Reflexões gerais por Luiz Guilherme Vergara e Jessica

Transcrição

Reflexões gerais por Luiz Guilherme Vergara e Jessica
Seminário: Reconfigurações do público: arte, pedagogia e participação
Reflexões gerais
Luiz Guilherme Vergara e Jessica Gogan
co-organizadores e coordenadores do Núcleo Experimental de Educação e Arte
Motivação: uma zona-limite como foco
Como as práticas artísticas, curatoriais e pedagógicas estão dialogando com os contextos socioculturais emergentes? Em que medida as novas perspectivas de atuação dos museus e espaços alternativos ajudam a repensar a noção de público, no século XXI? Este seminário buscou enfrentar tais
questões através de um fórum transdisciplinar e crítico, demarcando campos de atuação híbridos
envolvendo o artista, o educador e o agente social, assim como seu impacto nos museus contemporâneos.
Introdução e contexto: o Núcleo Experimental de Educação e Arte do Museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro
Não existe “arte experimental” mas o experimental, que não só assume a idéia de modernidade e vanguarda, mas também a transformação radical no campo dos conceitos-valores vigentes: é algo que propõe transformações no comportamento-contexto, que deglute e dissolve a coni-convivência. No Brasil,
portanto, uma posição crítica universal permanente e o experimental são elementos construtivos. Tudo o
mais é diluição na diarreia.i
O seminário Reconfigurações do público: arte, participação e pedagogia foi motivado pela necessidade de se abrir um campo de pesquisas e ações ampliadas sobre as zonas-limites da esfera pública
da arte e cidadania. Acrescentam-se a este cenário as mudanças éticas e estéticas que caracterizam esta era de diversidade e questionam os valores críticos vigentes, tanto nas práticas artísticas,
como nas curatoriais e pedagógicas, como também nos próprios papéis das instituições culturais
e museus. É com esta motivação comum que a proposta deste seminário ganhou corpo dentro do
próprio MAM, entre a curadoria, Luiz Camillo Osório e Marta Mestre, e o Núcleo Experimental de
Educação e Arte.
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O artista Luiz Camnitzer notou que: “Educação e arte não são coisas diferentes, elas são diferentes
aspectos de uma única atividade”. ii Isto sugere uma compreensão de arte e educação como uma
práxis experimental e construtiva, uma dinâmica contínua e constante de trocas de dentro e fora de
um mesmo processo, semelhante à banda de Moebius; cada lado se desdobra no outro, tornando
possível liberá-las de posições fixas e possibilitando ainda uma abordagem mais criativa, crítica e
híbrida para ambas.
Esta mutabilidade entre educação e arte e uma práxis experimental e construtiva são princípios-chaves do Núcleo Experimental de Educação e Arte, e uma instigação crítica provocadora do
seminário.iii Este é também o nó górdio da especificidade da atuação do Núcleo que envolve um
diálogo com a própria história e “site-specific” do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. A
própria concepção arquitetônica de Affonso Eduardo Reidy é reverenciada como ativadora de aproximações ou subversões entre o dentro e o fora do museu, cultura e natureza, mas também, criação
e recepção artística. Reconhecendo a importante memória do experimental, e da educação nas
reconfigurações do espectador no MAM, desde as aulas de Ivan Serpa (nos anos 50), as proposições
coletivas da geração de Hélio Oiticica, as experimentações da Unidade Experimental (1969-70)iv
com o público, até a culminância dessas experiências nos eventos participativos dos Domingos da
Criação (1971), o Núcleo, quarenta anos depois, vem cultivando um diálogo com este passado com
novas práticas e novos trânsitos de interações, envolvendo a confluência entre fronteiras estéticas,
pedagogia crítica e agenciamento sociocultural, mas também entre museu e cidadania. Defende-se
como experimental não somente o exercício de liberdade artística, mas a educação em um sentido
radical – daí essas práticas rejeitam ou escapam ao enquadramento por categorias estabelecidas,
tanto puramente artísticas como exclusivamente pedagógico-educativas. Assim sendo, do próprio
Núcleo, dos artistas e educadores, partiram as indagações e motivações para um debate crítico
sobre as zonas-limites entre arte, pedagogia e participação a que se propõe este seminário.
Juntando forças nacionais e internacionais
A proposta do seminário reuniu instituições nacionais e internacionais, tais como o departamento
de educação e o programa internacional do MoMA, a Casa Daros e a Fundação Bienal do Mercosul,
constituindo uma rede de colaborações que viabilizaram a realização deste evento. A ideia do seminário nasceu em 2010, a partir de um convite do departamento de educação do MoMA de Nova
Iorque – através de Wendy Woon e Pablo Helguera, respectivamente diretora do departamento e
diretor do programa acadêmico e de adultos, juntamente com o Programa Internacional do MoMA.
Esta parceria se desenvolveu inicialmente voltada ao estudo do legado de Paulo Freire e Augusto
Boal, reconhecendo sua atualidade e potencial contribuição nas relações entre arte, pedagogia e
participação para artistas, agenciadores socioculturais, educadores e também museus e espaços
alternativos. Dois seminários foram elaborados no MoMA (julho 2011) e no MAM (novembro 2011),
buscando dar visibilidade e densidade crítica às diferentes perspectivas que se entrecruzam sobre
o que identificamos como zonas-limites da ação artística, educação e agenciamentos sociais no
mundo contemporâneo que afetam diretamente a ressignificação dos museus hoje.
O seminário foi pautado também no reconhecimento da importância dos debates transdisciplinares
e publicações que possam reunir perspectivas diversas e refletir sobre as dimensões ética e social
que envolvem as práticas artísticas, pedagógicas e curatoriais contemporâneas. O evento se constituiu como rico fórum de múltiplas vozes manifestando-se com as contribuições internacionais pelo
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cuidado com as singularidades locais, o respeito à diversidade e à unidade que se enunciam como
ativações coletivas de territórios de solidariedade e agenciamentos socioculturais. Ressaltam-se as
presenças de profissionais representantes internacionais dessa perspectiva, tais como Mick Wilson,
artista, educador e co-organizador do Curating and the Educational Turn (2010); os colombianos
José Roca, Juan Manuel Echavarría e Oscar Muñoz, respectivamente curador geral da 8ª Bienal do
Mercosul e artistas; Eugenio Valdés Figueroa, curador cubano e diretor de arte e educação da Casa
Daros no Rio de Janeiro; Sofia Olascoaga, curadora e educadora do México; Janna Graham, curadora de projetos da Serpentine Gallery em Londres; Irene Small, historiadora de arte de EUA; além
certamente da participação dos colaboradores do MoMA Pablo Helguera e Wendy Woon.
O Brasil, sem dúvida, é uma grande potência econômica emergente, mas é também reconhecido
como país de profundas dívidas com a desigualdade social. O que não é novidade para vários
setores políticos e sociais é ainda um desafio para o entendimento de cidadania cultural e comprometimento público das instituições, principalmente aquelas com as quais estamos tratando neste
seminário, ligadas às artes visuais. Nesse sentido, entendemos o seminário não só como um evento,
mas o início de um projeto crítico de fóruns, discussões e publicações de médio e longo prazo, buscando deflagrar, catalisar participações atuantes nessas fissuras ou travessias socioculturais. O que,
em outras palavras, significa reconhecer a necessidade de se fazer um esforço coletivo, de múltiplas
perspectivas, para que se possa avançar no comprometimento ampliado com as reconfigurações
do público para a arte, cultura e educação. É com esse espírito que saudamos em especial a participação dos convidados brasileiros no seminário: os artistas Carlos Vergara, Elisa Bracher, Ernesto
Neto e Ricardo Basbaum, Bia Jabor (gerente de arte e educação da Casa Daros), Claudia Saldanha
(diretora da Escola de Artes Visuais do Parque Lage), Clarissa Diniz (crítica e editora da Revista Tatuí),
Cristiana Tejo (crítica e curadora), Daniela Mattos (artista, curadora e pesquisadora), Danilo Streck
(professor do programa de pós-graduação em educação da Unisinos/RS), Frederico Coelho (pesquisador, historiador e professor de departamento de letras da PUC-Rio), Frederico Morais (crítico e
curador), Guilherme Coelho (diretor do documentário Um domingo com Frederico) Jailson Silva, geógrafo, sociólogo e professor do departamento de educação da UFF e fundador do Observatório
de Favelas), Lígia Dabul (sociologia da UFF), Luciano Vinhosa (departamento de arte da UFF), Márcia
Ferran (produção cultural da UFF), Mara Pereira (Núcleo Experimental do MAM-RJ), Monica Hoff
(coordenadora geral do projeto pedagógico de 8ª Bienal do Mercosul), Paulo Herkenhoff (curador e
crítico) e Sheila Cabo (historiadora da arte da UERJ). Todos atuam em diferentes linhas de estudos
e práticas da arte, cultura, cidadania e educação. Fazemos ainda um agradecimento especial para
Luiz Camillo Osório e Marta Mestre, da curadoria do MAM, como também aos artistas, educadores
e produtores do Núcleo.
Relatos do seminário: uma polifonia e encontros de vozes
As apresentações desenvolvidas ao longo de três dias no MAM deflagraram intensos debates com
foco nas mudanças de valores em jogo nas práticas, circulação e participação da arte na sociedade
contemporânea.
Paulo Herkenhoff inaugura o seminário trazendo uma leitura da história e crítica de uma trajetória
acidentada por esquecimentos das instituições de arte brasileiras. Herkenhoff revela, entrecruzando
sua narrativa com a própria biografia, um diagnóstico atravessado por fragilidades e descontinuidades comprometedoras das estruturas de cidadania cultural representadas principalmente pelos
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museus e bibliotecas, que deveriam compor e dispor a esfera pública de convergência entre arte e
educação.
Com a especial projeção do documentário Um domingo com Frederico, de Guilherme Coelho,
sobre Frederico Morais e os Domingos da Criação (1971), o primeiro dia de seminário foi coroado
por memórias dedicadas aos momentos históricos de viradas paradigmáticas no jogo possível de
interações de classes e gerações da esfera pública da arte no MAM. As presenças do próprio Frederico Morais e de Carlos Vergara deram vida a essas lembranças de um caso histórico de transbordamentos de criação e integração entre artistas, museu e sociedade. Registravam-se ali imagens que
encarnavam os exercícios coletivos de liberdade representantes dos anos rebeldes da contracultura
sobre o pano de fundo do silêncio imposto pela ditadura militar. Não foi o caso de se rever nostalgicamente o passado, mas de resgatar a potência de devir que habita, não somente o MAM, mas a
própria condição pública do lugar da arte como espaço crítico de compartilhamento do espírito de
liberdade.
Dessa forma, o próprio seminário, já no primeiro dia, iniciou sua programação com celebrações e
revelações críticas voltadas ao importante compromisso de resgate de memórias das trajetórias das
instituições culturais. Isto é, todas as celebrações eram também acompanhadas de uma indagação
sobre a descontinuidade, o esquecimento (durante quarenta anos) das conquistas e esforços por
uma cidadania ampliada da arte, que se faz valer pela ousadia criativa de iniciativas como os Domingos da Criação. Porém, revela-se também, em paralelo, a celebração de se reviverem memórias do
horizonte de possibilidades e afetos do MAM para a cidade do Rio de Janeiro.
Nos dias seguintes, o seminário se abriu para as experiências internacionais. Wendy Woon retoma a
importância de se resgatar a memória das instituições. Como diretora do departamento de educação do MoMA, Wendy assume como ponto de partida de sua prática pedagógica a recuperação da
história dos mais de setenta anos de programas educativos iniciados em 1930 pelo educador Victor
D’Amico. Pablo Helguera e Mick Wilson foram duas presenças especiais como artistas-pesquisadores e educadores estrangeiros que apresentaram processos híbridos emergentes em que as práticas
artísticas e pedagógicas são concebidas indissociavelmente. Helguera explorou a dimensão pública
dialogal de diferentes proposições artísticas contemporâneas enfatizando a crescente busca por
dinamizações de espaços de interações e diálogo, situações de convívio, onde se vislumbra para o
artista o papel de ativador de territórios de colaboração e agenciamentos coletivos sociais. Helguera apresentou, como exemplos dessas tendências, os projetos artísticos pedagógicos do espaço
Machine Projects em Los Angeles, de Christine Hill, o “Immigrant Movement International” da artista Tânia Bruguera em Nova Iorque, e o Center for Land Use Interpretation.vi As próprias experiências
pedagógicas de Helguera, como curador pedagógico da 8ª Bienal do Mercosul (2011), fundamentaram a abordagem sobre esses horizontes de convergência entre prática artística e processos de
colaboração com uma pedagogia crítica.vii
Wilson apresentou sua conceituação sobre a “virada educacional” a partir das mudanças radicais em
processo nas práticas artísticas e curatoriais, em que o foco se desloca de criação de obras-objetos
ou exposições para mais ênfase aos espaços de diálogos com bases em formatos pedagógicos críticos. Wilson ilustrou sua apresentação com uma série de exemplos, como o caso do artista-curador
Anton Vidokle e seu projeto para a Manifesta 6, Unitednationsplaza e Night School, propondo a
organização de uma escola de arte, ou também a programação de “live dialogues” do Van Abbe
Museu, na Holanda, sob a direção de Charles Esche. Entre vários outros exemplos registramos
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também as práticas dialógicas do artista Rainer Ganahl.viii Em todos esses casos apresentados por
Wilson, fica clara a importância das colaborações entre artistas e não artistas, assim como o vínculo
com instituições, que muitas vezes extrapola para a formação de uma rede de agenciamentos transversais como motivações políticas, ambientais e sociais etc. Daí, também, o conceito de publicness
complementa a abordagem de Wilson à virada da educação com uma crítica ao sistema de valores
que envolve uma pedagogia neoliberal de abrangência transnacional. Nesse sentido, as estratégias
artísticas em jogo representam formas de engajamentos na recuperação do espaço e esfera pública
ou publicness, envolvendo propostas de compartilhamentos de uma consciência de compromisso
com a força vital das interações humanas.
Ambos, Helguera e Wilson, assim com Eugenio Valdés Figueroa, apontaram para a relevância da
pedagogia crítica de Paulo Freire no embasamento das práticas artísticas curatoriais internacionais
socialmente engajadas e seus interesses na construção de novos sentidos do público. Valdés fez
uma leitura crítica do excesso de controle e regras institucionais que, anacronicamente, para salvaguardar os legados artísticos, sufocam as liberdades poéticas. Nesta abordagem, Valdés expressa
uma crítica à relação entre instituição, produção artística e sociedade: “…Mas sim sobre as relações
de poder, e em particular, no que concerne a institução-arte.” O poder de gestão e imposição de
conhecimentos e narrativas sobre a sociedade é o ponto nevrálgico entre controle e alienação que
rege as instituições de arte de acordo com Valdés. Este é também o motivo para o resgate da pedagogia crítica de Freire, com referência à educação bancária, como instrumento ético-conceitual
para uma reforma política, curatorial e educacional das instituições de arte, reforça Valdés.
Danilo Streck explorou esta dimensão pública e crítica do legado de Freire do ponto de visto da pedagogia, ressaltando os pontos de convergência e divergência (ou talvez prospecção) com as transformações do contexto político social em diferentes momentos dessa história brasileira. Streck, ao
apresentar as práticas de resistência e convívio participativo que envolvem os movimentos de base
e educação popular, abre caminho para possíveis aproximações e paralelos com o que foi apresentado como práticas artísticas dialogais e virada educacional. Dessa forma, resgata ainda uma
atualidade de Freire para o debate sobre reconfigurações do público a partir de uma ordem ética
e estética indissociável da pedagógica – “[...] a matriz de educação popular não se constrói pelo
principio da exclusão do diferente, mas pela radicalidade da afirmação do lugar de onde se fala”.ix
Os artistas colombianos Oscar Muñoz e Juan Manuel Echavarría revelaram o que se chamou de
zona-limite entre práticas culturais, artísticas e sociais. O diferencial dessas atuações foi expresso
em ambas as falas como compromisso profundo e ético com seus contextos, ainda que de formas
distintas. Muñoz fala sobre as motivações políticas e conceituais que inspiraram a criação do centro artístico e cultural alternativo Lugar a Dudas, em Cali. Echavarría, por sua vez, apresenta um
projeto artístico contundente e radical desenvolvido ao longo de quinze anos com ex-guerrilheiros
do narcotráfico na Colômbia.x Neste caso, o escritor-jornalista e artista se torna um agenciador de
recuperação de vidas, cidadanias, memórias e traumas, onde se rasuram todos os juízos de valores
entre arte, ética e pedagogias, ou terapêuticas existenciais pela expressão artística.
Esta zona-limite ou de atravessamentos pode se dar também entre práticas curatoriais e processos
pedagógicos críticos. Este foi o caso da apresentação de José Roca, que mostrou uma visão integrada entre curadoria e pedagogia desenvolvida na 8ª Bienal do Mercosul, Ensaios Geopoéticos
(2011). Roca, juntamente com Helguera, aprofundou os vínculos da Bienal de Porto Alegre para todo
o estado do Rio Grande do Sul, reconhecendo e investindo no processo crescente de amadureci-
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mento e sustentabilidade do Projeto Pedagógico, radicalizado a partir de 2007, com a atuação de
Luiz Camnitzer na posição de curador pedagógico.
Janna Graham também explorou em seu projeto inovador do Centro de Estudos Possíveis da Serpentine Gallery, em Londres, as diferentes faces da integração entre pesquisa, práticas artísticas
e pedagógicas voltadas ao desenvolvimento social em uma área de conflitos entre imigrantes do
Oriente Médio e Leste europeu e as pressões da gentrificação crescente.xi Mara Pereira, apresentando o próprio Núcleo do MAM, descreveu a estrutura de programas e ações explorando o museu como lugar de criação e múltiplas vozes, juntamente com as dimensões éticas e estéticas que
embasam as práticas experimentais participativas e pedagógicas na colaboração entre artistas e
educadores.
A artista Elisa Bracher xii apresentou um vídeo que documenta suas reflexões relacionando suas
experiências pedagógicas e agenciamentos socioculturais em uma comunidade da periferia de São
Paulo com sua própria prática artística. Elisa traçou rico paralelo entre a construção de um sujeito e
os processos e materiais que envolvem a estruturação e equilíbrio de suas grandes esculturas. Se,
por um lado, como artista Elisa é atraída pelos desafios construtivistas de tencionar grandes estruturas em desequilíbrio como força estética, por outro, como educadora, ela transfere essa pulsação
estética ao que poderíamos chamar de construtivismo existencial, investindo numa pedagogia experimental através de sua fundação socioeducativa. No entanto, para ela, ressalta ao final de sua
fala, esses processos são distintos.
Jailson Silva, geógrafo, educador e fundador do Observatório de Favelas, trouxe visão radical para
cultura e cidadania, abordando os riscos e possibilidades que envolvem a entrada da arte contemporânea, dos centros culturais, nas favelas. Não como agentes da salvação, não na forma de assistencialismo imediatista, mas, mesmo assim, fazendo “travessias”, atravessamentos de mão dupla,
de tal forma que possam ser superadas ou erradicadas as demarcações hegemônicas entre centro
e periferia.
Para saber mais sobre as apresentações nesta publicação estão disponibilizados os vídeos de cada
mesa acompanhados por um resumo desenvolvido por cada moderador.
Grupos de estudos
Foram incluídos na programação do seminário dois encontros de grupos de estudos que se realizaram como fóruns de aprofundamentos de conteúdos e mapeamento de redes potenciais de colaborações futuras de pesquisa nacionais e internacionais. Os convidados especiais se reuniram por duas
manhãs com os palestrantes e ensaístas. Foi recorrente observar nos pequenos grupos de estudo o
que pode também ser visto como riqueza e contribuição do seminário – os diversos pontos de vista
e abordagens dos profissionais representantes da arte, crítica e história, sociologia e pedagogia. Os
dois encontros foram compostos de apresentações seguidas de debates ao ar livre nos jardins do
MAM. Esta publicação reúne também relatos e perspectivas dos artistas e educadores do Núcleo
sobre os grupos de estudo.
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Perspectivas e debates dos ensaístas
Questões e conversas abertas
O seminário inaugurou um processo que reconhece a importância da cumplicidade crítica e afetiva
entre artistas, educadores e curadores no cuidado com o público a partir do próprio MAM. O título
gerador do seminário – reconfigurações do público – abrange fundamentalmente as relações reflexivas entre conhecimento crítico e suas consequentes demandas por mudanças, como parte de
um processo experimental, construtivo e ético. Ressaltou-se nas diferentes falas o importante papel
de se ativar uma ética dialogal, que se traduza como abertura e cuidado com o espaço público da
expressão artística, institucional ou alternativa, para múltiplas vozes.
As medidas ou desafios éticos da condição de unidade de múltiplas vozes ficam bem claras ao se
identificarem os diferentes posicionamentos e indagações dos ensaístas. Este é o esforço tanto do
seminário quanto desta publicação, o de apontar para um investimento construtivo nas incertezas
críticas e no reconhecimento de pontos frágeis ou flexibilizações de arestas como geradores de
possibilidades de mudanças de valores nas fronteiras conceituais dessas práticas. Observam-se
essas linhas de indagações críticas sendo exploradas sob diferentes ângulos, como no caso dos
ensaios de Clarissa Diniz (Recompensas e brisas), Daniela Mattos (Horizontes prováveis no campo
da arte contemporânea – Práticas globais, demandas locais), Irene Small (Ped-a-gogia: como fazer
coisas com palavras) e Luciano Vinhosa (Práticas artísticas de fronteira: alguns tópicos para reflexão).
Diniz desenvolve suas inquietações centradas em questões apresentadas como provocações do primeiro dia de grupo de estudos, assim como nos relatos dos artistas e educadores do Núcleo. Tanto
Daniela Mattos quanto Clarissa Diniz retomam trechos do Esquema geral da Nova Objetividade
(1967) de Hélio Oiticica, distribuídos para os participantes para elaborarem suas reflexões:
(...) mas criar novas condições experimentais, em que o artista assume o papel “proposicionista”, ou “empresário” ou mesmo “educador” (...)Como situar aí a atividade do artista? O problema poderia ser enfrentado com uma outra pergunta: para quem faz o artista sua obra?
Diniz expressa suas preocupações quanto a algumas práticas do Núcleo, resgatando leituras das
ideias libertárias de Oiticica e os Domingos da Criação, incluindo o contexto de abertura crítica dos
anos 1960-70, do que caberia como atualização ou reformulação dessas conceitualizações. Ela deixa
um comentário incisivo e importante quando questiona:
uma possível “equivalência” estabelecida por Oiticica (propositor ou empresário ou educador) não pediria, diante do contexto desta segunda década de século XXI, uma análise diferenciadora: propositor ≠ empresário ≠ educador? Ou, noutro — e talvez mais explícito — sentido, não seriam diferentes o educador-propositor, o educador-empresário e o educador-artista?
Daniela Mattos, por sua vez, elabora reflexões não a partir de preocupações críticas com equivalências contextuais, mas a partir de como as palavras de Oiticica podem ser instigadoras de mudanças
contínuas, e assim ela desenvolve uma pergunta geradora:
o que pode e deve ser o museu de arte moderna e contemporânea, em especial no contexto brasileiro?
Qual é o papel do artista, curador, crítico e educador [...] que atua em instituições culturais, nas reconfigurações necessárias, não só ao público, mas a todas as instâncias do sistema de funcionamento da arte?
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Irene Small também explora as referências de Oiticica, porém estabelecendo instigante relação
com Paulo Freire quanto ao uso de neologismos pelos dois. Assim, ela reflete sobre as tensões políticas do espaço popular “como esfera pública negociada […] cuja essência social é continuamente
recomposta pela inflexão, modificação e uso”. Small sugere, então, referindo-se a uma prática de
libertação e criação de Freire e de Oiticica, que:
Fazer coisas com palavras, e assim gerar um público, significa, portanto, ocupar esse antagonismo e mobilizá-lo para que possa reconfigurar o espaço da experiência em si.
Lígia Dabul confirma sua visada sociológica, ao analisar as práticas educativas realizadas por artistas
dentro e fora dos museus de arte (como o caso do Núcleo), reconhece o território de contradições
que formam parte das instituições herdeiras de valores universalizantes tanto da arte como da sociedade. Em Fogo solto. Questões sobre a reconfiguração de práticas educativas em museus de
arte, Dabul pergunta para quem os museus servem e educam e como abrir ou desabotoar este
“encamisamento” de força dos museus de arte. Oferecendo uma possível resposta, Dabul reflete
na “própria arte esgarçar-se, como que incluindo na sua realização interações de artistas e não artistas em torno da produção mesmo de discussões sobre a vida social e eventos que colocassem em
primeiro plano esse ímpeto”.
Marcia Ferran coloca a urgência de se apostar no espaço urbano como lócus contemporâneo, ao
mesmo tempo que aponta para a necessidade de se repensar o papel dos acervos. Ela invoca
exemplos de Allan Kaprow e Thomas Hirschhorn a Celeida Tostes, de casos de deslocamentos de
territorialidades e temporalidades da prática artística e cidadania, ou o que chama de incursões e
imersões. Citando Herkenhoff, Ferran vê as possibilidades de “entender que uma exposição de arte
é construção de cidadania, em que a educação é fundamental, e o curador é um agente desse processo”. Para ela, esta construção envolve um esforço estético e ético para se abrirem brechas nos
territórios de narrativas hegemônicas dos museus e seus acervos.
Zonas-limites: rasuras críticas e brechas possíveis
O seminário nos coloca diante de um divisor de águas em que uma estrutura teórica ou institucional,
ou ainda de mercado das artes, vigente está sendo questionada pelo campo ampliado das práticas
artísticas contemporâneas dialogais e relacionais ainda embrionárias no Brasil. Esta zona-limite, tão
bem apresentada pelo artista Juan Manuel Echavarría, no projeto “La guerra que no hemos visto”
(Colômbia), ou na cumplicidade entre curadoria e projeto pedagógico da 8ª Bienal do Mercosul elaborada por Pablo Helguera e Jose Roca, é onde estão se processando os horizontes de possibilidades de reconfiguração do público. Tanto estes casos, como os casos da virada educacional trazidos
por Mick Wilson, ou as práticas inauguradas do Núcleo do MAM, como Ligia Dabul aponta, todos
estão explorando ou subvertendo algumas ordens estéticas pela ética. Não tomando a obra de
arte (por conseguinte, nem o artista ou os museus) como portadora de conteúdos “universais”, eles
assumem-na como acontecimentos de diálogos, que envolve redes de colaborações, solidariedade,
respeito à heterogeneidade e, fundamentalmente, de fecundidade, pela contaminação ou ativação
mútua – enquanto a energia criativa é ativada pelo encontro e reconhecimentos entre sujeitos de
distintos saberes.xiv
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No entanto, estas mesmas atuações e ativações dialogais, por serem emergentes e recentes, instigam posicionamentos antagônicos de preocupações críticas com a autonomia do valor artístico,
diante dos riscos das rasuras do campo ampliado de engajamento e entrelaçamento entre arte e
ação sociopolítica e ambiental.
Luciano Vinhosa desenvolve reflexões que “se elencam a partir da ameaça de diluição das especificidades que um tal trânsito acarreta a essas diferentes atividades”. Vinhosa, resgatando Joseph
Beuys como deflagrador de um percurso histórico dessas fronteiras entre arte e vida, pergunta “o
que é uma obra de arte hoje?”, para problematizar nessas práticas transdisciplinares e híbridas a
própria indeterminação de contextos e valores. Assim, ele coloca uma reflexão crítica que serve
como contraponto importante na abordagem sobre a virada educacional. Do ponto de vista teórico
e crítico, segundo Luciano, o reconhecimento das especificidades dos diferentes campos profissionais e circuitos são balizadores “das formas de produzir sentidos muito distintas”.
Sofia Olascoaga (México) contribui para esse debate de forma diferenciada, já se apresentando
como curadora/educadora. Olascoaga abraça essas práticas experimentais e pedagógicas fazendo
do seu ensaio um inventário de perguntas, que recorrentemente atingem o debate sobre a convergência entre práticas artísticas, pedagógicas e curatoriais. Respondendo a uma das indagações
colocadas ao longo do seminário – “por que é necessário propor estas transformações sociais pela
arte?” –, Sofia reflete:
Se defendermos a função pedagógica da arte, será possível inscrever no imaginário coletivo, pouco a
pouco, uma disposição distinta para socializar, entender, consumir, construir e desconstruir nossa cultura,
e as estruturas sociais que reproduzimos ao fazê-lo. A arte parece oferecer como campo a possibilidade
de tornar visíveis e dispô-las para análise, estas estruturas inconscientes, como menciona Foucault (...) A
arte parece oferecer possibilidades de tornar consciente, de reconfigurar e de reconfigurarmo-nos.xv
Podemos assim formular uma outra pergunta para nossos debates, não só o que é uma obra de arte
hoje? mas também o que é a obra de arte?
Revisões e perspectivas para 2012 – reconfigurações do público para múltiplas vozes
As discussões do seminário mostraram a complexidade dos valores em jogo nas práticas pedagógicas e artísticas. Pode-se apontar como contribuição imediata o próprio reconhecimento de novas
perspectivas que configuram uma zona-limite constituída pela diversidade de vozes. Acrescenta-se ainda a necessidade de adensamento deste campo crítico polifônico emergente. Para tanto,
como desdobramento desse encontro, há que se explorar e investir em pesquisas e ações que se
debrucem nos horizontes de possibilidades emancipatórias tanto da arte, como da pedagogia,
por entrelaçamentos experimentais envolvendo uma participação critica da sociedade. Ao mesmo
tempo, aponta-se para a necessidade de uma prática crítica rigorosa, que acompanhe, construa
e questione, para que se possam desenvolver perspectivas diversas sobre estas próprias práticas
emergentes.
Registra-se também a parceria na realização do seminário entre curadoria e Núcleo do MAM, que
ao hospedar este debate, enraízam neste museu os horizontes de mudanças de paradigmas, de
incertezas e dúvidas, que são locais – particulares ao Rio de Janeiro, ao Brasil –, mas também trans-
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nacionais, contaminados por um cenário mundial de globalização e capitalismo tardio. Quais são
as dificuldades em se tratar da esfera pública quando abordamos especificamente as artes visuais?
Como ela é ativada, respeitada ou, mesmo, historicamente delimitada e excludente nas instituições
de arte? Quando e como o engajamento sociopolítico pode se tornar intrínseco ou não ao seu valor
ético-estético? Quais são os riscos em jogo nessa conjugação crítica e política entre ética e estética?
Como desenvolver práticas que possam ser simultaneamente experimentais, criticamente geradoras e, ainda, socialmente engajadas? Qual é o papel dos artistas, críticos, curadores e educadores,
mas também das universidades e museus, do poder público e privado nessas reconfigurações?
Quais são as possibilidades e responsabilidades da arte com a sociedade e a cultura, e vice-versa,
das instituições culturais, da sociedade para com a arte?
Se por um lado o seminário inaugura muito mais perguntas do que respostas, torna-se evidente a
necessidade de maior aprofundamento dessas questões e de um investimento coletivo transdisciplinar e intersetorial. Esperamos com a circulação em rede dessa publicação digital inaugurar uma
nova etapa de colaborações e parcerias nacionais e internacionais para os próximos anos, como
agentes reflexivos de processos sustentáveis em jogo nas reconfigurações do público, juntamente
com nossas próprias práticas artísticas, pedagógicas, críticas e curatoriais.
i
OITICICA, Hélio, “Brasil Diarréia” (1973), in Hélio Oiticica, Galerie Nationale du Jeu de Paume. Réunion des Musées Nationaux, Editions du Jeu de
Paume, Paris, 1992.
ii
CAMNITZER, Luis & PÉREZ-BARREIO, Gabriel eds, Education for art; art for education. Porto Alegre: Bienal Mercosul, 2009, p. 29
iii
Para mais informações sobre o Núcleo: http://nucleoexperimental.wordpress.com
iv
A Unidade Experimental do MAM, Rio de Janeiro, foi fundada com Cildo Meireles, Frederico Morais, Guilherme Vaz e.Luiz Alphonsus
v
Para mais informações sobre MoMA e o projeto de recuperar a historia da educação no museu: http://www.moma.org/explore/inside_
out/2010/06/10/wendy-on-mining-modern-museum-ed e um novo site com varias perspectivas sobre a historia da educação nos museus de arte: http://
www.moma.org/learn/mining_education
vi
Segue os links para mais informações: Machine Projects (http://machineproject.com/) Tânia Bruguera (http://www.taniabruguera.com/cms/486-0Immigrant+Movement+International.htm) Center for Land Use Interpretation http://www.clui.org/) e Christine Hill (http://www.publicartfund.org/
pafweb/realm/99/hill_c_f99.html & http://www.volksboutique.org/)
vii
Para mais informações sobre a 8ª Bienal do Mercosul: http://www.bienalmercosul.art.br/
viii
Segue os links para mais informações: Anton Vidokle, Manifesta 6, Notes for an Art School (http://manifesta.org/manifesta-6/ Unitednationsplaza
(http://www.unitednationsplaza.org/) e Night School (http://museumashub.org/node/48) Charles Esche, KIOSK for Useful Knowledge: The Museum –
Live Dialogue(http://vanabbemuseum.nl/en/browse-all/?tx_vabdisplay_pi1%5Bptype%5D=20&tx_vabdisplay_pi1%5Bproject%5D=746&cHash=8fd25
9386cRainer Ganahl (http://www.ganahl.info/reading.html)
ix
STRECK, Danilo, “A educação popular e a (re) construção do público. Há fogo sob as brasas?” Revista Brasileira de Educação v.11 n.32, 2006
x
Segue os links: Lugar a Dudas (http://www.lugaradudas.org/ ), o site de Juan Manuel Echavarría (http://jmechavarria.com/), em referência às obras
com os ex-guerrilheiros http://www.laguerraquenohemosvisto.com/espanol/principal.html
xi
Para mais informações sobre Centre for Possible Studies: http://centreforpossiblestudies.wordpress.com/
xii
Elisa Bracher – estava em exposição no MAM por ocasião do Seminário em novembro de 2011. Instalação Ponto Final sem Pausa, no salão monumental.
xiii
OITICICA, Hélio, “Esquema Geral da Nova Objetividade” (1967) Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Projeto Hélio Oiticica, 1992, pp. 110-120.
xiv
Fred Evans explora os conceitos de solidariedade, heterogeneidade e fecundidade como “ética dialogal” ou corpo de múltiplas vozes – “uma unidade composta por diferenças” , explorando vários filósofos, em especial Deleuze e Guattari. In. EVANS, Fred. The Multivoiced Body: Society and Communication in the Age of Diversity. New York: Columbia University Press, 2008.
xv
Texto original em espanhol: “Si defendemos la función pedagógica del arte, es posible inscribir en el imaginario colectivo, poco a poco, una disposición distinta a socializar, entender, consumir, construir y deconstruir nuestra cultura, y las estructuras sociales que reproducimos al hacerlo. El arte
parece ofrecer como campo la posibilidad de hacer visibles y por ente analizables, estas estructuras inconscientes, como menciona Foucault [...] El arte
parece ofrecer posibilidades de hacer consciente, de reconfigurar, de reconfigurarnos.”
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O seminário Reconfigurações do público: arte, pedagogia e participação ocorreu no Museu de Arte Moderna Rio de Janeiro nos
dias 8 a 10 de novembro 2011 com o patrocínio Petrobras e Unimed-Rio, contando com a Lei de Incentivo à Cultura do Estado do Rio
de Janeiro. Coordenado pelo Núcleo Experimental de Educação e Arte o seminário foi organizado pela curadoria do l em parceira
com o Departamento de Educação e Programa Internacional do MoMA de Nova York, Casa Daros, Fundação Bienal do Mercosul e
Universidade Federal Fluminense contando com o apoio de Fundação Roberto Marinho.
Patrocínio Publicação Digital Petrobras - Lei de Incentivo à Cultura do Estado do Rio de Janeiro
Realização Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro
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