O desenho infantil e a construção da significação

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O desenho infantil e a construção da significação
O desenho infantil e a construção da significação: um estudo de caso
(Children’s drawing and the construction of meaning: case study)
Laïs de Toledo Krücken Pereira
Resumo: A premissa de que a criança desenha menos o que vê e mais o que
sabe de um objeto é um ponto de concordância entre diferentes concepções
teóricas sobre o desenvolvimento do desenho. O desenho, entre o jogo
simbólico e a imagem mental, subordina-se às leis da conceituação e da
percepção (PIAGET, 1973). A percepção do objeto corresponde à atribuição de
sentido dada pela criança, constituindo-se realidade conceituada, e não material
(VYGOTSKY, 1988). O presente trabalho focalizou o processo de figuração na
criança pré-escolar. Foi realizado um estudo de caso longitudinal, de caráter
naturalístico, sendo o sujeito um menino com 4 anos e 3 meses ao início da
coleta de material. As fontes de evidência foram constituídas pelo produto e pela
observação do comportamento verbal durante o processo. A análise do material
mostrou a evolução das figuras a partir das características valorizadas pelo
sujeito, reafirmando a premissa que a criança desenha o que sabe dos objetos,
e a necessidade do acompanhamento do processo de elaboração para
interpretação do desenho produzido, corroborando resultados mostrados por
Ferreira (1998). O resultado aponta a importância de estudar o processo de
elaboração do desenho (e não só o produto final), incorporando o enunciado
verbal concomitante ao traçado como condição de interpretação. Sugere a
importância da atividade de desenhar para a elaboração conceitual dos objetos e
eventos pelas crianças nessa faixa etária. Neste sentido, a atuação do educador
é fundamental no apoio ao processo. Pretende-se estimular uma discussão
sobre a intervenção do professor neste contexto.
Palavras-chave: desenho infantil, processo semiótico, desenvolvimento
cognitivo, educação de educadores, desenvolvimento inicial da criança
Introdução
Importante característica do desenho infantil é a de que representa mais o
que a criança sabe de um objeto do que o que ela vê. Dessa maneira, reflete a
imagem e conceito do objeto, portanto recorta seu significado. Se o desenho
expressa, assim, o conhecimento que a criança tem sobre um objeto, seria o
inverso verdadeiro? O desenhar contribui para a construção do conceito do
objeto? Qual seu papel no processo de construção da significação? Essas
questões deram origem ao presente trabalho.
Primeiramente são apresentadas algumas considerações teóricas sobre o
desenho da criança do ponto de vista do processo cognitivo e semiótico.
Este referencial sustentou a condução de estudo de caso longitudinal. O
objetivo do estudo foi acompanhar, em material arquivado, um recorte do
cotidiano da construção da representação gráfica de um objeto por uma criança
de 4 anos.
Por fim, reforça-se o papel do desenho para o desenvolvimento infantil,
evidenciado-se a importância da atuação do educador no apoio ao processo.
Desenho, manifestação semiótica
O desenho é uma das manifestações semióticas, isto é, uma das formas
através das quais a função de atribuição da significação se expressa e se
constrói. Desenvolve-se concomitantemente às outras manifestações, entre as
quais o brinquedo e a linguagem verbal (PIAGET, 1973).
A evolução do desenho compartilha o processo de desenvolvimento,
passando por etapas que caracterizam a maneira da criança se situar no mundo.
Segundo Piaget, a forma de uma criança conhecer o objeto, passa por
significativas transformações em sua evolução, no processo de adaptação ao
meio que se dá por sucessivos movimentos de equilibração. Inicialmente,
predomina a ação nas relações com o objeto. É o período sensório-motor que se
estende até os dezoito meses aproximadamente. Na fase seguinte, a ação é
substituída pela representação. Nessa etapa, pré-operacional ou simbólica, a
criança ainda não opera mentalmente sobre os objetos, o que ela só conseguirá
fazer a partir de aproximadamente sete anos. O período simbólico se caracteriza
pelo desenvolvimento da capacidade de representação, em suas diferentes
manifestações - a imitação, o brinquedo a imagem mental, o desenho e a
linguagem verbal. Essa capacidade é fundamental para a continuidade do
processo de desenvolvimento: torna possível, no período operatório, a
transformação exclusivamente mental do objeto; no período formal, já na
adolescência, possibilita a abstração.
O desenho, manifestação semiótica que surge no período simbólico,
evolui em conjunto com o desenvolvimento da cognição. Compartilha mais
intimamente, por um lado, as fases da evolução da percepção e da imagem
mental, subordinando-se às leis da conceituação e da percepção. Por outro lado,
compartilha a plasticidade do brincar, constituindo-se em meio de expressão
particular, isto é, “...um sistema de significantes construído por ela e dóceis às
suas vontades” (PIAGET, 1973, p. 52).
O desenho é precedido pela garatuja, fase inicial do grafismo.
Semelhantemente ao brincar, se caracteriza inicialmente pelo exercício da ação.
O desenho passa a ser conceituado como tal a partir do reconhecimento pela
criança de um objeto no traçado que realizou. Nessa fase inicial, predomina no
desenho a assimilação, isto é o objeto é modificado em função da significação
que lhe é atribuída, de forma semelhante ao que ocorre com o brinquedo
simbólico. Na continuidade do processo de desenvolvimento, o movimento de
acomodação vai prevalecendo, ou seja, vai havendo cada vez mais aproximação
ao real e preocupação com a semelhança ao objeto representado, direção que
pode ser vista também no jogo de regras (PIAGET, 1971; 1973).
Outras condições do desenho são destacadas por Vygotsky. Uma delas é
a relativa ao domínio do ato motor. O desenho é o registro do gesto, constituindo
passagem do gesto à imagem. Essa característica e a referente à percepção da
possibilidade de representar graficamente configuram o desenho como precursor
da escrita. A percepção do objeto, no desenho, corresponde à atribuição de
sentido dada pela criança, constituindo-se realidade conceituada, e não material.
Inicialmente o objeto representado é reconhecido após a realização do desenho,
quando a criança expressa verbalmente o resultado da ação gráfica, identificada
ao objeto pela sua similaridade. Momento fundamental de sua evolução se
constitui na antecipação do ato gráfico, manifestada pela verbalização, indicando
a intenção prévia e o planejamento da ação (VYGOTSKY, 1988).
Vygotsky comenta a existência de “certo grau de abstração” na atitude da
criança que desenha, ao liberar conteúdos da sua memória. Reconhece o papel
da fala nesse processo, afirmando que a linguagem verbal é a base da
linguagem gráfica constituída pelo desenho. Afirma: “...os esquemas que
caracterizam
os primeiros desenhos infantis lembram conceitos verbais que
comunicam somente os aspectos essenciais dos objetos” (op. cit., p. 127).
Em relação ao desenvolvimento da linguagem escrita, o autor propõe
“...que o brinquedo de faz-de-conta, o desenho e a escrita devem ser vistos
como momentos diferentes de um processo essencialmente unificado...” (op.
cit., p.131), motivo para que “...brincar e desenhar deveriam ser estágios
preparatórios ao desenvolvimento da linguagem escrita.” (op. cit., 134).
Embora focalizando diferentes aspectos do desenho, as concepções dos
dois autores, a saber, Piaget focalizando o sujeito do ponto de vista epistêmico e
Vygotsky contemplando-o do ponto de vista social, se aproximam em relação à
importância do desenho no processo de desenvolvimento da criança e à
característica de que a criança desenha o que a interessa, representando o que
sabe de um objeto.
Essas proposições básicas são compartilhadas por outros pesquisadores
interessados no desenho infantil. Entre esses, pode-se destacar Read (1977)
que, focalizando o papel das imagens visuais para o desenvolvimento do
pensamento, identifica no desenho elo entre a percepção e a imaginação, pois
possibilita sua integração em forma concreta, passível de sucessivas
modificações. Lowenfeld (1977) é outro autor que ressalta a importância do
desenho para o desenvolvimento da criança, seja como veículo de autoexpressão ou como de desenvolvimento da capacidade criativa e da
representativa.
Derdyk (1989) salienta o poder de evocação - e interpretação - da
imagem visual. O desenho, forma de pensamento, propicia oportunidade de que
o mundo interior se confronte com o exterior, a observação do real se depare
com a imaginação e o desejo de significar. Assim, memória, imaginação e
observação se encontram, passado e futuro convergindo para o registro da ação
no presente. Como pensamento visual, o desenho é estímulo para exploração
do universo imaginário. É, também, instrumento de generalização, de abstração
e de classificação. A autora ressalta ainda que o desenhar envolve diferentes
operações mentais, selecionar e relacionar estímulos, simbolizar e representar,
favorecendo a formação de conceitos.
Também
pesquisando
o
papel
do
desenho
na
construção
de
conhecimento, Pillar (1996, p. 51) afirma que “... ao desenhar, a criança está
inter-relacionando seu conhecimento objetivo e seu conhecimento imaginativo”.
E, simultaneamente, “...está aprimorando esse sistema de representação
gráfica”. Comparando diferentes procedimentos de desenhar, a autora (op. cit.,
p 214) ressalta a importância do desenho espontâneo para a compreensão das
idéias das crianças pesquisadas, pois “...permitiu que se coletasse dados sobre
a natureza e função do desenho durante o processo de apropriação dessa
linguagem”.
Moreira (1997), analisando as implicações relativas à escolarização,
salienta a necessidade do respeito ao desenho infantil não apenas pelo espaço
de liberdade de expressão que constitui, como também pela sua condição de
linguagem. Ressalta a importância da escola, em particular a pré-escola, evitar
que “...do desenho-certeza se passe à certeza de não saber desenhar” (p. 51),
tendo em vista o papel do desenho no processo de desenvolvimento humano.
Propõe a observação atenta, eventualmente envolvendo até mesmo a posição
espacial que permita a adequada visibilidade, como única
forma de
compreensão do desenho da criança, evitando interpretações precipitadas e
redutoras.
Como ressalta Ferreira (1998), a interpretação do desenho da criança
depende do olhar do intérprete. Afirma a autora que “o desenho da criança é o
‘lugar’ do provável, do indeterminado, das significações” (p. 105, destaque no
texto). Daí emerge a importância de se considerar o primeiro desses intérpretes,
a própria criança, para que se possa compreender o seu significado.
O “lugar” do desenho, configurando espaço fundamental do mundo infantil
de múltiplas dimensões, é destacado por Renso, Castelbianco e Vichi (1997) em
artigo sobre o “pensamento gráfico”. Ressaltam os pesquisadores que o
desenho da criança deve ser considerado não apenas como uma modalidade de
expressão ou de representação da realidade, mas também como o resultado de
atividade intencional envolvendo aspectos cognitivos e emotivos no seu ajuste à
realidade com a qual convive. Para a compreensão do desenho infantil, é
necessário que se acompanhe o processo de sua produção (RENSO,
CASTELBIANCO E VICHI, 1997, p. 57):
A análise dos processos permite focalizar a atenção na
construção do traçado gráfico, ao momento criativo no qual o
adulto está no espaço da criança, aos momentos significativos
que levaram aquele produto e às motivações que induzem a
desenhar aquelas formas específicas preferencialmente a
outras.
Estudo de caso: o prédio
O presente trabalho é um estudo de caso longitudinal, de caráter
naturalístico, sendo o sujeito Marcos, menino com 4 anos e 3 meses ao início da
coleta de material. O objeto temático dos desenhos foi “prédio”, isto é, edifício de
vários andares.
a) metodologia
As fontes de evidência foram constituídas pelo produto e pela observação do
comportamento verbal durante o processo. A coleta de dados resultou da
seleção do registro de material emergente em situações do cotidiano familiar,
focalizando o tema “prédio”. A análise dos dados foi realizada a partir dos
pressupostos construtivistas.
b) contextualização
Marcos é o terceiro filho de família que, na época de elaboração dos
desenhos, residia em casa térrea, isto é com um único pavimento, como a
maioria das construções da pequena cidade brasileira Tremembé, no interior de
São Paulo. Dessa maneira, a vivência de M em relação a edifícios de vários
andares era restrita a situações de visitas a parentes residentes em cidades
maiores, geralmente nas férias escolares. Numa dessas ocasiões, a família ficou
hospedada em um apartamento no oitavo andar de um edifício no centro de uma
grande cidade (Curitiba, Paraná). No retorno ao dia-a-dia familiar, a criança se
mostrou profundamente impressionada, manifestando isto numa série de
desenhos. Desenhar era atividade habitualmente realizada pela criança, em
companhia dos irmãos e da mãe. As crianças utilizavam geralmente o verso de
grandes folhas de papel (usado originalmente para impressora e reservado para
rascunho), que eram dobradas ao meio para o armazenamento. Às vezes as
folhas eram divididas em duas.
c) coleta e seleção de dados
O material coletado foi selecionado de grande conjunto, elaborado por
vários anos. Selecionou-se para este estudo desenhos produzidos em cinco
momentos. O primeiro momento, em agosto de 1988, logo após o retorno da
viagem, marca o início da apresentação do tema. O segundo momento apareceu
em novembro, 3 meses depois. O terceiro e o quarto no mês seguinte. O quinto
momento surgiu em setembro do ano seguinte, portanto nove meses depois.
Assim, acompanhou-se o processo durante 13 meses.
O desenho de uma
casa, realizado oito meses depois, em maio do ano seguinte, foi agregado ao
material com objetivo de comparação de formas.
d) resultados
A análise foi estruturada em cinco momentos, relatados a seguir.
O primeiro momento (15/08/88) é marcado pelo ‘presença’ do elevador.
O desenho foi realizado na face já utilizada do papel, após a utilização da face
em branco, cujo desenho (1.1), realizado sem comentário pela criança, é o que
segue.
Figura 1.1
Observa-se nessa figura (1.1) a ocupação vertical do papel e a
formatação retangular. Esse desenho não foi acompanhado por verbalização. A
sua identificação como pertencente à série foi efetivada no momento da
elaboração desta análise, ao se constatar a semelhança com desenhos
posteriores e reconhecer o movimento para a figura a seguir.
Na segunda figura (1.2) o traçado foi verbalizado, permitindo a
identificação do interesse. Esse foi o momento que possibilitou a seleção das
imagens utilizadas como material deste estudo, sendo a expressão verbal
fundamental para o reconhecimento do objeto pelo outro.
O desenho 1.2 foi elaborado sobre as marcas pré-existentes no papel.
Cabe lembrar a disponibilidade de outras folhas de papel, o que indica a escolha
da criança no uso do material.
Figura 1.2
O traçado foi realizado nos espaços entre a escrita pré-existente no papel,
iniciando-se no espaço vertical central. Começa com movimento circular que
sobe e se prolonga por toda a folha, em direção à esquerda e depois à direita.
Como se mostra registrado em alguns pontos do desenho, ao elaborar o
desenho a criança falou, acompanhando o traçado: (1) elevador, ao iniciar o
traçado; (2) subiu, no alto da primeira linha; (3) desceu, após movimento
descendente à esquerda; (4) subiu até aqui, após movimento ascendente à
direita, finalizando. Nesse desenho pode-se reconhecer a referência ao
movimento precedendo a preocupação com a representação da forma.
O segundo momento, três meses após (3/11/88), é composto pela
imagem que se segue. O desenho (2.1) foi realizado a partir de imagem de
prédio solicitada à irmã mais velha.
Figura 2.1
Nesse desenho, realizado em canto de papel já utilizado, M desenhou
três formas fechadas, de tamanho compatível com a figura do prédio ao qual
eram ligadas por linhas. Enquanto desenhava, falou:
Elevador de ir para baixo. (1)
Elevador de ir para cima. (2)
Pode-se
reconhecer
a
referência
ao
aspecto
funcional,
aparentemente com dissociação das direções dos movimentos possíveis do
objeto representado, para cima e para baixo. O objeto, “elevador” (ascensor)
aparece inserido em contexto, “prédio”, que a criança identifica como acima de
sua capacidade de desenhar, solicitando ajuda.
No terceiro momento, um mês depois (13/12/88), foram realizadas as
figuras a seguir.
Figura 3.1
Figura 3.2 e 3.3
O desenho 3.1 foi acompanhado pela fala:
Um prédio.
Não parece sorvete?
Oh,que sorvetão!
Morango. Deixa eu fazer.
Morango.
O desenho 3.2, elaborado logo a seguir, foi acompanhado pela fala:
Vou fazer um sorvete.
Sorvetão!
Oh que sorvetão, mãe!
O desenho 3.3 foi comentado após a elaboração:
Olha que sorvetão, mãe!
Sorvetão de plaques.
Pode-se constatar no primeiro desenho desse momento (3.1) a
transformação do objetivo da ação, “prédio”, a partir do reconhecimento da
semelhança da figura resultante com outro objeto, “sorvete”. A característica de
tamanho deste objeto, “sorvetão”, parece ser a única mantida com o objeto
inicial, “prédio”.
O quarto momento, dias após o terceiro, se constitui pelas figuras
seguintes.
Figura 4.1
O desenho 4.1 foi acompanhado pela fala:
Prédio da tia Leoni.
Elevador que sobe (Direita).
Elevador que desce (Esquerda).
Figura 4.2
O desenho 4.2 repete o traçado e a fala.
Figura 4.3
O desenho 4.3 foi realizado sem qualquer comentário.
Nesses desenhos, pode-se observar a permanência do foco de interesse,
o “elevador” centralizando a verbalização. Verifica-se a repetição da forma
“prédio” na folha de papel, uma vez nos dois primeiros desenhos,
acompanhando a marca de dobra da folha. O terceiro desenho, de traçado
simplificado em relação aos dois primeiros, representa conjunto de três prédios.
Pode-se observar diferença entre o traçado da base e o do topo do “prédio”.
O quinto momento (11/09/89) aconteceu 10 meses após. São 4
desenhos, comentados verbalmente após a realização.
Figura 5.1, 5.2, 5.3
A fala do desenho 5.1 foi:
Prédio
O desenho 5.2 foi assim comentado:
Prédio com varanda.
O desenho 5.3 foi comentado como:
Prédio com varanda e menina entrando.
Pode-se observar a permanência da forma geral, com mudança no
traçado das linhas internas. No primeiro desenho deste momento (5.1),
aparecem
janelas
distribuídas
em
seqüência
vertical,
aparentemente
representando os pavimentos. As “janelas” foram coloridas após o traçado,
mostrando pela primeira vez na série o preenchimento de superfície. A base do
“prédio” é marcada por dois pequenos traços verticais. O desenho seguinte (5.2)
representa “prédio com varanda”, sendo esta traçada como espaços que se
projetam do lado direito do prédio. A base da figura é desenhada
complementarmente à figura, em tamanho mais estreito. O outro desenho deste
momento (5.3) mostra, além das “varandas”, figura humana, de tamanho
‘proporcional’, na base: “menina entrando”.
Pode-se constatar a crescente
complexidade da representação.
Característica comum a esses desenhos parece ser a posição ocupada
no papel, no sentido da verticalidade. Nas figuras únicas, o papel é utilizado
sempre em posição vertical. A utilização do papel em posição horizontalizada é
reservada para série de figuras, “prédios” em seqüência. Pode-se constatar na
série a mudança do foco de representação dos elementos funcionais – o
movimento do elevador – para a dos elementos figurativos – o prédio e seus
detalhes: janela, varanda e menina.
O desenho de uma casa (07/05/90) complementa a série, ilustrando a
imagem de uma casa.
Figura 6
Esse desenho foi assim descrito:
Casa de vários andares.
Sacada. (pequeno quadrado a esquerda)
Camas. (traços paralelos verticais)
Pode-se observar a utilização do papel no sentido horizontal para
elaboração do desenho e sua conformação, mostrando a diferença conceitual
apesar dos “vários andares”. Observa-se também a característica de
transparência, identificável como tal apenas após a verbalização - “camas”.
A análise do material mostrou a evolução das figuras a partir das
características valorizadas pelo sujeito em detalhado, cuidadoso e prolongado
processo de construção da forma. Nesse processo pode-se observar a
intensidade do interesse e a persistência do propósito inicial, bem como a busca
de forma coerente. O desenho, ao dar forma ao pensamento, parece possibilitar
o exercício do conhecimento, com a progressiva construção de conceito do
objeto focalizado.
A série de desenhos pode ser apreciada como um processo de
significação, não só reafirmando a premissa que a criança desenha o que sabe
dos objetos, mas também indicando que ela aprimora o conhecimento que tem
dos objetos ao desenhá-los. Essa constatação só pode ser efetivada pelo
acompanhamento, com observação atenta e registro do processo de elaboração
dos desenhos, possibilitando a interpretação que se apresenta. Muitos desses
desenhos passariam por “simples rabiscos” a olhar despreparado.
Nesse sentido, estes resultados reafirmam a proposição comentada por
Derdyk (1989) e Pillar (1996) do papel do desenho na elaboração mental e
formação de conceitos. É possível, ainda, destacar a característica de registro
da ação, apontada por Derdyk, e comentar seu papel como fonte de dados. A
esse respeito, pode-se comentar a importante contribuição do desenho
espontâneo para compreensão do pensamento da criança, apontada por Pillar, e
a necessidade de valorização das oportunidades que se apresentam no
cotidiano
para
coleta
de
material
de
estudo.
Tal
coleta
implica
o
acompanhamento e registro da verbalização como condição para utilização do
material como fonte de evidências, destacando o papel da sensibilização e do
preparo dos pesquisadores, bem como dos educadores.
Compartilha-se, consequentemente, tanto em relação a pesquisa como
ao processo educativo, a opinião de Renso, Castelbianco e Vichi (1997), Moreira
(1997) e Ferreira (1998), sobre a importância da atitude de atenção e
valorização do desenho da criança por parte do educador e dos estudiosos do
tema.
Considerações finais
O resultado aponta a importância de estudar a elaboração do desenho, e
não só o produto final, para melhor compreensão do processo. A incorporação
dos enunciados verbais relacionadas ao desenho mostrou-se condição
fundamental de interpretação das figuras, possibilitando sua identificação e
acompanhamento da evolução.
Essas considerações destacam o papel do desenho no processo de
desenvolvimento da criança, entre outras coisas por configurar-se como
linguagem, constituindo-se meio de desenvolvimento da capacidade semiótica.
Esse aspecto permite algumas considerações de ordem geral que emergem
deste estudo.
Apesar de compartilhar propriedades básicas comuns às diferentes
linguagens, o desenho, pela sua própria constituição, tem características
particulares que o distingue de outras formas de expressão. Relativamente à
linguagem verbal, cujo suporte básico é acústico, o desenho se caracteriza,
enquanto imagem visual, pela sua globalidade e possibilidade de percepção
imediata. O signo visual é icônico e imediato, isto é, mantém relações de
semelhança com o objeto representado. Contrapõe-se, desta maneira, ao signo
verbal, que se caracteriza pela arbitrariedade em relação ao objeto referido
(KATZ; DORIA; LIMA, 1971).
O signo lingüístico é complexo, envolvendo dicotomia relativa à língua um sistema de valores - e ao discurso - sua realização. É duplamente arbitrário:
primeiro porque a relação entre significado e significante é arbitrária; segundo
porque as características físicas do denominado não motivam a forma do
significante. Além disso, é convencional, implicando a aceitação dos valores
impostos pela comunidade lingüística, e linear, pois se concretiza através de
uma sucessão no tempo, constituindo-se da seqüência de signos mínimos,
decomponíveis em unidades discretas não dotadas de significado (SCLIARCABRAL, 1973).
Assim, do ponto de vista semiótico, o desenho pode ser visto como uma
linguagem privilegiada, pois permite o exercício relativamente mais livre de
construção da forma, estabelecendo relação entre significado e significante de
modo mais elementar, em comparação à linguagem verbal.
Em relação à representação espacial, presente no desenho, Ostrower
(1995) destaca seu caráter de linguagem universal, pois é sustentada por
vivências comuns a todos os seres humanos. A autora refere-se ao caráter de
metalinguagem que é a linguagem de formas de espaço, pois, em última análise,
“as formas de espaço constituem tanto o meio como o modo de nossa
compreensão”. Ostrower ressalta que: “Fornecendo as imagens para nossa
imaginação, o espaço se torna mediador entre a experiência e a expressão. Só
podemos mesmo pensar e imaginar mediante imagens de espaço.”. É essa
linguagem que se constitui o “referencial ulterior” da linguagem verbal, motivo
pelo qual a autora comenta que qualquer que seja a língua, “...é preciso recorrer
a imagens do espaço a fim de tomar conhecimento de algo e comunicá-lo a
outros.” (p.173-174, destaque no texto).
Essa perspectiva possibilita a ampliação da compreensão e da
valorização do desenho espontâneo infantil. Evidencia a importância da
atividade de desenhar para a elaboração conceitual dos objetos e eventos pelas
crianças. Evidencia, também, o papel do desenho na construção da significação
e no desenvolvimento da capacidade semiótica. Neste sentido, a atuação do
educador é fundamental no apoio ao processo, zelando pela condição de
liberdade de expressão e sustentação da manifestação. Essa atitude parece ser
fundamental na preservação do espaço do desenho infantil, atividade de baixo
custo e fácil acesso, importante não só para o desenvolvimento cognitivo e
semiótico, como para o da criatividade e da expressão pessoal. Considera-se,
ainda, que esse olhar seja igualmente importante para os que atuam com
dificuldades e transtornos do desenvolvimento da linguagem (PEREIRA, 1989;
1995).
Referências
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