Baixar este arquivo PDF - Capoeira

Transcrição

Baixar este arquivo PDF - Capoeira
CAPOEIRA
MÚSICA DO GUETO
Revista de Humanidades e Letras
ISSN: 2359-2354
Vol. 2 | Nº. 1 | Ano 2015
Richard Shusterman
TRADUÇÃO
Site/Contato
www.capoeirahumanidadeseletras.com.br
[email protected]
Editores
Marcos Carvalho Lopes
[email protected]
Pedro Acosta-Leyva
[email protected]
Richard Shusterman
MÚSICA DO GUETO1
Richard Shusterman
Eu percebi que todas as músicas são originárias do gueto e por isso dei para o álbum o
nome de ghetto music: the blueprint of hip hop (musica de gueto:o projeto do hip hop).
Somente a consciência de gueto pode entender e somente a consciência do gueto pode
desfrutar.
KRS-One
If you ain't ever been to the ghetto
Don't ever come to the ghetto
Cause you wouldn't understand the ghetto
And stay the fuck out of the ghetto2
Naughty by nature
From ghetto bastard (Everything`s gonna be alright)
Rap é música negra. Ninguém pode rejeitar isso. Assim como também ninguém pode
questionar que é uma musica do gueto. Inventada em meados da década de setenta nos guetos
negros de Nova Iorque, o rap não deixou que o seu contundente sucesso no resto do mundo
interferisse no seu compromisso político e cultural com o gueto. Quando o sucesso comercial do
rap o coage para ser mais comercial, quando a fama artística internacional lhe obriga a enterrar
sua grave mensagem política sob uma reluzente sofisticação de mídias tecnológicas, quando uma
crescente parte dos fãs (e alguns de seus artistas) vivem fora do seu abrigo, verdadeiros artistas
do hip-hop, como KRS-ONE e Naughty by Nature, orgulhosamente nos lembram de que o rap é a
música do gueto. Então ela é sim!
Mas o que isso significa efetivamente em termos culturais e práticos? O que ser a
musica do gueto significa em termos de importantes questões políticas, sociais, e artísticas que o
rap enfrenta: controvérsia sobre o purismo e étnico, e a validade da imagem de gangster e do
estilo pimpin. Tópicos problemáticos como estes devem ser resolvidos coletivamente pela
comunidade hip-hop através do dialogo, debate e ações – dentro e fora dos discos. Ninguém
sozinho pode oferecer respostas e certamente não pretendo fazer isso, especialmente porque,
sendo um filosofo branco e fã de rap, sou somente um membro muito periférico da comunidade
do hip-hop. Quero, no entanto, aproveitar esta oportunidade para estabelecer algumas
considerações sobre o conceito de gueto e também oferecer algumas ideias sobre o que a história
1
Tradução de Marcos Carvalho Lopes e Mamadu Seidi. O artigo original "Ghetto Music" está disponível em:
http://www.fau.edu/humanitieschair/Ghetto%20Music.pdf, e foi publicado original mente em 1992 no Journal of
Rap, Winter 1992, p. 11, 12 e 18. Agradecemos a Richard Shusterman por autorizar essa tradução e publicação.
2
“Se você nunca esteve no gueto,/não venha para o gueto,/ porque você jamais vai entender, /sendo assim fique fora
do gueto”.
Capoeira – Revista de Humanidades e Letras| Vol.2 | Nº. 1 | Ano 2015 | p. 73
Música do Gueto
do conceito significa para o rap, sendo ele a música do gueto, no que se refere à questão do
purismo negro isolacionista e do orgulho excludente por ser do gueto.
O termo “gueto” foi utilizado pela primeira vez em 1516 para designar especificamente
uma vizinhança de Veneza na qual os judeus foram segregados a força pela comunidade local, e
obrigados, por lei, a viver. Essa prática oficializada de forçar judeus a viverem separados dos não
judeus tornou-se comum nas cidades cristãs europeias, as quais separaram um grande número da
população judaica, tornando o termo gueto o mais usual para designar aquelas áreas. Os judeus
foram tolerados nas cidades por razões econômicas, devido as sua experiência com comércio
internacional, adquirida através do seu longo exílio de sua terra natal, e a continua peregrinação
forçada pela perseguição e expulsão de diferentes territórios. Mas, fora a sua experiência em
termos comerciais, os judeus foram considerados e tratados como inferiores em termos raciais e
étnicos pela comunidade cristã dominante, foram desrespeitados por serem infiéis cegos para a fé
cristã e teimosamente orgulhosos de suas próprias crenças. Isolá-los no gueto era uma forma de
explorá-los economicamente e de prevenir misturas que poderia contaminar a pureza e
superioridade da sociedade cristã.
A fonte etimológica de “gueto” é intrigante. Apesar de alguns acreditarem que o termo
simplesmente veio da palavra em italiano borghetto, que significa bairro ou vizinhança, a mais
recente edição do Oxford English Dictionary (1989, vol. 6) sugere que os venezianos
chamavam o bairro judeu de gueto, porque naquele lugar havia antes uma fundição, que em
italiano é chamada de getto. Mas ao invés de fundir-se em um “caldeirão” (“melting pot”) nos
qual as diferenças entre cristãos e judeus seriam sintetizadas para criar uma liga social mais
sólida, o gueto se tornou um símbolo de isolamento, medo e perseguição da raça minoritária e de
suas diferenças culturais.
Por séculos a palavra gueto foi diretamente relacionada com a perseguição e
confinamento dos judeus. Somente no século XX seu uso foi estendido para designar algumas
zonas urbanas segregadas e habitadas por negros e outras minorias étnico-raciais pobres.
Diferentemente dos guetos originais, os guetos atuais não tem a segregação imposta por uma lei
explícita, mas através de complexas formas de opressão socioeconômica, que são amparadas
pelas leis oficiais e instituições de nossa sociedade. Porém, os motivos do medo e da exploração,
assim como, a consequente superlotação e opressão, são iguais.
Se o gueto ao longo do tempo tem sido um símbolo vergonhoso de confinamento
forçado e de pressuposta inferioridade, impostas por um opressor; se este permanece sendo um
cenário de miséria e crime, porque o rap orgulhosamente celebra ser a “música de gueto”. Por
que não usar o sucesso do rap, que Ice-T chama “de sua penetração no coração da nação”, para
Capoeira – Revista de Humanidades e Letras| Vol.2 | Nº. 1 | Ano 2015 | p. 74
Richard Shusterman
desfazer a mentalidade de gueto e assegurar que a comunidade hip-hop nunca será alvo da
“guetização”, mas sim construirá uma grande comunidade global e multirracial?
A resposta envolve uma dialética fascinante de orgulho da minoria envergonhada e
oprimida, onde tal minoria para reivindicar sua autoafirmação étnica, contra o tratamento
vergonhoso do opressor, acaba por assumir com orgulho as coisas vergonhosas que o próprio
opressor lhe atribuiu e impôs. (Podemos ver essa dialética, por exemplo, na inversão linguística
que os negros promovem do significado ruim para um bom e afetuoso do termo nigger, que na
fala dos brancos era um termo vergonhoso). Relacionada a essa dialética de vergonha e orgulho
está uma dialética de exclusão recíproca, pela qual a minoria oprimida e excluída acaba por
assumir o orgulho da sua exclusão e da pureza étnica que esta exclusão proporcionou e, em
reciprocidade, exclui a maioria dominante como sendo de alguma forma inferior, perigosa e
indigna de inclusão, do mesmo modo como a maioria reciprocamente lhe exclui por razões
similares.
O orgulho do gueto é uma reação de empoderamento diante da vergonha de ser do gueto
e do escárnio, da opressiva segregação feita pela sociedade branca. Neste contexto, o orgulho
negro é uma reação extremamente positiva e deve ser encorajado. Mas o perigo de tal orgulho do
gueto é que ele pode tornar-se uma política exclusista de isolamento chauvinista, na qual temas e
ouvintes que não pertencem ao gueto não tem uma genuína admissão dentro da cultura real de
hip-hop. As palavras acima citadas do ‘’professor’’ KRS-One sobre a necessidade de
conscientização do gueto através do rap e a recomendação de Naughty by Nature para que os
forasteiros (outsiders) “ficarem fora da merda do gueto”, podem não ser mal interpretadas como
se eles simplesmente advogassem uma atitude de exclusão. Acredito que seu pensamento não é
tão simplista; por exemplo, é a “conscientização do gueto” e não dos que vivem no gueto atual
que KRS-one pede de seus ouvintes de rap, e esta conscientização talvez possa ser alcançável ou
imaginável através de uma percepção simpática da mensagem do rap e também da própria
vivência dos que não são do gueto de humilhação, alienação e opressão. Pois estes infortúnios,
lamentavelmente, acontecem também fora do gueto; e sua onipresença ajuda a explicar o sucesso
mundial do rap.
De qualquer modo, o chauvinismo exclusivista do gueto corre risco de reforçar os muros
de ódio e desconfiança que criaram originalmente a opressiva segregação do gueto. Ao menos
que o orgulho do gueto seja ensinado com tolerância e reconhecimento das coisas que ocorrem
fora do gueto e com preparação para partilhar a mensagem do rap com a população em geral, o
orgulho do rap de ser do gueto pode simplesmente contribuir para a construção a partir de dentro
Capoeira – Revista de Humanidades e Letras| Vol.2 | Nº. 1 | Ano 2015 | p. 75
Música do Gueto
dos muros de isolamento do gueto, numa reação aos muros de ódio já colocados pela sociedade
branca racista “de fora”; enquanto o que queremos “é que os muros sejam demolidos”.
Mas como a sociedade branca não tem demonstrado este tipo de tolerância e
reconhecimento para com o rap, porque culpar o hip-hop de misturar o orgulho do gueto com
chauvinismo exclusivista? Nenhuma observação crítica tem sido feita, se tal chauvinismo e
separação podem ser passos necessários na jornada em busca de uma completa liberação social e
cultural. O problema é se perguntar se o isolamento chauvinista do no gueto ou uma maior
tolerância inter-racial com um respeito global da cultura negra são o objetivo final do hip-hop.
Uma forma de ver os problemas do isolacionismo chauvinista do gueto sem entrar no embrulho
de controvérsias apaixonadas sobre a atual política cultural negra é considerar a dolorosa história
inicial dos moradores do gueto – judeus, que dramaticamente encenaram a dialética de vergonha
e orgulho de minoria oprimida e a dialética de exclusão isolacionista.
Os judeus têm vivido a vergonha de muitas gerações de escravatura no Egito e muitos
séculos subsequentes de exílio forçado e perseguição. Sua reação foi a de afirmar da forma mais
veemente possível sua orgulhosa fé de que eram pessoas escolhidos por Deus; eleitos, seriam
uma elite, ainda que oprimidos, uma minoria dentre os muitos povos do mundo. Certamente, eles
orgulhosamente explicaram a vergonhosa perseguição como consequência de sua escolha por
Deus e intrínseca superioridade. Outras nações perseguiram os judeus com fúria por conta de seu
orgulho de diferença étnica e inveja de sua alegada relação com Deus; enquanto Deus permitiu
que fossem perseguidos por essas outras nações – egípcia, assíria, helena, romana cristã – porque
ele estava os testando e punindo para ver se eles tinham uma fé pura.
Se a sociedade cristã “guetizou” e excluiu os judeus, a ideologia judaica dialeticamente
ensinou uma superioridade exclusivista vis-à-vis a dos cristãos, vigorosamente oposta aos
esforços cristãos de lhes converter, bem como combatendo outras formas de assimilação, como a
ligação através do casamento, isto para poder manter sua pureza étnica e religiosa. Quanto mais
os judeus foram perseguidos por serem racialmente ou etnicamente diferentes, mais eles
insistiram com orgulho na sua diferença e menos preparados estiveram para partilhar sua crença
com outros povos do mundo. Fechados dentro de um isolamento excludente, os judeus não
tentaram converter outros povos, como fizeram cristãos ou muçulmanos. No fundo, se a nação
judaica não tivesse se fechado em seu orgulho, perseguindo o isolamento como o Povo
especialmente Escolhido por Deus, se tivessem sido mais abertos para partilhar sua condição de
“Povo Eleito” com outros povos, abraçando-os através da fé, os ensinamentos de Jesus e o ideal
de conversão e salvação universal poderiam ter sidos absorvidos na religião judaica. O
cristianismo poderia ter continuado sendo uma das denominações do judaísmo e dado a
Capoeira – Revista de Humanidades e Letras| Vol.2 | Nº. 1 | Ano 2015 | p. 76
Richard Shusterman
conversão ao império romano e as tribos germânicas; os judeus podiam ser uma presença
dominante na Europa ao invés de uma minoria oprimida, tímida e desprezada, por sua orgulhosa
insistência na diferença étnica e arrogante vontade de exclusão. A longa historia de orgulho,
dentro de um contexto de opressão e sofrimento na exclusão, fez com que os judeus se tornassem
o alvo ideal para o horror genocida dos nazistas. Há uma ligação lógica entre a imposição de
isolamento no gueto e os campos de concentração.
A Israel moderna aprendeu a lição de que não deve se orgulhar em sofrer perseguição,
mas teve menos sucesso em notar que seu implícito complexo de superioridade lhe compromete
diante de outras nações (isto é, com seus vizinhos árabes) o que é um obstáculo continuo para sua
paz, segurança e prosperidade. Judeus americanos e europeus têm apreendido com a lição do
gueto e assim lutam, ainda que frequentemente de modo fanático, contra sua “guetização”,
prontamente atacando como antissemita qualquer um que aponta para os judeus de modo crítico.
Dai a necessidade de caçar bruxas sobre o antissemitismo no rap. Embora mantendo sua
identidade étnica e orgulho, os judeus americanos têm tentado profundamente integrar-se de uma
maneira mais plena na cultura americana. Tanto eles como a cultura americana beneficiaram-se
da integração, embora o sucesso de sua integração tenha feito com que os judeus americanos se
tornassem mais conservadores do que foram nos anos 50 e 60, quando lutavam pelos direitos
humanos lado a lado com os negros. A cultura americana (de modo mais explícito na música,
dança e esporte) tem lucrado cada vez mais da expressão afro-americana, no entanto o povo afroamericano continua tristemente guetizado e oprimido socioeconomicamente.
Isto é uma lição de moral para o rap? Primeiramente, existe uma óbvia diferença entre a
“guetização” de judeus e negros, isso pode tornar ariscada qualquer tentativa de esboçar uma
conclusão específica. Porém, penso que poderia ser melhor para o rap combinar o orgulho em ser
a música do gueto, com uma abertura positiva para o mundo social que esta fora do gueto,
influenciando-o, ainda que forçosamente. O Rap precisa manter o compromisso do Public Enemy
de ir alem e “ensinar os burgueses”3, espalhando a poderosa é muito necessária mensagem do rap
de liberação corporal, social e política para além de sua comunidade original no gueto. O rap
precisa fazer isso, tanto para o bem maior da comunidade do gueto, como também para o bem do
mundo que lhe circunda e impacta sobre essa comunidade.
Ao celebrar a si mesmo como musica de gueto, o rap precisa relembrar daquilo que
muitas de suas canções nos lembram: o horror e a miséria da vida no gueto. Nunca devemos
esquecer de que as raízes do rap, inspiração e compromisso político, alicerçam-se nas
circunstancias do gueto; porém isso não quer dizer que o atual gueto representa o ideal do rap. O
Capoeira – Revista de Humanidades e Letras| Vol.2 | Nº. 1 | Ano 2015 | p. 77
Música do Gueto
rap progressista, como o vejo, deve ter como seu objetivo transformar o gueto e o resto do
mundo, não de maneira simplista idealizar o primeiro e excluir o último.
Richard Shusterman
Filósofo
pragmatista,
famoso
por
suas
contribuições à estética e à disciplina nascente da
somaestética, é professor na Florida Atlantic
University. Nascido numa família judia, estudou
inglês e filosofia, especialmente filosofia analítica,
na Universidade Hebraica de Jerusalém, onde
recebeu o título de mestre. Realizou estudos de
doutorado em Oxford, passando a se interessar por
filosofia continental. Desenvolveu, a partir de John
Dewey, uma estética pragmatista própria
publicada no livro Vivendo a arte em que se
aproxima de modo melhorista do hip-hop.
Também tem interesse em filosofia asiática e
religiões orientais. Desde os anos 1990, tem
dirigido e participado de projetos da Unesco.
3
Shusterman se refere a canção “Don't Believe The Hype” do Public Enemy.
Capoeira – Revista de Humanidades e Letras| Vol.2 | Nº. 1 | Ano 2015 | p. 78

Documentos relacionados