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abertura
O século XXI:
nova idade na história da filosofia
enquanto diálogo mundial entre
tradições filosóficas
*
Enrique Dussel**
Procurarei pensar um tema que, na minha opinião, ocupará o século XXI: a aceitação por cada uma das tradições filosóficas regionais do
planeta (europeia, estadunidense, chinesa, hindu, árabe, africana, latinoa* Texto original publicado sob o título “El siglo XXI: nueva edad de la historia de la filosofia en
tanto diálogo mundial entre tradiciones filosóficas”. Revista Signos Filosóficos, UAM, México,
v. XII, n. 23, ene-jun. 2010, p. 119-140. A edição de Signos informa que uma primeira versão
do texto foi apresentada como conferência no XXII World Congress of Philosophy, realizado
em Seul, Coreia, em 2 de agosto de 2008, na III Seção Plenária sobre o tema: “Repensando a
história da filosofia e a filosofia comparativa”. A exposição consiste em incluir teses fundamentais que têm sido tratadas de forma mais extensa em outras obras do autor (ver www.enriquedussel.org, use-se o sistema “copernic.com” para buscar temas em toda a obra ali escaneada).
Tradução por Paulo César Carbonari (IFIBE). Revisão da tradução por Roque Zimmermann.
Tradução e publicação autorizadas pelo autor em julho de 2011.
** Professor do Departamento de Filosofia da Universidad Autónoma Metropolitana-Iztapalapa e no Colegio de Filosofía da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidad
Nacional Autónoma de México. Licenciado em filosofia pela Universidad Nacional de
Cuyo, Mendoza, Argentina; doutor em filosofia pela Universidad Complutense de Madrid,
doutor em história pela Sorbonne de Paris e uma licenciatura em teologia em Paris e
em Münster. Obteve doutorados honoris causa em Freiburg, Suiça, e na Universidad de
San Andrés, La Paz, Bolivia. Professor emérito da Universidad Autónoma Metropolitana.
Trabalha especialmente Ética e Filosofia Política.
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mericana, etc.) do valor e da históriia das outras tradições flosóficas. Seria
a primeira vez na história da filosofia que as diversas tradições filosóficas
se disporiam a um diálogo autêntico e simétrico graças ao qual aprenderiam muitos aspectos desconhecidos ou mais desenvolvidos com outras tradições. Ademais, seria a chave para a compreensão do conteúdo
de outras culturas presentes na vida cotidiana de toda a humanidade,
proporcionada pelos gigantescos meios de comunicação que permitem,
num instante, receber notícias de culturas das quais não se tinha conhecimento. Será um processo de mútuo enriquecimento filosófico que exige,
eticamente, reconhecer a todas as comunidaes filosóficas de outras tradições iguais direitos de argumentação, superando assim o moderno eurocentrismo, hoje imperante, e que leva à infecundidade e, frequentemente,
à destruição de notáveis descobrimentos de outras tradições.
Os núcleos problemáticos universais
Chamarei de núcleos problemáticos universais ao conjunto de perguntas fundamentais (ontológicas) que o homo sapiens formulou a si
mesmo ao ter chegado à maturidade específica; perguntas cuja existência está provada nos relatos míticos de todos os povos. Em razão de seu
desenvolvimento cerebral, com capacidade de consciência, autoconsciência, desenvolvimento linguístico, ético (de responsabilidade sobre seus
atos) e social, o ser humano enfrentou a totalidade do real para poder
manejá-lo com a finalidade de reproduzir e desenvolver a vida humana
em comunidade. O desconcerto ante as possíveis causas dos fenômenos
naturais que devia enfrentar e o imprevisível de seus próprios impulsos e
comportamentos levou o homo sapiens a fazer perguntas em alguns núcleos problemáticos tais como: o que são e como se comportam as coisas
reais em sua totalidade, desde os fenômenos astronômicos até a simples
queda de uma pedra ou a produção artificial do fogo?; em que consiste o
mistério da subjetividade, o eu, a interioridade humana?; como pode ser
pensada a espontaneidade humana, a liberdade, o mundo ético e social?;
e, afinal, como pode ser interpretado o fundamento último de todo o real,
do universo? – com o que surge a pergunta pelo ontológico como: “por
que o ser e não mais o nada? – Estes núcleos problemáticos devem ter-se
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feito presentes, inevitavelmente, questionando a todos os grupos humanos desde o mais antigo paleolítico. São núcleos problemáticos racionais
ou perguntas, entre muitas outras, dos porquês universais que não podem faltar em nenhuma cultura ou tradição.
O conteúdo e o modo de responder a estes núcleos problemáticos
desatam, lançam e disparam desenvolvimentos muito diversos das narrativas racionais, se por racionais se entende o simples dar razões ou fundamentos que pretendem interpretar ou explicar os fenômenos, ou seja,
o que aparece em cada um desses núcleos problemáticos.
O desenvolvimento racional das narrações míticas
A humanidade, sempre e inevitavelmente, seja qual tenha sido o
grau de seu deenvolvimento e em seus diversos componentes, expôs linguisticamente as respostas racionais (ou seja, dando fundamentos, sejam
quais forem enquanto não foram refutados) a tais núcleos problemáticos
por meio de um processo de produção de mitos (uma mito-poiésis). A
produção de mitos foi o primeiro tipo racional de interpretação ou explicação do real (do mundo, da subjetividade, do horizonte prático ético ou
de referência última da realidade descrita simbolicamente).
Os mitos, narrações simbólicas, não são irracionais nem se referem
somente a fenômenos singulares. São enunciados simbólicos e, por isso,
de duplo sentido que exigem, para sua compreensão, todo um processo
hermenêutico que decobre as razões. Neste sentido, são racionais1 e contêm significados universais (enquanto se referem a situações repetíveis
em todas as circunstâncias) construídos com base em conceitos (categorizações cerebrais de mapas cerebrais que incluem milhões de grupos
neuronais, pelos quais se unificam num significado múltiplos fenômenos empíricos e singulares que o ser humano enfrenta).
Os numerosos mitos que se ordenam em torno dos núcleos problemáticos indicados são guardados na memória da comunidade, no começo
pela tradição oral e, desde três milênios a. C., em escritos, onde são coletados, recontados e interpretados por comunidades de sábios que se
admiram ante o real, “porém, o que não tem explicação e se admira,
1 Ver a problemática da racionalidade do mito na obra de Paul Ricoeur.
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reconhece sua ignorância, pelo que, aquele que ama o mito (filomythos)
é como aquele que ama a sabedoria (filósofo)”, segundo a expressão de
Aristóteles (Metafísica I, 2, 982b 17-18). Nascem assim as tradições míticas que dão aos povos uma explicação com razões das perguntas mais árduas que afligem a humanidade e que denominei núcleos problemáticos.
Povos tão pobres e simples como os tupinambás do Brasil, estudados por
Claude Levy-Strauss, cumpriam suas funções em todos os momentos de
sua vida graças ao sentido que lhes outorgavam seus numerosos mitos.
As culturas, no dizer de Paul Ricoeur, têm um núcleo ético-mítico
(“le noyau éthico-mythique”) (Cf. RICOEUR, 1964, p. 274-288 e DUSSEL,
2006), ou seja, uma visão do mundo (Weltanschauung) que interpreta os
momentos significativos da existência humana e os guia eticamente. Por
outro lado, certas culturas (como a chinesa, a hindu, a mesopotâmica, a
egípcia, a asteca, a árabe, a helênica, a romana, a russa, etc. etc.) alcançaram, devido a seu domínio político, econômico e militar, uma extensão
geopolítica que subsumiu a outras. Estas, com certa universalidade, sobrepuseram suas estruturas míticas às outras, que lhes foram subalternas.
Foi uma dominação cultural que a história constata em todo o seu desenvolvimento. É evidente que, de uma maneira ou outra, quiçá exceptuando-se as ameríndias, tiveram intercâmbio entre si, não se constituíram
em substantividades absolutamente independentes.
Nestes diálogos e choques culturais certos mitos perduraram nas
etapas posteriores (mesmo na idade dos discursos categoriais filosóficos
e da ciência da própria Modernidade, até o presente). Nunca desaparecerão todos os mitos porque alguns seguem tendo sentido, como bem
anotam Ernst Bloch (1959) e Franz Hinkelammert (2008).
O novo desenvolvimento racional dos
discursos com categorias filosóficas
No que diz respeito à passagem do mythos ao lógos (neste exemplo,
dando à língua grega uma primazia que em seguida questionarei), nos
ensinaram que este foi um salto do irracional ao racional; do empírico
concreto ao universal; do sensível ao conceitual. Isto é falso. Esta passagem dá-se de uma narrativa com certo grau de racionalidade a outro
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discurso com um nível distinto de racionalidade. É um progresso na precisão unívoca, na clareza semântica, na simplicidade, na força conclusiva
da fundamentação, porém é uma perda dos sentidos do símbolo que
podem ser hermeneuticamente redescobertos nos momentos e lugares
diversos (característica própria da narrativa racional mítica). Os mitos
prometeico ou adâmico seguem tendo significação ética no presente
(RICOEUR, 1963).
Então, o discurso racional unívoco, ou com categorias filosóficas,
que pode, de algum modo, definir seu conteúdo conceitual sem recorrer
ao símbolo (como o mito) ganha em precisão, porém perde em sugestão
de sentido. É um avanço civilizatório importante, abre caminho à possibilidade de efetuar atos de abstração, análise, separação dos conteúdos
semânticos da coisa ou do fenômeno observado, do discurso e à descrição e explicação precisa da realidadae empírica, para permitir ao observador um manejo mais eficaz em vista da reprodução e desenvolvimento
da vida humana em comunidade.
A mera sabedoria, se por esta se entende expor com ordem os diversos componentes das respostas aos núcleos problemáticos indicados,
torna-se agora como que o conteúdo de um ofício social diferenciado que
se ocupa do esclarecimento, exposição e desenvolvimento dela mesma.
Uma sociologia da filosofia mostra que as comunidades de filósofos formam agrupamentos diferenciados daqueles dos sacerdotes, dos artistas,
dos políticos, etc. Os membros destas comunidades de sábios, ritualizados, que constituem escolas de vida estritamente disciplinadas (desde o
calmecac asteca até a academia ateniense ou os sábios da cidade de Menfis
no Egito do III milênio a. C.), foram os chamados amantes da sabedoria
(philo-sóphoi) entre os gregos. Em seu sentido histórico, os amantes dos
mitos também eram estritamente amantes da sabedoria e, por isso, os que
posteriormente serão chamados filósofos deveriam mais adequadamente ser denominados filo-lógos, se por lógos se entende o discurso racional com categorias filosóficas que já não usam os recursos da narrativa
simbólica mítica, senão de maneira excepcional e como exemplo e para
exercer sobre eles uma hermenêutica filosófica.
O processo de deixar para traz a pura expressão racional mítica e
depurá-la do símbolo para, semanticamente, dar a certos termos ou palavras uma significação unívoca, definível, com conteúdo conceitual, fruto
de elaboração metódica, analítica, que vai do todo às partes, para ir
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fixando seu significado preciso foi ocorrendo em todas as grandes culturas
urbanas do Neolítico. A narrativa com categorias filosóficas foi ocorrento
na Índia (posterior aos Upanishads), na China (desde o Livro das Mutações
ou o I Ching), na Pérsia, na Mesopotâmia, no Egito (com textos como o
denominado Filosofia de Menfis), no Mediterrâneo oriental (entre Fenícios
e Gregos), na Mesoamérica (maia e asteca), nos Andes (entre os aimaras
e quechuas, que se organizaram no Império Inca), etc. Assim, entre os
astecas, Quetzal-coatl era a expressão simbólica de um deus dual originário (sendo o Quetzal a pena de um belo pássaro tropical que significava
a divindade e coatl o gêmeo-irmão igual: os dois) que os tlamatinime – os
que sabem as coisas, que o frei Bernardino Sahagún chamou de filósofos
(Cf. DUSSEL, 1995, § 7.1. The tlamatini) – denominavam Ometeotl (de
ome: dois; teotl: o divino) já deixando de lado o símbolo. Esta última denominação indicava a origem dual do universo (não mais a origem unitária
do to én: o Uno de Platão ou Plotino). Isto indica o começo da passagem da
racionalidade simbólica à racionalidade de categorização conceitual filosófica entre os astecas, na pessoa histórica de Nezahuálcoyotl (1402-1472).
Na América Latina ou na África alguns, como Raúl Fornet-Betancourt
(2004), reconhecem, sem entrar em muita descrição do que seja a filosofia,
o que se praticou na Ameríndia (antes da invasão europeia de 1492). O
ataque a uma etnofilosofia lançado pelo africano Paulin Hountondji (1977)
contra a obra de Placide Tempel, A filosofia Bantú (1949), muito semelhante à obra de León, 1979), aponta justamente à necessidade de definir
melhor o que é a filosofia (para distinguí-la do mito).
Quando se lê com atenção os primeiros enunciados do Tao Teking
(ou Dao de jing) do legendário Lao-Tze: “O tao que pode ser nomeado não
é o que foi sempre […]. Antes do tempo foi o tao inefável, o que não tem
nome” (1950, p. 18), nos encontramos ante um texto que usa categorias
filosóficas que se distanciam do relato meramente mítico. Ninguém pode
ignorar a densidade argumentativa e racional da filosofia de Confúcio
(2003) – 551-479 a. C. O desenvolvimento filosófico continuamente argumentado de um Mo-Tzu (Cf. BARRY, 2003, p. 66ss) – 479-380 a. C. –, que
criticou as implicações sociais e éticas do pensamento de Confúcio, afirmando um universalismo de graves implicações políticas, cético em relação aos ritos e com uma organização ou escola excelentemente organizada,
não pode deixar de ser considerado como um dos pilares da filosofia chinesa que antecedeu à grande síntese confuciana de Meng Tzu (Mencius)
– 390-305 a. C. (Cf. BARRY, 2003, p. 114ss; COLLINS, 2000, p. 137 e 272).
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Esta filosofia atravessará 2.500 anos, com clássicos em cada século e, mesmo na Modernidade europeia com Wang Yang-ming (1472-1529) (que
desenvolveu a tradição neoconfuciana que se prolonga até nossos dias e
que não somente influenciou Mao Tse-Tung, senão que também cumpriu
para a China atual, para Singapura, entre outros, uma função semelhante
àquela que o calvinismo teve na origem do capitalismo) ou Huang Tsung-hsi
(1610-1695), grande renovador da filosofia política.
As filosofias hindus também se organizaram em torno de núcleos problemáticos filosoficamente expressos (COLLINS, 2000, p. 177ss e 322ss).
Lemos no Chandogya Upanisad:
No começo, querido, este mundo foi somente Ser (sat), somente uno,
sem um segundo. Alguns opinam: no começo, verdadeiramente, o
mundo foi somente Não-ser (asat), somente uno, sem um segundo; onde havia o Não-ser emergiu o Ser. Porém, penso, querido,
como pode ser isto? Como pode o Ser emergir do Não-ser? Pelo
Contrário, querido, no começo do mundo só havia o Ser (apud
EMBREE, 2000, p. 37).
Isto não é filosofia? Seriam, pelo contrário, Parmênides ou Heráclito
filósofos e não os da Índia? Qual seria o critério de demarcação entre o
texto citado e o dos pré-socráticos?
No hinduísmo, o conceito de Brahman se refere à totalidade do universo (como a Pacha do quechua entre os Incas do Peru); o atman à subjetividade; o karma à ação humana; o moksha à relação do atman com
o Brahman. A partir destes núcleos se constrói um discurso categorial
filosófico desde o século V a. C. Com Sankara (788-820 d. C.), a filosofia
índia alcançou um desenvolvimento clássico que continua até o presente. Enquanto filosofia budista, a partir de Siddhartha Gautama (563-483
a. C.), rechaça os conceitos de Brahman e atman, já que a totalidade do
universo é um eterno devir interconectado (patitya samatpada), negando claramente as tradições míticas (como a dos Vedas) e construindo
uma narração estritamente racional (o que não está, como em todas as
filosofias, isenta de momentos míticos, tais como a ensomatose, sucessivas reincorporações da alma). Por seu turno, o Jainismo, cujo primeiro
represntante foi Vardhamana Mahvira (599- 527 a. C.), defende ontologicamente a Tattvartha Sutra (a não violência, não posseção, não determinação), desde um vitalismo universal de grande importância ante o
problema ecológico atual.
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Com isto quero indicar, claramente, que a filosofía não nasceu (no
tempo) somente na Grécia, nem a filosofia grega pode ser tomada como
o protótipo do discurso filosófico (no seu conteúdo). Este é um dos erros
de muitos que, em vez de descrever os caracteres que devem ser definidos como critérios de demarcação entre o mito e o discurso filosófico
categorial, tendem a tomar a filosofia grega como a própria definição da
filosofia enquanto tal. Isto é confundir a parte com o todo: um caso particular não inclui a definição universal. Isso, porém, não impede que se
indique que a filosofia grega seja um exemplo em seu tempo entre as filosofias produzidas pela humanidade e que lhe coube historicamente continuar nas filosofias do Império romano, que, por seu turno, abriu um
horizonte cultural à chamada Idade Média europeia latino-germânica
que, ao final, culminou na tradição da filosofia europeia que fundamentará o fenômeno da Modernidade desde a invasão da América, a instalação do colonialismo e do capitalismo e que, pela Revolução Industrial,
desde o final do século XVIII (fazem somente dois séculos), chegará a
se converter em civilização central e dominadora do sistema-mundo até
o começo do século XXI. Isto produz um fenômeno de ocultamento e
distorção na interpretação da história (que denomino heleno e eurocentrismo), o qual impedirá uma visão mundial do que realmente aconteceu
na história da filosofia. Caso não se esclareçam estas questões por meio
de um diálogo atual entre as tradições filosóficas não-ocidentais com a
filosofia europeia-estadunidense, o desenvolvimento da filosofia entrará
num “beco sem saída”. Digo isso especialmente como latinoamericano.
Por isso, soa como um pouco ingênua a seguinte reflexão de Edmund
Husserl (repetida por Martin Heidegger e em geral na Europa e nos Estados
Unidos):
Por isso, a filosofia [...] é a ratio em constante movimento de auto-esclarecimento, começando com a primeira ruptura filosófica
da humanidade [...]. A imagem que caracteriza a filosofia num
estágio originário fica caracterizada pela filosofia grega, como a
primeira explicação através da concepção cognitiva de que tudo
o que é como universo (des Seienden als Universum) (HUSSERL,
1970, p. 338-339).2
2 O chamado teorema de Pitágoras foi formuldo pelos Assírios 1.000 a. C. (Cf. SEMERANO,
2005).
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Na América Latina, David Sobrevilla sustenta a mesma posição:
Pensamos que existe um certo consenso sobre que o homem e a
atividade filosófica surgiram na Grécia e não no Oriente. Neste
sentido, Hegel e Heidegger parecem ter razão contra um pensador como Jaspers, que postula a existência de três grandes tradições filosóficas: a da China, da Índia e da Grécia (SOBREVILLA,
1999, p. 74).
As filosofias do Oriente seriam filosofias em sentido amplo; a da
Grécia em sentido estrito.
Confunde-se a origem da filosofia europeia (que pode, em parte, ter
se originado na Grécia) com a origem da filosofia mundial, que tem diversas origens, tantas quantas forem as tradições fundamentais existentes.
Ademais, pensa-se que o processo foi seguindo linearmente a sequência
filosofia grega, medieval latina e moderna europeia. Porém, o périplo histórico real foi muito diferente. A filosofia grega foi cultivada, depois, pelo
Império bizantino, principalmente. A filosofia árabe foi a herdeira da filosofia bizantina, em especial em sua tradição aristotélica. Isto exigiu a
criação de uma língua filosófica árabe em sentido estrito.3 O aristotelismo
latino em Paris, por exemplo, tem sua origem nos textos gregos e nos comentaristas árabes traduzidos em Toledo (por especialistas árabes), com
textos utilizados (os gregos) e criados (os comentários) pela filosofia ocidental árabe (do Califado de Córdoba na Espanha) que continuava a tradição oriental procedente do Cairo, de Bagdá ou Samarcanda e que entregou
o legado grego profundamente reconstruído desde uma tradição semita
(como a árabe) aos europeus latino-germânicos. ´Ibn Rushd (Averróes) é
quem origina o renascimento filosófico europeu no século XIII.
Então, há filosofias nas grandes culturas da humanidade, com diferentes estilos e desenvolvimentos, porém todas produzem (em algumas,
de maneira muito inicial, em outras, com alta precisão) uma estrutura
categorial conceitual que deve ser chamada filosófica.
3 Veja-se, por exemplo, o Lexique de la Langue Philosophique D´Ibn Sina (Avicenne),
editado por Amelie-Marie Goichon (1938). Os 792 termos analisados pelo editor, em
496 páginas de formato grande, nos dão uma ideia da precisão terminológica da falasafa (filosofia) árabe. A última é: “792: Yaqini, certain, connu avec certitude, relatif à la
connaissance certaine”, e seguem quinze linhas de explicação com expressões árabes
em escritura árabe à margem direita.
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O discurso filosófico não destrói o mito, mesmo que negue aqueles
que perdem a capacidade de resistir ao argumento empírico de tal discurso. Por exemplo, os mitos de Tlacaélel entre os astecas, que justificavam os sacrifícios humanos, pelos quais havia boas razões,4 foram completamente derrubados uma vez que se demonstrou sua impossibilidade
e, ademais, sua inoperância.
Por outro lado, há elementos míticos que contaminam também os
discursos dos grandes filósofos. Por exemplo, Immanuel Kant argumenta
na “Dialética transcendental” de sua Crítica da Razão Prática em favor da
“imortalidade da alma” para solucionar a questão do “bem supremo” (já
que receberia, depois da morte, a felicidade merecida nesta vida terrena).
Porém, tal alma, e muito mais sua imortalidade, mostra a permanência de
elementos míticos hindus no pensamento grego que contaminou todo o
mundo romano, mediaval cristão e moderno europeu. As pretendidas demonstrações filosóficas são, nestes casos, tautológicas e não demonstradas racionalmente a partir de dados empíricos. Haveria, assim, a presença
inadvertida (e indevida) de elementos míticos – que também podem ser
chamados de ideologias não intencionais – nas melhores filosofias.
O mito adâmico da tradição semita-hebraica, que mostra a liberdade humana como a origem do mal – e não a alguma divindade como no
mito mesopotâmico de Gilgaamesh – é uma narrativa mítica que pode
ser novamente interpretada com sentido no presente e que resiste à racionalidade da idade do lógos (RICOEUR, 1963). O mesmo ocorre com
a narrativa épica dos escravos que, por Moisés, se libertaram do Egito e
que foi recuperada por Ernst Bloch na obra citada.
Hegemonia com pretensão de universalidade
da filosofia moderna europeia
A Europa, desde 1492, conquistou o Atlântico, centro geopolítico
que substituiu o Mediterrâneo, o mar árabe (o Oceano Índico) e o mar
da China (o Pacífico) e organizou um mundo colonial (desde o século
XV ao XVIII quase exclusivamente americano) e desenvolveu uma civi4 Sobre Bartolomé de las Casas e os sacrificios humanos ver DUSSEL, 2007, v. 1, p. 203ss.
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lização capitalista que permitiu à filosofia latino-medieval se desenvolver
como a moderna filosofia europeia (penso que tal origem se situa muito
antes do Discurso do Método de Descartes, na Amsterdam de 1637) e fez
com que uma filosofia regional, singular, pudesse ostentar a pretensão de
ser simplesmente a filosofia. Essa dominação, poderíamos dizer hegemonia, conquistada porque contou com o consenso das comuidades filosóficas periféricas ou coloniais dominadas, permitiu à moderna filosofia
europeia um desenvolvimento único e realmente inovador como nenhuma outra no mundo nesta etapa. A explicação deste desenvolvimento de
sua pretensão de universalidade é o que quero analisar.5
A expansão colonial moderna – por Portugal através da abertura ao
Atlântico na África e depois ao Oceano Índico (que superou o muro do
Império otomano) e pela Espanha no Caribe e América – sitiou o mundo
islâmico e paralisou seu desenvolvimento civilizatório (e filosófico, portanto) desde o final do século XV. A filosofia clássica árabe não pôde se
sobrepor à crise do califado de Bagdá e decaiu definitivamente. A presença
do Império mongol igualmente destruiu a possibilidade de um novo desenvolvimento das filosofias budista e veda no século XVI. A China, desde
o final do século XVIII, começou a sentir o peso de não ter realizado a
Revolução Industrial, como o fez a Grã-Bretanha (POMMERANZ, 2000)
e igualmente deixou de produzir uma nova filosofia hegemônica desde o
final do século XVIII. Na América Latina o processo da conquista espanhola destruiu todos os recursos teóricos das grandes culturas ameríndias
e, posteriormente, as colônias espanholas e lusitanas sequer superaram os
êxitos da escolástica renascentista do século XVI, não alcançando um grau
de criatividade por meio da escolástica barroca. Ou seja, a centralidade
dominadora do Norte da Europa como potência militar, política e cultural
pôde desenvolver sua filosofia desde o final da Idade Média (desde o século XV de Nicolau de Cusa e do Renascimento italiano, devido também
à presença dos bizantinos explulsos pelos otomanos de Constantinopla
em 1453) e possibilitou o desenvolvimento de sua própria filosofia que,
ante o desaparecimento ou crise das outras grandes filosofias regionais,
elevou sua particularidade filosófica à pretensão de universalidade.
A moderna filosofia europeia aparecerá a seus próprios olhos, então, e aos das comunidades de intelectuais do mundo colonial, em extrema prostração e paralisados filosofiacamente, como a filosofia universal.
5 Para uma ampla exposiçao do tema ver DUSSEL, 2007.
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Situada geopolítica, econômica e culturalmente no centro, manipulará,
desde este espaço privilegiado, a informação de todas as culturas periféricas ligadas ao centro e desconectadas entre si (ou seja, a única relação
existente se dava do Sul colonial ao Norte metropolitano europeu, sem
conexões Sul-Sul) e que durante toda a Modernidade cultivarão um desprezo crescente pelo que lhes é próprio, com o esquecimento de suas próprias tradições e confundindo o alto desenvolvimento, produto da Revolução industrial na Europa, com a verdade universal de seu discurso, tanto
para seus conteúdos como para seus métodos. É isto o que possibilitará a
Hegel escrever que: “A História universal vai do Leste ao Oeste. A Europa
é absolutamente o fim da história universal" (HEGEL, 1955, p. 243; 1975,
p. 197). "O Mar Mediterrâneo é o eixo da História universal" (HEGEL,
1955, p. 210; 1975, p. 171).
Certas narrativas míticas europeias igualmente se confundirão com
o conteúdo pretendidamente universal da pura racionalidade da filosofia
europeia. Hegel dirá que: "[...] o Espírito germânico é o Espírito do Mundo Novo (a Modernidade), cujo fim é a realização da Verdade absoluta"
(1970, p. 413; 1900, p. 341), não avisando que tal Espírito é regional (europeu cristão e não taoista, vedanta, budista ou árabe, por exemplo) e não
mundial e que seu conteúdo não expressa a problemática de outras culturas e, por isso, não é um discurso filosófico universal e que, ademais, inclui
muitos componentes de uma narrativa mítica. O que significa para a racionalidade filosófica estrita universal o Espírito do cristianismo? Por que
não o Espírito do taoismo, do budismo ou do confucionismo? Esse Espírito
é completamente válido como componente de uma narrativa mítica com
sentido para os que habitam no horizonte de uma cultura regional (como
a Europa), porém não como conteúdo racional filosófico, de base empírica, de validade universal (como o pretendia a moderna filosofia europeia).
O eurocentrismo filosófico, então, tem uma suposta pretensão de
universalidade, mas é, na verdade, uma filosofia particular que, em muitos
aspectos, pode ser subsumida por outras tradições. É sabido que toda cultura é etnocêntrica, porém a cultura europeia moderna foi a primeira cujo
etnocentrismo foi mundial e que teve como horizonte o World-System, diríamos com Immanuel Wallerstein (1980-1989). Porém, esta pretensão termina quando os filósofos das outras tradições filosófico-culturais tomam
consciência de sua própria história filosófica e do valor nelas existente.
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Universalidade filosófica e particularidade cultural
Tudo o que foi dito não nega um nível onde o discurso filosófico
toma em conta os núcleos problemáticos fundamentais e pode abordar respostas com validade universal, ou seja, como um aporte a ser discutido
por outras culturas já que se trataria de um problema humano e, enquanto tal, universal. Por exemplo, a tentativa de Karl-Otto Apel (1973) para
definir as condições universais de um discurso argumentativo descobre,
em primeiro lugar, que para que tal validade seja possível, é necessário
outorgar ao outro argumentante possibilidades simétricas de intervir na
discussão; não sendo assim, a conclusão da discussão não seria válida pelo
fato de não ter realizado a participação em iguais condições. Trata-se de
um princípio ético-epistemológico formal (sem conteúdo material valorativo particular de nenhuma cultura) que pode ser aceito como um ganho
a ser problematizado pelas outras culturas. Mas, da mesma maneira, há
condições histórico-materiais (referentes à afirmação e crescimento da
vida humana) que são universalmente necessárias para a existência humana (econômicas, por exemplo) e que parecem ser universalmente válidas
para todas as culturas, já que somos sujeitos corporais viventes como propôs Karl Marx. A universalidade formal abstrata de certos enunciados ou
princípios que podem ser manejados de maneira diferente no nível material de cada cultura podem ser pontes que permitam a discussão entre
distintas tradições filosóficas. Essa meta-filosofia é um produto de toda
a humanidade (mesmo que exista numa cultura determinada) em alguma tradição, numa época determinada, que pôde fazer mais desenvolvimentos que outras, porém dos quais todas as demais podem aprender a
partir de seus próprios pressupostos históricos. Por exemplo, no século
X d. C., em Bagdá, a matemática teve avanços significativos, o que, de
imediato, se tornou desenvolvimento da filosofia aristotélico-árabe que
se tornou ganho útil para outras tradições. Uma filosofia absolutamente
pós-convencional é impossível (sem qualquer tipo de relação com uma
cultura concreta) e todas as filosofias, situadas inevitavelmente em alguma cultura, podem, entretanto, dialogar através dos núcleos problemáticos
comuns e encontrar respostas nos discursos categoriais filosóficos que,
enquanto humanos, são universais.
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A nova idade do diálogo entre tradições filosóficas
Insistiu-se demasiadamente na função de universalidade que a moderna filosofia europeia cumpriu. Com isso, ocultou-se grandes descobrimentos de outras tradições filosóficas. Por isso, no começo do século
XXI, trata-se de inaugurar um diálogo inter-filosófico.
Em primeiro lugar, devemos começar o diálogo do Norte com o
Sul, já que esta coordenada nos recorda a presença atual (depois de cinco
séculos) do fenômeno do colonialismo: econômico e político e igualmente cultural e filosófico. As comunidades filosóficas dos países pós-coloniais (e seus problemas e respostas filosóficas) não são aceitas pelas
comunidades hegemônicas metropolitanas.
Em segundo lugar, nem por isso menos importante, é necessário
começar de maneira séria e permanente um diálogo do Sul com o Sul,
para definir a agenda dos problemas filosóficos mais urgentes a serem
discutidos na África, na Ásia, na América Latina ou na Europa oriental.
As regras deste diálogo devem ser formuladas com paciência.
Como trabalho pedagógico propedêutico é necessário começar a
educar as futuras gerações para um maior respeito às outras tradições
filosóficas, o que exige um maior conhecimento destas filosofias. Por
exemplo, no primeiro semestre de história da filosofia nas carreiras
universitárias de filosofia, dever-se-ia iniciar com o estudo dos primeiros grandes filósofos da humanidade, onde seriam expostas as filosofias
e os filósofos que produziram categorias filosóficas germinais no Egito
(africano), na Mesopotâmia (incluindo os profetas de Israel), na Grécia, na Índia, na China, na Mesoamérica e entre os Incas. No segundo
semestre seriam estudadas as grandes ontologias, incluindo o Taoísmo,
o Confucionismo, o Hinduísmmo, o Budismo, os filósofos gregos (Platão, Aristóteles e Plotino), os romanos, etc. No terceiro semestre deveria
ser trabalhado o desenvolvimento filosófico posterior: o chinês (desde
o Império dos Han), o budista, jainista ou veda na Índia, as filosofias
bizantinas cristãs e árabes, além da filosofia latina europeia medieval. E,
assim sucessivamente. Uma nova geração pensaria filosofiacamente desde
um horizonte mundial. O mesmo deveria acontecer nos cursos de ética,
política, ontologia, antropologia e até nos de lógica: não se deveria igualmente ter noções da lógica budista, por exemplo?
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Por outro lado, os filósofos deveriam se perguntar se em outras tradições filosóficas (não somente europeia ou estadunidense) foram tratadas questões ignoradas pela sua própria tradição, mesmo que tenham
sido expostas com estilos diferentes, com distintos enfoques e onde se
possam descobrir novos desenvolvimentos, dadas as condições particulares do entorno geopolítico destas filosofias.
Não deve haver somente diálogo entre Oriente (um conceito ambíguo desde a desqualificação de Edward Said) e Ocidente (igualmente
confuso),6 porque, neste caso, África, América Latina e outras regiões
seriam excluídas.
Então, é necessária uma reformulação completa da história da filosofia
com o objetivo de começar a estar preparados para o diálogo. A obra pioneira de Randall Collins, World Philosophy (2000), aponta muitos aspectos
relevantes que devem ser tomados em consideração. Pedagogicamente, ao
comparar na geografia (espaço) e através dos séculos (tempo) as grandes
filosofias chinesas, hindus, árabes, europeias, africanas, estadunidenses
(ainda que não dedique uma única linha aos 500 anos de filosofia latinoamericana e menos ainda às nascentes filosofias das culturas urbanas
anteriores à conquista), ao classificá-las em gerações (e distinguindo filósofos de primeira, segunda e terceira ordem, tarefa realmente difícil, mas
de suma utilidade), descobrem-se aspectos sumamente importantes e que
fazem os filósofos pensar – já que o autor é um sociólogo, porém tem grande informação e produziu uma obra de muita utilidade para os filósofos.
Diálogo inter-filosófico mundial:
para um pluriverso transmoderno
Depois de uma profunda crise em razão do impacto da cultura e da
filosofia europeia moderna, as filosofias de outras regiões (China, Índia,
países árabes, América Latina, África, etc.) começam a recuperar o sentido de sua própria história sepultada pelo furacão da Modernidade.
6 Em que consiste o Ocidente? É somente a Europa ocidental e, então, o que seria a Rússia
que, certamente, foi parte da expansão da cultura do Império bizantino oriental? Sua
origem está na Grécia? Porém, para a Grécia clássica, a Europa (desde a Macedônia, o
norte da Magna Grécia na Itália) era uma região bárbara, de maneira nenhuma admitida
nela a humanidade helenística.
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Tomemos como exemplo um filósofo árabe de uma grande cidade universitária de prestígio e sumamente famosa há mais de mil anos e que
no século XIII tinha trezentos mil habitantes e onde, entre outros, foi
estudar e ensinar Moshéh Ben Maimónides. Trata-se de Mahomed Abed
Yabri, da Universidade de Fes (Marrocos).
a) Em primeiro lugar, em suas obras Crítica da razão árabe (2001a) e
O legado filosófico árabe. Alfarabi, Avicena, Avempace, Averróes, Abenjaldun
(2001b), Abed Yabri começa por uma afirmação valorativa de toda a filosofia
de sua tradição cultural árabe. Rechaça: i) a tradição contemporânea interpretativa do fundamentalismo (salafís), que reage à Modernidade sem
reconstrução criativa do passado filosófico; ii) não admite a posição do
safismo marxista, que esquece sua própria tradição; iii) de igual maneira,
nega a tradição eurocêntrica liberal que não aceita a existência da filosofia
árabe no presente. Conhecedor do árabe como sua língua materna, investiga de maneira original, nova, as tradições filosóficas dos grandes pensadores das escolas orientais (Egito, Bagdá, até o Oriente, com a infuência de
Avicena) e as escolas ocidentais (do antigo Califado de Córdoba, incluindo
as regiões bérberes, o que inclui Fes, em torno de Íbn Roshd).
b) Num segundo momento, faz a crítica da própria tradição filosófica com os recursos da filosofia árabe, porém também se inspirando em
alguns ganhos da hermenêutica moderna (que estudou em Paris). Isto
lhe permitiu descobrir novos elementos históricos de sua própria tradição, como que a tradição oriental árabe se opôs principalmente ao pensamento gnóstico persa. Desta maneira, os Mutaziles criaram a primeira
filosofia árabe anti-persa subsumindo a filosofia greco-bizantina para
justificar o Estado califal. Posteriormente Al-farabi e ´Ibn Sina (Avicena),
assumindo categorias neoplatônicas, produziram a tradição filosófico-mítica da iluminação. Por outro lado, a filosofia andaluz-magrebina ocidental, inspirada nas ciências empíricas e no pensamento estritamente
aristotélico (com o lema “Abandonar o argumento de autoridade e voltar
às fontes” como patrocinava o almóada ´Ibn Túmert) a grande filosofia
árabe, com 'Ibn Rushd, produzirá a verdadeira Ilustração (Aufklärung)
filosófica que se imporá como a origem da filosofia latino-germânica,
fundamento da moderna filosofia europeia. 'Ibn Rushd define perfeitamente o diálogo inter-filosófico:
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É indubidável que devemos nos servir, como de ajuda, para nosso estudo racional das investigações realizadas por todos os que
nos precederam (os gregos, os cristãos) [...]. Sendo assim, e como
realmente os filósofos antigos já estudaram com o maior esmero
as regras do raciocínio (a lógica, o método), convêm que ponhamos mãos à obra para estudar os livros de tais filósofos antigos
para que, se entendemos razoável tudo o que dizem, o aceitemos
e, se algo entendermos por não razoável, nos sirva de precaução e
advertência (YABRI, 2001a, p. 157-158).
c) Num terceiro momento, o surgimento de uma filosofia própria, a
partir da própria tradição, alimentada pelo diálogo com outras culturas,
não deve deixar-se deslumbrar pelo aparente esplendor de uma moderna
filosofia europeia que propôs seus problemas, porém não os problemas
propriamente do mundo árabe: “Como pode a filosofia árabe assimilar a
experiência do liberalismo antes ou sem que o mundo árabe passe pela
etapa do liberalismo?” (YABRI, 2001a, p. 159).
d) Em quarto lugar, um último tema. O diálogo que pode enriquecer cada uma das tradições filosóficas deveria ser realizado por filósofos
críticos e criadores de cada uma dessas tradições e não pelos que simplesmente repetem as teses filosóficas já tradicionalmente consensuadas.
E, para ser críticos, os filósofos devem assumir a problemática ético-política que possa explicar a pobreza, a dominação, a exclusão de boa parte
da população de seus respectivos países, em especial no Sul (na África,
boa parte da Ásia e América Latina). Um diálogo filosófico crítico supõe
filósofos críticos, no sentido da teoria crítica, que na América Latina chamamos de Filosofia da Libertação.
A Modernidade europeia impactou as demais culturas (exceto a China
e o Japão) e desconsiderou o que não lhe era aceitável. Quando falo de
Transmodernidade (Cf. DUSSEL, 2002, p. 221-224; 2006, p. 73-89) quero
me referir a um projeto mundial que pretende ir além da Modernidade
europeia e estadunidense (por isso não pode ser posmoderno, porque esta
é uma crítica parcial, europeia-estadunidense da Modernidade). Trata-se,
por outro lado, de uma tarefa, no nosso caso, filosófica, que tem como
ponto de partida afirmar o que foi declarado pela Modernidade como a
Exterioridade (LEVINAS, 1968) desconsiderada, não valorizada, o inútil
das culturas (desconsiderações entre as quais se encontram as filosofia
periféricas ou coloniais) e desenvolver as potencialidades, as possibilidades dessas culturas e filosofias ignoradas; afirmação e desenvolvimento
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levados a termo com os próprios recursos em diálogo construtivo com a
Modernidade europeia-estadunidense. Desta maneira, a filosofia árabe
pode incorporar, como no exemplo exposto, a hermenêutica da filosofia
europeia desenvolvida e aplicada com o fim de realizar novas interpretações do Alcorão que permitiriam produzir novas filosofias políticas ou
feministas árabes, dois exemplos possíveis e tão necessários. Seria fruto
da própria tradição filosófica árabe, atualizada pelo diálogo inter-filosófico (não somente com a Europa, mas também com a América Latina, a
Índia, a China ou a filosofia africana) em vista de uma filosofia mundial
futura pluriversa e, por isso, transmoderna (o que suporia, igualmente,
ser transcapitalista no campo econômico).
Por muito tempo, quiçá por séculos, as diversas tradições filosóficas seguirão seu próprio caminho. Entretanto, no horizonte se abre um
projeto mundial analógico de um pluriverso transmoderno (que não é
simplesmente universal e nem pósmoderno). Agora outras filosofias são
possíveis porque outro mundo é possível – como proclama o Movimento
Zapatista de Libertação Nacional de Chiapas, México.
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