o baile de eros em “dão-lalalão1”: o projeto estético da
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O BAILE DE EROS EM “DÃO-LALALÃO1”: O PROJETO ESTÉTICO DA NOVELA ROSEANA Elissandro Lopes Araújo 2 Centro de Letras e Comunicação Social, Departamento de Língua e Literaturas Vernáculas, Universidade Federal do Pará, Bolsista PIBIC/CNPq. Prof. Dr. Sílvio Augusto de Oliveira Holanda Centro de Letras e Comunicação Social, Departamento de Língua e Literaturas Vernáculas, Universidade Federal do Pará. RESUMO No segundo volume de Corpo de Baile (1956) e, posteriormente, em Noites do Sertão (1964), encontra-se a novela “Dão-Lalalão”, a quinta das sete narrativas na ordem da primeira edição e peça de um único volume, junto a “Buriti”, no segundo livro da tríade em que se dividiu a obra. A estória de um ex-boiadeiro e de uma ex-prostituta, inevitavelmente, chama a atenção do leitor à temática amorosa na obra de Guimarães Rosa. Permeada de passagens lascivas, sustentadas por um fino enlace entre a linguagem poética e a pulsão erótica, a narrativa centra-se no retorno de Soropita, ex-boiadeiro e valentão, ao vilarejo do Ão, onde o espera Doralda, esposa de ímpar sensualidade. No presente trabalho, a partir de uma hipótese que toma por pulsão da novela a tônica erótica da obra roseana, examina-se a recepção crítica de Guimarães Rosa assinalada nos textos de Benedito Nunes e Bento Prado Jr. Na edificação ficcional de “Dão-Lalalão”, ambiciona-se explorar as diversas referências eruditas que perpassam a narrativa e elucidam as múltiplas formas de eros, que age como pulso principal na construção de uma experiência estética da vida, na qual articulam-se memória e poesia. ABSTRACT “Dão-Lalalão” is a novel placed in the second volume of Corpo de Baile (1956) and, later, in Noites do Sertão, the second book of three in which Corpo de Baile was divided. It is a story about an ex-cowboy and an ex-prostitute that undoubtedly catches the reader’s attention to the theme of love in Guimarães Rosa’s works. The novel is full of lascivious passages that are sustained by a narrow fusion of poetical language and eroticism. The narrative tells the Soropita’s return to Ão, where Doralda, his voluptuous wife, waits for him. The article analyses, based on the Reception Theory formulated by Hans Robert Jauss (19211997), the theme of love in the critic reception in the essays of Benedito Nunes and Bento Prado Jr. In the fictional structure of “Dão-Lalalão”, the article aims to explore the variety of 1 O presente trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico — CNPq. 2 Graduando de Licenciatura em Língua Portuguesa e bolsista do Projeto de Pesquisa: Estudos Estéticorecepcionais acerca da Literatura em Língua Portuguesa: Guimarães Rosa (EELLIP) erudite references that are present in the narrative and explain the various personifications of Eros, who acts as the main strength in the building of life’s aesthetic experience, in which memory and poetry are articulated. INTRODUÇÃO No segundo volume de Corpo de Baile (1956) e, posteriormente, em Noites do Sertão (1969), encontra-se a novela “Dão-Lalalão”, a quinta das sete narrativas na ordem da primeira edição e peça de um único volume, junto a “Buriti”, no segundo livro da tríade em que se dividiu a obra. A estória de Soropita e Doralda, inevitavelmente, chama a atenção do leitor à temática amorosa na obra de Guimarães Rosa. Permeada de passagens lascivas, sustentadas por um fino enlace entre a linguagem poética e a pulsão erótica, a narrativa centra-se no retorno de Soropita ao Ão, lugarejo “num vão, num saco da Serra dos Gerais3”, onde o espera Doralda, esposa de ímpar sensualidade. No caminho da volta de Andrequicé, onde fora escutar a radionovela, Soropita segue um trajeto conhecido de tantas outras viagens e, montado em Caboclim, deixa-se envolver numa atmosfera de sonho e devaneio, na qual revive os momentos importantes de sua vida. A leve letargia da recapitulação dos episódios passados e o atento testemunhar dos ruídos e movimentos fortuitos do campo constroem uma textura de apreensão da realidade, que se ativa por meio do rememorar as lembranças e, permeada por construções metafóricas, se realiza na tessitura de toda uma imagética e experiência poética focada na vivência sensível do mundo, em suas diferentes dimensões. Em “Dão-Lalalão”, a fundação da palavra e o conhecer das coisas centram-se não somente nas sensações externas do corpo, o frio, o nojo, a excitação, a dor, entre outras; mas também, e principalmente, nas emanações potenciais de eros nas esferas mais íntimas do homem. Na narrativa de Guimarães Rosa, a fina elaboração da linguagem permite a leitura que toma por norte a pulsão erótica em enlace com a construção de um conhecer e viver poético do sertão, como representação do mundo. Distante das ferozes batalhas e fatigantes andanças bélicas de Riobaldo e seu bando, o ciclo de novelas de Corpo de Baile escreve-se num horizonte mais taciturno, menos suspenso pela expectativa de um assalto. Em contraste com o tom épico da saga de Riobaldo e Diadorim, a desditosa peleja do homem nas diversas fundações de sua existência e de seu destino; o ciclo de novelas de 1956 nos revela um cenário de lirismo, no qual as temáticas fundamentais da obra de Guimarães Rosa, tais como: a demanda poética da palavra, a memória, o narrar e o conhecer o mundo, são alçados aos estratos mais internos do homem, sejam as sensações físicas da natureza, sejam os movimentos e estados da alma. No entanto, é necessário frisar que este contraste é apenas hipotético, não há uma fronteira bem marcada entre as obras; ressalvadas pequenas observações, em Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas, os temas, o tom da narrativa e os aspectos temporais entrelaçam-se no âmbito da escritura roseana, visto que algumas das principais leituras sobre o romance de Riobaldo são assinaladas também no ciclo de novelas, já outras não abrangem as duas obras. A diferença de tom entre os volumes faz com que algumas chaves de leitura se direcionem melhor a uma determinada obra, por exemplo, em Grande Sertão: Veredas, dentre as várias facetas da narrativa de Riobaldo, destaca-se a hipótese de uma novela de cavalaria, a qual estabelece um diálogo entre a obra de Guimarães Rosa com as novelas do 3 ROSA, João Guimarães. Corpo de Baile. v. 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. p. 470. Todas as citações da obra correspondem a esta edição, sendo assinaladas somente as iniciais CB seguidas do número da página. ciclo arthuriano, segundo Cavalcanti Proença4. Em outro horizonte, a natureza ambígua do sertão e das peripécias que relata o jagunço é o marco de análise da obra: a ambigüidade da amizade, do nome, da própria essência de Diadorim e da saga pelo sertão, entre outras imprecisões sertanejas, foi abarcada pelo princípio de reversibilidade, forjado por Antonio Candido5, que abrange o conjunto da obra roseana. Em suma, muitas das leituras dirigidas ao monólogo de Riobaldo estão relacionadas também às narrativas de Corpo de Baile, todavia, é preciso avaliar as peculiaridades estéticas das narrativas deste ciclo6. Em ambos os livros, as estórias e personagens freqüentemente evocam as mais variadas referências literárias e filosóficas, urdidas numa arquitetura estética que mescla o erudito e o popular, o documental e o fictício. Na edificação ficcional de “Dão-Lalalão”, ambiciona-se explorar a hipótese de leitura que elege a veia erótica e poética como pulsão à tessitura estética da narrativa e, conforme a problemática lançada sobre a novela, de que forma esta leitura se enquadra na hermenêutica dos estudos roseanos. A VEIA ERÓTICA E MINEMÔNICA DA ESTÉTICA ROSEANA Na viagem de Soropita, a memória é a primeira instância a mover o pensamento do boiadeiro, lançando-o num monólogo interior em que rememora a paisagem sertaneja, os mimos e qualidades de sua esposa, assim como, o acre passado que vivera antes de assentarse no vilarejo do Ão. Bento Prado Jr., em “O destino cifrado: linguagem e existência em Guimarães Rosa7”, remete-se à importância da memória no repensar a existência de sertanejo, característica da obra do autor mineiro já apreciada por Antonio Candido, conforme afirma o ensaísta: “o homem do sertão se retira na memória e tenta laboriosamente reconstruir a sabedoria sobre a experiência vivida, porfiando, num esforço comovedor, em descobrir a lógica das coisas8”; assim, oferecendo-nos o mote para examinar-se o papel de mnemosine na novela. No labor de reconstruir as razões de sua existência, Soropita, entrega-se ao ruminar das sensações que lhe advêm do campo. O testemunho mais atento do que é hodierno, comum, é o ensejo da elaboração de uma cadeia de construções metafóricas que revelam a atmosfera do imaginar de Soropita. Os perfumes das flores, arbustos e ervas, o vôo dos pássaros, os campos de milho, os canaviais, os riachos e tantas outras cenas cotidianas do sertão são apreendidos numa série imagética que reescreve a realidade sertaneja e lhe insinua uma outra dimensão, na qual o sertão assume uma roupagem poética. Conhecia de cór o caminho, cada ponto e cada volta, e no comum não punha maior atenção nas coisas de todo tempo: o campo, a concha do céu, o gado nos pastos — os canaviais, o milho maduro — o nhenhar alto de um gavião — os longos resmungos da jurití jururú — a mata preta de um capão velho — os papagaios que passam no mole e batido vôo silencioso — um morro azul depois de morros verdes — o papelão pardo dos marimbondos pendurado dum galho, no 4 PROENÇA, M. Cavalcanti. Augusto dos Anjos e outros ensaios. 2. ed. Rio de Janeiro: Grifo; Brasília: INL, 1973. 240p. Vale ressaltar que esta leitura foi alvo de críticas, pois aproximar a obra roseana do ciclo arthuriano implica esvaziá-la de toda sua modernidade enguanto obra literária. 5 CANDIDO, Antonio. O homem dos avessos. In: Tese e antítese. São Paulo: Nacional, 1964. p. 119-40. 6 Para outras leituras da obra de Guimarães Rosa cf. O Dorso do Tigre. NUNES, Benedito. (1976); As formas de falso. GALVÃO, Walnice Nogueira. (1972); O Brasil de Rosa. RONCARI, Luis. (2004); entre outros. 7 PRADO JR, Bento. O destino cifrado: linguagem e existência em Guimarães Rosa. In: Alguns ensaios. São Paulo: Max Limonad, 1985. p. 195-226. 8 Idem, ibidem. p. 201. cerrado — as borboletas que são indecisos pedacinhos brancos piscando-se — o roxoxol de poente ou oriente — o deslim de um riacho. Só cismoso, ia entrado em si, em meio-sonhada ruminação9. A memória é um dos princípios fundamentais do fazer poético, a ressignificação da realidade. Os sentidos apurados de Soropita o tornam uma espécie de exemplo da percepção e sensibilidade que requer a urdidura de versos. No voltear de pensamentos, o cavaleiro reconstrói os elementos ao seu redor locando-os num foco perceptivo que mescla as sensações e sentidos do homem, suscitando uma atmosfera que funde corporalidade à essência natural do ambiente. A realidade é alçada a uma outra dimensão, na qual se externa uma nova rede de razões que irão fundamentar a existência do sertanejo, em confronto com o ditado comum e de lei geral na sociedade. Em “Dão-Lalalão”, mnemosine movimenta-se sob a regência do signo poético, marca indelével da escritura roseana, que, por sua vez, tece uma experiência estética galgada na vivência interna do Sertão. Segundo Bento Prado Jr, Soropita, desde do princípio da narrativa “é visado e descrito como uma consciência que se demora na recapitulação de sua existência: viagem interna no tempo, que se desenvolve paralelamente à viagem exterior, (...)10”. As dimensões de espaço e tempo estão de tal forma emparelhadas que se confundem as fronteiras entre uma e outra, à disposição da realidade tátil, concreta, sobrepõe-se a abstração das sensações invocadas pelas lembranças do cavaleiro. Sob esta premissa, em “Dão-Lalalão”, a fronteira entre o real e o sonho, a imaginação, é afetada pelas oscilações de temporalidade da memória, assim como, a percepção e apreensão do mundo são efetuadas no estrato interno do homem. Os elementos estilísticos como as metáforas, a sinestesia e a verbalização onomatopaica, próprios da escritura roseana, são empregados no intuito de materializar esta experiência estética que vive o protagonista de “Dão-Lalalão”. O estado de meio-sonhar de Soropita e o cerne estético de seu pensamento permitem entrever, como hipótese de leitura, uma referência ao ofício do poeta e à natureza própria da poesia em contraponto à realidade, um panorama que abrangeria desde da poesia épica de Homero até os poetas modernos. Esta hipótese que, de maneira geral, pode ser escrita como a demanda da palavra, é notada com menos veemência em “Dão-Lalalão”, mas alcança maior expressividade em outras novelas de Corpo de Baile, como “Cara-de-Bronze” e “Recado do Morro”, nas quais a palavra é o fundamento do destino das personagens, assim como, em Grande Sertão: Veredas, no qual esta hipótese metaliterária é um dos pilares de leitura do colóquio de Riobaldo com o visitante inominado, no qual o ato mesmo de narrar é eleito à boca de cena do romance, como diz o jagunço: “A qualquer narração dessas depõe em falso, porque o extenso de todo sofrido se escapole da memória11”. Este prólogo construído num primeiro momento cerca a leitura que se empreenderá sobre a narrativa, o monólogo interior de Soropita tem como centro de gravidade a figura de sua esposa, Doralda. O cenário exterior e os encalços do trajeto de vida do casal são depurados pelo enleio amoroso que envolve o imaginar do boiadeiro, que se excita no rememorar os perfumes e qualidades do corpo da cônjuge. Assim, na latência da corporalidade da memória, no âmbito poético preescrito pela experiência estética, a atsmofera do sertão é atomizada de sensualidade, pois a libido do cavaleiro o estimula a reviver as passagens eróticas de sua vida, por mais que este tente não lembrá-las. Bento Prado Jr. não deixa de observar esta característica da narrativa, entrelaçada ao estado de meio sonho do cavaleiro. 9 CB, p. 470. PRADO JR, Bento. O destino cifrado: linguagem e existência em Guimarães Rosa. In: Alguns ensaios. São Paulo: Max Limonad, 1985. p. 202. 11 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 8. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968. p. 10 (...) é o quase-sonho de Soropita, ruminação de si mesmo, que permite a ruminação da paisagem, que passa a latejar no corpo-próprio. É esse sonho que dissolve o perfil nítido das coisas, dispersando-as em poeira vaporosa, em odor e gosto, fazendo a representação se diluir em pura afecção. O espaço se faz calmo e a percepção assume estilo erótico12. A questão do amor na ficção roseana condensa uma gama de tradições epistemológicas e literárias que se articulam de maneira a instaurar o tom lírico, porque intrínseco à temática amorosa, das narrativas. Em “O amor na obra de Guimarães Rosa”, o crítico e ensaísta Benedito Nunes demonstra como o viés erótico do escritor mineiro é intrínseco à natureza poética de suas estórias. Mesmo direcionando sua atenção sobre Grande Sertão: Veredas, a sustentação teórica e a leitura proposta projetam-se ainda sobre a novela em questão, “Dão-Lalalão”, e outras obras como Primeiras estórias, pois revela peças fundamentais da constituição estética das narrativas de Corpo de Baile. Segundo o mestre paraense, a concepção de amor em Guimarães Rosa é perpassada por uma heterodoxa tradição de pensamento, na qual se delineiam três espécies distintas de amor vividas por Riobaldo: a imagem pura e apaziguadora de Otacília, a “paixão equívoca” pelo companheiro Diadorim e o voluptuoso afeto de Nhorinhá; a natureza de cada um desses amores e a maneira como se entrelaçam no romance é a problemática a nortear a interpretação de Benedito Nunes, que constrói sua hipótese central num ponto chave da tradição platônica, a dialética ascensional, na qual Eros figura como pulsão central da sublimação dos estágios sensíveis ao estrato do inteligível, do ideal. No entanto, a perspectiva torna-se heterodoxa porque se une a este conceito basilar do platonismo, o compêndio simbólico da tradição alquímica e da mística, fonte de toda uma farta rede de insígnias amorosas. a tematização do amor, na obra de Guimarães Rosa, repousa principalmente nessa idéia mestra do platonismo, colocada, porém, numa perspectiva mística heterodoxa, que se harmoniza com a tradição hermética e alquímica, fonte de toda uma rica simbologia amorosa, que exprime, em linguagem mítico-poética, situada no extremo limite do profano com o sagrado, a conversão do amor humano em amor divino, do erótico em místico. Tal seria a síntese da visão erótica da vida entranhada na criação literária de Guimarães Rosa13. Ao tratar da figura de Nhorinhá, Benedito Nunes, relaciona-a com o princípio carnal de eros, em contraposição a Otacília, moça pura e recatada que encarna a instância mais elevada do amor, o nível supra-sensível do ser, a nobreza castelã. Esta diferença ontológica, até mesmo de ascêndencia familiar, a primeira, filha da feiticeira Ana Duzuza e a outra herdeira de Sor Amadeu, dono da Fazenda Santa Catarina, no entanto, parece ser suprimida nas recordações de Riobaldo. As qualidades de cada uma confundem-se no rememorar do jagunço, mas ainda mantêm seus atributos originais, como se observa no dizer o nome de uma pequena flor branca, parecida com um lírio. De propósito plantam, para resposta e pergunta. Eu nem sabia. Indaguei o nome da flôr. “Casa-comigo...” — Otacília baixinho me atendeu. E, no dizer, tirou de mim os 12 PRADO JR, Bento.Op. cit. p. 203. NUNES, Benedito. O amor na obra de Guimarães Rosa. In: O dorso do tigre. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1976. p. 145. 13 olhos; mas o tiritozinho de sua voz eu guardei e recebi, porque era de sentimento. (...). E o nome da flôr era o dito, tal, se chamava — mas para os namorados respondido sòmente. Consoante, outras, as mulheres livres, dadas, respondem: — “Dorme-comigo...” Assim era que devia de haver de ter de me dizer aquela linda môça Nhorinhá, filha de Ana Duzuza, nos Gerais confins; e que também gostou de mim e eu dela gostei. Ah, a flôr do amor tem muitos nomes14. É na tensão entre estas personagens que se flagra uma das principais características de eros e um dos fundamentos da poiesis, a união de elementos díspares. De acordo com a matriz de pensamento platônica, a qual se remete o mestre Benedito, a sucessão de um estágio do ser a outro, necessariamente, não suprime totalmente os atributos de seu precurssor, pelo contrário, na escala dos estados do ser, a diáletica ascensional conserva as características do estágio anterior, carnal, superando-as, no sentido de completá-las, no estado de plenitude, do inteligível. Por meio deste processo diáletico, naturezas tão díspares na graduação do impulso erótico encontram uma harmonia e unicidade. Na novela “DãoLalalão” repousa em Doralda esta polaridade, a esposa de Soropita guarda ainda os encantos de sua antiga profissão em Montes Claros, mas, ao mesmo tempo, encarna o amor apaixonado das bodas do matrimônio versado no Cântico dos Cânticos e, assim, a deseja o esposo, Soropita, que a compara a um pássaro “voável” de muitas cores e brilhos, mas que é preso no vilarejo do Ão. Assim, segundo Benedito Nunes, “a harmonia final das tensões opostas, dos contrários aparentemente inconciliáveis que se repudiam, mas que geram, pela sua oposição recíproca, uma forma superior e mais completa, é a dominante da erótica de Guimarães Rosa15”. Na silhueta de Doralda, a tônica amorosa da narrativa encontra sua súmula e pulsão. De meretriz requisitada na casa de Clema ao amor incondicional que dedica a Soropita, a metamorfose de Doralda assimila-se as múltiplas formas e facetas de eros em sua dança. Em determinado momento da narrativa, ao anoitecer e se retirar ao quarto, Soropita, pede que a esposa se dispa diante dele, devagar, pois gostaria de apreciar as belezas do corpo desejado. A descrição da cena e a posição em que se fixa Doralda, aparentemente se referem ao quadro “O Nascimento de Vênus”, de Boticelli. O cheiro da aglaia e da bela-emília passava pelas gretas da janela, parava devagaroso no quarto. Doralda já não estava rideira. Só a simples, com mão e mão, se tapava os seios, o sexo. Seus olhos desciam. Seu cabelo se despenteava16. Mais que uma referência erudita ao artista italiano, esta passagem, alude à dicotomia ontológica da personagem. Vênus, deusa do amor, é reconhecida na mitologia por sua natureza selvagem e promíscua, mas ao mesmo tempo é uma divindade e como tal manifestase, também, em seu manto divino. Existem outras referências que comungam com esta perspectiva, em correspondência com seu tradutor italiano, Edoardo Bizarri, o autor aponta a relação da novela com um dos livros da Bíblia. “Diluídas, aliás, nas páginas (...), perpassa uma espécie de paráfrase do ‘Cântico dos Cânticos’17”. Provavelmente, da autoria de Salomão, este livro sapiencial celebra, numa série de poemas, o amor mútuo de um Amado e de uma Amada que se unem e se perdem, se buscam e se encontram. Seus versículos, na 14 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 8. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968. NUNES, Benedito. O amor na obra de Guimarães Rosa. In: O dorso do tigre. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1976. p. 147. 16 CB, p. 542. 17 ROSA, João Guimarães. Correspondência com seu tradutor italiano: Edoardo Bizarri. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. p. 80. 15 verdade, abduzido o sentido litúrgico, melhor denominados como versos, exaltam a fidelidade no matrimônio e retomam, de forma análoga, os temas dos cânticos nupciais árabes da Síria, da Palestina e do Egito Antigo. Apesar das interpretações alegóricas, assinaladas pela religião, de que o livro dos cânticos seria uma alegoria do amor de Cristo pela sua noiva, a Igreja, os poemas nada sinalizam à interpretação litúrgica do texto, ou ainda, a uma leitura que se refira à união mística da alma com Deus. Não há traços que sugiram uma decodificação de alegorias que estejam nas entrelinhas, pelo contrário, o sentido decorre naturalmente dos versos: é uma coleção de cantos que exaltam o matrimônio, mas o tema não é totalmente profano, visto que Deus abençoou o casamento, concebido antes como a associação harmônica e afetuosa entre o homem e a mulher do que como um meio de procriação. Na novela em questão, o trecho em que o Amado descreve sua companheira é parafraseado nas palavras de Soropita: 4:1 4:2 4:3 Como és bela, minha amada, como és bela!... São pombas teus olhos escondidos sob o véu. Teu cabelo... um rebanho de cabras ondulando pelas faldas de Galaad. Teus dentes... um rebanho tosquiado subindo após o banho, cada ovelha com seus gêmeos, nenhuma delas sem cria. Teus lábios são fita vermelha, tua fala melodiosa; metades de romã são teus seis mergulhados sob o véu18. Não simplesmente uma paráfrase do livro bíblico, a incorporação do “Cântico dos Cânticos”, a referência a Boticelli e as fontes epistemológicas apontadas por Benedito Nunes, surgem a propósito do projeto estético da novela. Cabe, antes, expor o trecho parafraseado em “Dão-Lalalão”, em seu leito, numa noite de prazeres, o cavaleiro do Ão emprega palavras semelhantes às do Amado para expressar a beleza de Doralda. Ao fôgo dos olhos de Soropita, as pontas de seus seios oscilaram. Soropita recostado, repousado, como num capim de campo. — “Tu é bela!...” O vôo e o arrulho dos olhos. Os cabelos, cabriol. A como as boiadas fogem no chapadão, nas chapadas... A boca — traço que tem a cor como as flores. Os dentes, brancura dos carneirinhos. Donde a romã das faces. O pescoço, no colar, para se querer com sinos e altos, de se variar de ver. Os doces, 18 1191. 4:1 quam pulchra es amica mea quam pulchra es oculi tui columbarum absque eo quod intrinsecus latet capilli tui sicut greges caprarum quae ascenderunt de monte Galaad 4:2 dentes tui sicut greges tonsarum quae ascenderunt de lavacro omnes gemellis fetibus et sterilis non est inter eas 4:3 sicut vitta coccinea labia tua et eloquium tuum dulce sicut fragmen mali punici ita genae tuae absque eo quod intrinsecus latet. (Vulgata) Cf. BÍBLIA. Cântico dos Cânticos. Português. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Ed. Paulus, 2000. p. da voz, quando ela falava, o cuspe. Doralda — deixava seu perfume se fazer19. Há ainda, dentro da hipótese hermenêutica proposta no princípio deste texto, um outro aspecto a ser observado. A pulsão sôfrega e universal de eros veste outras formas, quando foca-se a figura de Soropita. O tom lírico, evocado pela natureza amorosa da leitura empreendida, repousa na figura do cavaleiro, na experiência que este vive em sua viajem. O molde poético que cerca o estado ébrio do boiadeiro, no qual interagem memória e poesia, à luz da veia erótica de Guimarães Rosa, revela ainda outras feições da tessitura estética de “Dão-Lalalão”. As lembranças, rememoradas pelo cavaleiro, trazem a tona os momentos lúbricos da vida sertaneja em oposição à dura lida da boiada e do campo, mesmo contra sua vontade, Soropita se deixa envolver pelas fortes sensações que cercam o tônus sensual do sertão. Em seu interior, o desejo reavivado na oscilação do pensamento toma corporalidade por meio das sensações: Vinham através de um malhador de pasto, a poeira vaporosa do esterco bovino chamava do sangue de Soropita um latejo melhor, um tempero de aconchêgo. Com o calor que o coxim da sela lhe passava para o fundo-das-costas — um calor grosso, brando, derramável, que subia às virilhas e se espalhava e enrijava — o bem do corpo tomava mais parte no pensado, o torneio das imagens se espessava20. O revolver de pensamentos e sensações de Soropita é perpassado por diferentes tradições epistemológicas que se complementam na estética desta novela roseana. A natureza ficcional desta personagem aponta uma contigüidade entre a narrativa e a matriz de pensamento neoplatônica representada por Plotino, considerado o fundador do neoplatonismo, preocupou-se em afirmar o exercício da razão no rigor conceitual de seus escritos, posteriormente reunidos por seu discípulo Porfírio nas Enéadas. Carregado de imagens poéticas, o pensamento de Plotino é uma leitura mística do idealismo de Platão, utilizando-se da matriz dialética da transcendência, o sistema plotiniano, imprime uma dimensão cósmica ao pensamento platônico, embasando-se em seu propósito fundamental de estabelecer a relação entre o princípio mítico da realidade, o Uno, e os eventos engendrados por este. Segundo Plotino, o Uno seria o berço incognoscível e transcendente a definições que se manifesta através de sucessivas e diferentes emanações. Sendo assim, o mundo fenomênico e humano encontra-se entre duas extremidades: numa estaria o divino, o Uno primordial, na outra a matéria, onde haveria a ausência momentânea de luz divina, onde os raios parcamente iluminariam sua superfície; no intervalo entre estes dois pólos se situariam as diferentes dimensões do homem e da realidade alinhavadas em círculos concêntricos que gradativamente afastam-se do centro. A escola de Plotino visava ensinar ao homem, através da filosofia, a integrar-se numa realidade mais abrangente, através de uma experiência transpessoal que, em último grau, resultaria na união mística do homem com o Uno, assim, o intelecto pouco valeria, seria pouco útil e pleno, diante da experimentação supra-sensorial. Das sete epígrafes que constam em Corpo de Baile (1956), quatro contêm as palavras deste filósofo. Em “Dão-Lalalão”, a empreitada de Soropita alcança diferentes dimensões relativas à natureza humana, além da mudança ordinária de status e figura social, de meretriz a esposa e de boiadeiro a minifundiário, a expressividade erótica da novela molda-se na dimensão sensitiva do homem, a estância mais afastada do Uno, como o quer Plotino, no entanto, semelhante ao processo dialético de Platão, eros age como pulsão à ascensão da alma 19 20 CB, p. 544. CB, p. 484. a um nível mais próximo da natureza divina. Conforme afirma o mestre Benedito Nunes, “Essa vontade de restituição manifesta-se no élan amoroso e na ascese mística, duas vias de retorno que se equivalem, pois o homem tenta vencer, por meio delas, a alteridade, identificando-se com outrem no amor ou com a divindade, na culminância do êxtase21”. Todavia, nesta novela roseana, o contemplativo não foge ao sensível; a paisagem sertaneja e a beleza de Doralda, principais focos de visão, são antes sentidos na corporalidade do ser envolvido numa atmosfera erotizada e abstrata, entre o onírico e o real, e posteriormente expressos numa linguagem poética, que atinge uma imagem algo epifânica no momento em que Soropita observa Doralda no meio da sala, a cena delineada em seu pensamento é uma imagem grandiosa e violenta, uma visão próxima aos signos e ao êxtase divinos. Soropita, podia se penetrar de ânsias, só de a olhar. Sobre de pé, no meio da sala, era uma visão: Doralda vestida de vermelho, em cima das Sete Serras, recoberta de muitas jóias, que retiniam, muitas pérolas, ouro, copo na mão, copo de vinhos e ela como se esmiasse e latisse, anéis de ouro naquelas especiosas mãos, por tantos sugiladas tanto, Doralda vinha montada numa mula vermelha, se sentar nua na beira das águas da Lagoa da Laóla, ela estava bêbada; e em volta aqueles sujeitos valentões, todos mortos, ele Soropita aqueles corpos não queria ver...22 Na veia erótica de Guimarães Rosa a idéia chave do platonismo, a ascensão dialética, e a concepção mística neoplatônica, de maneira heterodoxa confluem às teses do escritor italiano Dante Alighieri. Em primeiro lugar, deve-se ressalvar a diferença entre a postura teórica de Aristóteles, sustentáculo das palavras do italiano, e a de Platão e Plotino. Para estes últimos, a alma é uma entidade mediadora, pois reflete em parte a unidade primordial do universo, a qual anseia retornar, mas, ao mesmo tempo, coabita com a fragmentariedade do plano sensível; para aquele a alma é e possui em si todos os elementos da experiência sensitiva e do plano inteligível. Contudo, na ficção roseana a duplicidade da natureza da alma é retratada em toda sua plenitude, ou seja, na novela em questão perfilam-se as diferentes facetas da experiência amorosa. Dante Alighieri, no Il Convívio, ao examinar a natureza do homem em relação ao amor, personalizado na sua musa inspiradora, Beatriz, alegoria da Sabedoria, embasado nas doutrinas teológico-filosóficas do pensamento escolástico e na natureza da relação entre as causas e os efeitos analisada por Aristóteles, o autor da Divina Comédia, afirma que a natureza humana descende de Deus e, por este motivo, visto que Deus é a causa prima do universo, o homem é capaz de reunir todas as espécies de amor: do carnal e sensível ao espiritual e inteligível. Pois todo efeito não pode conter algo a mais que a sua respectiva causa, mesmo que ao homem não seja possível assemelhar-se a Deus, pela nobreza de sua origem divina, a natureza humana é capaz de sentir e reter as diferentes facetas do amor e sofrer as metamorfoses proporcionadas pela pulsão universal de eros: “E visto que o homem (embora uma única substância seja tôda sua forma) pela sua nobreza de cada uma destas coisas, pode ter todos êstes amôres, e todos os tem23”. A concepção de amor que domina na elaboração literária de Guimarães Rosa possui, sem dúvida, afinidades com os versos da Divina Comédia e com os tratados do Il Convívio. O teor filosófico contido na viagem, de Soropita ao Ão, de Dante ao Paraíso, é perpassado pelo mesmo conceito platônico da dialética ascensional, no entanto, este é traduzido em diferentes 21 NUNES, Benedito. O amor na obra de Guimarães Rosa. In: O dorso do tigre. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1976. p. 153. 22 CB, p. 533-534. 23 ALIGUIERI, Dante. O Banquete (Il convívio). Trad. Pe.Vicente Pedroso. São Paulo: Ed. das Américas, s.d. p. 186 : “E peroche l’ uomo (avvegnachè una sola sustanza sia tutta sua forma) per la sua nobiltà a in sè della natura di ognuma di queste cose, tutti questi amori puote avere, e tutti gli ha”. p. 413. dimensões. Os conceitos de Platão, o sistema de Plotino, entre outras referências filosóficas e, também, metafísicas, relacionadas ao amor e a outros temas são reelaboradas na produção, ao mesmo tempo, tradução artística de Guimarães Rosa que é direcionada ao microcosmo do homem, este sim, o principal tema da ficção roseana, fascinada pelo mítico e universal da vida; diferentemente do pensamento de Dante, ao conceber os cantos da Divina Comédia e a exposição no Il Convívio à luz do ideal cristão de ascensão ao Paraíso e da teologia escolástica do século XIII, em que eros se despe de sua sensualidade e configura-se como o amor ágape da beatitude, ou ainda, como virtude normativa para a compreensão e acesso a Sabedoria. Esta diferença fundamental entre as obras é, sumariamente, expressa na natureza das suas personagens femininas. Beatriz é a alegoria da Sabedoria, uma beleza de luz e matéria divina que apaixona o poeta italiano e estimula-o no árduo trajeto que percorre pelo Inferno, Purgatório e Paraíso; já Doralda é uma beleza que tem cheiro, suor e calor, é a personificação da noiva, da Sulamita, da amada fiel ao laço conjugal, mas, em segredo, desejada pela lascívia promiscua da prostituta. Outro aspecto relevante é a virilidade que perpassa a novela, em diferentes momentos uma série de valores tipicamente varonis são postos em destaque, a perda do respeito e o despautério perante os outros homens e a comunidade estão diretamente associados ao fraquejo masculino e conseguinte adultério da esposa, a estória do seo Quincôrno, mais também com a perda do prazer e do desejo pela vida, como bem o demonstra a reação de Soropita quando fraquejara. Tinha não podido, não, leso, leso, e forcejava por mandar em si, um frio que o molhava, chorava quase, tascava os freios. Doralda, bôazinha, dizia que às vezes era mesmo assim, não tinha importância, que nenhum homem não estava livre de padecer um dissabor desse, momentão; passava as mãos nele, carinhosa, pegava nele, Soropita, como se brinca. Mas ele não aceitava de ficar ali, fechando os olhos, num aporreado inteiro, pavoroso fosse mandraca, podia durar sempre assim, mas então ele suicidava; Do ambiente tranqüilo e benfazejo no recordar as belezas da amada a novela assume uma atmosfera sinuosa e tempestiva, não se pode desconsiderar que o matrimônio de Soropita e Doralda não é uma situação aceitável para a sociedade, por isso eles se refugiam no vilarejo do Ão e há uma tensão quando algo pode vir a delatar o passado como Sucena, a desejada da rua dos Patos, e do homicida Surrupita. Tudo que o Ão representa para Soropita é ameaçado no encontro, a algumas léguas de casa, com o comboio de vaqueiros que segue com Dalberto, antigo e apreciado amigo do ex-boiadeiro. Cercado por aqueles homens, com a exceção daquela amizade, desconhecidos, Soropita, aguça seus sentidos e rapidamente observa-os para uma avaliação da situação. Mas, de antemão, cria antipatia pelo negro, pois este carrega uma ave ensangüentada; avesso a sangue desgostara-o a cena. O preto, com espingarda e capanga, remexia: tinha ali uma codorna, sapecada de pólvora, preta e sangrenta; Soropita desviou o olhar. Mas vigiava-os, de sosla: os em volta, mais afastados, fechando meia roda. O rapaz no cavalinho queimado, com chapéu-de-couro redondo, do feitio de Carinhanha. Um de roupa clara. Um de terno de couro, novo, dos comprados em Montes Claros. Gente de paz, em seu serviço, mas gente bem armada.24 24 CB, p. 494. Acompanhado de Dalberto, um pouco à frente dos outros, Soropita, segue o restante do caminho conversando com o amigo, muito vivo, bom prosador, a conversa se estende aos tempos de condutor de boiadas, Dalberto, relembra os limites e os nomes das fazendas e dos seus respectivos donos, dos prazeres de Montes Claros, da afeição que tinha por uma das meninas, lembra estórias insólitas e conta anedotas, pergunta sobre o antigo e o novo, quer saber o que ocorrera depois de tantos anos decorrido. Soropita se sente desconfortável com sua posição, tinha certeza que os outros falavam dele na traseira. Mesmo assim, por bons modos, convida-os para jantar em sua casa. Dalberto aceita, despensa os vaqueiros do convite e recomenda que o encontrem, pela manhã, em outro local, no Azedo. Mas, perto de casa, Soropita é assaltado por uma dúvida: Só o triz de um relance, se acendeu aquela idéia, de pancada, ele se debateu contra o pensamento, como boi em laço; como boi cai com tontura do cabelouro, porretado atrás do chifre. Senseou oco, o espírito coagulado, nem podia doer de pensar em nada, sabia que tinha o queixo trêmulo, podia ser que ia morrer, cair; não respirava. (...) Mas a idéia o sufocava: quem sabe o Dalberto conhecia Doralda, de Montes Claros, de qualquer tempo, sabia de onde ela tinha vindo, a vida que antes levara?25 Da calmaria que vinha sendo, até o momento, a viagem transtorna-se em horrível confusão e dualidade. A dúvida, surgida às portas de casa, dispõe o pensamento de Soropita em volteios intermináveis, por um lado, nada lhe seria mais desagradável do que assistir à ruína da harmonia que encontrou no Ão, ver seu nome jogado na lama, se o amigo delatasse o passado de Doralda em Montes Claros; por outro, tem muito apreço por Dalberto e não se dispõe de forças para erguer mão de morte contra aquela querida amizade, todavia, de tudo é capaz para defender seu pequeno éden. De forma análoga a Divina Comédia, Soropita encontra aqui, ao seu modo, o inferno dos lussuriosi, que tem o desfecho apoteótico, após a fatídica noite do jantar em que Dalberto é absolvido da sentença mortal do amigo. No entanto, paira ainda a insegurança e o rancor contido de Soropita sobre o negro Iládio, que na sua imaginação violenta Doralda. Na manhã sequinte, o grupo que viera com Dalberto aparece e reclama da ausência do chefe, este partira cedo e, por outro caminho, em decidida resolução, toda aquela vida de boiadeiro foi deixado para trás, juntamente com o bando. Arredio, mas sem manifestar maior comoção, o sertanejo recebe-os e até oferece café, mas o encontro é rápido. No último instante, concentrado na figura do negro, que tanto lhe provocara asco e rancor, Soropita ouve deste vaqueiro umas palavras não compreendidas, que são tomadas como injúrias por deduzirem uma familiaridade não aceitável. “E falou uma coisa? — falou uma coisa — que não deu para se entender; e que seriam umas injurias... 26”. A partir deste ponto, quando o exboiadeiro perde o controle da situação e sente-se carregado por um estouro de maus pensamentos, Soropita vive o seu inferno. O estado de espírito do sertanejo torna-se semelhante à condição das almas condenadas ao segundo círculo do Inferno, cuja condenação é descrita no “Canto V” da Divina Comédia, no inferno dos luxuriosos. Mas, o sofrimento no espírito, descido um funil estava nas profundezas do demo, o menos, o diabo rangendo dentes enrolava e repassava, duas voltas, o rabo na cintura? A essa escuridão: o sol calasse a boca... Levantou-se. — “O preto me ofendeu, esse preto me insultou!” 27. 25 CB, p. 515. CB, p. 553. 27 CB, p. 553. 26 O sertanejo lança-se no segundo degrau do funil infernal, na entrada onde se encontra Minós, o demônio grotesco que ouve as confissões dos pecadores e os designa aos respectivos círculos do inferno, de acordo com o número de vezes que se envolve na longa cauda. Così discesi del cerchio primaio giù nel secondo, che men loco cinghia e tanto più dolor, che punge a guaio. 1 Stavvi Minòs orribilmente, e ringhia: essamina le colpe ne l' intrata; giudica e manda secondo ch' avvinghia. 4 Dico che quando l' anima mal nata li vien dinanzi, tutta si confessa; e quel conoscitor de le peccata 7 vede qual loco d' inferno è da essa; cignesi con la coda tante volte quantunque gradi vuol che giù sia messa28. 10 A condenação dos lussuriosi consiste num eterno redemoinho violento que, a toda hora, os lança contra as rochas, entre as blasfêmias contra a ordem divina as almas condenadas têm por única e incerta esperança um momento de alívio em meio ao perpétuo sofrimento. Espécie de pena que reflete o ímpeto e desnorteio natural aos que se entregam plenamente às paixões humanas. La bufera infernal, che mai non resta, mena li spirti con la sua rapina; voltando e percotendo li molesta. ................................. di qua, di là, di giù, di sù li mena; nulla speranza li conforta mai, non che di posa, ma di minor pena29. 31 43 28 ALIGHIERI, Dante. Divina Comédia. Inferno V. Trad. de J. P. Xavier Pinheiro. São Paulo: Martin Claret, 2004. p. 45. 1 Desci destarte ao circulo segundo, Que o espaço menos largo compreendia, Onde o pungir da dor é mais profundo. 4 Lá estava Minos e feroz rangia: Examinava as culpas deste a entrada, Dava a sentença como ilhais cingia: 7 Ante ele quando uma alma desditada Vem, seus crimes confessa-lhe em chegando, Com perícia em pecados consumada. 10 Lugar no inferno, Minos, lhe adaptando, Do abismo o círculo arbitra, a que pertença, Pelas voltas da cauda graduando. 29 ALIGHIERI, Dante. Divina Comédia. Inferno V. Trad. de J. P. Xavier Pinheiro. São Paulo: Martin Claret, 2004. p. 46. 31 Da tormenta o furor, nunca abatido, Soropita é envolvido na ventania maligna e no estorvar de grunidos semelhantes ao de bandos de estorninhos, segundo descreve Dante, que o transtorna em rodeios intermináveis envolvendo-o numa sensação de desespero e morte que o impele, em armas, contra a provável ofensa de Iládio. Assim, eros manisfesta sua faceta mais feroz e labiríntica, a violenta graça do amor torna o, até então, estado de meio sonhada ruminação numa caudalosa torrente de augouros. Vento mau o sacudia, jogava-o, de cá, de lá, em pontas de pedras, naquele trovôo de morte, gente com gritos de dores, chorando e falando, muitos guinchos redobrados, no vento varredor?30. No segundo círculo do Inferno, Dante reconhece a puniçao àqueles que submeteram as faculdades da razão aos apetites do desejo e encontra diversas personagens da Antiguidade, Helena, Páris, Aquiles, entre outras, mas, chama sua atenção um casal que mesmo em tamanho tormento se mantém unido, Francesca e Paolo Malatesta, os cunhados adúlteros que tiveram o amor revelado por meio da leitura do romance de Lancelot e Guinevere, tal é a compaixão e piedade que a história do casal desperta no poeta italiano que este cai “come corpo morte cade”. Apesar da condenação infernal, perdura ainda o elo afetivo entre as duas almas, é esta aliança eterna que comove o poeta, mesmo num ambiente tenebroso e atormentador é possível encontrar um vestígio da beleza amorosa. Em “Dão-Lalalão”, o belo é expresso e admirado nas suas diferentes dimensões tanto na experiencia sensível, no tato do corpo, quanto na visão contemplativa, no mirar dos olhos, a estética roseana busca por meio de uma linguagem elaborada que exprime a corporalidade do ser e das coisas projetar uma vivência e representação poética do homem e do mundo. Sendo assim, em conluio com o que experimentou o italiano em sua viagem metafísica, em determinado trecho de “Dão-Lalalão”, Soropita divaga: “E ainda mais forte sutil do que o pedido do corpo, era aquela saudade sem peso, precisão de achar o poder de um direito bonito no avesso das coisas mais feias31”. A obra ficcional de João Guimarães Rosa enfrenta um desafio que se impôs a toda grande obra literária: interpretar a vida ou um recorte desta em toda sua plenitude. Para tanto, no conjunto da obra roseana é possível ler-se uma concepção estética do mundo e do homem. A dimensão mítica, obscura e essencial, da realidade e da natureza humana, mais também a experiência sensível de mundo consumam o horizonte no qual se projeta a novela “DãoLalalão”, assim como, a obra em que está inserida, Corpo de Baile. Esta projeção ficcional e poética aproxima-se dos versos do grande poeta alemão Goethe, em seu “Palavras-mães. Poema Órfico” (Urworte. Orphisch) de 1817, no qual está concentrado a maturidade e o melhor da sabedoria destes poeta. Nas cinco estâncias que marcam as estrofes, segundo as palavras de Goethe, “Procurou-se concentrar aqui e apresentar sob forma lacónica, poéticacompendiosa, o que nos foi transmitido das antigas e modernas doutrinas órficas32”. Contrariado pelas amarras da tyche, os labirintos da casualidade, daímon, a individualidade, encontra amparo no seio amoroso de eros, em que “está incluído tudo que se possa imaginar, Perpetuamente as almas torce, agita, Molesta, em seus embates recrescido. .............................................. 43 Ao capricho do vento, que as trazia. De pausa não, de menos dor a esp’rança Conforto lhes não dá nessa agonia. 30 CB, p. 553. 31 CB, p. 509. 32 QUINTELA, Paulo. Obras Completas — Traduções II. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997. p. 248. desde a mais leve inclinação à mais apaixonada loucura; aqui se unem o demónio individual e a tyche sedutora33”, assim o élan sensual requer “abraçar um segundo ser como a si mesmo com uma inclinação eterna, indestrutível. (...); duas almas devem unir-se num só corpo, dois corpos numa só alma,34” para, assim, viver-se a plena liberdade e o prazer da vida. Ou então, aquilo que Doralda tinha falado, mais de uma vez, muito falava: — “Bem, eu acho que só ficava sossegada de tu nunca me deixar, era se eu pudesse estar grudada em você, de carne, calor e sangue, costurados nós dois juntos...” Isso, ele gostava. Sem Doralda, nem podia imaginar — era como se ele estando sem seus olhos, se perdido cego neste mundo. Na estância órfica de eros vislumbram-se alguns aspectos que perpassam por toda a narrativa, a tensão dialética entre extremos opostos e a hesitação de pensamento podem ser referenciados por este poema, assim como, alguns outros elementos que funcionam como denominadores comuns numa leitura comparativa. , O AMOR E a chama vem! — Do céu se precipita, De lá onde ele subira do deserto antigo, Eis se aproxima em asa aérea, e infinita Primavera traz na fronte e peito amigo; Parece ora fugir, ora volta, ora hesita, E na dor há prazer, mel e medo traz consigo. Muito coração no geral se dissipa, Mas o mais nobre só a um se dedica35. Sendo assim, o poema órfico de Goethe oferece, em certa medida, um sumário poético de alguns elementos da novela “Dão-Lalalão”. A obra roseana, rica nas mais variadas referências literárias, filosóficas, entre outras, sustentada por um linguagem elaborada, edifica ficcionalmente uma concepção de mundo que abarca os paradoxos da natureza humana diante da beleza e do místerio da vida. PALAVRAS-CHAVE Guimarães Rosa, “Dão-Lalalão”, projeto estético. 33 Idem, ibidem. p. 249. Idem, ibidem.p. 249. 35 Idem, ibidem. p. 136. Erôs, Liebe Die bleibt nicht aus ! — Er stürzt vom Himmel nieder, Wohin er sich aus alter Öde schwang, Er schwebt heran auf luftigem Gefieder Um Stirn und Brust den Frühlingstag entlang, Scheint jetzt zu fliehn, vom Fliehen kehrt er wieder, Da wird ein Wohl im Weh, so sü un bang. Gar manches Herz verchwebt im Allgemeinen, Doch widmet sich das edelste dem Einem. 34 AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar a Deus, por me conceder a dádiva da vida. Ao Prof. Dr. Sílvio Holanda, cuja orientação sábia ilumina os caminhos de meu aprendizado. Aos meus pais, pela confiança e educação. Aos meus amigos Prof. Everton Teixeira, Prof. Carlos Dias, Francisco Ewerton e Ingred Pereira pelos sorrisos e pela felicidade no compartilhar um pouco desta longa saga acadêmica. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALIGHIERI, Dante. Divina Comédia. Inferno V. Trad. de J. P. Xavier Pinheiro. São Paulo: Martin Claret, 2004. ALIGHIERI, Dante. O Banquete (Il convívio). Trad. Pe.Vicente Pedroso. São Paulo: Ed. das Américas, s.d. BÍBLIA. Cântico dos Cânticos. Português. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Ed. Paulus, 2000. NUNES, Benedito. O amor na obra de Guimarães Rosa. In: O dorso do tigre. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1976. PRADO JR, Bento. O destino cifrado: linguagem e existência em Guimarães Rosa. In: Alguns ensaios. São Paulo: Max Limonad, 1985. p. 195-226. QUINTELA, Paulo. Obras Completas — Traduções II. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997. ROSA, João Guimarães. Corpo de Baile. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. 2v. ROSA, João Guimarães. Corpo de Baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956. 2v. ROSA, João Guimarães. Correspondência com seu tradutor italiano: Edoardo Bizarri. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 8. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1972. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956. 594p.