a filosofia prática de kant: deontologia e teleologia

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a filosofia prática de kant: deontologia e teleologia
REVISTA CIENTÍFICA DA UFPA – EDIÇÃO Nº 03, MARÇO, 2002
A FILOSOFIA PRÁTICA DE KANT: DEONTOLOGIA E TELEOLOGIA
Kézia Pimentel Magalhães ([email protected])
Bolsista PIBIC/CNPq, Departamento de Filosofia, Centro de Ciências Humanas, Universidade
Federal do Pará.
Profª. Drª. Ângela Maroja ([email protected])
Departamento de Filosofia, Centro de Ciências Humanas, Universidade Federal do Pará.
ABSTRACT
In contemporary philosophy, the deontological character of the kantian
practical philosophy is taken as something unquestionable. Thus, through
the kantian concept of highest good, one can reflect on the possibility of
an effectively deontological moral, as Kant’s to be able to hold a concern
with the happiness and, therefore, a certain conception of good. Thus, our
analysis consisted in investigating how, effectively, established ethical
principles in a deontological horizon is opposed to principles of teleologic
character, or if we can conceived both as complementary practical
perspectives.
1.
INTRODUÇÃO
Comumente entendemos, o registro prático da filosofia kantiana como
dominada por uma perspectiva deontológica, no sentido em que ela privilegia, entre
as propriedades da interação interpessoal, a conformidade a certas normas de
caráter obrigatório e universal, onde a idéia de respeito recíproco assume um valor
intrínseco, revestindo-se da dignidade de um dever moral a ser cumprido. Desse
modo, e como conseqüência, a ética kantiana parece distinguir-se de outras
concepções (de caráter teleológico), cujos princípios repousariam principalmente na
avaliação de modos de agir e condutas que se conformam a um determinado fim a
ser alcançado e tido como um bem, seja ele a felicidade, a excelência humana ou
mesmo o prazer. Aqui, é concedida uma prioridade ao conceito de bem, prioridade
que estaria ausente na perspectiva deontológica, onde é conferida uma prioridade
do justo sobre qualquer outro bem.
Em nossa pesquisa confirmamos tais pressupostos através das seguintes
etapas. Num primeiro momento, seguindo P. Ricoeur, assumimos a ética aristotélica
como o melhor exemplo de uma perspectiva teleológica. Depois, para caracterizar a
perspectiva deontológica, assumimos, sem discutir, mas em caráter provisório
(seguindo ainda P. Ricoeur) a moral kantiana como o modelo deste último ponto de
vista. Aqui, tornou-se necessário aprofundarmos o conceito kantiano de liberdade,
uma vez que (e isso caracterizando o segundo e conclusivo momento da pesquisa)
tal conceito mostrou-se indispensável para finalmente, mediante a problematização
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do conceito kantiano de soberano bem, discutirmos até que ponto a filosofia moral
de Kant pode comportar uma concepção de bem.
2.
METODOLOGIA
Os procedimentos metodológicos seguidos nessa atividade de pesquisa
obedecem às regras que são próprias da investigação filosófica. Isso significa que
se trata de uma pesquisa eminentemente bibliográfica, que foi desenvolvida a partir
da identificação, leitura, análise e interpretação de fontes bibliográficas, sobretudo
fontes primárias como: a Ética a Nicômaco e a Política de Aristóteles; A religião nos
limites da simples razão, a Crítica da razão Pura, a Crítica da Razão Prática, a
Fundamentação da Metafísica dos Costumes e a Metafísica dos Costumes de Kant;
Uma investigação sobre os princípios da moral e os Ensaios morais, políticos e
literários de Hume e etc.
3.
RESULTADOS
Tomando como ponto de partida a teoria moral aristotélica, tornou-se
inevitável notarmos, com Roger Sullivan, que a moral, em Aristóteles, se iniciaria na
Ética a Nicômaco com uma “revelação moral do individual” e somente na Política
estender-se-ia para uma ordem pública (An Introduction to Kant´s Ethics, p.1) .
Verificamos que a problemática do individual e do público acaba por culminar na
primazia, estabelecida por Aristóteles, do interesse comum sobre o interesse
individual, primazia que consideramos importante analisar, até porque, Gadamer,
em seu livro Verdade e Método, chama-nos atenção para a superioridade da ética
antiga sobre a filosofia moral da idade moderna observando que a primeira
possibilita a “passagem da ética à política”, graças ao seu enraizamento na tradição,
ou seja, na história (Verdade e Método, p.421).
Por outro lado, segundo Tugendhat, muitos comentadores e críticos de
Aristóteles acabam por considerar a Ética a Nicômaco uma espécie de tratado sobre
a felicidade, pois o fim último das ações visaria a felicidade, colocando em questão
se as virtudes, citadas na referida obra, são de fato, virtudes morais, ou virtudes de
felicidade (Lições sobre ética, 13ªlição, p.269). Dada a importância que a felicidade
assume dentro da ética aristotélica, consideramos que seria estratégico
investigarmos, paralelamente a esta análise, o utilitarismo de David Hume, de
Jeremy Betham e de John Stuart Mill também com ela preocupados.
Assim, segundo David Hume, “o objetivo fundamental de todo o esforço
humano é alcançar a felicidade” (Ensaios morais, políticos e literários, p. 211).
Jeremy Bentham parece reforçar e complementar esta idéia de Hume quando diz
que “a natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois senhores
soberanos: a dor e o prazer”. Bentham continua, declarando que somente a eles
compete apontar o que devemos fazer, bem como determinar o que na realidade
faremos... o princípio da utilidade reconhece esta sujeição e a coloca como
fundamento desse sistema, cujo objetivo consiste em construir o edifício da
felicidade...” (Uma introdução aos princípios da moral e da legislação, cap.I, p.3).
Observamos com John Stuart Mil que, de acordo com a opinião utilitarista, a
finalidade da ação humana é a felicidade, a qual também define o padrão de
moralidade almejado. Mill acrescenta, ainda, que o modelo utilitarista de moral não
visa “... a maior felicidade do próprio agente, mas a maior soma de felicidade
conjunta” (Utilitarismo, cap.II, p.194). Ora, Aristóteles entende por “...cidade melhor
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governada aquela em que o regime promove a felicidade no maior grau possível...”
(Política, livro VII, cap. 13, p.529), o que implicaria dizer que o melhor regime é
aquele que visa o interesse comum (fins coletivos), identificando este com a
felicidade política. Assim, “...os regimes que se propõem atingir o interesse comum
são retos... os que apenas atendem aos interesses dos governantes são
defeituosos...” (Idem, livro III, cap.7, p.211). Portanto, poderíamos, num esforço
argumentativo, concluir que Aristóteles pode ter servido de fonte para algumas
teorias utilitaristas modernas e contemporâneas também centradas na preocupação
com a felicidade.
Em algumas passagens da Política e da Ética a Nicômaco, pudemos
observar que o próprio Aristóteles parece enquadrar sua ética no utilitarismo. Assim,
por exemplo, quando ele reconhece (na Política) que, “apesar de não carecer de
auxílio mútuo, os homens desejam viver em conjunto; também é verdade que estão
unidos pela utilidade comum, na medida em que, a cada um, corresponde uma
parcela de bemestar” (Ibidem, livro III, cap.6, p.207).
Poderíamos então dizer que o bem agir em Aristóteles tem um valor
simplesmente instrumental em relação ao bem-estar e à felicidade comum dos
homens. Nesse sentido, a perspectiva prática kantiana, contrariamente à teleologia
de cunho utilitarista, poderia ser tachada, enquanto deontológica, de anti-utilitarista.
Poderíamos citar como exemplo do antiutilitarismo de Kant, uma passagem da
primeira seção da Fundamentação da Metafísica dos Costumes onde ele observa,
fazendo um pequeno comentário sobre o valor absoluto da vontade, que “a utilidade
e a inutilidade nada podem acrescentar ou tirar a este valor” (Fundamentação da
Metafísica dos Costumes, 1ª seção, p.206). Na Analítica da Segunda Crítica Kant
parece reforçar seu anti-utilitarismo. Diz ele que a “...razão prática... abandona a
vantagem, une-se ao que lhe conserva o respeito pela sua própria pessoa...” (Crítica
da Razão Prática, Analítica da Razão Pura Prática, cap. III, p. 108).
Concordando com o anti-utilitarismo e tomando como base a teoria moral de
Kant, Rawls nos apresenta em seu livro Uma Teoria da Justiça, uma proposta
contratualista que serviria como uma alternativa ao utilitarismo, destacando,
sobretudo, sua concepção de justiça como eqüidade. Aqui, Rawls define seu próprio
ponto de vista (de raízes kantianas) contrapondo-se ao utilitarismo que “... é uma
teoria teleológica ao passo que a justiça como equidade não o é. Por definição,
portanto, a segunda é uma teoria deontológica, que ou não especifica o bem
independentemente do justo, ou não interpreta o justo como maximizador do bem”
(Uma Teoria da Justiça, cap.I, § 6, p.32).
O que Rawls mais critica na visão utilitarista é que nela não importa, exceto
indiretamente, o modo como a soma de satisfações (que nos referimos a pouco) se
distribui entre os indivíduos. Assim como não importa, exceto indiretamente, o modo
como o homem distribui suas satisfações ao longo do tempo. A distribuição correta
nesta visão é aquela que permite a máxima realização, o grau máximo de felicidade
(Idem, cap.I, § 5, p.27). Talvez tenha sido este motivo que levou Rawls a identificar,
neste mesmo trecho, a teoria moral e política aristotélica com o perfeccionismo,
teoria teleológica onde o bem é tomado como a realização da excelência humana
nas diversas formas de cultura.
Como bem observou Tugendhat, a verdade é que em Aristóteles “só pode ser
bom aquele que é orientado para o bem em seus afetos... em suas inclinações”
(Lições sobre ética, sexta lição, p.126). Este caráter de afetividade da moral
aristotélica iria de encontro com algumas formulações rigoristas de Kant onde a
moralidade exclui inclinações e desejos. Em outros termos, não há em Aristóteles
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um “efeito de constrangimento”, efeito que, segundo P. Ricoeur, estaria
indissociavelmente ligado à idéia de universalidade (O si mesmo como um outro,
oitavo estudo, p.241) e ambos, o efeito de constrangimento e a validade universal
das normas, estando relacionados com uma perspectiva deontológica. Em
Aristóteles, não há nenhuma lei que determine a vontade independentemente das
inclinações e o fim (felicidade), identificado na Ética a Nicômaco com o bem-viver,
não é entendido separadamente dessas inclinações, já que seria “...um fim ao qual
visa o desejo” (Ética a Nicômaco, livro VI, cap.2, p.342). Logo, não poderíamos dizer
que o sistema ético aristotélico comportaria um fim tomado como um dever, posto
que um fim, assim entendido, estaria indissociavelmente ligado a um caráter moral
obrigatório. Como pudemos observar, na Política, Aristóteles fala que “... a vida
preferível será necessariamente a mesma tanto para cada indivíduo em particular,
como para as cidades e os homens tomados em comum” (Política, livro VII, cap.3,
p.493). Este caráter da ética centrado no que é preferível parece ilustrar
perfeitamente essa ausência de um caráter obrigatório (traduzido pela lei moral).
Ora, sobre a possibilidade de escolher um modo de vida preferível, é necessário
notarmos que uma perspectiva deontológica jamais admitiria preferências, exigindo,
ao contrário, uma vida em respeito ao dever. Pudemos desta forma concluir que, no
que diz respeito ao enraizamento da virtude moral aristotélica no desejo,
contradizendo a determinação pura da vontade na moral kantiana, as virtudes, em
Aristóteles, teriam um caráter propriamente teleológico e não deontológico. Isto
posto, podemos, contudo, conceder com Tugendhat que o fato da virtude, em
Aristóteles, depender dos costumes de uma sociedade (virtudes sociais) e não se
mostrarem como exigências morais universais, isto não implica dizer que a virtude
em Aristóteles seria contrária a tal exigência (Lições sobre ética, 13ª lição, p.277).
Os traços acima destacados permitiram-nos caracterizar Aristóteles como o
grande representante da teleologia. Nesse sentido, poderíamos ainda enfatizar o
caráter efetivo de sua ética (onde os preceitos para o bem agir são definidos em
cada circunstância particular) por oposição ao apriorismo universalista da moral
kantiana. O valor dado à sabedoria prática – phronesis (enquanto norma moral
situada em um contexto particular) e, sobretudo, a primazia do conceito de bem em
relação ao de justiça, confirmam o enquadramento da teoria moral aristotélica em
um horizonte teleológico. Entretanto, a despeito da preeminência que o conceito de
bem adquire no horizonte ético teleológico, isto não quer dizer que Aristóteles ficou
indiferente ao papel da justiça em relação à organização da vida pública na cidade,
no sentido de considerar textualmente que o desvio da mesma poderia levar à
dissolução dos regimes (Política, livro I, cap.13, p. 93).
Feita a análise da ética aristotélica, achamos necessário fazer um pequeno
esclarecimento sobre o conceito de liberdade, antes de analisarmos o nosso tema
central, até porque, o próprio Kant considera que “prático é tudo aquilo que é
possível pela liberdade” (Crítica da Razão Pura, Doutrina Transcendental do
Método, cap. II, 1ªseção, p. 636 - A800/B828). Henry Allison, comentando Lewis
Beck, afirma que Kant nos apresenta diferentes concepções de liberdade, e vai
tratar este conceito de inúmeras formas. Por isso, partimos da Primeira Crítica, onde
analisamos, sobretudo, a Terceira Antinomia, a terceira parte da nona seção do cap.
II do segundo livro da Dialética Transcendental e o Cânon da Doutrina
Transcendental do Método, antes de nos determos na Dialética da Segunda Crítica.
A despeito da diferença de tratamento que Kant dá à liberdade em diferentes
momentos de suas obras, utilizando vários comentadores como Allison, Beck,
Gadamer, Nancy, Ricoeur, Sullivan e Tugendhat vimos que o problema em questão
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consiste, grosso modo, na tentativa de fazer com que a liberdade possa não apenas
ser possível (pensável sem contradição) mas lhe atribuir uma realidade objetiva.
Somente na Analítica da Critica da Razão Prática, Kant parece alcançar este
objetivo, onde através da lei moral a liberdade, sem necessitar de um tratamento
empírico, tal como no Cânon, torna-se real. Assim, Ricoeur nos diz que a liberdade
prática conteria, então, dois traços poder e realidade objetiva (O conflito das
interpretações, cap.V, p.408). A importância de atribuir realidade objetiva à liberdade
prática se justifica, em Kant, pela necessidade prática de nós pensarmos nossa
existência em um mundo efetivamente moral.
Sobre nossa análise a respeito do conceito de soberano bem, nosso trabalho
consistiu em mostrar que aquilo que a Analítica da Crítica da Razão Prática separou
em termos rigoristas, como oposto e irreconsiliável, isto é a preocupação com a
felicidade e a realização de nossos deveres morais, a Dialética da mesma crítica vai
unir. Graças à exigência de totalidade que lhe é própria, a Dialética da Razão Pura
Prática vai, então, conectar moralidade e felicidade, concedendo, contudo, uma
primazia da primeira sobre a segunda. Dada a preeminência da moralidade sobre a
felicidade, esta última não vai ser posta pelo soberano bem segundo fundamentos
prudenciais e sim deontológicos, tornando-se, por isso mesmo, o conceito de
dignidade de ser feliz. Esta última noção é de suma importância dentro do sistema
moral kantiano, pois para que a felicidade possa se revestir da dignidade é preciso
que haja respeito recíproco entre os homens, noção implícita no conceito de
humanidade (expresso na segunda formulação da lei moral, e que faz dela, ao
nosso ver, a formulação mais importante).
Assim, a humanidade destacaria o valor moral intrínsico que reside em cada
um de nós (Fundamentação da Metafísica dos Costumes, 2ª seção, p.229).
É importante enfatizar que, apesar do soberano bem se configurar, na
filosofia prática kantiana, como “... o fim supremo necessário de uma vontade
moralmente determinada” e sabermos que “no soberano bem... a virtude e a
felicidade são pensadas como necessariamente unidas” (Crítica da Razão Prática,
cap.II da Dialética da Razão Pura Prática, p. 132 e 134), a virtude (condição
suprema) é tratada aqui não como phronesis, como seria em Aristóteles, mas como
mérito de ser feliz ( conformidade das intenções à lei moral).
Desta forma, a teoria moral kantiana jamais pode ser considerada uma teoria
da felicidade, como Tugendhat sugere que o foi a ética Aristotélica. É necessário
lembrarmos que para Kant, “a felicidade, isoladamente, está longe de ser para a
nossa razão o bem perfeito. A razão não a aprova (por mais que a inclinação a
possa desejar) se não estiver ligada com o mérito de ser feliz, isto é, com a boa
conduta moral” (Crítica da Razão Pura, Doutrina Transcendental do Método, cap. II,
2ª seção, p. 644 – A813/B841). Desta forma, a boa conduta moral consistiria na
independência relativamente à inclinação que, segundo Kant, é “cega e servil”, e
mesmo que seja de boa qualidade (conforme ao dever), como por exemplo a
beneficência, a respectiva ação conterá legalidade, mas não moralidade. Tanto na
Fundamentação da Metafísica dos Costumes quanto na Segunda Crítica, Kant
observa que a beneficência estaria ligada à busca de honra e de felicidade. E, na
verdade, aqueles que praticam uma ação deste gênero costumam utilizar a figura do
outro como meio para alcançar algum mérito. O ato de tomar o outro como simples
meio iria de encontro com o que nos prescreve a segunda formulação da lei moral, a
saber: “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na
pessoa do outro, sempre simultaneamente como fim e nunca como meio”
(Fundamentação da Metafísica dos Costumes, 2ª seção, p.229). Na Religião, Kant
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parece admitir somente dois tipos de motivação, a saber, ou as máximas são
motivadas pelo amor-de-si (egoísmo) ou pela moralidade, a benevolência
permanecendo parte constituinte daquele primeiro tipo de motivação (A religião nos
limites da simples razão,nota nº7 da Primeira Parte, p.51).
Apesar de Kant não nos dar, no decorrer de suas obras, muitas alternativas
para entendermos a beneficência de uma forma menos radical, em sua obra Kant
on Freedom, Law and Happiness recentemente publicada Paul Guyer interpreta o
quarto exemplo kantiano da beneficência de modo não-rigorista. Segundo Guyer,
este último seria a base para a reivindicação de que a lei moral não exige somente
que nós reconheçamos constrangimentos legais sobre a busca individual da
felicidade, mas que nós efetivamente devemos buscar a felicidade de todos dentro
desses constran5gimentos. Paul Guyer observa, ainda, que este dever de
benevolência vai ser particularmente clarificado na Doutrina da Virtude da Metafísica
dos Costumes onde ele parece dar lugar a um dever verdadeiramente universal de
benevolência mútua (conforme o princípio de igualdade). Desta forma, o exercício
da benevolência universal, incluiria a idéia de humanidade (expressa na segunda
formulação da lei moral) e seria o dever final comandado por esta mesma lei (Kant
on Freedom, Law, and Happiness, cap.10, p.341-342). Com a interpretação de
Guyer podemos ter uma visão menos rigorista a respeito da beneficência, na qual
seria possível também concebermos a felicidade como parte da própria virtude
moral, uma vez que, ao nos ajudarmos mutuamente estaríamos, talvez, contribuindo
para nos tornarmos mais felizes.
A despeito de como a benevolência pode ser entendida no sistema moral
kantiano, se estamos aqui admitindo, através do conceito de soberano bem, que um
sistema deontológico pode incorporar uma concepção de bem, se faz necessário
entendermos que esta concepção de bem não vai ter as mesmas características de
uma concepção de bem teleológica. Como nos diz Lewis Beck, o soberano bem é
uma “totalidade incondicio6nada”, porque inclui a noção de um fim supremo que une
sistematicamente todos os outros fins (unidade perfeita de fins). Quando Kant fala
em fim supremo parece aproximar-se daquele que designa um fim tomado como um
dever (que como já vimos, tem características diferentes do fim apresentado pela
perspectiva teleológica aristotélica) já que aquela noção parece ser indissociável da
própria moralidade. Nos termos de Kant, na Doutrina da Virtude da Metafísica dos
Costumes, trata-se de “...um fim que possa ser oposto ao fim oriundo dos impulsos
sensíveis, ...o conceito de um fim que é ao mesmo tempo um dever...”
(Métaphysique des Moeurs, p.658-659). Estaria aí a prova de nossa hipótese inicial
onde sistemas deontológicos e sistemas teleológicos, apesar de diferentes, não são
necessariamente opostos.
P. Ricoeur se propõe, segundo ele próprio, sem preocupação de ortodoxia
aristotélica ou kantiana, defender a primazia da ética sobre a moral, ou seja, da
teleologia sobre a deontologia, apesar de reconhecer a necessidade da teleologia
passar pelo “crivo da norma” (deontologia). O sistema moral kantiano, ao contrário
de Ricoeur, parece não admitir como ponto de partida a teleologia. Assim, por
exemplo, como vimos, o conceito de soberano bem, e graças a exigência de
totalidade que lhe é inerente, liga o que a Analítica havia separado, admitindo,
porém, explicitamente o primado deontológico da moralidade sobre a busca da
felicidade. Tomar como ponto de partida a teleologia seria, no mínimo, admitir que
nós temos escolha diante desta lei, ou seja, teríamos que admitir que a lei moral é
flexível, e se é flexível, os homens estariam desobrigados de segui-la. Se
admitíssemos essa flexibilidade, as ações decorrentes disso estariam, no máximo,
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em conformidade à lei, mas nunca traduziriam o respeito pela lei. Segundo Roger
Sullivan, não podemos estar isentos de tais obrigações e nada justifica o não
cumprimento da lei, porque a negação do imperativo categórico resultaria na
reinvidicação autocontraditória de que a liberdade pode ser compelida (An
Introduction to Kant’s Ethics, p.47). Assim, a afirmação de uma possível
aproximação entre deontologia e teleologia estabelecida pelo conceito de soberano
bem, parece ser, ao nosso ver, tão importante quanto a negação da possibilidade de
haver, em Kant, uma primazia da teleologia (de princípios éticos) sobre a
deontologia (princípios morais). O próprio “ideal” traduzido pelo conceito de
soberano bem poderia se tornar uma quimera se aceitássemos tal primazia, pois,
como nos diz Henry Allison, só quando assumimos a realidade da obrigação moral
como fato da razão é que reconhecemos, ao mesmo tempo, o dever de nos
esforçarmos para a realização do soberano bem (Kant’s theory of freedom, p.67).
4. CONCLUSÃO
Podemos observar que quando Habermas, em sua obra Direito e Democracia,
mantém a oposição entre deontologia e teleologia está movido pelo seu interesse
em encontrar para as normas jurídicas o papel de mediador para a autoorganização de comunidades jurídicas que se afirmam, num ambiente social, sob
determinadas condições históricas. Nesse sentido, e ainda seguindo Habermas, tal
oposição também justifica a função mediadora do Direito entre a moral (no sentido
propriamente deontológico do termo) e a dimensão ético-política da razão prática
em busca de fins coletivos. Mas, na caracterização dos dois sistemas, todos os
comentadores e filósofos que utilizamos parecem concordar mais ou menos entre si.
Assim, concluímos através desta Pesquisa de Iniciação Científica que existe, dentro
do sistema moral kantiano (que em alguns momentos se revela como rigorista), pelo
menos uma via de aproximação entre estas perspectivas práticas. Entretanto,
apesar de termos tentado comprovar, através de nossa análise sobre o conceito de
soberano bem, que um sistema deontológico pode incorporar uma concepção de
bem, observamos, em contrapartida, que um sistema teleológico (como o de
Aristóteles) não pode comportar um fim que seja tomado como um dever, já que um
fim, assim concebido, teria de ser (como nos diz Kant na Doutrina da Virtude da
Metafísica dos Costumes, p.658-659) oposto ao fim oriundo dos impulsos sensíveis.
Em Aristóteles, efetivamente, o fim seria “...um fim ao qual visa o desejo” (Ética a
Nicômaco, livro VI, cap. II, p.342). Todavia, a aproximação estabelecida,
fundamentalmente, pelo conceito de soberano bem e o ideal que ele representa
dentro da moral kantiana, nos certifica que, apesar da perspectiva deontológica ser
diferente da perspectiva teleológica, não há oposição necessária entre estas
perspectivas, até porque pensamos que é possível fazer uma leitura correta da
moral kantiana abrindo mão do rigorismo, isto é, da oposição entre dever moral e
inclinações sensíveis (desejo).
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