family relationships and individual experiences present in three

Transcrição

family relationships and individual experiences present in three
FAMILY RELATIONSHIPS AND INDIVIDUAL EXPERIENCES PRESENT IN THREE
DIFFERENT BOOKS BY CLARICE LISPECTOR
by
MARIANA TORRES RYAN
(Under the Direction of DR. SUSAN CANTY QUINLAN)
ABSTRACT
It is the purpose of this thesis to show that Laços de família (Family Ties,) A hora da
estrela (The Hour of the Star) and Um sopro de vida: Pulsações (A Breath of Life: Pulsations,)
all written by the Brazilian writer Clarice Lispector, have important characteristics in common
with what we refer to as family relationships and attempts to build such relationships with people
who are removed from conventional family ties.
This work will analyze these three works and pay particular attention to the concerns that
arise within a family/friend environment that leads to multiple individual experiences. Also, two
chapters focus on the creation of characters and narrators by Lispector who function as a
narrator/character to tell the stories. These narrators sometimes see themselves creating
characters in order to try to establish a family environment among themselves.
INDEX WORDS:
Clarice Lispector, Brazilian Literature, Brazilian Modernism, Family
Context, Relationships, Individual Experiences, Laços de família, A hora
da estrela, Um sopro de vida: Pulsações.
RELAÇÕES FAMILIARES E EXPERIÊNCIAS INDIVIDUAIS PRESENTES EM TRÊS
OBRAS DE CLARICE LISPECTOR
by
MARIANA TORRES RYAN
B.A., FEDERAL UNIVERSITY OF PERNAMBUCO, BRAZIL, 2002
A Thesis Submitted to the Graduate Faculty of The University of Georgia in Partial Fulfillment
of the Requirements for the Degree
MASTERS OF ARTS
ATHENS, GEORGIA
2007
© 2007
Mariana Torres Ryan
All Rights Reserved
RELAÇÕES FAMILIARES E EXPERIÊNCIAS INDIVIDUAIS PRESENTES EM TRÊS
OBRAS DE CLARICE LISPECTOR
by
MARIANA TORRES RYAN
Electronic Version Approved:
Maureen Grasso
Dean of the Graduate School
The University of Georgia
May 2007
Major Professor:
Dr. Susan Canty Quinlan
Committee:
Dr. Lesley Feracho
Dr. Robert H. Moser
AGRADECIMENTOS
A elaboração deste trabalho não teria sido possível sem a ajuda que recebi de pessoas
muito especiais. Primeiramente, gostaria de agradecer a Deus por ter me dado saúde e força para
enfrentar o tão corrido dia-a-dia de estudante de mestrado e professora de português.
Agradeço aos meus pais, que sempre acreditaram no meu potencial e que proporcionaram
apoio psicológico e financeiro nessa fase de dias difíceis nos Estados Unidos. Mãe, muito
obrigada por ter me matriculado na English House, em 1989, e pelo incentivo no estudo do
inglês ao longo dos anos. Pai, muito obrigada pela ajuda para providenciar meus documentos na
época em que ainda estava concorrendo à bolsa de estudos da Universidade da Geórgia. Sem a
ajuda incondicional de vocês, certamente não teria sido possível chegar até aqui.
Agradeço ao meu esposo, Greg, pelo constante incentivo e pela compreensão quando não
podíamos ficar juntos nos fins de semana devido aos meus estudos. Também quero agradecer à
minha única irmã, Tuca - ou melhor, à Dra. Manuela Torres, médica e quase pediatra. Ela não
sabe, mas o seu eterno empenho nos estudos e o sucesso em tudo o que faz são motivos de
orgulho para mim, incentivando-me a trilhar o mesmo caminho. Agradeço ainda aos meus tios,
tias e primos, que sempre torcem por mim, e em especial às tias Yara e Alice, por tudo que
fazem por mim. Não posso esquecer da minha querida madrinha Elvira, cujo caminho nas Letras
me inspiraram na escolha de uma carreira. Valeu, Dinda!
Obrigada aos amigos Juliana, Ricardo e Sheyla, pela fiel amizade mesmo à distância; aos
colegas e amigos do departamento de português da Universidade da Geórgia, em especial a
Erika, por ter cedido seu tempo tantas vezes para discutirmos Clarice Lispector.
iv
Gostaria ainda de expressar a minha gratidão àqueles que já partiram, mas que
permanecerão eternamente nas minhas lembranças: Os meus avós José Firmino, Almir,
Dalvanira e em especial à minha avó Eunice, cujos olhinhos cheios de lágrimas no aeroporto de
Recife marcaram o momento do nosso último adeus. Obrigada, minha Nicinha!
Agradeço aos meus professores da Universidade da Geórgia: à Dra. Susan Quinlan,
minha orientadora, por ter me proporcionado os meios para o aprofundamento nos estudos sobre
Clarice Lispector. Ao Dr. Robert Moser, pela paciência e pelas sugestões dadas ao longo da
elaboração deste trabalho. E à Dra. Lesley Feracho, por ter aceitado participar da defesa da
minha tese.
v
ÍNDICE
Página
AGRADECIMENTOS .................................................................................................................. iv
CAPÍTULOS
1
INTRODUÇÃO .............................................................................................................1
2
LAÇOS DE FAMÍLIA ................................................................................................10
3
A HORA DA ESTRELA .............................................................................................22
4
UM SOPRO DE VIDA: PULSAÇÕES.......................................................................33
5
CONCLUSÃO .............................................................................................................39
OBRAS CITADAS........................................................................................................................43
vi
CAPÍTULO 1
INTRODUÇÃO
Mesmo para os descrentes há a pergunta duvidosa: e depois da morte?
Mesmo para os descrentes há o instante de desespero: que Deus me
ajude. (...) Venha, Deus, venha. Mesmo que eu não mereça, venha. (...)
Sou inquieta, ciumenta, áspera, desesperançosa. Embora amor dentro de
mim eu tenha. Só que não sei usar amor: às vezes parecem farpas. Se
tanto amor dentro de mim recebi e continuo inquieta e infeliz, é porque
preciso que Deus venha. Venha antes que seja tarde demais.
Clarice Lispector.
(Lispector qtd in Gotlib 47)
Dentre os diversos contos e livros da escritora Clarice Lispector, três em especial me
chamam à atenção. Em primeiro lugar, no que se refere a questões ligadas a problemas que
ocorrem num âmbito familiar que ao mesmo tempo é palco para múltiplas experiências
individuais. Para realizar o estudo dessa relação do indivíduo que pertence a um ambiente
coletivo, mas é estando sozinho que acha respostas aos questionamentos da vida, selecionei os
contos “Os Laços de Família,” “Amor” e “Feliz Aniversário” que fazem parte da coletânea
Laços de família de 1960.
Há em Lispector o uso da performance na criação de narradores que, sentindo a
necessidade de ter pessoas em suas vidas, talvez a necessidade de um contexto familiar, entram
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num processo de construção e dão vida às suas criações. Performance neste sentido se refere à
atuação de Lispector como um elemento-chave na composição de seus personagens e nas
histórias em que eles estão inseridos. Neste interessante processo, criador (narrador) e criatura
(personagens) dependem um do outro para a sua existência e criação de uma identidade. Esta
característica é encontrada no último livro escrito em vida de Clarice Lispector, A hora da
estrela (1977) e no livro póstumo Um sopro de vida: Pulsações, organizado inicialmente em
1977 e publicado pela primeira vez em 1978.
Através de um estudo comparativo das três obras acima mencionadas, pretendo neste
trabalho demonstrar que mesmo personagens inseridos em contextos sociais diferentes muitas
vezes passam pelos mesmos processos de auto-conhecimento para que possam dar mais sentido
às suas vidas. Os processos de auto-conhecimento referem-se às experiências vividas por estes
personagens, sejam enquanto estão sós ou quando estão acompanhados de outras pessoas. Além
disso, pretendo analisar a maneira com que Lispector cria os seus narradores que, ao se
encontrarem imersos em um ambiente de solidão, optam por não continuarem sós, num processo
que dá vida à personagens e construindo laços “familiares” mesmo quando estes laços sejam
artifícios, produtos de uma estratégia narrativa específica.
No segundo capítulo, que trata dos contos de Laços de Família, além de elaborar um
breve resumo de cada conto escolhido, irei explicar o contexto familiar em que as personagens,
em especial as protagonistas, estão inseridas e o que acontece com elas quando abandonam esse
ambiente. As transformações pelas quais essas personagens sofrem são decisivas para que haja
um novo entendimento do mundo pelas mesmas.
No capítulo seguinte, meu objeto de estudo é a criação da personagem Macabéa através
do narrador-personagem Rodrigo S.M. Ainda neste capítulo, comentarei sobre o
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processo de criação dela pelo seu narrador Rodrigo S.M. (ou Clarice Lispector), no que diz
respeito à linguagem e estrutura da narrativa. Irei salientar alguns aspectos que fazem com que A
hora da estrela seja uma narrativa singular.
O quarto capítulo está dedicado ao livro Um sopro de vida que assim como em A hora da
estrela, coloca em evidência a relação entre o sujeito criador (metaforizado na personagem do
Autor) e o objeto da criação (metaforizada na figura da personagem Ângela Pralini).
O motivo da escolha desses livros para compor esta tese é que todos demonstram
interessantes similaridades no tratamento do que se refere à (des)construção de relacionamentos,
sejam eles entre parentes de uma mesma família ou entre pessoas que buscam umas nas outras
uma família.
Para a melhor compreensão da escritura clariceana, em especial dos contos/romances que
irei utilizar, acho importante incluir na introdução deste trabalho uma breve biografia sobre a
autora e um pequeno resumo sobre a situação da sociedade brasileira, em especial a carioca na
época em que as histórias foram escritas.
A Autora e sua Obra:
De origem russa (nascida numa pequena cidade da Ucrânia provavelmente em 1920
segundo Claire Varum,) Clarice Lispector, enquanto ainda é um bebê, vem para o Brasil com a
família onde se fixa (primeiramente no nordeste e depois no Rio de Janeiro). Em sua bem
pesquisada biografia intitulada Clarice: Uma vida que se conta, Nádia Battella Gotlib assim
descreve a chegada da família ao Brasil:
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Chegaram no Brasil e aportaram no Nordeste: em Maceió, capital de Alagoas,
onde tinham parentes. Apesar de ser a capital do estado, Maceió era uma cidade
muito pequena. Clarice tinha 2 [dois] meses: era fevereiro de 1921.
E lá ficaram três anos e meio. De Alagoas foram para o Recife, onde devem ter
chegado por volta de 1924: Clarice tinha quase 4 [quatro] anos (63).
Ainda segundo Gotlib, sua formação intelectual e literária acontece toda no Brasil. Na época em
que era casada com o diplomata Maury Gurgel Valente, ela acompanha-o pela Europa e pelos
Estados Unidos onde nascem seus filhos. De volta ao Brasil, separa-se do marido e passa a levar
uma vida bastante isolada em seu apartamento, no Rio de Janeiro, ao lado do seu fiel
companheiro, o cão Ulisses. Clarice Lispector morre de câncer em 1977, um dia antes do seu
aniversário, dia nove de dezembro.
Lispector estréia na literatura em 1944 com Perto do coração selvagem, obra recebida
com entusiasmo pela crítica brasileira. Antônio Cândido antevia na jovem escritora (com apenas
dezenove anos na época) a afirmação de que a obra de Lispector demonstrava “um dos valores
mais sóbrios e, sobretudo, mais originais da nossa literatura, dada a intensidade com que sabe
escrever e a rara capacidade de vida anterior.” (26)
Além de romances e contos, Lispector também escreveu livros infantis como O mistério
do coelhinho pensante (1967), A mulher que matou os peixes (1969) e A vida íntima de Laura
(1974).
Clarice Lispector é universalmente reconhecida como uma das mais originais escritoras
do seu tempo. Em estudos sobre questões de gênero, ela é considerada como um exemplo de
escritora feminista que se preocupa com temas ligados à busca de uma autoconsciência feminina,
embora ela própria não se considerasse feminista. Nos seus contos e romances, podemos
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encontrar questões filosóficas profundas que estão ligadas à condição humana de todo e qualquer
ser vivo. As reflexões as quais fazemos sobre suas histórias são sempre despertadas a partir de
fatos cotidianos que podem ocorrer em qualquer lugar do mundo, porém quase sempre do ponto
de vista feminino ou através de uma voz feminina. De acordo com a crítica Samira Y.
Campedelli:
Questões filosóficas profundas, como a verdade e a condição humana, estão
colocadas nos romances, contos e crônicas de Clarice. Essa reflexão é sempre
despertada a partir de um fato aparentemente banal, e jorra como produto
incontrolável de um fluxo de consciência. A tomada de consciência pelas
personagens de Clarice obedece muitas vezes a um ritual reflexivo, tortuoso, e até
mesmo doloroso. E é precisamente nesses momentos que a obra da autora se
revela em toda a sua beleza e profundidade, embora isso incomode a visão
estereotipada e pacata corrente na classe média urbana, onde ela preferia localizar
suas personagens (32).
Esta afirmação é bastante coerente porque notamos o quanto a leitura dos contos e
romances de Lispector possuem histórias aparentemente simples, que na verdade escondem a
densidade do conteúdo.
Universo Clariceano
A originalidade dos meios de expressão utilizados por Clarice Lispector tem sua ligação
com o inovador universo de personagens que ela cria. Inovador no sentido de que seus
personagens têm em sua maioria um comportamento diferente dos personagens da literatura
moderna. Ao analisarmos o conjunto da obra, percebemos que há alguns traços comuns entre
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eles. Em geral, as protagonistas nos livros de Lispector são mulheres, que mesmo estando
inseridas em um contexto familiar, encontram-se imersas em um estado de profunda
interiorização, onde a subjetividade dos acontecimentos prevalece e para quem a realidade
externa é extremamente ameaçadora. Encontrando-se mergulhadas em um vazio profundo de
não-respostas, estas protagonistas buscam incessantemente descobrir o verdadeiro sentido da
vida. Perguntas como “Quem sou?” e “Qual meu papel no mundo?” estão presentes na maioria
das histórias. As personagens oscilam entre o desconforto da contínua investigação íntima e do
desejo de ruptura com a introspecção e com o mundo objetivo. As personagens não encontram-se
fixas em um tipo de comportamento, elas ao mesmo tempo que possuem um contato com o
mundo exterior, estão imersas em sua interiorização. Um contínuo sentimento de náusea está
presente em suas vidas. Náusea no sentido da experimentação do vazio. É deixando o “eu” e
através do contato com o “outro” que pode haver uma saída em relação à náusea. Mas essas
personagens raramente conseguem escapar desse sentimento, e quando conseguem (como
Rodrigo S.M. de A hora da estrela) deparam-se apenas com a morte.
A tendência à uma ficção introspectiva encontra sua formulação através do monólogo
interior, isto é, um monólogo “não falado” e que se desenvolve somente no interior dessas
personagens. É a partir da plenitude do monólogo interior que ficam expostos os conteúdos mais
complexos e profundos da condição humana.
Contexto Histórico-Cultural e a Literatura
No ano de 1929 a família de Lispector muda-se para o Recife perante um acontecimento
que causaria conseqüências para todo o mundo: a quebra da bolsa de valores de Nova Iorque. A
economia mundial sofre sérias conseqüências, e o Brasil infelizmente está dentro deste quadro. O
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principal produto de exportação brasileiro, o café, o qual sustentava a república do “café-comleite,” também entra em crise, promovendo o fim das oligarquias rurais. Com Getúlio Vargas no
poder, instala-se a ditadura do Estado Novo em 1937. O mundo está em crise. O ano de 1939 é o
momento da Segunda Guerra Mundial. De acordo com o crítico Alfredo Bosi, no seu livro
História concisa da literatura brasileira:
Não é fácil separar com rigidez os momentos internos do período que vem de
1930 até nossos dias. Poetas, narradores e ensaístas que estrearam em torno desse
divisor de águas continuaram a escrever até hoje, dando às vezes exemplo de
admirável capacidade de renovação (385).
A afirmação de Bosi é pertinente, pois a realidade da época dos anos trinta é mais bem deplorada
pelo poeta Carlos Drummond de Andrade. Além da visão dele, também despontam no cenário
brasileiro os escritores Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Érico Veríssimo. A literatura
social dos anos trinta amadurece a proposta-brincadeira de uma linguagem brasileira dos
modernistas da Semana de Arte Moderna que ocorreu em 1922. Em 1945, com o fim da Segunda
Guerra, os militares destituem Vargas do poder, o qual retornaria em 1951, quando sua política
nacionalista e populista já não agradava mais a classe dominante e suicida-se em 1954 por razões
desconhecidas. A grave crise política gerada com a sua morte elege Juscelino Kubitschek para a
presidência da República. O desenvolvimento industrial e o intenso crescimento urbano
(“cinqüenta anos em cinco”) trazem consigo o grande problema das favelas e a intensa migração
de nordestinos para o sul do país.
Nessa época, aparecem na literatura as figuras de João Guimarães Rosa, Rubem Braga,
Lygia Fagundes Telles, Dalton Trevisan e Clarice Lispector, enriquecendo a prosa brasileira
tanto com temas de regionalismo quanto lançando contos e crônicas onde o espaço urbano
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prevalece. Esses temas regionalistas e urbanos estão ligados à criação de novas palavras e à um
narrador que utiliza uma linguagem experimental. Diferentemente do regionalismo da primeira
fase do modernismo, os personagens agora não apenas refletem sobre a condição físico-social em
que vivem, mas também refletem sobre temas filosóficos universais.
O Rio de Janeiro e a Sociedade Carioca da Década de Sessenta:
Durante mais de dois séculos, de 1716 a 1960, a cidade do Rio de Janeiro foi a capital da
Colônia, do Império da República do Brasil e da intelectualidade brasileira. Nesta época, reinou
na política, na economia, na cultura e como centro financeiro do país. Também foi nos anos
sessenta que a cidade do Rio de Janeiro foi tema de romances e canções, como a famosa música
“Garota de Ipanema.” Com a transferência da capital para Brasília, em 1960, o Rio perdeu seu
status político, porém continuava sendo o centro dos intelectuais e a “cidade maravilhosa,”
títulos que mantém até hoje.
O início da década de sessenta trazia a marca luminosa daquela época de efervescência
cultural que foram os anos do governo de Juscelino Kubitschek. Na literatura, como nas artes
plásticas e na arquitetura, na música popular, no cinema e no teatro, a livre circulação de idéias,
o alto nível do ensino universitário, o bom desempenho da economia, constituíam o pano de
fundo indispensável à manifestação da criatividade. Era dentro desse cenário que Clarice
Lispector escrevia os contos de Laços de família.
Mesmo vivendo num regime de ditadura militar, a década de sessenta também foi
marcada por diversos movimentos pacifistas e feministas, maior escolaridade das mulheres e o
surgimento de métodos contraceptivos o que gerou um comportamento sexual feminino mais
liberal. As pessoas, principalmente os jovens da época, contestam as normas estabelecidas,
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questionando os padrões de comportamento. Os artistas e intelectuais, nos campos do teatro e
literatura, sofrem por conta da censura. Tanto no teatro quanto na literatura todos tiveram que ir à
luta. Edições foram censuradas e apreendidas, muitos escritores e jornalistas chegam a ser
presos. O ato de escrever era uma forma de protestar e o ato de ler era um desafio por conta de
tanta proibição.
Assim pensa o crítico Affonso Romano de Santana sobre a política que se insere dentro
da literatura:
Foi este o século em que se viveu ideologicamente no sentido mais partidário do
termo. Tivemos um conceito de história que afetou nossos gestos mais cotidianos
e nossa produção intelectual. A ideologia marcou a atitude fascista presente nos
dois lados, tanto esquerda como direita, pois o stalinismo foi apenas uma outra
face do fascismo-nazismo (27).
É muito difícil imaginar o que seria a sociedade brasileira de hoje sem considerarmos as enormes
influências que a década de sessenta lançou, especialmente a partir da segunda metade e início
dos anos setenta, principalmente as influências no campo das artes literárias. Foi nesta época em
que foram estabelecidos conceitos que sobrevivem até os dias atuais como uma maior igualdade
social entre homens e mulheres, que até esta época encontravam-se submissas e seu lugar era em
casa cuidando dos filhos e dos afazeres domésticos, e a luta por direitos políticos e uma liberdade
de expressão.
É aqui que podemos situar a obra de Lispector que vamos considerar à luz destes
acontecimentos.
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CAPÍTULO 2
LAÇOS DE FAMÍLIA
O estudo da obra e da crítica de Clarice Lispector é bastante complexo. Esta
complexidade pode ser observada pelo modo em que se estruturam as historias de Laços de
família. Marta Peixoto sugere que os contos desta obra podem ser lidos como “... versions of a
single developmental tale that provides patterns of female possibilities, vulnerabilities, and
power in Lispector’s world” (25).
Podemos comprovar o que foi escrito por Peixoto quando observamos que, nos treze
contos da obra, dez apresentam protagonistas femininos e fixam problemas enfrentados por
algumas adolescentes que confrontam o sexo como fantasia ou realidade (o que ocorre no conto
“Preciosidade”), as insatisfações de mulheres maduras que se relacionam com seus maridos e
filhos de uma maneira precária (“A imitação da rosa” e “Amor”) e a celebração dos oitenta e
nove anos de uma avó que, sentada em uma das pontas da mesa, presencia de forma impotente a
ausência e a hipocrisia que caracterizam o seu ambiente familiar (o que acontece em “Feliz
aniversário”). As mulheres que povoam esses contos, sejam elas adolescentes ou adultas, não são
capazes de promover a sua própria autonomia, já que estão presas e inadaptadas a um mundo
repetitivo e sem autenticidade nenhuma.
Escrita em 1960, a coletânea de contos Laços de família inova a arte de escrever. Esta
obra está incluída entre os melhores livros de contos da literatura brasileira segundo Marta
Peixoto. Os contos estão centrados, tematicamente, no processo de “aprisionamento” ou
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“entrelaçamento” (talvez seja essa a razão do título escolhido por Lispector) dos indivíduos que
compõe a história, de sua prisão doméstica, do seu cotidiano. Em seu artigo “Existence in Laços
de família,” Rita Herman fala da dubialidade do termo “laços” que tanto pode significar: “… the
chains of outward conformity that bind each person to others by means of a false set of values”
quanto pode significar “the ties that bind each one to the other, by the total aloneness that they
possess in common” (70). Ao longo da leitura dos contos, percebemos que as formas de vida
convencionais e estereotipadas vão se repetindo de geração em geração, submetendo-se às
consciências e às vontades. A dissecação da classe média carioca resulta numa visão
desencantada e descrente dos “laços” familiares, dos “laços” de convenção e interesse que
minam a precária união familiar observada por Lispector.
Como é característico de muitos escritores contemporâneos, a maneira de fazer literatura
de Lispector marca-se pelo modo anti-convencional com que ela organiza o seu texto. Ela está
sempre buscando fugir das convenções (pré)estabelecidas e da linguagem que obedece a norma
culta. Seguindo uma postura de autora contemporânea, é freqüente em suas obras o emprego da
técnica surrealista em que à narrativa vai fluindo à mercê do fluxo de consciência do narrador da
história. Essa técnica surrealista se refere à questões que abordam a representação do irracional e
do subconsciente. As personagens de Lispector são sempre flagradas no momento em que, a
partir do cotidiano banal, alcançam o lado misterioso, inusitado, diferente da existência humana,
mesmo que não consigam entendê-lo. Nessas histórias o lado oculto do indivíduo é
exteriorizado. A protagonista termina buscando, através dos elementos exteriores, o seu “eu”
interior. A partir disto, conclui-se que a busca da identidade própria passa pela busca do “outro,”
quer seja esse “outro” humano (Ana, Laura, Pequena Flor, etc.), animal (galinha, cachorro,
búfalo) ou objeto (como as rosas em “A imitação da rosa”).
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O conto “Os laços de família” é um ótimo exemplo para ilustrar o que foi dito
anteriormente sobre o conceito do termo “laços.” A história começa quando a personagem
Catarina vai deixar a sua mãe na estação, depois de duas semanas de visita. Dentro do táxi, a
caminho da estação, Catarina recorda-se do desconforto causado pela breve convivência entre a
sua mãe e o seu marido. O genro e a sogra mal se suportavam, porém na hora da despedida,
ambos encheram-se de generosidade e delicadeza. A mãe de Catarina chama-se Severina, que
significa uma pessoa severa, seca, dura. Assim observa Marta Peixoto sobre as relações
familiares presentes neste conto:
With this scene between the two women, as well as with flashbacks and the
narration of the emotional consequences of the mother’s visit, the story touches on
several types of family relationships: mother/daughter, mother-in-law/son-in-law,
grandmother/grandson, husband/wife and mother/son, all presented as subtle or
not-so-subtle struggles for power (27).
A questão do poder é uma temática constante em “Os laços de família” e em outras histórias
também. Ao lermos o conto em questão, percebe-se que há uma nítida competição entre Catarina
e sua mãe quanto à quem sabe educar melhor o filho/neto.
Enquanto Catarina olha para sua mãe através da janela do trem, ela torna-se consciente do
quanto a relação mãe/filha estava estragada. Catarina admite: “Ninguém mais pode te amar senão
eu” (Laços 97). Esse relacionamento é “como se ‘mãe e filha’ fosse vida e repugnância. Não, não
se podia dizer que amava sua mãe. Sua mãe lhe doía, era isso” (Laços 97). Essa luta pelo poder
acima mencionada por Marta Peixoto ocorre do começo ao fim do conto. Catarina precisa
mostrar à sua mãe que sabe o que é melhor para seu filho, porém sua mãe acha que ela sendo
mãe e avó ao mesmo tempo tem mais experiência e suas idéias são as que devem ser obedecidas.
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Ainda há a figura masculina do pai querendo também exercer seu poder dentro da família,
principalmente no que concerne o filho. Aqui nós podemos ver um “mirror-image” com a
relação de Catarina com o filho como Severina com Catarina.
Outro aspecto a ser considerado neste conto é o ponto de vista da figura masculina dentro
do contexto onde as personagens femininas são as que possuem uma maior importância. Sobre a
figura do pai/sogro ali presente:
[...] the metaphorical prison entraps all members of the family: the father, who
also speaks about his own predicament, sees the male as victim of the imprisoned
and imprisoning female, the mother, who transmits this family tie to the next
generation. The male (sic) power, deriving from his role in the world outside the
home, does not prevail in the domestic world of intimate relationships, where his
wife has a power at least equal to his own (Peixoto 28).
Mesmo com todas essas relações familiares mencionadas por Peixoto, nota-se que há uma
enorme hipocrisia envolvida neste ambiente familiar. A filha sente uma necessidade de se livrar
de sua mãe para que possa continuar a viver a sua vida onde a família jantaria e depois do jantar
iria ao cinema, “porque depois do cinema seria enfim noite, e este dia se quebraria com as ondas
nos rochedos do Arpoador” (Laços 103). É quando Catarina chega em casa que ocorre mais um
interessante fato dentro do contexto familiar. Primeiramente, o foco da narrativa é mudado,
agora, é o marido de Catarina (não mais a mãe dela) que fica perplexo olhando pela janela mãe e
filho caminhando de mãos dadas pela rua. Essa cena faz com que ele pense sobre seu casamento,
mas principalmente o faz refletir sobre o que havia ocorrido com sua esposa enquanto ela
deixava a mãe na estação. Há na personagem masculina, uma espécie de curiosidade sobre o
motivo pelo qual Catarina estava agindo de uma maneira diferente da que costumava agir. De
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certo modo Antônio intui que algo mudou na vida de sua esposa, e que embora esse dia tenha
sido apenas mais um dia, aconteceu algo na vida de Catarina que fez com que ela mudasse. Para
o marido de Catarina, “the events of the day appear as minor, if recurrent, crisis within the
sustaining institution of the family” (Peixoto 28). Catarina não está ciente sobre o fato de que a
sua relação com seu filho está se tornando muito semelhante ao tipo que relacionamento que ela
desenvolveu com sua mãe ao longo dos anos.
Uma outra observação que podemos fazer quanto à personagem Catarina, é que há em
sua vida uma marca da ambigüidade. Se por um lado, ela é uma boa esposa e mãe, se preocupa
com seu marido e com seu filho, por outro lado não é uma boa filha, pois é consciente de que não
tem uma relação mãe/filha “normal” com a sua mãe. Reflete-se aqui a continuação de um ciclo
entre mãe/avó/filho (neste caso Catarina, sua mãe e seu filho), onde nem a protagonista está
ciente disto. Há uma enorme barreira entre elas que nem a freada brusca do táxi, quando estavam
a caminho da estação, conseguiu romper. Em todos os diálogos entre Catarina e sua mãe
Severina, notamos que há uma tensão entre as duas. No seu artigo “A Discourse of Silence: The
Postmodernism of Clarice Lispector,” Earl Fitz assim descreve um pouco do comportamento de
Catarina no que tange o contexto em que está inserida:
When Catherine speaks, however, she presents her public or social self, a
self that is utterly commonplace in word and deed. Yet though she is a
character in a conventional social context, Catherine often engages her husband
and her child in strikingly cryptic dialogue, using words that function as
transmitters of what all involved assume to be a commonly shared body of
knowledge (427).
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Catarina pode apresentar um exemplo de família perfeita para seus vizinhos e conhecidos, mas a
simplicidade que há entre ela e as pessoas que a cercam é apenas aparente. É através do convívio
durante alguns dias com a sua mãe que Catarina alcança o verdadeiro valor da sua existência e
desperta para certos sentimentos e comportamentos que nem ela própria estaria ciente de que
existissem.
Seguindo a análise dos comportamentos dessas protagonistas como indivíduos dentro e
fora do ambiente familiar, vou comentar agora sobre o segundo conto escolhido, o conto
“Amor.” Neste conto, Ana (cujo nome em hebraico significa “pessoa benéfica e piedosa”), a
protagonista, sente uma necessidade de amar um homem cego que insiste em persegui-la desde a
janela de um bonde. O cego representa a ânsia dela de se entregar ao seu mundo obscuro e
desconhecido. O amor que Ana sente pelo homem cego é um amor de náusea, quase ódio. Na
verdade ela sente amor por si própria enquanto experimenta este fato. Ana alcançara ou não a
situação estável em que vive com sua família? “A cozinha era enfim espaçosa, o fogão
enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando”
(Laços 19).
Este é um dos vários contos do livro onde a personagem vive quase que sem refletir que
há todo um mundo à sua volta, porém “Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera”
(Laços 21). A partir da freada brusca do bonde, ela fica dominada pela insegurança e já não é
mais a mesma. Ana tem medo de perder o seu refúgio, de desmoronar o seu lar em que “tudo foi
feito de modo que um dia se seguisse ao outro” (Laços 22) e em que “se podia escolher pelo
jornal o filme da noite” (Laços 30). Transtornada com a cena do cego mascando chicles, ela
deixa cair ao chão, com a arrancada brusca do veículo, o saco com as compras que havia feito. A
tranqüilidade de Ana desaparece totalmente e uma sensação de náusea lhe domina. Ana fica
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bastante atrapalhada com o que acontece que termina descendo do bonde no ponto errado. Ela
vai ao Jardim Botânico e sua emoção diante das árvores é enorme, pois “A vastidão parecia
acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si” (Laços 24). Este é o
momento e o lugar de sua epifania. Mas porque será que ela escolheu ir ao Jardim Botânico?
Talvez porque lá ela consiga enxergar o quão pequena e banal era a sua existência comparada
com a imensidão das árvores do lugar. O Jardim Botânico reflete a selva, o desconhecido. É no
Jardim Botânico que Ana medita e percebe a banalidade daquilo que ela considera o seu mundo.
Na linguagem literária a palavra epifania consiste no relato de uma experiência que, a
partir de um fato ou acontecimento trivial, revela-se uma experiência inesperada e atordoante.
Ana é casada e tem dois filhos, mas o “seu momento” não acontece ao lado dessas pessoas. É
preciso que ela deixe o ambiente familiar em que vive para que se encontre, para que o mundo
que a cerca comece a fazer algum sentido. Depois da sua ida ao jardim botânico, Ana volta a
pensar em sua família e volta ao seu apartamento ao encontro do filho que “certainly must need
her, she hopes, but her strange behavior only frightens him away. The activization of family ties
regularly provokes misunderstandings; their entelechy brings about destruction” (Marting 58).
No seu artigo intitulado “Narrative Modes in Clarice Lispector’s Laços de família: The
Rendering of Consciousness,” Maria Luisa Nunes afirma que a personagem Ana “reflects the
consciousness that her existence is an artistic ordering and not simply housewifely repetition”
(177). Maria Luisa Nunes nos faz refletir sobre a escrita de Lispector numa série de interessantes
perguntas que, segundo Nunes, são exploradas através de suas obras:
Some of the questions she raises in her fiction are among the most anguished of
modern man’s existence. What constitutes freedom? How can the discrepancy
between words and feelings be breached? How can we possess without being
16
possessed? How does one deal with solitude and what are the limitations of taking
and giving love? (174)
Acredito que não haja respostas exatas para as indagações acima propostas. Através de uma
leitura detalhada da obra clariceana e do conjunto de críticos que escrevem sobre ela é que
podemos especular possíveis respostas. Tomando a protagonista Ana como ponto de partida, o
que constitui liberdade para ela? Será que ela se sente amada quando está jantando com sua
família (depois do que aconteceu durante o dia) ou quando encontrava-se sozinha apreciando a
natureza no jardim zoológico? Considero que haja uma ligação entre os dois ambientes (fora e
dentro de casa) porque há uma relação de dependência entre os mesmos. É porque Ana se sente
presa dentro de casa que sabe apreciar a liberdade que o ambiente externo lhe proporciona. Mas
isso só acontece por conta do aprisionamento a que o seu mundo está condicionado. Ana possui
liberdade e se sente mais feliz estando sozinha (talvez por apreciar a sensação de estar
experimentando o novo) do que na companhia da sua família. É interessante observar que
mesmo sofrendo experiências individuais e talvez mudando a visão que ela tenha do mundo que
a cerca, a vida de Ana dentro do seu apartamento ao lado dos seus filhos e marido não sofreria
tantas mudanças. Este foi apenas um dia, mais um dia, “e, se atravessara o amor e o seu inferno,
penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de
se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia” (Laços 29).
O foco desse conto é o momento de tensão conflitiva, extensa e profunda, que se
estabeleceu entre Ana e o cego, e posteriormente entra ela e as árvores que a cercavam no jardim
botânico. O papel do cego neste conto funciona como um mediador de uma incompatibilidade
que há no mundo que cerca Ana. De certo modo, também pode-se considerar as árvores do
jardim botânico com essa função mediadora, se considerarmos que elas exteriorizem o mesmo
17
perigo de viver que observamos no cego. Benedito Nunes assim reflete sobre o desfecho deste
conto:
No entanto, “Amor” não termina com a tensão conflitiva levada aos dois extremos
que se tocam, do rompimento com a realidade habitual e da contemplação
extática. Depois de atingir o ápice, a história continua à maneira de um anticlímax.
De fato, a situação que se desagregou recompõe-se no final do conto, quando Ana
regressa à casa e à normalidade entre os braços do marido. O desfecho de “Amor”
deixa-nos entrever que o conflito apenas se apaziguou, voltando a latência de onde
emergira (86).
Ao refletirmos sobre essa visão de mundo introspectiva presente tanto na protagonista Catarina
de “Os laços de família” quanto em Ana de “Amor,” não podemos esquecer de considerar o lado
psíquico das duas. Para isso, os muitos críticos de Lispector como Earl Fitz usam o termo
consciousness, o qual está bastante evidente no estilo da autora.
Numa tentativa de definir esse termo em literatura, Robert Humphrey no estudo Stream of
Consciousness in the Modern Novel, indica que “consciousness is the point in which we are
aware of human experience” (7). Para ele, o termo envolve sensações e memórias, sentimentos e
conceitos, imaginação, bem como intuição e “insights.” Como um sinônimo para consciousness,
Humphrey utiliza os termos “psyche” e “mind.” Ainda expande sua definição afirmando que:
Consciousness indicates the entire area of mental attention, from preconsciousness
on through the levels of the mind up to and including the highest one of rationale,
communicable awareness. This last area is the one with which almost all
psychological fiction is concerned. Stream of consciousness fiction differs from
all other psychological fiction precisely in that it is concerned with those levels
18
that are more inchoate than rational verbalization – those levels on the margin of
attention (7).
Se pensarmos neste conceito acima definido por Humphrey sendo empregado na narrativa de
Lispector, percebemos que ele é bastante coerente. Em Lispector, a narrativa referencial ligada a
fatos e acontecimentos é rompida. Em lugar de uma narrativa linear, emerge uma narrativa
interiorizada e introspectiva, centrada num momento de vivência interior das personagens.
Assim como os contos “Os laços de família” e “Amor,” o conto “Feliz aniversário”
também tem seu núcleo de personagens localizado na classe média carioca. No caso de “Feliz
aniversário” o contexto familiar é ainda mais abrangente, pois não se trata apenas de
marido/mulher/filho(s), aqui temos a presença de parentes compondo este contexto e dando mais
complexidade.
Para um melhor entendimento, cabe a explicação de Marta Peixoto que assim escreve
sobre a organização da família brasileira em relação aos contos de Lispector:
The stories reflect the matrifocal organization of Brazilian society, where the
extended family still prevails, so much so that the word “família” usually refers
not only to the small nuclear family, but also to a numerous network of relatives.
The title story shows must clearly the ambivalent function of the family in the
whole collection (27).
Com esta colocação, Peixoto esclarece muito bem o uso da palavra família no contexto da
sociedade brasileira.
O título da história “Feliz aniversário” (assim como na história “Amor”) é um pouco
irônico, pois de “feliz,” o aniversário nada tem. A superficialidade do tratamento fraternal, a rixa
entre noras, as diferenças econômicas entre os vários irmãos, a educação diferente que é dada aos
19
netos e bisnetos, os presentes sem utilidade nenhuma, conversas vazias e forçadas, as aparências
para manter os “laços,” vão surgindo ao longo do conto e evidenciando a degradação da
instituição familiar. Tudo isso deprime e aborrece a aniversariante, que, saindo do seu monólogo
interior, desabafa o seu ódio e a sua angústia: “– Que vovozinha que nada! explodiu amarga a
aniversariante. – Que o diabo vos carregue, corja de maricas, cornos e vagabundas! Me dá um
copo de vinho, Dorothy! – ordenou” (Laços 62). Rita Herman assim comenta sobre as
personagens que fazem parte dessa história:
[...] they are fully conscious that true communication is impossible:
society is an artificial barrier that must not be transcended. Yet their
essential problem, as might be expected, is not to find a meaning for their
senseless lives, but to run from the meaning they have already
acknowledged within themselves and cannot accept (69).
Ao refletirmos sobre as pessoas presentes no aniversário da personagem Anita, percebemos o
quanto essa barreira na comunicação prevalece sobre um diálogo harmonioso que poderia existir.
Quando os parentes estão conversando durante a reunião familiar, na verdade estão competindo,
para saber quem tem o filho na melhor escola ou qual marido tem o melhor emprego.
No seu artigo “A problematização da narrativa em Clarice Lispector” Lucia Helena tem
um interessante ponto de vista sobre as personagens clariceanas. Segundo ela:
[...] estão sempre envoltas por uma nada tênue, embora sorrateira, camada de
opressão. E estão sempre tensamente submetidas à tradição patriarcal em sua
dinâmica de obediência a valores que, se aparentemente se mostram mais
vantajosos para os homens, acabam por aprisionar e reprimir a todos, não
importando o sexo, a classe, a etnia ou a idade (1167).
20
Mesmo estando submetidas à tradição patriarcal, são as mulheres destes contos que possuem um
importante papel no desenvolvimento das histórias.
O final do conto “Feliz aniversário” não nos traz nenhuma surpresa em comparação com
o final dos outros contos. Os confrontos e desencontros das pessoas permanecem do início das
histórias até o fim. “Não há um ‘happy ending.’ Tudo ‘termina’ instável, ou até ameaçado de se
confinar num isolamento ainda maior, como ‘num trem que já partira,’ quem sabe em direção à
morte ou à loucura” (Helena 1167).
Os três contos selecionados para análise possuem características bastante semelhantes.
Primeiramente, todos possuem protagonistas femininas que estão inseridas em um contexto
familiar, mas precisam sair desse contexto para que suas vidas façam sentido. Mesmo não saindo
fisicamente do ambiente em que está, é pelas suas palavras que a aniversariante Anita (do conto
“Feliz aniversário”) “sai” do modelo de comportamento que sempre teve, surpreendendo a todos.
Além disso, há nos três contos um aspecto onde o enredo das histórias é menos importante do
que os acontecimentos que mudam a vida dos personagens.
Podemos observar relações semelhantes aos dos contos nos romances A hora da estrela e
Um sopro de vida: Pulsações que serão analisados nos capítulos que seguem.
21
CAPÍTULO 3
A HORA DA ESTRELA
Este terceiro capítulo está dedicado ao romance A hora da estrela e às peculiaridades que
o compõem, especialmente à questão da construção da personagem Macabéa e de outros
personagens que cruzam o seu caminho, pelo narrador-personagem Rodrigo S.M.
Ao iniciarmos a leitura do romance, a primeira coisa que nos deixa intrigados é no que
diz respeito aos treze possíveis títulos da obra. Os títulos arranjados em uma lista dão uma
sensação de atordoamento ao leitor, não apenas pelas múltiplas opções, mas porque muitos deles
contradizem os outros. Ao optar em fazer isso, Lispector já nos mostra o que pretende fazer em
sua história, pois os títulos estão “pendurados” na folha de rosto, como se fossem folhetos de
cordel, e assinalam o tom folhetinesco e melodramático do universo de Macabéa” (Helena 64).
Ainda a respeito dos títulos, percebe-se ao longo de uma leitura detalhada que cada um pode ser
aplicado a uma parte diferente da trama. É interessante notar que se lermos os títulos de baixo
para cima, percebe-se que o antepenúltimo título é “A hora da estrela,” seguido por “A culpa é
minha,” e posteriormente Lispector escreve novamente “A hora da estrela” que termina por ser o
título definitivo do livro. Ao adotar esta técnica, Lispector já demonstra para nós leitores que a
temática da dúvida está intimamente ligada ao seu texto. A escritora tem dúvida quanto à escolha
de um dentre aqueles títulos e termina por escolher um o qual já havia mencionado
anteriormente. Outro fato que chama a atenção é o fato de Lispector assinar dentro dos títulos.
Aquele ato é a prova de que ela se coloca dentro da história ao considerar-se um dos títulos.
22
Lispector se coloca dentro da história como personagem e narradora ao mesmo tempo. Mesmo o
narrador tendo um nome, sabemos que ele está por trás dela. Assim sendo, há muito de Lispector
em Rodrigo S.M. e ele é também personagem da obra.
A hora da estrela é basicamente a rotina vazia e medíocre de uma alagoana de dezenove
anos “numa cidade toda feita contra ela” (Hora 15), que busca melhores condições de vida ao se
mudar para o Rio de Janeiro. Macabéa divide um quarto numa pensão juntamente com outras
quatro moças que trabalham como balconistas. Ela é feia, raquítica e solitária. Macabéa nasceu
pobre, nasceu e permaneceu franzina ao longo de sua vida. Macabéa faz com que os leitores
sintam uma mistura de pena e compaixão juntas por ela, mas ao mesmo tempo ela gera raiva
também. Sua rotina é trabalhar como datilógrafa, que por sinal é péssima, e ouvir a Rádio
Relógio durante as madrugadas. Macabéa coleciona pequenos anúncios num álbum e sonha
impossivelmente em ser artista de cinema como Marylin Monroe. Ela é uma jovem sem nenhum
tipo de vida interior, sem futuro e com um presente totalmente inexpressivo.
A questão da narração nessa obra é bastante curiosa por ser uma técnica bem diferente da
postura da narrativa previamente mostrada pela autora. O livro começa na parte da “Dedicatória
do autor.” Logo abaixo podemos ler entre parênteses: “Na verdade Clarice Lispector.” Em seu
livro, Lesley Feracho observa interessantes aspectos quanto a essa técnica adotada por Lispector:
Lispector presents the inter- and extratextual complexity that will be one of the
chief elements of the novel, along with a nontraditional dynamic between the
author-narrator. The first indication of this complex relationship can be seen in the
blurring of lines of authorship and consequently, a decentralization of power
within the text (85).
23
Ao refletirmos sobre o que foi exposto por Feracho, percebemos que a questão de definir quem
realmente narra A hora da estrela é bastante complexa por conta do narrador que tem um nome
próprio (Rodrigo) e ao mesmo tempo é um personagem criado por Clarice Lispector. Creio que
ao optar pela criação de um narrador-personagem masculino, se estabelece desde o início um
estrito vínculo entre Lispector e o narrador do livro. De acordo com Marta Peixoto:
Lispector assumes a masculine voice and makes the preface stylistically
indistinguishable from Rodrigo S.M.’s narrative. If her narrator is a mask,
Lispector seems to imply, then so is her autobiographical self.
The blurring of gender demarcations continues in the novella when the narrator in
turn creates a fictional female as his mask and his double (40).
Lispector e Rodrigo S.M. são um só e, ao mesmo tempo, são diferentes. Rodrigo S.M. representa
uma outra forma de ser e de escrever de Lispector, um desdobramento do próprio “eu” da
escritora, uma espécie de alter-ego criado por ela. Cabe ao narrador escolhido por Lispector
expressar de maneira mais confiável a realidade objetiva. Talvez pelo fato de que seja homem,
Rodrigo S.M. poderia ter uma visão de mundo menos intimista e sentimental, portanto mais
capaz de entender a vasta complexidade do mundo “porque escritora mulher pode lacrimejar
piegas” (Hora 14). A partir desta afirmação, percebemos um pouco de ironia no texto, pois
Rodrigo S.M. é homem, mas quem está por trás dele é uma escritora mulher. Ainda com essa
frase Lispector enfatiza a questão do narrador homem na tradição literária. Maria José Somerlate
Barbosa assim comenta sobre a questão do poder do narrador masculino na narrativa:
Representing a male literary tradition, Rodrigo defines the woman writer as
emotionally immature, unable to endure the hardships of telling an unhappy story.
Rodrigo asserts his generative power, confident that his gender will guarantee him
24
the position of a stronger story-teller. He assumes that he can control the process
of writing through his many roles in this narrative, and by relegating the feminine
voice to the margins. Rodrigo personifies the romantic idea of an author as he
isolates and purifies himself to undergo the “enormous” task of writing Macabéa’s
story (65).
Barbosa confirma o fato de que um narrador masculino impõe mais poder na protagonista
feminina porque ele é homem e isto dá a ele mais poder.
Rodrigo S.M. acredita que precisa se isolar para que tenha inspiração de escrever a sua
história. E é através deste isolamento que ele conseguirá dar continuidade à sua história: “To
ready himself, he will eat frugally, lock himself away in a small room, give up sex and soccer,
walk naked and not shave for several days. Purification is essential for Rodrigo to transform facts
into creative experience” (Barbosa 65).
Esta escolha do narrador masculino para narrar a história de Macabéa é vista de uma
maneira bastante peculiar por Márcia Guidin, pois ela acredita que “a escritora abdica da relação
direta com o fluxo mental da personagem (que Macabéa não tem), concedendo fingidamente e
pela primeira vez essa voz a explícito narrador masculino” (33). Ou seja, Lispector propõe a
negação irônica de si mesma e revela, por contraste, através da nova criação interposta, que os
narradores anteriores eram, na verdade, vozes femininas. A escolha pelo narrador masculino
também poderia apresentar algumas respostas aos impasses existenciais e literários que a
atormentavam, pois ela já sabia que se encontrava com uma doença incurável. Outra
possibilidade na escolha de um narrador masculino é feita por Barbosa, onde ela afirma que
Lispector “toys with the notion of anonimity to subvert and parody the concept of male
hegemony in the literary tradition” (64). Continuando neste pensamento, temos em A hora da
25
estrela não apenas mais um romance social, ou uma novela como Lispector o classificava, a
história torna-se O drama da linguagem (título de um livro escrito em 1989 por Benedito Nunes
sobre a obra de Lispector) povoado por questionamentos metafísicos sobre o significado da
existência ao uso de poder.
No capítulo “O jogo da identidade,” Benedito Nunes afirma que há em A hora da estrela
três histórias que se conjugam num regime de transição constante. A primeira história conta a
vida de uma moça nordestina que o narrador, Rodrigo S.M., surpreendeu na multidão: “É que
numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma
moça nordestina. Sem falar que eu em menino me criei no nordeste” (16). Ainda de acordo com
Benedito Nunes, a segunda história dentro do livro é a história do narrador Rodrigo S.M. Por
encontrar-se sozinho no mundo, ele cria sua personagem Macabéa e ambos acabam tornando-se
inseparáveis, dentro do contexto tenso e dramático em que estão envolvidos:
Mas essa situação, que os envolve, ligando o narrador à sua criatura, como
resultante do enredamento pela narrativa em curso, das oscilações do ato de
narrar, hesitante, digressivo, a preparar a sua matéria, a retardar o momento
inevitável da fabulação, constitui uma terceira história – a história da própria
narrativa (162).
Podemos comprovar as palavras de Nunes com as que encontramos no texto de Lispector onde
ela (ou Rodrigo S.M.) assim comenta: “Estou esquentando o corpo para iniciar, esfregando as
mãos uma na outra para ter coragem. Agora me lembrei de que houve um tempo em que para me
esquentar o espírito eu rezava: o movimento é espírito” (Hora 14).
No decorrer do livro, notamos que o narrador Rodrigo S.M. sofre um perceptível
deslocamento para dentro do texto, perdendo um seguro posicionamento do ato de narrar,
26
transformando-se em personagem da história que ele próprio cria. Este deslocamento de Rodrigo
S.M. dá ao texto um caráter destrutivo. Além de ser o narrador, ele torna-se protagonista de uma
outra história que transcorre paralela à de Macabéa: a história do processo de (des)construção do
texto. A partir desse narrador, ao obrigá-lo a se projetar em sua personagem, projeta-se na
personagem também o papel da escritora, identificando-se com Macabéa e Rodrigo S.M.
simultaneamente. Fazer-se personagem, narradora e autora ao mesmo tempo significa, além do
desmascaramento, a disseminação da identidade por entre as diferentes partes do texto. Lispector
assume uma postura que oscila e que se move no texto, e se entrega ao leitor como se fosse um
produto ficcional. Em A hora da estrela, Clarice Lispector “desmascara ostensivamente os
meandros da ficção, revelando, por contraste, e num gesto próximo do sentido da morte, o
esvaziamento de sua identidade” (Guidin 32).
Rodrigo S.M. passa as primeiras vinte páginas do seu texto discutindo sobre os problemas
narrativos que ele enfrenta para escrever. Ele reflete sobre qual estilo empregar à sua obra e
desde o início deixa claro que quer deixar a simplicidade prevalecer ao uso de uma linguagem
mais rebuscada:
Pretendo, como já insinuei, escrever de modo cada vez mais simples. Aliás o
material de que disponho é parco e singelo demais, as informações sobre os
personagens são poucas e não muito elucidativas. [...] É claro que, como todo
escritor, tenho a tentação de usar termos suculentos: conheço adjetivos
esplendorosos, carnudos substantivos e verbos tão esguios que atravessam agudos
o ar [...] Mas não vou enfeitar a palavra [...] tenho que falar simples para captar a
sua delicada e vaga existência. [...] Que ninguém se engane, só consigo a
simplicidade através de muito trabalho. (Hora 15)
27
No decorrer da trama, Rodrigo S.M. cria um namorado para Macabéa, o também nordestino
Olímpico de Jesus. Diferentemente dela, ele almeja ascender socialmente e até sonha em ser um
político, no caso um deputado. O início do relacionamento entre Olímpico e Macabéa é tão
desprezível que o próprio autor comenta: “O que se segue é apenas uma tentativa de reproduzir
três páginas que escrevi e que a minha cozinheira, vendo-as soltas, jogou no lixo para o meu
desespero” (42). Ao fazermos uma leitura detalhada do texto, nota-se que até antes de conhecer o
Olímpico, Macabéa é denominada pelo seu narrador como “a nordestina” ou “moça pobre.” É só
partir do seu encontro com Olímpico que ela ganha um nome, adquirindo uma noção de
identidade. E assim foi o primeiro encontro entre os dois:
- E, se me permite, qual é mesmo a sua graça?
- Macabéa.
- Maca, o que?
- Béa, foi obrigada a completar.
- Me desculpe mas até parece doença, doença de pele. (43)
A constante apatia cultural e social de Macabéa é sobreposta pelo discurso de Olímpico. Rodrigo
S.M. define o relacionamento dos dois afirmando que “... ele falava coisas grandes mas ela
prestava atenção nas coisas insignificantes como ela própria” (52). O relacionamento dos dois é
baseado em palavras que eles ouvem no dia a dia e quando estão juntos as utilizam para
impressionar um ao outro. Sobre os termos e palavras utilizados nas conversas, Barbosa
comenta:
Macabéa listens to Clock Radio every morning, learns fancy words that are not
part of her prosaic vocabulary, and later uses them in her conversation with
Olímpico. Not only does she mispronounce the words and/or uses them out of
28
context, but she also challenges Olímpico’s linguistic competence by asking him
the meaning of words he does not know. (66)
Olímpico não tolera esse comportamento de Macabéa. Nos diálogos entre os dois fica claro que
ele se irrita profundamente com os constantes questionamentos dela. Ele até a adverte que “o
mangue está cheio de raparigas que fizeram perguntas demais” (55). Além de ficar irritado com
as diversas perguntas feitas por Macabéa, ele também se irrita porque não consegue entender
muitas das coisas que ela fala, palavras que ela ouve no rádio e as repete apenas para
impressionar Olímpico. “In an interplay of voices, the text exposes how brutal and comic he
becomes in his struggle to prove himself superior, smarter, and more powerful than Macabéa”
(Barbosa 66). Em muitos dos encontros entre Macabéa e Olímpico chovia, e ele colocava nela a
culpa pela chuva. O namoro dos dois acaba quando Olímpico conhece a Glória, uma colega de
Macabéa. Diferentemente dela, Glória era carioca e loira, e isso a tornava superior a Macabéa e
“um degrau a mais para Olímpico” (59). Glória representa para Olímpico o desejado ingresso na
sociedade do sul, pois ela era “carioca da gema!” (59). No processo de sucessivas perdas de
Macabéa, não há nem a hipótese de um triângulo amoroso. Na sua mediocridade interior, a pobre
nordestina sequer experimenta um sentimento de dor ou sofrimento. Ela apenas ri quando
Olímpico lhe comunica o rompimento.
Mas por que será que Rodrigo S.M. sente essa necessidade de escrever esta história?
Acredito que seja porque escrevendo ele consiga se compreender (ou acha que consegue), e isto
é uma necessidade para ele. Também se deve ter em mente que Lispector é quem está por trás de
Rodrigo S.M. Lispector constrói Rodrigo que cria Macabéa. É construindo a sua personagem que
Rodrigo (ou Lispector) constrói-se a si próprio, para manter-se na condição de sujeito diante do
que é. Ele próprio se indaga e propõe respostas: “Por que escrevo? Antes de tudo porque captei o
29
espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo. Escrevo portanto não por causa
da nordestina mas por motivo grave de ‘força maior’” (18). Peixoto dialoga sobre a interação
existente entre Macabéa e Rodrigo S.M.:
The interaction between Rodrigo S.M. and Macabéa, the most pressing concern of
the metatextual commentary, entails two main issues. First, a sustained though in
part implicit questioning of the status of a novelist’s invention of fictional
characters. How much of it originates in valid apprehension of personal and social
truth, as the narrator in his more optimistic moments believes? Writing, in this
view a generous gift, gives voice to those who would otherwise be silent. In much
of the metatextual commentary, mimesis is urgent and attainable. A second set of
metatextual commentaries contradicts the possibility of mimesis, or at least sees
representation as more complicated and charged. One obstacle to mimesis stems
from class differences between narrator and characters (40).
Este narrador precisa de alguma maneira dar sentido à sua vida, e a sua vida só faz sentido ao
lado da história por ele criada para sua personagem Macabéa. A performance de Lispector em
criar um autor para em seguida criar laços com a protagonista é fracassada.
Além de optar pela simplicidade, Rodrigo S.M. também se preocupa em fazer “uma
história com começo, meio e ‘gran finale’” (13) fugindo do modo psicológico e subjetivo
adotado por Lispector em obras anteriores. O “gran finale” aqui é mais uma ironia de Lispector,
pois o fim de Macabéa acaba sendo a morte, e consequentemente Macabéa morrendo, sua
história acaba e Rodrigo S.M. acaba também, pois ele morre.
A temática da culpa também está bastante presente nesta obra. Por que Rodrigo S.M.
sente-se responsável pela situação em que Macabéa se encontra? Rodrigo S.M. talvez se sinta
30
atormentado por saber que somente ele pode mudar o destino dela. É escrevendo que ele
consegue sentir-se aliviado e menos culpado. Para Rodrigo S.M., escrever a sua história é algo
maior de que apenas narrar o cotidiano em que Macabéa se encontra. Escrever para ele é
questionar-se a todo instante. Apesar do enredo de A hora da estrela ser bastante simples, a
complexidade do livro está presente na relação Macabéa versus Rodrigo S.M. Se por um lado ele
a vê como um ser que merece amor, piedade e até um pouco de raiva, por outro lado, ele
estabelece com ela um vínculo mais profundo, que é o da condição humana, pois um depende do
outro para continuarem vivendo. Esta criação de identidade, que ultrapassa as questões de classe,
gênero e de consciência de mundo, é um elemento bastante significativo na obra.
Ao longo da narrativa, percebemos que quanto mais a história avança, mais Rodrigo S.M.
mergulha dentro da história de Macabéa, dilacerando-a e sempre sentindo-se culpado em relação
à sua personagem, cuja morte absurda transforma-se em um reflexo da sua própria condição
miserável e do seu fracasso como escritor. Ele também tem a necessidade de provar para os
leitores que não é culpado pelo acontecimento:
[...] Sou inocente! Não me consumam! Não sou vendável! Ai de mim, todo na
perdição e é como se a grande culpa fosse minha. [...] Macabéa me matou. Ela
estava enfim livre de si e de nós. Não vos assusteis, morrer é um instante, passa
logo, eu sei porque acabo de morrer com a moça. Desculpai-me essa morte. É que
não pude evitá-la, a gente aceita tudo porque já beijou a parede. (Hora 86)
Terminar a narração, para Rodrigo S.M. representa não apenas o fim de uma história sem luxos e
bastante melancólica, este fim também representa o seu próprio fim. Perplexo, ele vê na morte de
sua Macabéa a sua própria morte: “Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas –
mas eu também?!” (Hora 87). A conclusão implícita de Rodrigo S.M. é a de que ele, juntamente
31
com Macabéa e a própria Lispector, apesar de todas as diferenças sociais, intelectuais e de visão
de mundo que os separavam, tinham um traço de identidade em comum. Ao final, eles
convergem-se para o mesmo destino, simbolizado pelo título do livro que também serve como
metáfora, “A hora da estrela,” ou seja, a morte, “pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante
estrela de cinema, é o instante de glória de cada um, e é quando como no canto coral se ouvem
agudos sibilantes” (Hora 85).
Essa relação narrador/personagem que há em A hora da estrela também é confirmada no
próximo livro a ser comentado, Um sopro de vida: Pulsações.
32
CAPÍTULO 4
UM SOPRO DE VIDA: PULSAÇÕES
O livro abordado no capítulo anterior, A hora da estrela, é visto por muitos críticos da
obra de Clarice Lispector, semelhante à técnica adotada por ela em Um sopro de vida:
Pulsações. Se pensarmos em um sentido amplo das duas obras, a construção de Macabéa se
assemelha à construção de Ângela Pralini “... no reviver do dilema pirandeliano da relação entre
o autor, o auto da escrita e os seres que engendra” (Helena 60). Como o personagem/narrador
“Autor” não tem um nome próprio, ao me referir a ele utilizarei as palavras autor/narrador. Ao
mencionar Lispector, utilizarei os vocábulos autora e escritora.
Escritos simultaneamente, A hora da estrela e Um sopro de vida têm semelhantes
características. De acordo com Maria José Somerlate Barbosa:
These two texts share some philosophical concerns and use similar narrative
techniques. They provide the reader with the narrators’ fear of writing, thoughts of
giving it up, concerns about language, authorial intrusions, digressions, and a
compelling desire to blur the boundaries of fiction and reality (67).
Barbosa aponta várias semelhanças entre as duas obras. Para complementar estas similaridades,
creio que seja importante mencionar que ambos narradores criam protagonistas femininas para as
histórias.
Lispector sabia que, encontrando-se já bastante doente, este livro seria o seu “sopro de
vida.” Como Earl Fitz anota:
33
And because we know that Clarice was aware she was dying, even as she toiled to
conclude this deeply dramatic account of the inner crisis she was experiencing, we
are profoundly moved as we enter into the partly fictionalized, partly
autobiographical world created by her text (264).
Em Lispector, o exercício de comunicar e escrever é tão intenso quanto o de conhecer o
desconhecido. Para ela, viver é sinônimo de explorar esse mundo desconhecido. A aventura do
conhecimento, principalmente do auto-conhecimento é uma marca em Um sopro de vida:
Pulsações. Nessa obra, a escritura de Lispector busca um sentido mais amplo para o ato de
existir. Em Um sopro de vida: Pulsações e em A hora de estrela, é perceptível que a repetição, a
acomodação e a tristeza tornam insustentável a vida de qualquer pessoa. Ainda mencionando
essas duas obras:
Whereas in A hora da estrela Lispector mocks the male view of women writers –
a hierarchical structure in literary tradition – in Um sopro de vida, she parodies the
romantic notion of the Author-god. The title of this text (Um sopro de vida) bears
a special significance as it may carry biblical overtones. (Barbosa 67)
A afirmação de Barbosa é bastante coerente, pois fica claro que a personagem “Autor” sente-se
como um Deus, alimentando de vida a sua personagem e ao mesmo tempo admitindo para si
próprio ser o criador e figura mais importante na narrativa. Ele nos indaga: “Quando Ângela
pensa em Deus, será que ela se refere a Deus ou a mim?” (Sopro 125). Nesta obra, a dualidade
do ser é uma constante. A vida das personagens é possuída por sentimentos paradoxos: Ora pelo
tédio e revolta, ora por amor, paixão de conhecimento, desejo de plenitude e principalmente
compaixão para com o outro. Mas esse “outro” não pode preencher ninguém, pois as pessoas não
são feitas uma para completar a outra. Seguindo neste pensamento, o envolvimento com o
34
“outro,” acima de tudo, requer um envolvimento consigo mesmo. O autor/narrador revela aos
leitores que para alcançar uma verdade que se auto-revela, uma verdade que se transformará no
fluxo da narrativa, é preciso criar uma personagem:
O resultado disso tudo é que vou ter que criar um personagem – mais ou menos
como fazem os novelistas, e através da criação dele para conhecer.
Porque eu sozinho não consigo: a solidão, a mesma que existe em cada um, me
faz inventar. E haverá outro modo de salvar-se? senão o de criar as próprias
realidades? [...] Escolhi a mim e ao meu personagem – Ângela Pralini – para que
talvez através de nós eu possa entender essa falta de definição de vida (Sopro 18).
Lispector cria o autor que por sua vez cria Ângela Pralini, mas ela o surpreende, começando a
tomar vida própria, muitas vezes deixando seu criador revoltado. É através deste processo de
criação que Lispector revela os conflitos de um autor com seus próprios impulsos e o quanto é
doloroso aceitá-los e deixá-los fluir.
O livro é composto por três capítulos. O primeiro, “Um sopro de vida” é onde o
personagem autor se apresenta ao leitor e tenta explicar o motivo pelo qual Um sopro de vida
“takes the form of a ceaseless colloquy between ‘the author,’ Angela Pralini and, as we slowly
come to believe, Clarice Lispector herself” (Fitz 261). Podemos comprovar essas ligações, pois,
nas primeiras páginas do livro o autor/narrador mesmo tendo vida própria e salientando partes do
seu trabalho, tem implícita a voz de Lispector como podemos perceber: “Isto não é um lamento,
é um grito de ave de rapina. Irisada e intranqüila. O beijo no rosto morto” (Sopro 11). O
autor/narrador também explica aos leitores o motivo pelo qual ele escreve:
Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha
própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos
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porque neles vivemos. De repente as coisas não precisam mais fazer sentido.
Satisfaço-me em ser. Tu és? Tenho certeza que sim. O não sentido das coisas me
faz ter um sorriso de complacência. De certo tudo deve estar sendo o que é (Sopro
11).
Ainda na primeira parte do livro, o narrador, sabendo que o leitor irá de imediato ligar as
vozes do autor e de Ângela Pralini à voz de Clarice Lispector, alerta: “Eu que apareço neste livro
não sou eu. Não é autobiográfico, vocês não sabem nada de mim. Nunca te disse e nunca te direi
quem sou. Eu sou vós mesmos” (19). Porém, posteriormente, no capítulo seguinte, intitulado “O
sonho acordado é que é a realidade,” ocorre uma mudança dessa perspectiva que envolve
narrador, a personagem Ângela e a própria Clarice Lispector, como podemos perceber:
Eu como escritor espalho sementes. Ângela Pralini nasceu de uma semente antiga
que joguei em terra dura há milênios. Até onde vou eu e em onde já começo a ser
Ângela? Somos frutos da mesma árvore? Não – Ângela é tudo o que eu queria ser
e não fui. Ângela é a minha reverberação, sendo emanação minha, ela é eu. (Sopro
27)
Ângela é uma criação do autor/narrador. Uma característica do começo do texto é que ela
demonstra ser mais obediente a ele do que nos capítulos seguintes. O autor quer deixar
prevalecer que ele tem o controle da sua criação: “Ângela luta por criar um modo próprio de se
expressar. Então, como sou de certo modo dono dela – obrigo-a a escrever simples” (83). Ao se
pronunciar dessa maneira, o autor quer mostrar aos leitores o poder masculino que se sobressai à
voz da personagem feminina. O último e mais longo capítulo do livro se chama “Livro de
Ângela.” Neste capítulo, o autor descreve os pensamentos e tentativas dela de quebrar esse elo
36
que há entre ela e o autor. No seu artigo “Um sopro de vida: Pulsações,” Susan Quinlan assim
aponta a mudança no comportamento de Ângela:
The more Angela-as-character begins to create her own book, the more she breaks
away from the personage created by Lispector and by the Author-as-character, the
more she takes over the responsibility of authorship, or responsibility for the text
(144).
Ao compararmos a Ângela do início da história com a Ângela deste capítulo, nota-se
nitidamente o quanto ela já está mais independente do autor, até cogitando escrever um livro,
para a surpresa do autor/narrador que jamais pensou que ela seria capaz disto: “Amanhã começo
o meu romance das coisas” (Sopro 99). Por conta disto, ele sente a necessidade de culpá-la. O
autor ainda confessa que ela não está seguindo o modelo de personagem que ele deseja e ainda a
acusa de ter um estilo ilógico e desorganizado de escrever. Sobre esse aspecto, Barbosa aponta
uma semelhança entre o autor e Rodrigo S.M. de A hora da estrela: “Like Rodrigo in A hora da
estrela who discusses the possibility of killing the protagonist, the Author in Um sopro de vida
weighs the feasibility of murdering Ângela” (68). Quando o autor sente que ela está adquirindo
independência além do controle dele, ele decide que está na hora de tomar algumas providências,
e isso diz respeito a exterminá-la e criar uma “outra” Ângela, pois aquela adquirira uma voz além
da que ele havia lhe dado. No fragmento que segue, observamos o quanto a personagem Ângela
representa algo descartável para seu criador:
Vou inventar uma mulher una, que seja organizada e lógica, que tenha a
propensão como de uma cirurgiã. Ou mesmo que seja advogada. E que na cama
seja límpida e sem pecado. Vou viver com ela. Dá mais segurança do que com
37
Ângela. O que me cansa é que ela é indomesticável. Porque é mais livre do que eu
(Sopro 134).
Um sopro de vida foi escrito em uma época em que Lispector se dedicou à pintura. A
personagem Ângela Pralini, que juntamente com o autor também pode ser considerada um “eu”
da escritora, fala dos quadros que pinta. Daí encontramos o que podemos tomar como verdadeira
confissão da escritora sobre a necessidade vital de uma expressão artística: “Ângela herdou de
mim o desejo de escrever e de pintar. E se herdou esta parte minha, é que não consigo imaginar
uma vida sem a arte de escrever ou de pintar ou de fazer música. O que quer Ângela da vida?”
(Sopro 82).
No final do livro, que talvez Lispector jamais pudesse imaginar o impacto que ele
causaria, o personagem autor retoma o poder sobre Ângela, fazendo prevalecer sua figura de
narrador homem e privando-a de ter uma voz no texto. De acordo com Barbosa:
He looks at her, projects her in the distance, she gradually disappears from the
text, and he reinforces his masculine power and discourse. By removing Angela
from the text, the author exemplifies the struggle of a male dominated tradition
that feels threatened when challenged. (69)
Em Um sopro de vida encontramos a escritora Clarice Lispector fazendo uso da
performance (como foi explicado na introdução deste trabalho) para dar vida à personagens.
Ângela foi uma tentativa frustrada (assim como foi a criação de Macabéa) do autor/narrador de
criar uma mulher perfeita ao seu modo. Ambas (Macabéa e Ângela,) de diferentes maneiras não
satisfizeram seus criadores.
38
CAPÍTULO 5
CONCLUSÃO
Os livros Laços de família, A hora da estrela e Um sopro de vida: Pulsações da escritora
Clarice Lispector, apesar de terem sido escritos em épocas diferentes (A hora da estrela e Um
sopro de vida foram escritos na mesma época, mas Laços de família foi escrito no início da
década de sessenta,) apresentam características semelhantes no que diz respeito à família, seja
ela em ficção, seja a falta de uma família ou uma tentativa fracassada de se construir um
relacionamento familiar.
No primeiro capítulo, nos três contos analisados da obra Laços de família encontramos
três histórias muito parecidas inseridas em contextos bem diferentes. Nessas histórias, está claro
que muitas das personagens sentem uma necessidade de fugir da família que as cercam para que
possam ter um melhor entendimento de mundo. O conceito de união familiar nesta obra está
mistificado, pois há uma nítida barreira que separa os membros de uma mesma família. Através
de uma colocação muito bem empregada, Lispector aponta a situação da mulher dentro da
estrutura social vigente: “A mãe trabalhou durante anos nos partos e na casa.” (Laços 112) Os
laços que poderiam ser bastante fortes por se tratarem de relações entre pessoas de uma mesma
família, se tornam enfraquecidos, chegando até a extinguir-se.
O que acontece nessas histórias é que a protagonista se cansa de uma vida que consiste
em momentos iguais, sem acontecimentos que a surpreenda e que quebre sua rotina. E o que
poderiam fazer as protagonistas diante dessas circunstancias? Ou ela se enquadra e se amolda se
tornando um exemplo de mãe e a esposa perfeita, tornando-se aceita pela sociedade, ou ela não
39
se enquadra e é rejeitada por ser “diferente,” como ocorre com a personagem Pequena Flor do
conto “A menor mulher do mundo.” As mulheres protagonistas desses contos de Clarice
Lispector tornam-se “diferentes” mesmo que seja apenas por alguns instantes. Diferentes no
sentido de que, ao experimentarem o novo, deparam-se com um sentimento até então nunca
vivenciado.
Ao se analisar o romance A hora da estrela, percebe-se que Lispector utiliza um jogo de
personagens na tentativa de encaixar a protagonista da história num contexto onde haja uma
interação dela com o mundo que a cerca. Lispector e/ou Rodrigo S.M. sabem da importância de
colocar Macabéa em um contexto familiar para que ela não esteja mais sozinha no mundo e cria
o namorado Olímpico de Jesus com o intuito de dar à ela um companheiro com a possibilidade
de formar com ele uma família.
Bem diferente das histórias de Laços de família onde há um ambiente familiar, só que se
encontra desgastado e em constante desmoronamento, em A hora da estrela não existem figuras
como um pai, uma mãe ou filhos. O que há nesta obra é a falta de uma família, ou de indivíduos
que poderiam funcionar como sendo uma. O único parente direto que tomamos conhecimento
sobre Macabéa é uma tia beata que a cria depois que sua mãe morre. Macabéa tinha apenas dois
anos quando ficou órfã e sua tia não possuía um bom relacionamento familiar com ela, segundo
as passagens do livro. Ainda quando moravam juntas em Maceió Macabéa lembra da tia “... lhe
dando cascudos no alto da cabeça porque o cocuruto de uma cabeça deveria ser, imaginava a tia,
um ponto vital” (Hora 28).
Em A hora da estrela nem uma concepção de laços de amizade pode ser observada.
Olímpico deixa Macabéa e passa a namorar a colega de trabalho dela, a Glória. Também não
verificamos amizade entre Macabéa e suas colegas de quarto. O que as une é a marginalidade,
40
pois dependem umas das outras para que possam se manter no Rio de Janeiro. Não podemos
esquecer de observar a relação existente entre Macabéa e o narrador Rodrigo S.M. Este é talvez o
relacionamento mais intrigante da obra, pois a personagem Macabéa desperta diferentes
sentimentos como culpa, compaixão, pena e até mesmo o ódio em seu criador. O conceito de
família que pode ser adotado em A hora da estrela não é o mesmo que observamos em Laços de
família. É preciso que o termo “família” seja ampliado para que possamos considerar as pessoas
envolvidas em A hora da estrela uma família.
Uma conclusão sobre as relações entre as personagens de A hora da estrela é que todo o
tipo de relacionamento dentro daquele contexto é fracassado. Os laços entre Macabéa e sua tia,
seu relacionamento com o emprego de datilógrafa, o relacionamento com a cidade em que ela
opta por viver e até mesmo com um possível companheiro. Nenhum tipo de relacionamento na
vida de Macabéa é visto como algo positivo, a não ser a sua morte: “O final foi bastante
grandiloqüente” (Hora 86).
O último livro citado neste trabalho foi Um sopro de vida: Pulsações. Como foi apontado
no quarto capítulo, este livro muito se assemelha com A hora da estrela em certos aspectos,
como por exemplo, a estrutura da narrativa. Se em A hora da estrela temos a trilogia formada
por Lispector, Rodrigo S.M. e Macabéa, em Um sopro de vida observa-se novamente Lispector
presente dentro da história, a personagem “Autor” (que se assemelha com Rodrigo S.M.,) e o
objeto de criação Ângela Pralini. Apesar das semelhanças entre as duas obras, podemos apontar
algumas diferenças entre seus narradores. Em A hora da estrela temos um narrador que acha que
controla o seu objeto de criação. Rodrigo S.M. traça todos os caminhos a serem percorridos por
sua personagem Macabéa, do seu surgimento até a sua morte. Por outro lado, em muitos
41
momentos de Um sopro de vida encontramos o autor (narrador) frustrado, pois sua personagem
Ângela começa a se comportar de uma maneira não planejada por ele.
Nesta obra, o personagem “autor,” sente-se sozinho e precisa urgentemente criar uma
personagem para que ela tenha um vínculo com ele. Assim como Lispector está por trás do
narrador Rodrigo S.M., ela também está por trás do personagem “Autor.” A tentativa do autor de
formar laços com Ângela Pralini não é bem sucedida, pois ao fim da história sabemos que a
Ângela não se enquadra no tipo de personagem que o autor está tentando construir porque se
torna independente demais.
Creio que há nos três livros de Lispector mencionados neste trabalho uma ligação quanto
à construção e desconstrução de um contexto familiar, à ausência deste contexto e o fracasso na
tentativa de se obter um relacionamento, seja ele familiar ou não. As relações que existem entre
as pessoas/personagens presentes nos três livros nos faz refletir sobre o conceito do que
representa uma família e que ela pode ser feita não só por pessoas que possuem parentesco mas
também por indivíduos que se relacionam entre si.
42
OBRAS CITADAS
Barbosa, Maria José Somerlate. Clarice Lispector: Spinning the Webs of Passion. New
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