programa fx-2 de modernização de caças da faB pode contribuir

Transcrição

programa fx-2 de modernização de caças da faB pode contribuir
voando alto
Programa FX-2 de modernização de caças da FAB
pode contribuir para o avanço da indústria nacional
Transferência tecnológica possibilita inovação com risco menor
Enio Barbosa
Fotos: divulgação
Em 1998, a Força Aérea Brasileira iniciou o programa FX-2
para substituir os aviões Mirage e F-5, da década de 1970,
e o AMX, dos anos 1990. A
polêmica se instalou quando,
no ano passado, o presidente Lula declarou que o Brasil
havia decidido comprar o caça
Rafale, da França, em razão da
promessa de “transferência irrestrita” de tecnologia para o
país. Mas como, de fato, acontece a transferência de tecnologia de um país para o outro
e qual a importância desses
processos para a indústria nacional? Mais do que obter uma
máquina de guerra, o programa FX-2 foca na autonomia para a fabricação de um
avião moderno e que deve levar a reboque a renovação e melhoria de diversos setores da economia e da
pesquisa nacional. O conceito chave que definirá a
escolha desses aviões de caça é a chamada TT, sigla
para transferência de tecnologia. O processo de TT é
garantia de que o investimento feito para um cenário hipotético de guerra se transforme em um projeto de modernização na área de pesquisa e desenvolvimento, paralelamente à capacitação de diversos
setores industriais do país que poderão, em alguns
anos, voar alto no cenário global.
O favorito
Rafale
Transferindo a complexidade “O conceito tradicional de
TT é que seria possível transferir o conhecimento
tácito, adquirido ao logo de uma vida, de qualquer
tecnologia, pois tudo seria codificável e, portanto, passível de replicação a partir de determinados
planos e códigos”, explica Sérgio Queiroz, pesquisador do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) do Instituto de Geociências (IG) da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “É
um conceito que reinou até a década de 70, praticamente, mas que não condiz com a realidade”, diz.
Queiroz afirma que nem tudo relativo à tecnologia é
42
inova42-45caças.indd 2
6/4/2010 16:14:58
Avião militar
Amx-01
F18 da
Boing
transferiram a tecnologia da produção das asas (que
incluiu desenvolver as áreas de projetos, soldas e
montagens de altíssima precisão). “O modelo que
mais se beneficiou da experiência da Embraer com
o AMX foi o jato regional para 50 lugares ERJ145, os
atuais E-Jets e os ‘Phenom’ são decorrências diretas, bem mais recentes, dessa transferência tecnológica inicial. Aliás, hoje em dia a Embraer chega a
transferir esse aprendizado para outras empresas –
até mesmo estrangeiras”, completa Salles.
codificável. “Todo processo de TT é imperfeito. São
muitas variáveis em jogo. A transferência de uma
matriz para uma subsidiária no mesmo país já não é
perfeita: existe a cultura local, o histórico, as capacidades técnicas de quem está envolvido no processo.
Imagine a transferência de um objeto complexo, entre empresas que podem até mesmo ser concorrentes, que falam outras línguas. A transferência, pura
e simplesmente, talvez não dê conta disso tudo”.
Por isso, Queiroz indica que talvez a melhor maneira de pensar uma TT complexa seja através de
um aprendizado tecnológico. “Considerando que a
transferência completa de uma tecnologia é impossível, talvez o termo ‘aprendizado tecnológico’ traga
uma maior amplitude para o tema, pois aí estamos
falando de algo que vai além do objeto. Não só os aspectos tecnológicos estão em jogo, mas os aspectos
humanos. As empresas aprendem os métodos de
produção e também podem conhecer inovações gerenciais e organizacionais”, afirma. Um bom exemplo disso foi o projeto do AMX, outro avião militar,
mas com características de ataque ao solo. O projeto também previa transferência de tecnologia por
parte dos sócios italianos (o projeto era bi-nacional). “O AMX é um projeto bastante interessante e
que foi dividido entre dois países. A Embraer, que
na época era estatal, melhorou muito seu processo
industrial”, diz Felipe Salles, editor da revista eletrônica Base Militar.
Ele explica que a Embraer, antes vista como periférica e fabricante de aviões bastante simples,
como o Bandeirantes, se modernizou com o projeto
AMX. Os sócios italianos investiram na empresa e
O que se ganha transferindo o aprendizado tecnológico? Acima de tudo, a TT é uma forma de diminuir os riscos
envolvidos no desenvolvimento de um novo produto. A empresa principal atrai os chamados “parceiros de risco” que colocam seu próprio dinheiro em
um novo projeto, operando como sócios e não mais
como contratados. Se o parceiro não domina uma
tecnologia necessária para que possa realizar sua
parcela de trabalho, o parceiro principal desenvolve nele essa capacitação, com vistas a dividir o risco,
explica Felipe Salles.
No caso das indústrias automobilísticas, muitas
vezes, pode haver projetos de “co-design”, onde uma
grande empresa se alia a uma menor para desenvolver um projeto em parceria com fornecedores, por
exemplo. Isso é uma garantia da qualidade das peças
e de que a terceirização de uma determinada parte
da produção vai ter um nível de qualidade exigido,
sem comprometer a imagem da empresa. Esse tipo
de TT pode ser ainda mais ampla. O exemplo mais
rotineiro ocorre entre as fabricantes de automóveis
que transferem para suas subsidiárias os projetos
43
inova42-45caças.indd 3
6/4/2010 16:14:59
divulgação
de carros e motores, ou
mesmo entre indústrias
que formam parcerias em
outros países com empresas locais.
Salles exemplifica com
o caso da Akaer que detalhou a asa do Super Tucano,
avião turbohélice de ataque projetado no Brasil e fabricado pela Embraer.
“A Akaer é um agrupamento de empresas entre as
quais está uma que auxiliou a Embraer na tarefa de
detalhamento da estrutura do Super Tucano. A Embraer já tinha desenhado o formato externo da asa,
mas coube a essa empresa projetar a forma mais
eficiente e determinar qual o design detalhado das
milhares de peças individuais que teriam que ser
fabricadas para virarem a asa do Super Tucano”, finaliza.
Outro tipo de TT é a feita entre governos e as
empresas privadas, como é o caso do FX-2. Nesse
caso a exigência é de transferência completa e envolve diversas empresas. Quanto mais completo o
processo de TT maiores as chances da empresa que
transfere estar criando uma concorrente em potencial. O receio das consequências disso à longo prazo pode minar as negociações ou criar algum tipo
de mal-estar. “Existem casos de sucesso como o da
japonesa Nippon Steel e a Usiminas”, lembra Queiroz. Na época, a parceria entre as duas empresas de
mineração modernizou a empresa brasileira e criou
condições para um aprendizado tecnológico que
resultou em diversos avanços desenvolvidos pelos
brasileiros envolvidos no processo. “Um dos pontos
mais importantes para o sucesso desse modelo foi o
fato de que a Nippon Steel estava mudando seu foco
de negócios. A empresa havia definido que era hora
de deixar de ser apenas uma empresa extratora e
queria se firmar como uma fornecedora de tecnolo-
Gripen da
sueca SAAB
gia na área de mineração. A Usiminas, em longo prazo, não representava uma concorrente”, diz Queiroz.
Graus de separação Outro ponto importantíssimo para
que a TT, ou o aprendizado tecnológico, seja um sucesso é a capacidade da empresa que absorve a nova
tecnologia. A distância entre esta e a que irá transferir não pode ser muito grande, pois há o risco da
transferência e da produção não se concretizarem.
No caso do FX-2, onde a negociação dos governos
prevê determinadas condições e as empresas envolvidas negociam posteriormente os detalhes, isso
pode significar uma queda de braço indesejável. Determinado item pode não ser nacionalizado com base
na impossibilidade de um parceiro de administrar
sua produção. Alguns analistas militares indicam
que esse seria o caso do motor do avião e dos sistemas
de radares, duas áreas onde não há expoentes nacionais. “Se não há maturidade empresarial de quem
recebe fica difícil transferir a industriabilidade
dos produtos. Esses dois níveis têm que ser similares”, aponta Ralph Heinrich, consultor do Centro de
Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações
(CPqD). “Entretanto, no caso do Brasil, é possível a
parceria com centros e institutos de ciência e tecnologia ou mesmo com o Departamento de Ciência e
Tecnologia Aeroespacial (DCTA) da Aeronáutica. E a
partir da pesquisa nesses centros é possível capacitar empresas que viabilizem a produção em escala”,
acredita Heinrich.
44
inova42-45caças.indd 4
6/4/2010 16:15:00
A polêmica
No início de janeiro deste ano, a colunista Eliana Cantanhêde, do jornal Folha de S.
Paulo comunicou o vazamento de um suposto relatório da FAB, encarregada de fazer
uma análise técnica para nortear as escolhas do processo de compra do processo
FX-2. O relatório, uma versão anterior do que será apresentado ao ministro Nelson
Jobin e ao presidente Luiz Inácio “Lula” da Silva, indicaria a preferência da FAB pela
plataforma da empresa sueca SAAB, que, na concorrência pelo negócio bilionário,
ofereceu o avião Gripen, versão NG (New Generation).
A preferência da FAB se daria por dois motivos: primeiro o financeiro, pois o
Gripen NG seria mais barato em termos unitários e com um preço de manutenção
muito menor que os outros dois concorrentes (o americano Boeing F-18 e o francês
Dassault Rafale, que teria ficado em terceiro lugar). Em segundo lugar a questão
relativa ao fato de que o Gripen NG seria uma “versão em desenvolvimento” do atual
Gripen, o que possibilitaria que o Brasil participasse de perto do processo de desenvolvimento de tecnologias em conjunto com a empresa sueca.
Para os críticos, o fato do Gripen NG estar em desenvolvimento é justamente seu
ponto negativo. Chamado de “caça de papel” em alguns fóruns militares brasileiros,
o Gripen seria o pior das três propostas apresentadas no processo do FX-2. Outros
problemas citados pela escolha do Gripen seriam o risco que se corre quando se
opta por um projeto, que pode sair mais caro do que o esperado ou mesmo não se
concretizar. No final da década de 80, por exemplo, a Força Aérea israelense desistiu de desenvolver uma plataforma própria para o caça “Lavi”, afirmando ser mais
barato comprar e manter aviões fabricados nos EUA. O projeto, entretanto, foi vendido à China e é base do Jian (J-10), que integra atualmente a Força Aérea chinesa.
O Gripen também é criticado por utilizar inúmeras peças americanas, entre elas
o motor, o que poderia gerar diversos empecilhos por parte do governo dos EUA,
como embargos.
Os sinais do governo brasileiro parecem indicar que o preferido do processo é
mesmo o francês Rafale. A sustentação da escolha política pela plataforma francesa
seria a inserção do FX-2 em um projeto maior de defesa nacional, que incluiria outras
parcerias como, por exemplo, a frota de submarinos e helicópteros. Além disso, o
Brasil está negociando tecnologias para o projeto “Soldado do Futuro” com o governo da França, inserção no projeto Galileo (padrão europeu de localização via satélite
que faria frente ao padrão GPS, americano) e, em termos geopolíticos, o apoio dos
franceses a um lugar definitivo do Brasil no Conselho de Segurança da ONU.
Patentes desbloqueadas O projeto FX-2 prevê o que se chama
de TT ilimitada, ou seja, todos os sistemas que compõem
o avião deverão estar abertos
tanto para a produção por parceiros industriais brasileiros
como para eventuais mudanças, melhorias e adaptações.
“A questão não é só montar o
avião”, explica Sérgio Queiroz,
“mas garantir que os sistemas
possam ser absorvidos por inteiro e que também possam se
transformar em outros produtos, ter aplicações diferentes
das originais. Isso sim é o ponto interessante da TT.” Para o
pesquisador a empresa vencedora não pode usar as patentes
que detêm para bloquear essas
melhorias e adaptações. A tecnologia proprietária será licenciada sem limitações.
Na reta final do processo decisório muito se falou da
proposta americana (relativa
ao F-18 Super Hornet, fabricado pela Boeing) que se dispunha a fazer a “transferência
necessária” de tecnologia, ao
contrário dos outros dois concorrentes, onde a palavra ilimitada deixa claro essa abertura na questão das
patentes. Agora o projeto FX-2 entra no estado crítico
de decisão. Analistas militares lembram que o projeto não é em curto prazo e mesmo após a escolha do
finalista seria necessário no mínimo um ano para
detalhar corretamente os itens iniciais do pacote de
documentação de tecnologia de produto. Após esse
primeiro passo ainda há um longo e complexo trabalho até que finalmente os primeiros aviões sejam
montados em solo brasileiro. Somente por volta de
2016, é que a indústria nacional terá a real noção do
quanto a transferência de tecnologia proporcionada pelo FX-2 foi vantajosa ou se, no final das contas,
a ideia era comprar apenas uma máquina de guerra
eficiente.
45
inova42-45caças.indd 5
6/4/2010 16:15:00