, o que indica sua coerência com as
mudanças ocorridas no mundo em um perspectiva
mais ampla. Mathews (1995) indica que o
Conselho do Currículo Nacional (NCC)3, da Grãbretanha, e o Projeto 2061, da Associação
Americana para o Avanço da Ciência (AAAS)4,
em conseqüência da reaproximação dos estudos
relativos a História e a Filosofia da Ciência com o
ensino de ciências, apontam para uma articulação
entre a História da Ciência e os conteúdos a serem
ministrados, de forma a se despertar nos alunos
um percepção crítica de como se dá a construção
do conhecimento científico. Uma menção a esse
respeito encontra-se explicita no texto do NCC:
2
O termo designa um tipo reconstrução histórica, que busca no passado somente
fatos que ajudem a corroborar uma visão de mundo aceita no presente, deixando de
lado outros que possam contrariar esta mesma visão. Originalmente a palavra se
referia aos liberais ingleses, os quais faziam oposição aos conservadores (tories)
considerados escravocratas. No século XIX muitos historiadores produziram relatos
considerando a conquista da liberdade como uma construção cumulativa que se iniciava
na Carta Magna de 1215 e se estendia até o século XVII, no qual os whig são
considerados amantes da liberdade. (Lombardi, 1997, p. 345).
Sigla para a expressão inglesa "National Council Curriculum".
3
Sigla para a expressão inglesa "American Association for the Advancement of Science".
4
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os estudantes devem desenvolver seu conhecimento e
entendimento sobre como o pensamento científico mudou
através do tempo e como a natureza desse pensamento
e sua utilização são afetados pelos contextos sociais,
morais, espirituais e culturais em cujo seio se
desenvolveram (NCC, 1988, p. 113, apud.
Matthews, 1995)"
Esta visão parece ser a mesma encontrada nos
PCNEM. Na discussão relativa a nova forma com
deve ser encarado o novo ensino de Química
afirma-se o seguinte:
a história da química, como parte do conhecimento
socialmente produzido, deve permear todo o ensino de
química, possibilitando ao aluno a compreensão do
processo de elaboração desse conhecimento, com seus
avanços, erros e retrocessos (Brasil, 1999, p. 240).
Para finalizar esta análise dos PCNEM destacamos
que orientações nele contidas, no que diz respeito
ao uso da História da Ciência no ensino, estão de
acordo com o apontado por Wang e Marsh (2002),
para os quais existem dois vieses ideológicos nos
documentos relativos às reformas curriculares
estadunidenses. O primeiro diz respeito ao
desenvolvimento do educando enquanto pessoa,
na medida em que lhes fornece habilidades para
desenvolverem seus próprios interesses. E ainda
por que a história da ciência fornece ao estudante
uma oportunidade de aprimoramento cultural. O
segundo viés se refere à ênfase dada ao fato de
que o ensino de ciência além de ser importante
para o educando também o é para a sociedade.
Estes vieses estão claramente definidos nos
PCNEM (Brasil, 1999, p.208 ) quando eles
estipulam que "o aprendizado deve contribuir não
só para o conhecimento técnico, mas também para
uma cultura mais ampla".
Como se pode perceber a inserção da história da
ciência nos currículos de ciência busca responder
a uma demanda da sociedade. As recomendações
para que as aulas de ciências sejam mais históricas
são antigas, mas sua inclusão nos currículos só
ocorreu recentemente. Motivaram-se pelas
transformações ocorridas no mundo nas duas
últimas décadas. Porém devemos acrescentar que
as pesquisas sobre o ensino de ciência também
têm um papel importante nesta nova valorização
do uso da história da ciência no ensino.
Publicada em Março de 2009
4 Recomendações para o uso da
História da Ciência
Uma revisão abrangente a respeito da relação entre
a História e a Filosofia da Ciência (HFC) e
educação foi feita por Matthews (1995). Neste
artigo o referido autor busca analisar quais seriam
as contribuições de uma abordagem que leve em
consideração a história e a filosofia da ciência, além
de citar os argumentos contrários ao seu uso. Hoje
se encontra na literatura uma série de propostas
envolvendo abordagens que utilizam a História da
Ciência. Abaixo apresentamos estas justificativas
e as comentaremos a luz de outras pesquisas
a) A história promove uma melhor compreensão
dos conceitos e métodos científicos;
De um lado, a História da Ciência pode enriquecer
a apresentação do conhecimento científico. Os
elementos ligados a História da Ciência podem
fornecer dados que ajudem a justificar
determinados conceitos, leis ou teorias. Por outro,
estes mesmo elementos, podem ajudar a
compreender os conceitos com sendo produto de
um processo, e não apenas um produto que surge
na forma acabada (Wang e Marsh, 2002, p. 174).
Ensinar um conceito sem lhe dar a devida
fundamentação pode ser entendida como
adestramento, ou como doutrinação. Certamente
nenhum destes casos é o que se espera de uma
educação voltada para formação de cidadãos
críticos, tal como proposto nos PCNEM.
b) A abordagem histórica conecta o
desenvolvimento do pensamento individual com
o desenvolvimento das idéias científicas;
Worfmann (1996, p. 68) aponta que os estudos
desenvolvidos por Garcia e Piaget são os mais
importantes nesta linha que busca associar a
história dos conceitos científicos com o
desenvolvimento intelectual da criança. Aqueles
dois autores encontram semelhanças entre o
desenvolvimento da Física e da Psicogenética, de
forma que postularam a existência de paralelos
entre os conteúdos das noções e as etapas da
psicogênese. Além do que, indicaram haver
paralelismo entre os mecanismos de construção do
conhecimento científico em si, e os mecanismos
de construção do conhecimento pela criança.
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
Apesar das críticas e oposição que se fez a estas
proposições, alguns trabalhos apontam que o uso
da História da Ciência pode ajudar os alunos a
superarem dificuldades no aprendizado de
conceitos científicos. Como exemplo Mortimer
(1995), aponta que as concepções alternativas dos
alunos em relação a teoria atômica se assemelham
as visões substancialistas de muitos filósofos
antigos. Levando em conta que a teoria é de
natureza abstrata, indo muito além das percepções
sensoriais, Mortimer propõe que a História da
Ciência teria um papel fundamental para:
a eliminação, em sala de aula, de algumas dificuldades
para a aceitação do atomismo, que envolve a superação
de obstáculos como a descrença no vazio entre as
partículas, não é questão a ser decidida pelas evidências
empíricas, mas pela negociação, baseadas em
argumentos racionais e no uso de exemplos da história
das ciências (Mortimer, 1995, p. 25).
A História da Ciência entra assim como um
mediador, tornando possível articular a dimensão
simbólica do conhecimento com suas manifestações
fenomenológicas. Como aponta Driver:
uma perspectiva social da aprendizagem em salas de
aula reconhece que uma maneira importante de
introduzir os iniciantes em uma comunidade de
conhecimento é através do discurso no contexto de tarefas
relevantes (Driver e colaboradores , 1999, p. 36).
Entendemos que a História da Ciência pode
favorecer a produção deste discurso, e possibilitar
o aluno apropriar-se do conhecimento científico.
c) História da Ciência é intrinsecamente
motivadora. Importantes episódios da história da
ciência e da cultura são conhecidos dos estudantes;
Como exemplo, podemos citar o uso da armas
nucleares durante a Segunda Grande Guerra. O
descobrimento da pólvora pelos chineses. A
invenção do papiro pelos egípcios. As grandes
navegações do período quinhentista. Todos são
fatos históricos conhecidos dos estudantes e que
envolveram de algum modo conhecimentos com
os quais lida a ciência
d) A história é necessária para entender a
natureza da ciência;
Publicada em Março de 2009
Um dos problemas relativos ao ensino de ciências
consiste na dificuldade dos alunos compreenderem
a forma pela qual a ciência apreende o mundo.
Muitos alunos (e professores) imaginam que as leis
e teorias derivam da interpretação objetiva dos
fatos. Baseados em uma concepção empirista
ingênua, esquecem que a interpretação destes é
feita mediante conhecimentos pré-existentes.
Assim, tomam o conhecimento científico como
representação inequívoca do mundo cotidiano.
Não atentam que os objetos aos quais a ciência se
refere são construtos mentais que buscam explicar
certas particularidades da realidade. Conforme
Pietrocola (2001, p. 29) "o conhecimento científico
produzido nos estudos sobre o mundo traduz uma
forma de conhecer o mundo muito particular,
revelando, assim, uma realidade diferente daquela
acessível ao leigo".
Para Matthews (1995), a abordagem histórica da
ciência, ao apresentar períodos de controvérsias,
pode ajudar os alunos a compreenderem que a
ciência trabalha com idealizações do mundo real.
Em suas palavras
a história e a filosofia da ciência pode dar as
idealizações em ciência uma dimensão mais humana
e compreensível e podem explica-las como artefatos
dignos de serem apreciados por si mesmos (Matthews
,1995, p. 184).
Como exemplo Matthews cita a lei do isocronismo
do pêndulo. Del Monte, que era patrono de
Galileu, e descrito como exímio construtor de
máquinas, baseado em observações empíricas,
recusava-se em aceitar que pêndulos feitos com
materiais diferentes podiam ter um mesmo período
de oscilação. Galileu, que havia deduzido tal lei
por meio de relações matemáticas, apontava que
ela seria seguida apenas em condições ideais
(desconsiderando a resistência do ar, perdas de
energia na forma de calor etc). Para Del Monte
isto não fazia sentido, a matemática para ele deveria
descrever o mundo tal qual ele percebia.
Erduran e Duschl (2004) apontam que a História
da Ciência também pode ajudar a superar o
reducionismo relativo à filosofia da Química. Em
geral os estudos relativos a natureza da ciência tem
como modelo a Física. Postula-se que as outras
ciências poderiam ter suas leis e teorias justificadas
42
Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
em termos dos princípios daquela ciência. Porém,
estes autores (p. 111) apontam que apesar de haver
certas semelhanças entre a Física e a Química, pois
apresentam conceitos de caráter quantitativo e
dinâmico, esta última dá grande ênfase, também,
a classificações e a aspectos qualitativos da
natureza, semelhantemente à Biologia. Neste
sentido a História da Química, ao apresentar a
evolução histórica de alguns modelos usados
por esta ciência pode permitir ao aluno
compreender que a mesma valoriza aspectos
que vão além da matematização.
e) A história contradiz o cientificismo e o
dogmatismo presentes nos textos escolares;
A sociedade moderna passou a confiar na ciência
com meio de solução de todos os problemas,
incluindo miséria e a fome. A ciência é vista como
panacéia para todos os males. Muitos, em nossa
sociedade, imaginam que a cura de doenças como
o câncer, a AIDS e outras tantas, é uma mera
questão de tempo, bastando, para tanto, aguardar
os avanços científicos que seguramente virão.
Publicada em Março de 2009
subtropicais, quando sabemos que a produção de
alimentos atualmente já é suficiente para saciar a
fome da população mundial.
Podemos dizer, então, que conhecimentos sobre
a natureza da ciência são importantes para uma
alfabetização científica, com vistas a levar os alunos
a tomadas de decisões de forma consciente e
responsável. Para tanto se faz necessário uma
imersão numa cultura científica que vá além da
aquisição de pontos de vista sobre a natureza da
ciência. Torna-se necessário superar visões
estereotipadas da ciência que são assumidas de
forma acrítica pelos professores, devido falta de
reflexão. A História da Ciência pode auxiliar nesta
superação fornecendo exemplos que se
contrapõem a estas visões arraigadas nos
professores e alunos, levando-os a refletirem sobre
elas (Gil-Perez e Vilches, 2005).
f) A história, pelo exame da vida de cada
cientista, em seu período, humaniza os objetos
de estudos da ciência, tornando-os menos
abstratos e mais envolventes;
O ensino tradicional de ciências reforça esta
ideologia. O conhecimento científico é
apresentado como produto pronto e acabado. Seu
processo de produção é omitido, e, por
conseguinte, as dificuldades enfrentadas pelos
cientistas para solução de determinados questões
não são levadas a conhecimento. Conforme
observa Morais (2002, p. 21) "parece-nos que seria de
extrema valia demonstrar sempre ao estudante que,
sendo a ciência um produto humano, vem marcada
das riquezas e das precariedades do homem".
Schwartz (1977) aponta que a abordagem histórica
reconhece a imaginação como recurso da ciência.
A imaginação, que é uma característica inegável
de artistas brilhantes, também é indispensável ao
trabalho do cientista. Os estudos de Thomas
Edson sobre a eletricidade, e os experimentos de
Lavoisier que levaram a derrocada da teoria da água
como elemento químico, são exemplos claros da
criatividade dos cientistas, e opõe-se francamente
a idéia distorcida de que o trabalho científico seja
mero fruto de deduções lógicas e matemáticas.
Ainda como observa:
g) A história favorece a interdisciplinaridade.
não podemos ver na a ciência apenas a fada benfazeja
que nos proporciona o conforto no vestir e na habitação
... Ela pode ser- ou é- também uma bruxa malvada
que programa grãos e animais que são fontes de
alimentares da humanidade para se tornarem estéreis
numa segunda reprodução. Essas duas figuras devemse fazer presentes quando ensinamos ciências (Chassot,
1998-b, p. 85)
Um ensino mais crítico deveria levar as pessoas a
se questionarem por que o investimento na
produção de soja transgênica é muito superior
aquele voltado a pesquisa da cura para doenças
A fragmentação do conhecimento que é uma
marca da pesquisa moderna, e se expressa no nosso
currículo através da divisão das ciências em
disciplinas, pode ser superada pela abordagem
histórica. Como ilustração fecunda da interação
entre dois campos do saber, podemos citar o
trabalho do casal Curie, que os levou a descoberta
do Polônio. Marie Curie testou a radioatividade
de uma série de minerais de tório e de urânio com
bases em métodos vindos da Física, usando uma
aparelhagem especialmente construída por seu
marido Pierre Curie. Ao perceber que alguns
minerais exibiam uma radioatividade bem maior
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
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que a dos compostos puros daqueles elementos,
ela dispo-se a isolar a impureza, que para ela seria
um novo elemento químico. Para tanto usou os
métodos analíticos da Química clássica, fazendo
dissoluções, extrações, e sintetizando compostos.
Além desta possibilidade de se apresentar a
interação entre conhecimentos para
desenvolvimento de pesquisas Brito e
colaboradores (2004, p. 289) argumentam que a
História da Ciência e da Matemática apresenta
situações pelas quais é possível verificar que a
origem de muitos problemas, que foram motivação
para o desenvolvimento de certas áreas de
pesquisa, teve sua origem em campos distintos do
saber, ou em situações práticas do dia-a-dia. Neste
sentido estes autores apontam como exemplo que
"o estudo sobre o cálculo de probabilidade nasceu,
na Idade Média, juntamente com as empresas de
seguro". Na Química esta situação pode ser
exemplificada pelo estudo das pilhas, que teve
origem nos trabalhos de Galvani a respeito da
eletricidade sobre os corpos de animais.
Podemos acrescentar a estas justificativas outra,
indicada por Chassot (1998-a). Para ele, a História
da Ciência seria um instrumento eficiente na
oposição ao presenteísmo. Os jovens além de não
conhecerem sua genealogia, desconhecem como
era a realidade dos seus avôs. Acreditam que o
passado é uma mera continuação do presente, para
muitos a realidade vivida hoje não é muito
diferente daquela da época de seus avôs. Em geral
não consideram a que os novos materiais e as
novas tecnologias são criações recentes, e que
modificam nosso modo de vida em relação ao de
nossos antepassados. Por conseguinte, a História
da Ciência pode ser considerada uma forte
contribuição para superar esta percepção
distorcida da realidade, ao mostrar não só o
contexto social em que viviam os cientistas, mas
também as dificuldades técnicas que enfrentavam.
Por fim indicamos que a história da ciência pode
contribuir para a análise da diversidade cultural.
O ensino de ciências atual, além de ser marcado
pelo cientificismo, também carrega a marca do
eurocentrismo. Como conseqüência outras formas
de conhecimento, como a religião e os saberes
populares são tomados como errados. E, ainda,
Publicada em Março de 2009
conhecimentos como os dos indígenas, que têm
fundamentação sobre outra lógica diferente
daquela dos europeus, não são considerados como
válidos. Todavia a História da Ciência pode ajudar
a superar esta distorção, ao identificar que por
diversas vezes a origem do conhecimento
científico esteve ligada a religião ou a mitologia
(Brito e colaboradores, 2004, p. 289).
Do exposto, percebemos que o apoio ao uso da
História da Ciência no ensino encontra-se explicito
nos documentos oficiais, e surgem em respostas
as mudanças ocorridas na sociedade com um todo.
Esse novo contexto torna necessário um novo tipo
de educação, na qual se passa a valorizar a ciência
como elemento da cultura e como um saber
necessário à formação de cidadãos atuantes.
Neste sentido, como aponta Matthews (1995), tão
importante quanto aprender ciências é aprender
sobre ciências. Esta compreensão sobre o que é a
ciência envolve tanto reconhecer sua inserção em
um contexto social, como também ter uma idéia
de como é construído o conhecimento cientifico
e em que ele se diferencia dos saberes cotidiano.
O professor de ciência, que de fato esteja preocupado
com a formação de seu aluno como cidadão, deve
se propor a apresentar uma visão não reducionista
deste campo do conhecimento humano.
Porém, levando em consideração que a dimensão
fenomenológica dos processos químicos não pode
ser deixada de lado, acreditamos que uma
abordagem que envolva história da Química
necessite estar associada ao uso da experimentação.
Desta maneira no próximo capítulo trataremos do
uso de experimentos no ensino de Química.
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ISSN: 1808-6535
Publicada em Março de 2009
Artigo
A experiência do Espaço COPPE Miguel de Simoni Tecnologia e
Desenvolvimento Humano
Roberto Bartholo*
Arminda Campos**
Resumo
Este texto apresenta o trabalho de difusão de conhecimentos científico-tecnológicos desenvolvido
pelo Espaço COPPE Miguel de Simoni, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, uma iniciativa de
extensão voltada para estudantes entre 13 e 18 anos. Apresenta o histórico de sua implantação, alguns
dos princípios pedagógicos que orientaram sua criação e as atividades educacionais que desenvolve,
assim como alguns dos resultados de seu funcionamento.
Palavras-chave: difusão de ciência e tecnologia, engenharia e educação, centros de ciências
Abstract
This article is about Espaço COPPE Miguel de Simoni - a science and technology diffusion center at
Rio de Janeiro Federal University. It is a extension initiative targeted at students aged 13-18. It describes
the history of the Center´s creation and presents the pedagogical principles that guided it. The text
also presents the educational activities the Center carries out and some of the results obtained.
Key words: science and technology diffusion, engineering and education, science centers
Introdução
Histórico
O Espaço COPPE Miguel de Simoni Tecnologia
e Desenvolvimento Humano é um centro de
difusão científica vinculado ao Instituto Alberto
Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de
Engenharia (COPPE), da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), situado no Centro de
Tecnologia dessa universidade, no campus da Ilha
do Fundão. Trata-se de uma atividade de extensão,
dirigida a professores e alunos do último segmento
do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, da
região metropolitana do Rio de Janeiro. Seu
principal objetivo é utilizar experimentos e outras
mídias educativas para auxiliar de maneira nãoformal o ensino de ciências ministrado em
instituições de Ensino Básico.
As atividades que deram origem ao Espaço
COPPE Miguel de Simoni começaram em 1996,
quando foi estabelecido o Museu de Tecnologia
da COPPE, com caráter de projeto experimental.
Junto com a criação do Museu de Tecnologia
foram iniciadas pesquisas em nível de mestrado e
doutorado, no Programa de Engenharia de
Produção da COPPE/UFRJ, cujos temas
convergiam para o desenvolvimento de centros
de ciências no Brasil, de forma a gerar produção
científica que alimentasse o projeto, numa busca
por articular ações de pesquisa e ensino com as de
extensão. Foram promovidos eventos, como
* Professor do Programa Engenharia de Produção - COPPE/UFRJ e Coordenador
do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social.
** Pesquisadora do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social da COPPE/
UFRJ.
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
seminários e debates sobre difusão científica e
ensino de ciências.
Em 1999, iniciou-se a concepção de uma área de
exposição, assim como a realização de cursos de
aperfeiçoamento para professores de Ensino
Médio e Técnico de ciências naturais, em temas
como História e Filosofia da Ciência, Oficinas
Didáticas de Ciências e Educação Ambiental. A
"Mostra Inaugural" seria aberta à visitação durante
os anos de 2002 e 2003, já tendo a iniciativa
recebido sua atual denominação. A montagem
dessa Mostra já foi feita a partir de acervo obtido
por doações e empréstimo, com apoio de
laboratórios e oficinas da COPPE, que cederam
peças, instrumentos e experimentos.
A visitação à Mostra Inaugural propiciou testar a
metodologia de recepção de visitantes e a
capacidade organizacional para o projeto maior e
mais ambicioso de abrigar uma Exposição
Permanente. O projeto da Exposição Permanente
- em termos de conteúdo, de abordagem
pedagógica e de instalações físicas - foi detalhado
e implantado no biênio 2004-2005, tomando como
base o aprendizado ganho com essa experiência.
Em outubro de 2005 a Exposição Permanente foi
aberta à visitação.
Contextualização
A concepção do Espaço COPPE Miguel de
Simoni deu-se no contexto de ampliação do
número e do escopo de atuação de museus e
centros culturais e de difusão científica que temos
testemunhado nas últimas duas décadas. Essa
ampliação tomava como um de seus motes a
preocupação com a formação e a educação dos
cidadãos em espaços de educação não-formal. Ou
seja, a idéia de que a ação educativa em museus e
centros de ciências tem condições de, sem se
prender ao cumprimento de conteúdos
programáticos rígidos, valer-se de uma liberdade
de abordagem para ampliar os objetivos
pedagógicos e diversificar a metodologia de
ensino-aprendizagem.
Essa forma de entender a função educacional de
museus e centros de ciências ou culturais preserva
objetivos básicos da educação realizada no
Publicada em Março de 2009
ambiente escolar: informação, aprendizado,
construção da cidadania e da identidade. A
diferença é que a educação promovida nesses
locais ocorre com maior liberdade de abordagem
e quanto aos temas a serem tratados, tomando
como base a promoção de atividades com
metodologias próprias e usando como referenciais
objetos e situações diversos daqueles que a
educação formal costuma oferecer. Idealmente, os
objetos e situações encontrados nesses centros
devem permitir estabelecer uma articulação do
afetivo, do emotivo, do sensorial e do cognitivo,
do abstrato e do conhecimento inteligível, na
produção do conhecimento, e, ao mesmo
tempo, ser reconhecidos como pertinentes à
realidade do visitante.
Essa perspectiva quanto à potencial função
educacional de um centro de difusão dos
conhecimentos científico-tecnológicos norteou a
concepção do Espaço COPPE Miguel de Simoni,
pensado como um centro que pudesse propiciar
aos visitantes uma apreensão da realidade sob uma
perspectiva nova, suscitando inclusive a discussão
sobre o impacto da ciência e da tecnologia para
diversos aspectos do cotidiano e sobre suas
contribuições para o bem-estar do homem e para
a sustentabilidade das condições de vida. O
compromisso do Espaço é o de oferecer ações
educativas de difusão da cultura científica que
conduzam a uma reflexão crítica sobre o
desenvolvimento científico-tecnológico e seus
impactos, enfatizando a produção desse tipo de
conhecimento no Brasil, o que pode favorecer a
construção da cidadania e da identidade entre os
visitantes. Além disso, pretende contribuir para
articular conhecimentos básicos das ciências
naturais e humanas a informações sobre tecnologia
de ponta, adaptados a uma linguagem compatível
com seu público.
Tal posicionamento vem ainda ao encontro da
tendência atual em educação, que se caracteriza
por uma preocupação com a transdisciplinaridade
e a participação social, com uma visão mais ampla,
de uma educação que atinja cada vez mais todos
os campos e momentos da ação humana. Uma
educação que proporcione um aperfeiçoamento
progressivo, duradouro, e a formação de um ser
responsável, crítico e livre, capaz de apreender o
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
seu presente - o seu momento histórico - e
contribuir para a transformação da realidade,
tornando-se um agente consciente e coresponsável pelas gerações futuras.
Propostas do Espaço COPPE
Miguel de Simoni
A existência do Espaço COPPE procura atender
as seguintes metas:
. promover a difusão do conhecimento técnicocientífico com o uso de avançados meios e modos
tecnológicos, para estímulo de novas vocações e
fortalecimento da consciência crítica dos cidadãos,
considerando a necessidade de controle social
quanto a rumos de investigação científicotecnológica e prioridades de investimentos;
. colaborar com o ensino formal, por meio da
interação com cursos de licenciatura e
professores atuantes;
. democratizar o saber científico, traduzindo-o em
linguagens acessíveis a diferentes públicos e meios
de comunicação;
. fortalecer perspectivas críticas quanto a valores
estabelecidos pelos conhecimentos científicostecnológicos e a seus impactos e consequencias
para a qualidade de vida das pessoas;
. buscar expandir oportunidades de interação com
sociedade, diretamente e por meio de multimeios
em suporte eletrônico;
. manter intercâmbio com outros centros e
instituições congêneres.
O trabalho desenvolvido no Espaço COPPE
Miguel de Simoni ocorre em duas linhas de atuação
principais: atualização e aperfeiçoamento de
licenciandos e professores das áreas de ciências
exatas e naturais (por meio de cursos de curta
duração e de oficinas); e difusão científica, por
meio da promoção de visitas de turmas de
estudantes acompanhados de seus professores à
Exposição Permanente, instalada no bloco I do
Centro de Tecnologia da UFRJ. Ambas as linhas
de atuação buscam promover o diálogo entre os
produtores de conhecimento e tecnologia e a
sociedade em geral, com ênfase para os jovens,
Publicada em Março de 2009
visto como um meio para reduzir a grande
distância entre a realidade do ensino público de
nível médio e as universidades públicas.
A principal meta tem sido contribuir para criar
uma interação mais efetiva entre os produtores
de conhecimento e tecnologia de um dos maiores
centros de pesquisa em engenharia da América
Latina e um público-alvo composto de jovens
entre 13 e 18 anos e seus professores, dando
acesso a exemplos de pesquisas de ponta em
curso em diversos laboratórios do Centro de
Tecnologia da UFRJ, visando ainda a ampliar
horizontes e a despertar ou fortalecer vocações
para a área tecnológica.
A Exposição Permanente está organizada em seis
eixos temáticos - i) Organismos e Mecanismos; ii)
Sociedade e Meio Ambiente; iii) Informação e
Conhecimento; iv) Trabalho, Serviços e
Entretenimento; v) Matéria e Energia; e vi) Mundo
Virtual -, cada qual envolvendo um ou mais nichos
de exposição. Os nichos dispõem de recursos
didático-pedagógicos
variados,
como
experimentos, equipamentos, maquetes e
informações em várias mídias, para estabelecer
uma inter-relação entre o conhecimento científico
e a produção tecnológica e suas aplicações diretas
na vida cotidiana. Os experimentos e outros
recursos presentes nos nichos foram
desenvolvidos ou adaptados em conjunto, pela
equipe do Espaço COPPE e por pesquisadores
dos laboratórios de diferentes Programas da
COPPE/UFRJ que se comprometeram a integrar
a Exposição Permanente.
Além dos recursos presentes no interior dos
nichos, encontram-se, no corredor que os
interliga, painéis expográficos que exploram os
temas dos seis eixos sob uma perspectiva sóciohistórica dos avanços da tecnologia, convidando
os visitantes a uma reflexão crítica sobre as
transformações que acarretam.
A visita à Exposição Permanente começa com a
recepção à turma de alunos e professores e uma
apresentação sucinta sobre a COPPE e o próprio
Espaço. Os visitantes são então divididos em
grupos e conduzidos a alguns dos nichos pelos
monitores. A permanência em cada nicho toma
cerca de 20 minutos, durante os quais os
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
estudantes tomam contato com experimentos,
ouvem apresentações e tiram dúvidas sobre os
temas ali tratados. O percurso se fecha com a
reunião dos grupos no mesmo ponto em que foi
feita a recepção, um lanche e a aplicação de
questionários de avaliação. No caso de escolas de
redes públicas, os visitantes são transportados da
escola ao Centro de Tecnologia da UFRJ e de volta
à escola por ônibus fornecidos pela UFRJ.
A recepção aos grupos de visitantes, sua condução
pelos nichos e a mediação entre os estudantes e
professores visitantes e os experimentos e outros
elementos da exposição são realizados por
monitores, alunos de graduação e pós-graduação
da UFRJ, bolsistas de extensão, capacitados para
o trabalho de monitoria pela equipe de
coordenação pedagógica do Espaço e por
pesquisadores da COPPE, pertencentes aos
laboratórios parceiros. Entende-se que a mediação
realizada por esses monitores, entre visitantes e
recursos integrantes da exposição, é um elemento
fundamental para o aprendizado não-formal
propiciado pela visita à Exposição Permanente.
Os cursos de atualização e aperfeiçoamento para
professores de Ensino Fundamental e Médio
promovidos pelo Espaço COPPE buscam
sensibilizar para uma abordagem transdisciplinar
das ciências e fortalecer a capacidade de buscar
informações complementares que possam
enriquecer a prática pedagógica.
Alguns resultados
As atividades promovidas no Espaço COPPE
Miguel de Simoni vem recebendo respostas
muito favoráveis, em termos de interesse e de
avaliação. Isso pode ser verificado, num certo
nível, pelos números de participantes nas
atividades desenvolvidas.
A Mostra Inaugural recebeu, de agosto de 2002
a setembro de 2003, 3200 alunos e 197
professores, de 75 escolas públicas e privadas,
de Ensino Médio e Fundamental, da região
metropolitana do Rio de Janeiro.
De outubro de 2005 a dezembro de 2008, a
Exposição Permanente recebeu visitas de cerca
de 4.000 estudantes, de escolas em sua grande
Publicada em Março de 2009
maioria da rede pública da região metropolitana
do Rio de Janeiro, acompanhados por cerca
de 200 professores.
É importante destacar que, em sua grande maioria,
os visitantes estão vinculados a escolas das redes
públicas das regiões norte e oeste da cidade do
Rio de Janeiro e de cidades da Baixada Fluminense,
áreas com muito menos instituições como museus
e centros culturais e científicos do que o centro
ou a zona sul do município carioca.
Foram ainda capacitados 870 professores de
Ensino Médio da rede pública de Ensino Médio
nos seguintes cursos: História da Ciência e Ensino;
Oficinas de Ciência; Educação Ambiental;
Cidadania, Saúde e Sexualidade; A Ciência no
Universo da Cultura; Metodologia da pesquisa.
Devemos ainda considerar que já passaram por
treinamento e por experiência como educadores
mais de dez graduandos que atuaram como
monitores nesse período.
Os números apresentados representam as pessoas
diretamente influenciadas pelas ações educacionais
do Espaço COPPE. É difícil estimar os resultados
quantitativos em termos de pessoas alcançadas
indiretamente, mas é fácil entender que se trata
de um grupo considerável, por incluir as famílias
dos estudantes que visitaram a COPPE e os
alunos dos professores que visitaram o Espaço
ou realizaram cursos.
Além dos resultados quantitativos, é possível
verificar o papel do Espaço COPPE por meio
das avaliações feitas pelos visitantes, sempre
muito positivas. Têm sido utilizadas duas formas
de avaliar a visão que alunos e professores têm
de sua Exposição Permanente: a) a utilização de
uma ficha de avaliação, diferenciada para
professores e alunos; b) a observação do
comportamento dos visitantes, durante a
visitação, por parte da Coordenação de
Exposição (neste caso, uma observação não
participante) e dos próprios monitores. Os
questionários abordam pontos específicos da
dinâmica da exposição (apresentação dos
monitores, experimentos, painéis etc), sendo que,
para os professores, são acrescentadas ainda
questões que investigam o potencial de
intersecção da prática docente em sala de aula e
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
Publicada em Março de 2009
os conhecimentos, experimentos e tecnologias
apresentados durante a visita à Exposição.
eventos e cursos. A ELETROBRÁS também
financiou a implantação de algumas instalações.
A aplicação desses questionários tem sido eficaz
no sentido de mostrar as lacunas que devem ser
superadas e tem como objetivo principal aprimorar
o projeto original que concebeu tanto o espaço
físico como todos os recursos didáticos da
Exposição Permanente, assim como sua
própria metodologia.
A manutenção das atividades promovidas é
garantida pela articulação entre diferentes órgãos
da UFRJ. A Diretoria da COPPE mantém as
instalações, os gastos correntes, a equipe de
coordenação e apoio, bem como alguns dos
monitores. Os laboratórios da COPPE/UFRJ, da
Escola Politécnica e da Escola de Comunicação
da UFRJ, integrantes da Exposição Permanente,
colaboram com as atividades de manutenção de
experimentos e outros recursos didáticos, bem
como com a capacitação dos monitores que
recebem os visitantes.
A avaliação por observação também tem grande
valia para o trabalho. Como a visitação é feita em
grupos (alunos e professores são divididos em
grupos de aproximadamente 8 pessoas) e estes
grupos são formados de acordo com a empatia
dos visitantes - eles próprios escolhem qual grupo
desejam integrar - a interação entre os seus
membros é quase imediata. Ou seja, há um
ambiente propício à espontaneidade, ao
comportamento característico dos pares. A
observação deste comportamento auxilia
bastante na identificação de pontos que merecem
uma reavaliação. Reavaliação esta que só ganha
sentido se existe para incrementar e aperfeiçoar
a relação com o visitante.
Os resultados dessas avaliações permitem
dizer que a experiência da visitação à
Exposição Permanente é considerada muito
positiva pela grande maioria dos estudantes e
professores que a realizaram.
Recursos utilizados
As instalações disponíveis para o Espaço COPPE
são os nichos construídos especificamente para
esse fim, espalhados pelo bloco I do Centro de
Tecnologia, onde também ficam os painéis que
complementam a Exposição. Além disso, conta
com gabinetes para a equipe de apoio e de
coordenação administrativa e pedagógica, um
pequeno auditório e uma tenda, ambos com
equipamentos de informática e para apresentações,
usada em geral para recepcionar os visitantes.
A implementação de tais ações, desde as obras
físicas até a instalação da Exposição Permanente,
contou com o apoio da agência financiadora
VITAE, que também financiou parcialmente
O Espaço COPPE Miguel de Simoni tem contado
ainda com apoio da Pró-Reitoria de Extensão da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, na forma
de bolsas de extensão. A Prefeitura Universitária
fornece os ônibus que transportam as turmas de
visitantes entre a escola de origem e a Ilha do Fundão.
O Espaço COPPE Miguel de Simoni é um dos
beneficiários de apoio financeiro da FINEP para
projeto da Decania do Centro de Tecnologia da
UFRJ, em início de implantação, voltado para
custear a realização de exposição itinerante, cursos
para professores da rede pública de Ensino Médio
e criação de Portal.
Perspectivas
Um projeto financiado pela FINEP está no
momento em realização, incluindo atividades a
realização de cursos e palestras para professores de
ciências da rede pública; o aperfeiçoamento da
Exposição Permanente e da dinâmica de visitação,
com base na sistematização das avaliações
realizadas; a introdução de novos experimentos e
de jogos educacionais; a estruturação de uma
exposição itinerante; a produção de material paradidático a ser fornecido a professores interessados;
a implantação de um portal do Espaço, que servirá
para informar sobre as atividades, apoiar o
agendamento de visitas e a inscrição em cursos,
deixar disponíveis para download cópias de material
de cursos e outras atividades, além de oferecer com
uma visita virtual à Exposição Permanente.
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
Essas mudanças permitirão uma ampliação
bastante significativa do público que vem sendo
atingido pelas atividades promovidas pelo Espaço
COPPE, assim como um fortalecimento dos
resultados das visitas, porque os professores terão
mais meios para preparar previamente os alunos
para a atividades e para retomar assuntos e
discussões surgidos durante a visitação.
Publicada em Março de 2009
Referências bibliográficas
Espaço COPPE Miguel de Simoni. Anteprojeto para implantação plena de atividades.
Mimeo. 2003.
Espaço COPPE Miguel de Simoni.
Treinamento de Monitores. Exposição
Permanente. Módulo de Introdução à
Exposição Permanente. Mimeo. 2005.
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