Somos Todos Olímpicos

Transcrição

Somos Todos Olímpicos
edição 10
CAPA: © CARLO GIOVANI
edições anteriores
1. FUT UR O DO LIX O | DE ZE MBRO 2 0 12
2. S UB ÚR B I O S E IDE N TIDADE S | MARÇ O 2013
3. R E A L I S M O M ÁG ICO N O SÉ CU L O X XI | O UT UB R O 2013
4. M OB I L I DA DE U RBAN A | ABRIL 2 0 1 4
5. M E N O S3 0 | OU TU BRO 2 0 1 4
6. ED UC A Ç Ã O: MITOS E FATOS | DE ZE MBR O 2014
7. CO N SUM O C O N SCIE N TE | JU N HO 2015
8. EMP R E E N DA -SE | DE ZE MBRO 2 0 1 5
9. VOZ E S DO V E L HO CHICO | MAIO 2016
CADERNO
GLOBO
CONSELHO EDITORIAL
Alice Sant’Anna, PUC-Rio
Anna Penido, Inspirare
Antonio Prata, Folha de S.Paulo / Globo
Beatriz Azeredo, UFRJ / Globo
Caio Dib, Caindo no Brasil
Clotilde Perez, USP
Edna Palatnik, Globo
Jailson Souza, Observatório de Favelas
Marcelo Canellas, Globo
Silvio Meira, FGV-Rio / Porto Digital
COMUNICAÇÃO
Sérgio Valente, diretor
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Beatriz Azeredo
Viridiana Bertolini
EDITORA-CHEFE
Graziella Beting
RESPONSABILIDADE SOCIAL
Beatriz Azeredo, diretora
GLOBO UNIVERSIDADE
Viridiana Bertolini, gerente
Viviane Tanner, supervisora
EQUIPE
Fatima Gonçalves
Gisele Gomes
Helena Klang
Juan Crisafulli
Leticia Castro
Paula Nakahara
Willy Hajli
EDITORIAL Esporte 360º 4
INFOGRÁFICO Expansão global 6
TI A
L
R OS POVOS E OS JOGOS, DESDE OS PRIMÓRDIOS
MU
U
LTMO
U
C IS
L
ARTIGO Victor Andrade de Melo 10
ARTIGO Ronaldo Helal e Fausto Amaro 18
ENTREVISTA Stefano Pivato 26
ARTIGO Arlei Sander Damo 34
CRÔNICA Antonio Prata 42
EDITOR
Paulo Jebaili
O LIMITE ENTRE A GLÓRIA E O FRACASSO
PRODUÇÃO
Gisele Gomes
ENTREVISTA Katia Rubio 46
ENTREVISTAS
Ana Paula Brasil
Gisele Gomes
Juan Crisafulli
Paulo Jebaili
COBERTURA João Pedro Paes Leme, Marcos Uchôa
e Renato Ribeiro 58
INSPIRAÇÃO Terezinha Guilhermina 64
REPORTAGENS
Jornalismo e Esporte Globo
ARTIGO Rodrigo Hübner Mendes 70
REVISÃO
Ricardo Jensen de Oliveira
CRÔNICA Zélia Duncan 80
PROJETO GRÁFICO
Casa 36
VERSÃO DIGITAL
Casa 36
ILUSTRAÇÕES
Carlo Giovani
FOTOGRAFIA
Paulo Uras
Renato Velasco
Shutterstock
TRADUÇÕES
Celina Olga de Souza
Jayme da Costa Pinto
PRODUÇÃO GRÁFICA
Lilia Góes
Toninho Amorim
2
INSPIRAÇÃO Giba 52
ARTIGO Gustavo Andrada Bandeira 74
CADERNO GLOBO 10
São Paulo, agosto 2016
Tema: Somos Todos Olímpicos
ISSN 2357-8572
Editor: Globo Comunicação
e Participações S.A.
Globo Universidade
Endereço: Rua Evandro
Carlos de Andrade, 160
São Paulo – SP
CEP 04583-115
COMO O ESPORTE PODE MUDAR REALIDADES
ARTIGO Marlova Jovchelovitch Noleto e Fabio Eon 84
MOSAICO Raí, Leandro Ribela, Fernanda Keller,
Flávio Canto, Ana Moser, Paula 90
ARTIGO João Masao Kamita 98
ARTIGO Lamartine DaCosta e Ana Miragaya 106
EDIÇÃO DIGITAL
O Caderno está
disponível em versão
digital no link:
APP.CADERNOSGLOBO.COM.BR
CRÔNICA Joaquim Ferreira dos Santos 110
CONCEITO Somos Todos Olímpicos 112
3
EDITORIAL
a
4
VERSÃO DIGITAL
Esta edição do Caderno
está disponível em
português e em inglês,
com vídeos exclusivos, em
app.cadernosglobo.com.br
Superação
© BORIS RYAPOSOV/SHUTTERSTOCK
0
6
3
Aborda temas que perpassam a relação do esporte com a sociedade
desde os primórdios das competições até os dias atuais, em que as
disputas são capazes de mobilizar e captar a atenção das pessoas em
escala global. Essa mobilização é capaz de produzir fenômenos sociais
e comportamentais, num espectro que vai do congraçamento dos
povos a manifestações nacionalistas. Este primeiro bloco conta com
artigos do historiador Victor Andrade de Melo (UFRJ), do sociólogo
Ronaldo Helal e do comunicólogo Fausto Amaro (UERJ) e do antropólogo Arlei Sander Damo (UFRGS). Traz ainda uma entrevista com o
historiador italiano Stefano Pivato (Università degli Studi Carlo Bo) e
uma crônica do escritor Antonio Prata.
Signo intrínseco da própria atividade esportiva, o tema é tratado de diversas formas, contemplando a superação física, emocional e das barreiras
sociais. Esta segunda parte do Caderno conta com os artigos do educador
Gustavo Andrada Bandeira (UFRGS) e do administrador e empreendedor
social Rodrigo Hübner Mendes. Traz também, como exemplos de superação de limites, os depoimentos do ex-jogador de vôlei e campeão olímpico Giba, que superou uma leucemia na infância, e da corredora Terezinha
Guilhermina, uma das melhores atletas paralímpicas do mundo, além de
uma entrevista com a psicóloga do esporte Katia Rubio. Três jornalistas
com experiência na cobertura de eventos esportivos dão seus relatos, comentando episódios marcantes que vivenciaram. A crônica desta seção é
assinada pela cantora Zélia Duncan, praticante de corrida.
Transformação
E
T
R
o
O
P
S
E
Multiculturalismo
realização da 31ª edição dos Jogos Olímpicos e 15ª dos Paralímpicos no Brasil foi o ponto de partida para o Caderno, em
sua 10ª edição, propor uma série de reflexões sobre o esporte e as várias relações que se estabelecem com as pessoas ao
redor do mundo e através dos tempos. Adotando como título o conceito da comunicação e cobertura jornalística dos Jogos pela
Globo, Somos Todos Olímpicos, a publicação procurou apresentar uma
visão panorâmica do tema, contemplada em três vertentes principais:
Mudar realidades é uma característica do esporte que pode ser observada
tanto em termos individuais quanto coletivos. Aqui, o Caderno traz à tona
a questão da atividade física como ferramenta de inclusão social e do direito à prática esportiva e de lazer. Trata também das transformações nas
cidades que sediam grandes eventos e dos legados físico e simbólico que
podem ser deixados no espaço urbano. Os artigos são assinados por Marlova Jovchelovitch Noleto e Fabio Eon (representantes da Unesco), pelo
arquiteto e urbanista João Masao Kamita (PUC-Rio) e pelos pesquisadores
Lamartine DaCosta (Uerj) e Ana Miragaya (Unesa). Atletas e ex-atletas
expõem relatos sobre como se tornaram empreendedores sociais. A crônica fica a cargo do escritor e jornalista Joaquim Ferreira dos Santos, que
saúda o novo desenho do Rio de Janeiro pós-Jogos. Uma homenagem à
cidade que sedia os Jogos Olímpicos de 2016.
5
INFOGRÁFICO
O
Ã
S
N
A AL
P
EXLOB
G
1904
Estocolmo, Suécia
Antuérpia, Bélgica
1908,
1948,
2012
1916
1912
1920
Interrupção devido à I Guerra Mundial
1940, 1944
1952
1928
Amsterdã, Holanda
Interrupções devido à II Guerra Mundial
Helsinque, Finlândia
1980
Londres,
Inglaterra
1988
União Soviética
Seul, Coreia do Sul
Saint Louis, Estados Unidos
OLIMPÍADA DO RIO DE
JANEIRO ENTRA PARA
A HISTÓRIA POR SER
A PRIMEIRA REALIZADA
NA AMÉRICA DO SUL
E SUPERA RECORDE
DE PAÍSES PARTICIPANTES
1932, 1984
Los Angeles, Estados Unidos
1936
1976
Berlim, Alemanha
Montreal, Canadá
1960
1972
Munique, Alemanha
2008
Pequim,
China
Roma, Itália
1996
1968
Atlanta, Estados Unidos
Cidade do México, México
1992
1964, 2020
Tóquio, Japão
1896 e 2004
Barcelona, Espanha
Atenas, Grécia
1900, 1924
Paris, França
RIO 2016
FONTE: COI E COB © DIVULGAÇÃO
•
6
ATENAS
1896
•
14 países participantes
• 241 atletas
• 43 provas
206 países na Olimpíada (na anterior,
em Londres, foram 204)
• 176 países na Paralimpíada
(164 em Londres)
• 306 provas olímpicas
e 528 paralímpicas
• 42 modalidades olímpicas
e 23 paralímpicas
• Mais de 10 mil atletas olímpicos
e 4 mil paralímpicos
2016
Rio de Janeiro, Brasil
Vinicius e Tom
são as mascotes
destes Jogos
ROMA
1960
Primeira Paralimpíada
(ainda não realizada em
conjunto com a Olimpíada)
SEUL
1988
Olimpíadas e
Paralimpíadas passam a
ser organizadas juntas
14.722
medalhas já foram
recebidas por
atletas de 140
países na história
das Olimpíadas
2000
Sydney, Austrália
1956
Melbourne, Austrália
7
26 34
18
8
O corpo no centro do debate
Embate moderno
Novas cartas na mesa
Emoções uniformizadas
Íadas, íadas, íadas!
Frescobol nas Olimpíadas
© LUIGI FARDELLA/SHUTTERSTOCK
I
T
L
A
U
R
M TU
L
O
U
C ISM
L
10
42
9
ARTIGO
por VICTOR ANDRADE DE MELO
o
n
o
p
r
o
c
o
e
t
a
b
e
d
do
© NEJRON PHOTO/SHUTTERSTOCK
o
r
t
n
e
c
FUNDADOR DAS OLIMPÍADAS MODERNAS,
PIERRE DE COUBERTIN CONSIDERAVA
O ATLETISMO E OS JOGOS ESPORTIVOS
FERRAMENTAS FUNDAMENTAIS PARA
REGENERAR A JUVENTUDE. NO SEU ENTENDER,
SERIAM ESTRATÉGIAS PARA REMEDIAR
OS MALES DA CIVILIZAÇÃO INDUSTRIAL
E PERMITIR A CONTINUIDADE DO PROGRESSO
10
11
ARTIGO
VICTOR ANDRADE
DE MELO
é professor associado
da Universidade
Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), onde
atua nos programas
de pós-graduação em
História Comparada,
no Instituto de História,
e em Educação,
na Faculdade
de Educação.
a
Naquela transição de séculos, em algumas
cidades e entre certas lideranças grassava uma
sensação de desconforto e descontentamento
com os problemas advindos da nova dinâmica
social e econômica, desdobramentos do processo de industrialização. Aquele fin de siècle
era marcado por certa perplexidade e insegurança em função da reordenação dos padrões
de vida. Havia preocupações com o que se
pensava ser o declínio moral da sociedade.
Este texto recupera
de forma resumida
alguns argumentos
apresentados em dois
outros artigos:
“De Olímpia (776 a.C.)
a Atenas (1896) a Atenas
(2004): problematizando
a presença da
Antiguidade clássica
nos discursos
contemporâneos sobre
o esporte” (revista
Phoînix, 2007); e
“Primeiros ventos
olímpicos em terras
tupiniquins” (escrito em
conjunto com Fabio
Peres para a Revista da
USP, junho de 2016).
12
Nesse âmbito, o corpo foi para o centro do
debate, algo que dialogou com o desenvolvimento científico, com a redução da influência
religiosa, com o crescimento e a valorização
das vivências públicas de lazer, com a organização dos primórdios do que anos depois se
chamaria de “sociedade do espetáculo”.
© ITALO/SHUTTERSTOCK
primeira edição dos Jogos Olímpicos modernos foi realizada em Atenas, na Grécia, em 1896, desdobramento de um congresso promovido
na França, em 1894, bem como da
criação do Comitê Olímpico Internacional, em
1895, um processo liderado pelo francês Pierre
de Coubertin. Foram intensos os debates que
antecederam a organização do evento.
Pierre de Coubertin participou ativamente
desse debate. Inspirado na experiência britânica, na qual o esporte vinha se sistematizando e sendo valorizado desde a transição dos
séculos XVIII e XIX, considerava o atletismo
e os jogos esportivos ferramentas fundamentais para regenerar a juventude. No seu entender, seriam estratégias para remediar os males
da civilização industrial e permitir a continuidade do progresso. Possibilitariam trabalhar
a autodisciplina e forjar corpos sadios.
Nesse cenário, surgiu a ideia de recriar os Jogos
Olímpicos. As competições não deveriam ser
entre países, mas entre indivíduos. Os atletas
seriam amadores. As mulheres não eram bemvindas como competidoras. Os eventos seriam
promovidos a cada quatro anos. As guerras
cessariam para sua realização.
Se uma nova relação e consideração com o
corpo estavam sendo construídas, um novo
Essas são algumas facetas que explicitam a
sistema de regulação, de disciplinarização, se
busca de conexão com a Grécia antiga. Na verfazia necessário. Fortaleceu-se uma tendên- dade, devem ser consideradas mais como macia de, desde uma leitura peculiar da Anti- nifestações das necessidades do tempo em que
guidade grega, encará-la como exemplo a ser os Jogos Olímpicos foram recriados. Não se
seguido em busca de estabelecer a ideia de
tratou de “reproduzir” o passado, mas sim de
harmonia, perfeição, saúde.
“inventar novas tradições” a partir de releituras.
O olimpismo foi concebido como um tipo de
humanismo universal que tem o esporte como
uma prática capaz de articular imagens e experiências na constituição de uma forma de
intervenção no contexto social. Construído
com base no diálogo com diversos parâmetros
filosóficos – procedimento típico do ecletismo
que marcava a transição de séculos –, foi mais
uma das iniciativas que aderiram à ideia de
internacionalismo, tais como o movimento
escoteiro (fundado em 1907), o esperanto (criado em 1887), a Cruz Vermelha (que surgiu em
1863 e cresceu muito no fim da centúria), a
Associação Internacional de Trabalhadores
(Primeira Internacional, instituída em 1864; a
Segunda foi estabelecida em 1889).
Assim sendo, o movimento olímpico não conseguiu fugir da organização política que paulatinamente se tornou preponderante no decorrer do século XIX, o Estado-nação.
Dependia das contribuições dos países das
mais distintas formas: para promover os eventos, para enviar delegações, para legitimar a
proposta. A ideia de celebração dos povos se
chocaria em diversas ocasiões com os interesses das nações, algo cada vez mais complexo
no tabuleiro geopolítico internacional. Com
isso, a relação entre esporte e política se tornaria progressivamente aparente, mesmo que
não poucas vezes isso seja publicamente negado pelos órgãos esportivos.
Coubertin rapidamente percebeu que precisava “conquistar” o maior número de países,
inclusive de outros continentes, especialmente da América. Vale lembrar que a terceira
edição dos Jogos Olímpicos foi realizada em
Saint Louis (Estados Unidos), em 1904. O evento foi marcado por diversas dificuldades, que
mostraram ao idealizador francês os desafios
de execução de sua proposta.
No Brasil, chegaram ecos dos Jogos Olímpicos
de 1896. Os jornais publicaram algumas informações sobre as cerimônias de abertura e
encerramento, bem como alguns resultados,
já estabelecendo uma associação entre esporte, nação e a ideia de internacionalismo.
13
ARTIGO
As principais responsáveis pela difusão do
termo foram, contudo, as exibições gímnicas
promovidas em outra esfera e com intencionalidades distintas: o circo. Companhias como
a do Círculo Olímpico, entre tantas outras,
apresentavam números denominados “jogos
olímpicos”. A sedução e o encanto que tais
espetáculos despertavam no público eram
indícios de que se gestava uma nova sensibilidade ligada a certas habilidades corporais
(força, vigor, equilíbrio, energia).
Algumas agremiações esportivas também usavam o termo. Um exemplo é o Clube Olímpico Guanabarense, fundado em 1883, que promovia eventos dedicados às corridas a pé, além
de ser um dos primeiros do país a organizar
competições de bicicletas.
A despeito de tanta veiculação do termo, os
Jogos Olímpicos de Atenas (1896) e de Paris
(1900) foram pouco percebidos pelos brasileiros.
No nosso país, a conformação de uma maior
relação com o olimpismo se deu na primeira
década do século XX, a princípio mais em razão
de certos festivais esportivos realizados na América do Sul, eventos nos quais equipes representativas do Brasil tomaram parte.
14
Por exemplo, no caso de uma competição realizada no Uruguai em 1907, houve especial
interesse em função de alguns bons resultados
obtidos por atletas brasileiros. Esses sportsmen
receberam destaque por supostamente demonstrar “o valor atlético” do país. Essa participação
em eventos internacionais gerou novas expectativas, induzindo a mobilização mais intensa
do esporte em discursos sobre a nação.
Nessa década, um brasileiro obteve destaque
no movimento esportivo internacional. Santos
Dumont, em 1905, recebeu o diploma de Mérito Olímpico por seus feitos na aviação. Isso,
contudo, não trouxe impactos significativos
na divulgação do olimpismo no Brasil. O Comitê Olímpico Brasileiro foi fundado em 1914,
mas, devido a problemas diversos, se tornou
efetivamente ativo apenas na década de 1930.
De fato, somente a partir dos anos 1920 nosso
país começou a prestar maior atenção ao movimento olímpico, em grande parte graças à
primeira participação do Brasil nos Jogos, na
edição de 1920, em Antuérpia (Bélgica). A
delegação nacional foi integrada por atletas de
tiro, natação, salto ornamental, remo e polo
aquático. O grupo enfrentou uma verdadeira
saga para comparecer ao evento. Deve-se
considerar que, mesmo que o esporte já fosse
popular e estivesse se consolidando no país
desde o século XIX, ainda não estava totalmente estruturado e muitos eram os conflitos
entre as lideranças.
1914 fundação do Comitê
foi a data de
Olímpico Brasileiro, que só se tornou
efetivamente ativo nos anos 1930
© ANDREY YURLOV/SHUTTERSTOCK
Na ocasião, o termo “Jogos Olímpicos” não era
desconhecido, pelo menos nas maiores cidades.
Já se conhecia o evento até mesmo porque era
grande a influência do neoclassicismo entre os
intelectuais brasileiros, inclusive alguns médicos que, no decorrer do século XIX, defenderam o valor da educação física. A referência
aos Jogos ajudava a defender a legitimidade e
a necessidade de institucionalização dos exercícios corporais. Uma representação do modelo grego de educação era considerada exemplo
a ser seguido.
ÃO
Ç
A
RIA OM
BR
A
E
EL HOC ES C S
C
ÕE
DE SE C ASIÕ
Ç
A
I
A
DE OVOS S OC AS N
I
A
S P ERSA ES D
O
S
D
DIV RES
EM NTE
I
OS
15
ARTIGO
1920 estreia do
marcou a
Brasil nos Jogos Olímpicos,
em Antuérpia (Bélgica)
1922 o Brasil
foi quando
O destaque foi a participação do selecionado de
tiro: uma medalha de ouro (Guilherme Paraense), uma de prata (Afrânio Costa) e uma de
bronze (por equipe, integrada por Sebastião
Wolf, Dario Barbosa e Fernando Soledade). Os
cronistas narraram com euforia tais conquistas.
O maior mérito teria sido colocar o nome do
país entre as grandes nações do mundo. Por isso,
os participantes foram encarados como heróis,
agraciados com condecorações e homenagens.
Chegaram a ser recebidos pelo presidente da
República, Epitácio Pessoa, em cerimônia promovida pela Liga de Defesa Nacional.
Fortaleceu-se a ideia de que o Brasil deveria
organizar um grande evento esportivo. A
oportunidade surgiu em 1922, no âmbito das
comemorações do Centenário da Independência, festividades promovidas com algum
atraso e atropelo em meio a um clima político bastante tenso.
As celebrações tinham como intuito projetar
internacionalmente a ideia de que o Brasil era
um país pacífico, ordeiro, unido e moderno.
Foram organizadas várias competições, entre
as quais os Jogos Internacionais de Militares e
os Jogos Olímpicos Latino-Americanos. Pela
primeira vez se tornava plausível à população
acompanhar mais amiúde o que propunha o
movimento olímpico.
16
A despeito do entusiasmo, os problemas foram
muitos. Sentindo os efeitos de uma crise econômica, o governo brasileiro demorou a passar
recursos para a organização do evento. A inexperiência na promoção de competições de
grande porte foi mais um fator dificultador.
Além disso, o clima tenso da política nacional,
aliado a certa precariedade na estruturação do
campo esportivo, se fez refletir nos confrontos
de interesses entre as lideranças envolvidas.
Ainda assim, os Jogos Latino-Americanos foram um sucesso. As competições ocuparam
um lugar de destaque entre as celebrações de
1922, atraindo um dos maiores públicos das
festividades. Foram fartamente divulgadas
pela imprensa e mobilizadas em discursos que
exaltavam uma nação para a qual se pretendia
forjar uma identidade que apontasse para o
que havia de mais “civilizado”.
Algumas instalações construídas para o evento
tornaram-se um patrimônio esportivo para o
Rio de Janeiro. Todavia, nem sempre foram de
uso amplo e irrestrito, além de terem custado
mais do que poderiam em razão de atropelos
na organização. Da mesma forma, os Jogos
foram, sim, importantes para o movimento
olímpico internacional e sem dúvida trouxeram
alguma projeção da imagem do país no exterior.
Convém registrar que também deixaram claras certas deficiências nacionais no que tange
ao gerenciamento e à administração. Eventos
dessa natureza, de fato, são uma faca de dois
gumes. Os Jogos Olímpicos podem trazer contribuições ao mobilizar as imagens esportivas
a serviço dos interesses das nações, mas ao
mesmo tempo a trajetória desses eventos mos-
tra que eles podem ser nocivos às cidades nas
quais são sediados. Há tensões recorrentes,
especialmente as ligadas aos investimentos
necessários e ao modo de organização.
De lá para cá, muita coisa aconteceu no movimento olímpico internacional, no esporte
brasileiro, na história do país. No momento
em que estamos prestes a realizar os Jogos
Olímpicos do Rio de Janeiro 2016, cabe a pergunta: aprendemos com o exemplo de 1922 e
a experiência de eventos semelhantes organizados pelo Brasil ou outros países?
O quadro atual do Brasil guarda semelhanças
com o da década de 1920. O país passa por um
difícil momento na política e na economia. Isso
vai interferir na realização dos Jogos Olímpicos?
Que legado o evento deixará para a cidade?
O futuro nos dirá se essa ocasião significou uma
oportunidade para garantir ganhos para os cidadãos e para a cidade ou se foi apenas uma
grande festa que reforçou momentaneamente
determinadas representações. Se for somente
isso, o evento será mais lembrado por trazer
muitos custos e incômodos para a população.
© GALINA BARSKAYA/SHUTTERSTOCK
realizou seu primeiro grande
evento multiesportivo,
no âmbito das comemorações
do Centenário
da Independência
17
ARTIGO
por RONALDO HELAL e FAUSTO AMARO
© STEFAN SCHURR/SHUTTERSTOCK
e
t
a
b
m
e
18
o
n
r
e
d
o
m
ESPORTE ATUAL ENVOLVE UM CHOQUE DE FORÇAS
QUE OPÕE A DESTRUIÇÃO DO LÚDICO E A SACRALIZAÇÃO
DE ELEMENTOS ENVOLVIDOS NAS COMPETIÇÕES
19
ARTIGO
é sociólogo e professor
da Faculdade de
Comunicação Social
da Universidade
do Estado do
Rio de Janeiro (Uerj).
FAUSTO AMARO
é doutorando
em Comunicação
pela Uerj.
o
s Jogos Olímpicos que têm o Rio de
Janeiro como sede são um bom ponto de partida para uma reflexão mais
séria acerca do impacto e da presença do esporte na sociedade moderna.
O que se segue são alguns pontos sobre esporte,
modernidade e sociedade brasileira que merecem
uma reflexão mais profunda.
1
O esporte é um fenômeno social que
permeia a vida do homem moderno.
A quantidade de tempo e afeto que as
pessoas lhe dedicam é frequentemente maior do que às outras esferas da vida social.
Por conseguinte, o espaço concedido ao tema
na mídia é, muitas vezes, maior do que o dedicado à economia ou à política. Os estudos sociais
do esporte já possuem certa tradição na Europa e nos Estados Unidos, e, devido à expressiva
popularidade do futebol no Brasil, o tema tem
adquirido cada vez mais destaque nas Ciências
Sociais e Humanas. Ainda assim, muito tem de
ser feito. O esporte, à exceção do futebol, precisa ser mais discutido e deve-se abandonar de
vez o estigma de tema menor ou de “patinho
feio” das humanidades. Cabem aqui alguns
comentários críticos sobre as questões mais
recorrentes elaboradas por essa área.
20
© CHEN WS/SHUTTERSTOCK
2
RONALDO HELAL
Na maioria dos clássicos da literatura da sociologia do esporte, encontramos uma discussão sobre o
fim do elemento lúdico e sobre a
profanação dos esportes modernos. Johan
Huizinga argumenta, em seu Homo ludens: o
jogo como elemento da cultura (Perspectiva,
2014), que o esporte moderno destrói um dos
aspectos fundamentais para o prazer e a satisfação dos grupos humanos: o elemento
lúdico. Para Huizinga, “o espírito do profissional não é mais o espírito lúdico, pois lhe
falta espontaneidade, a despreocupação”.
Muito dessa crítica de Huizinga deve ser atribuído à realização dos Jogos de 1936, em Berlim, e ao intenso uso do esporte como propaganda do regime nazista. Stanley Eitzen, em
Sport in contemporary society (Paradigm Publishers, 2005), critica a “corrupção do esporte” afirmando que este, ao se transformar
em um espetáculo, substitui o prazer do atleta “por aquilo que dá prazer aos torcedores,
dirigentes, televisão e empresas que pagam
os comerciais televisivos”. Gregory Stone faz
uma crítica parecida em American sports: play
and display (Chicago Review 9, outono 1955).
Segundo ele, a “exibição” (display) para os
espectadores é “des-brincadeira” (dis-play)
destruidora do “puro elemento lúdico”. Seguindo essa tendência, Georges Magnane, em
Sociologia do esporte (Perspectiva, 1969), expressa sua crítica ao esporte moderno afirmando que este “corre o risco de perder o seu caráter lúdico para tornar-se uma empresa
comercial, sujeita às regras da propaganda e da
publicidade”. O conjunto dessas críticas nos
remete à ideia de que a transformação do esporte em um “espetáculo” das multidões é
responsável pelo declínio do lúdico e de que a
erosão desse elemento é acompanhada e até
mesmo causada pelo advento da comercialização do esporte, tornando-o um negócio e, consequentemente, um evento profano. Essa crítica pode ser desdobrada para análise do doping
nos esportes olímpicos, que simboliza o ápice
da “cultura de resultados” no esporte, em detrimento da diversão descompromissada.
3
A ideia de que a erosão do lúdico foi
acompanhada pelo advento da comercialização e de que os esportes
modernos se tornaram atividades
totalmente seculares foi alvo de questionamentos. As afirmações de Huizinga, por exemplo, foram questionadas por Eric Dunning e
Kenneth Sheard no livro Barbarians, gentlemen
and players (Routledge, 2005). Esses autores
não acreditam que os esportes teriam mantido a sua popularidade se o elemento lúdico
inerente a eles tivesse sido atrofiado na extensão colocada por Huizinga, ou se eles tivessem
se transformado em uma atividade profana.
Segundo eles, o que parece estar ocorrendo é
justamente o contrário, ou seja, “a centralidade cultural do esporte tem crescido de tal
forma que hoje ele parece ser um fenômeno
social de proporções quase que religiosas”.
21
ARTIGO
RE
T
EN
S
ITE O E O
M
Ã
OS
LI
AD
D
N
R
I
G
N
O
SA FAN DEFI OS
O
D
EM RSO
PR
OS
B
C
I
O
E
P
SÃ
NIV LÍM
U
O
NO AIS
U
RIT
© DENIS KUVAEV/SHUTTERSTOCK
4
22
O caso do futebol no Brasil, por exemplo, confirma as asserções de Dunning
e Sheard. Apesar de sua crescente
comercialização e da tendência contemporânea de elitização presenciada nas novas “arenas”, ainda encontramos espaço para
manifestações “sagradas”. Em jogos entre
rivais tradicionais, os torcedores cantam, reverenciam seus ídolos, símbolos e cores de seus
times, choram e rezam nos estádios, demonstrando que certa aura sagrada permanece, ou
melhor, é ressignificada. É como se a mercantilização do esporte fosse absorvida pela necessidade da “sacralidade”, fazendo com que
os limites entre o sagrado e o profano não sejam
bem definidos nesse universo. A ritualidade
também é parte precípua dos Jogos Olímpicos
modernos, veja-se o aparato criado em torno
do evento ao longo do século XX: hino, bandeira, juramentos, desfile de nações, revezamento da tocha olímpica. Atualmente, o próprio acendimento da chama olímpica em
Atenas, com atrizes vestidas de sacerdotisas e
ampla cobertura midiática, mimetiza o elemento do sagrado religioso. No Brasil, por razões
culturais, a racionalização tem enfrentado fortes resistências dos torcedores, principalmente
após a Copa do Mundo de 2014.
23
ARTIGO
© PIRITA/SHUTTERSTOCK
6
5
A Olimpíada de Londres e a participação do Brasil – não somente a dos
atletas, mas também a dos torcedores – reforçam esse debate e acirram a polêmica. Se existe uma força que caminha na direção
da destruição do lúdico e da profanação do
espírito esportivo, existe também uma outra
que vai na direção oposta, reforçando o lúdico
e sacralizando elementos corriqueiros. Émile
Durkheim, em As formas elementares da vida
religiosa (Martins Editora, 2003), já chamava
atenção para a capacidade da sociedade de
“sacralizar” elementos mundanos, triviais e
corriqueiros. O universo do esporte é um exemplo emblemático desse processo de “sacralização” de coisas mundanas na sociedade moderna. Vimos nos Jogos Olímpicos de Londres,
e provavelmente veremos no Rio de Janeiro,
atletas “profissionais” serem adorados, idolatrados e festejados como semideuses do Olimpo. Presenciamos o “espírito olímpico” reafirmado e celebrado no esforço “sobre-humano”
de alguns competidores, seja para vencer uma
prova ou somente para terminá-la.
24
Que o esporte é um grande negócio, não resta
a menor dúvida, porém esse “grande negócio”
é um terreno fértil para a produção de mitos e
ritos representativos da comunidade. Desde
seus primórdios, em meados do século XIX, o
esporte moderno incorporava valores da industrialização e do capitalismo nascentes. A
crítica da sociologia do esporte é elaborada,
contudo, sem levar em conta a resistência
desse universo aos elementos “racionais” e
“profanos” e os aspectos “positivos” que daí
emanam. Por exemplo, percebemos, ainda
com relação às Olimpíadas, que a atração que
o esporte exerce nas pessoas faz parte de um
processo intrínseco ao fenômeno em questão,
que simultaneamente une povos em um sistema de comunicação universalizante e proporciona manifestações de diferenças culturais
em estilos, comemorações e performances.
Hans Ulrich Gumbrecht, em seu livro Elogio
da beleza atlética (Companhia das Letras, 2007),
tentou explicar os motivos de nossa atração
pelas performances atléticas; o autor enumera seus sete possíveis fascínios: “corpos esculpidos, sofrimento diante da morte, graça, instrumentos que aumentam o potencial do
corpo, formas personificadas, jogos como
epifanias e timing”.
Assim, entre as manifestações de
massa da cultura moderna, o esporte é a que melhor expressa o significado mais plural de globalização –
uma comunicação universal que respeita as
diferenças. O esporte é uma manifestação de
massa que integra sem trivializar ou homogeneizar, sem destruir as características básicas
da cultura local, temor constante dos críticos
da cultura de massa. Antes, trata-se de um
processo de adaptação e de tradução cultural.
Já dizia Peter Burke, no livro Variedades de
história cultural (Civilização Brasileira, 2000),
que a transferência cultural “só é possível em
solo adequado”. O caráter extraordinário do
esporte está justamente no fato de exigir a
cooperação das diferenças ao mesmo tempo
que as estimula. Em todos os níveis, da competição mais local a uma Olimpíada, atletas e
equipes diversas cooperam, aceitando e concordando com as regras e normas da competição e prometendo lutar pelo mesmo ideal: a
vitória. Some-se essa característica do conflito esportivo à incerteza dos resultados e percebemos, subjacente na mensagem esportiva,
o seu discurso altamente democrático. Não
obstante, cada vez mais temos visto que os
bastidores do esporte comportam escândalos
semelhantes aos experimentados em outras
esferas sociais (vejam-se os casos recentes na
Federação Internacional de Futebol, Fifa).
7
Por tudo isso, o esporte deve ser entendido como um ritual que proporciona sentido à coletividade. Nas
competições internacionais, como
uma Olimpíada ou uma Copa do Mundo, nos
deparamos com um expressivo drama da modernidade que fala de igualdade em um plano
e diferenças em outro. O esporte pode ser,
então, visto como uma metalinguagem – no
caso, a linguagem esportiva falando sobre a
própria sociedade. Assim, o esporte é um espaço privilegiado no qual a sociedade moderna produz seus mitos e ritos e deposita aí as
representações de seus desejos, frustrações e
medos. Utilizamo-nos do esporte para expor
quem somos e o que queremos ser.
O Rio de Janeiro, por sua história esportiva e
vocação lúdica, expressa pelo Maracanã, por
sua tradição em sediar eventos esportivos relevantes, pelas práticas esportivas experimentadas pela população nas praias, clubes e praças, é uma cidade síntese das polaridades do
esporte e, por conseguinte, apta à realização
de um evento global e multicultural como as
Olimpíadas. As candidaturas fracassadas anteriores (para os Jogos Olímpicos de 1936, 2004
e 2012) reforçam a importância simbólica deste momento tanto para a história do esporte
brasileiro quanto para a memória da própria
cidade do Rio. Temos aí uma oportunidade
singular de produzir para o mundo e para nós
mesmos um ritual paradigmático da sociedade moderna, momento para refletirmos sobre
nossas identidades (nacional, regional, local)
e sobre a(s) cultura(s) brasileira(s).
1936 vez, o Brasil se
Pela primeira
candidatava para sediar uma
edição dos Jogos Olímpicos
25
ENTREVISTA
com STEFANO PIVATO
PARA HISTORIADOR E ENSAÍSTA ITALIANO,
ATÉ A METADE DO SÉCULO PASSADO,
OS GRANDES EVENTOS ESPORTIVOS
EXPRESSAVAM A COMPETITIVIDADE ENTRE
AS POUCAS NAÇÕES ONDE SE PRATICAVA
ESPORTE. HOJE, A GLOBALIZAÇÃO MUDOU
ESSE PANORAMA
S
A
V
O
S
N TA
R
A
a
A
C
N
A
S
E
M
tradução CELINA OLGA DE SOUZA
utor de um dos estudos mais
importantes sobre a história
do esporte moderno, o historiador italiano Stefano Pivato
considera que o eurocentrismo
e o americanismo que caracterizaram as grandes competições mundiais até a primeira metade do século XX chegaram ao fim. “Hoje o
esporte se tornou um modo de dizer ao mundo: ‘Eu também estou aqui’.”
© UNDERTHESEA/SHUTTERSTOCK
Em entrevista concedida por e-mail ao Caderno, o professor, nascido em uma cidade
litorânea perto de Rimini, analisa a evolução
das relações entre esporte, nação e sociedades,
fala sobre a realização da Olimpíada no Brasil e desfaz as ilusões ligadas à ideia de competição apenas pela diversão: “No esporte,
chegar em segundo ou terceiro lugar nunca
contou. O importante sempre foi vencer: a
qualquer custo”.
26
Em seu livro L’era dello sport, o senhor mostra
como o esporte moderno encontra suas origens
nas mesmas circunstâncias que favoreceram a
produção industrial e faz um paralelo entre a
formalização do atletismo e as leis do liberalismo econômico. Quais são essas coincidências
e como a regulamentação dos jogos tradicionais
pode ser entendida a partir de seu valor “civilizatório”?
STEFANO PIVATO
é ensaísta e
historiador, professor
de História
Contemporânea na
Università degli Studi
Carlo Bo, de Urbino
(Itália), da qual foi
reitor de 2009 a
2014. É autor de mais
de 20 livros, entre
eles L’era dello sport
(A era do esporte, sem
tradução no Brasil,
Giunti Editore, 1994)
e dezenas de ensaios.
Os jogos tradicionais (pelota, jeu de paume ou
tipos de jogos com bola que precederam o
advento do futebol) eram uma “desordem” em
estado puro e expressavam a percepção do jogo
e do divertimento de uma maneira totalmente desinteressada. O esporte estabelece regras
e disciplinas e expressa as mesmas normas de
competitividade que comandam o desenvolvimento econômico da Idade Contemporânea.
O esporte está ligado ao século XX, à modernidade industrial e seus modelos “educativos”
da mesma forma que os esportes coletivos à
cooperação, adequando-se aos mitos daquele
século, como os da velocidade e do aperfeiçoamento dos movimentos. Enfim, o esporte
se tornou a expressão dos ritmos da civilização
das máquinas. Mas, sobretudo, o esporte ensina a livre-iniciativa, verdadeiro motor do
liberalismo econômico.
27
© EVRENKALINBACAK/SHUTTERSTOCK
ENTREVISTA
Tomando como marco a realização dos Jogos
Olímpicos da era moderna em 1896, quais as
transformações mais significativas pelas quais
o esporte passou até os dias atuais?
Nas últimas décadas, a metamorfose “de jogo
em esporte” completou-se definitivamente.
Quando, no final do século XIX, nasceram as
Olimpíadas, o esporte passou a expressar a
competitividade entre nações: ou melhor, entre aquelas poucas nações onde se praticava o
esporte, particularmente na Europa e nos Estados Unidos. Hoje a globalização embaralhou
as cartas. O eurocentrismo e o americanismo
que caracterizaram o esporte, pelo menos até
a primeira metade do século XX, chegaram ao
fim. Hoje o esporte se tornou um modo de
dizer ao mundo “eu também estou aqui”. Pensemos na explosão do futebol africano nos anos
seguintes à independência colonial: uma fase
que se afirmou definitivamente com a realização da Copa do Mundo na África do Sul, em
2010. Ou então consideremos, nos anos 1990,
a dissolução da União Soviética e o nascimento de toda uma série de nações que, exatamente graças ao esporte e aos recordes obtidos,
gritaram ao mundo seu direito à visibilidade.
Desfilar na abertura de uma Olimpíada significava, para nações como Eslovênia, Bielorrússia ou Ucrânia, mostrar a bandeira daquelas nações a uma plateia de milhões de pessoas.
28
Durante grande parte do século XX, as Olimpíadas explicitaram tensões entre nações ou
foram usadas a serviço da propaganda política e ideológica. Como se apresentam hoje as
relações entre esporte, nação e sociedades?
Que outras disputas estariam em jogo em eventos dessa natureza no século XXI?
O patrocinador assumiu o lugar do conceito
de nacionalidade nas grandes competições
esportivas, mas não completamente. Hoje
assistimos a fenômenos novos. Tomemos como
exemplo o futebol. Na Europa está ocorrendo
um remanejamento das bandeiras nacionais e
das cidades. Magnatas russos compram times
ingleses; holdings chinesas compram times
italianos. Contemporaneamente, assistimos a
um remanejamento da torcida. Hoje não é raro
encontrar jovens chineses torcendo por times
como Inter, Milan ou Liverpool. Ou contemporâneos italianos que torcem pelo Real Madrid,
time espanhol em que atua Cristiano Ronaldo,
jogador português. Ou ainda que torcem por
um time catalão, como o Barcelona, cuja estrela é Messi, um argentino. Digamos que a
globalização embaralhou as cartas, mas o conceito de torcida nacional ainda está enraizado
no esporte. Aliás, o esporte muitas vezes ocupou o lugar da política e das ideologias como
um instrumento da afirmação da ideia de pátria e de nação. O desinteresse pela política,
fenômeno generalizado em todo o mundo
ocidental, levou a uma identificação difusa
com o próprio país graças ao esporte, mais do
que pelas instituições estatais ou símbolos de
caráter político. Desse ponto de vista, o esporte não parou de exercer o desejo de domínio de um Estado ou de uma nação. O país que
ganha uma medalha afirma uma vitalidade
que não é apenas física, mas também moral. A
nação que organiza uma competição como as
Olimpíadas mostra o grau de perfeição alcançado pela sua engenharia, pela sua tecnologia
e pela sua organização social em geral.
Com o desenvolvimento e a profissionalização
do esporte moderno, há quem ressalte a perda
de seu aspecto lúdico. Em seu lugar, teria ficado a busca pelo rendimento máximo, pela
superação dos limites do corpo a qualquer
preço. Casos de doping, de problemas de
saúde de atletas causados pelo excesso de
treinos, rigorosos contratos comerciais atrelados
a resultados seriam exemplos dessa deriva.
Fomos longe demais?
Estamos diante da última grande hipocrisia do
esporte. Acredito que uma das frases mais
equivocadas de todo o século XX seja aquela
atribuída a Pierre de Coubertin: “O importante não é vencer, mas competir”. Coubertin
comprovou isso durante as três primeiras Olim-
píadas ao não conceder medalhas aos vencedores. Mas, depois, o barão francês teve
de se render: em Londres, em 1908, foram
introduzidas as medalhas para os vencedores.
No esporte, chegar em segundo ou terceiro
lugar nunca contou. O importante sempre
foi vencer – a qualquer custo. Ainda mais
hoje, quando o esporte movimenta negócios
e somas colossais e vencer ou perder uma
competição pode fazer mudar de mãos somas
enormes ou provocar o aumento ou queda
dos lucros de um patrocinador. São conhecidos casos de países que organizaram uma
espécie de doping legalizado, e não me refiro apenas aos levantadores de peso do Leste
antes da queda do Muro de Berlim. Pensemos
nos casos da Rússia do [presidente Vladimir]
Putin. Mas pensemos também na Itália, onde
foram descobertos casos de federações esportivas que financiavam laboratórios de
pesquisa que coordenavam programas de
doping de vanguarda. Na minha opinião, há
uma espécie de acordo tácito em que todos
sabem que os atletas se dopam. Porém, o
caso é abafado para salvaguardar a ilusão de
“pureza” do esporte. É uma espécie de teatro
no qual todos, talvez os espectadores inconscientemente, são cúmplices. Sem nenhuma
hipocrisia: o esporte sem doping é como a
“Terra do Nunca”. Todos aqueles envolvidos
29
ENTREVISTA
HA A
N
GA IRM
E
U
AF ÃO
Q
A
AÍS ALH DE N S
P
O
ED LIDA , MA
M
A
A
A
UM A VIT FÍSIC RAL
UM NAS M MO
E
AP MBÉ
TA
Tanto é verdade que, quando o atleta transgride aquelas regras e estraga a brincadeira,
ele é punido. O caso mais clamoroso? Diego
Armando Maradona. Todos sabiam que Maradona era usuário de cocaína, porém todos
se calavam, coniventes. Quando Maradona
começou a acusar a Fifa e todo o sistema esportivo, foi “punido” e a sua culpa, revelada.
O fato de alguns países punirem casos de
doping ocorridos oito anos atrás causa perplexidade. Que sentido há em ressuscitar as
análises da Olimpíada de Pequim e perceber,
passados oito anos, que a atleta russa de salto em altura Anna Chicherova (medalha de
ouro) estava dopada? Que sentido há em Lance Armstrong disputar e vencer sete vezes o
Tour de France para descobrirmos anos depois
que na última vitória estava dopado? Quer
dizer, entre outras coisas, que os responsáveis
pelo fornecimento das substâncias aos atletas
escondem a sua presença dos aparelhos dos
comitês olímpicos e das federações, que são
muito velhos? Ou quer dizer que se trata de
um “acerto de contas” entre federações esportivas e comitês olímpicos oito anos depois?
Em um caso ou outro, seria muito mais cor-
30
reto “legalizar” o doping entre os profissionais.
Chego até a dizer, e não é de modo algum uma
contradição, que seria mais “ético”. O diletantismo morreu há tempos também dentro
daquela instituição, o olimpismo, que defendeu esse princípio desde o início. A ideia romântica de Olímpia não existe mais. O esporte passou de modelo educativo, como o
concebia Coubertin, para uma forma de espetáculo com uma exasperada busca pelo
desempenho, como ocorre com os cantores,
bailarinos ou diretores de orquestra. E então?
Por que para essas pessoas não se exige um
controle antidoping e para o atleta sim? Poderia se manter um controle severo para o
esporte juvenil e por diletantismo, mas, entre
os profissionais, deixar a liberdade de escolha.
Em termos simbólicos, houve mudanças no
esporte com o advento da chamada “sociedade do espetáculo”? Qual o papel dos Jogos
Olímpicos atuais nesse contexto?
No início, a competição esportiva envolvia os
estudantes das escolas: o público tinha pouca
relevância. A partir dos anos 30 do século XX,
com a construção dos estádios, e mais ainda a
partir dos anos 1950 e 1960, com o advento da
televisão, a presença de um público, real ou
virtualmente presente, modificou profundamente o esporte. Na América do Norte, por
© CORNFIELD/SHUTTERSTOCK
com o esporte se comportam como o eterno
adolescente chamado Peter Pan e fingem não
saber e não ver para não estragar a brincadeira.
31
© YATRA/SHUTTERSTOCK
ENTREVISTA
exemplo, o olhar vigilante da câmera de televisão provocou, no beisebol, excessos de perfeccionismo em um esporte em que os especialistas em determinados papéis substituíram
os jogadores genéricos. Também no futebol e
nos outros esportes coletivos europeus, a introdução da televisão e de cada vez mais sofisticadas repetições em câmera lenta condicionou
significativamente a sua evolução técnica.
A partir de 1965, o lançamento dos primeiros
satélites geoestacionários permitiu as transmissões ao vivo de um continente a outro,
revolucionando e amplificando o espetáculo
esportivo. Com os Jogos Olímpicos da Cidade
do México (1968), o esporte se torna um espetáculo universal, e os organizadores descobrem a importância do público televisivo. Mas
a política também descobre isso. Os Jogos da
Cidade do México entraram para a história
não apenas como um evento esportivo, mas
graças a uma das imagens mais marcantes já
impressas na memória coletiva: aquela que
retrata os velocistas afroamericanos Tommie
Smith e John Carlos com braços erguidos usando luvas pretas e de punhos cerrados durante
a premiação dos 200 metros, em sinal de protesto contra o racismo e em apoio ao movimento pelos direitos civis. Seis meses antes
32
daquele gesto, Martin Luther King, profeta da
libertação do povo negro, havia sido assassinado em Memphis. Aqueles punhos cerrados
levaram também à notoriedade a revolta estudantil, que alguns dias antes da cerimônia
de abertura dos Jogos no México tinha sido
reprimida pelo exército, com um total de 40
mortos. Na Olimpíada seguinte, de Munique,
em 1972, foi a questão palestina que dominou
a cena. A partir dos anos 1960, graças à televisão, o espetáculo esportivo tornou-se algo
que vai além das competições.
As Olimpíadas sempre tiveram um significado
não apenas esportivo, mas também político.
A realização de Olimpíadas sempre envolve
debate sobre o legado para as cidades-sede
e, num plano maior, o desempenho esportivo
dos países é visto como um indicador da saúde
e prestígio de uma nação. Na sua visão, quais
são os benefícios tangíveis e intangíveis de um
evento dessa magnitude numa cidade como o
Rio de Janeiro e num país como o Brasil? E
quais são as desvantagens?
A realização dos Jogos em Barcelona, em 1992,
marcou o fim do franquismo e o início da democracia e da modernização de uma nação
como a Espanha. Os Jogos de Pequim, em 2008,
representaram o reconhecimento de uma nova
potência econômica mundial. Hoje, raramente a força econômica da nação anfitriã está em
sintonia com um antigo e romântico conceito
de ideal olímpico: em 1996, as Olimpíadas
deveriam ter sido na Grécia para celebrar o
centenáro dos primeiros Jogos Olímpicos modernos. Porém, ficou a cargo de Atlanta, cidade de uma das empresas patrocinadoras dos
Jogos Olímpicos desde tempos imemoriais.
Outra forma de hipocrisia olímpica: quando,
em 1980, os Estados Unidos boicotaram os
Jogos de Moscou, essa empresa fez o mesmo,
mas somente na aparência: patrocinou a Olimpíada via outra marca de sua propriedade.
A próxima Olimpíada, no Brasil, será a primeira organizada em um país sul-americano. Desde sempre a organização de uma grande manifestação esportiva foi desejada pelo país
organizador para mostrar a potência, a vitalidade e o estado de saúde não apenas do próprio
sistema econômico, mas também do moral.
Porém, atenção: aqueles que afirmam que as
Olimpíadas trazem dinheiro e postos de trabalho mostram apenas experiências positivas.
A crise que a Grécia está atravessando e que
colocou a Comunidade Europeia em risco teve
origem exatamente na Olimpíada de 2004.
Hoje, com um sentimento sinistro e irônico,
os gregos falam das “modernas ruínas gregas”
em referência aos equipamentos olímpicos de
2004. O orçamento de 15 bilhões de euros
previsto para financiar aquela Olimpíada foi
ultrapassado: para cobri-lo, foram contraídas
enormes dívidas no plano internacional. Daquele buraco contábil a Grécia nunca se reergueu, e a voracidade da dívida pública levou a
nação à beira da falência, arrastando para a
lama a população do país.
O caso do Brasil é anômalo: a designação para
os Jogos Olímpicos, que foram precedidos pela
Copa do Mundo de 2014, de que o país também
foi sede, remonta a 2009. Ou seja, isso foi decidido quando o país atravessava um momento particularmente feliz do ponto de vista econômico. Hoje o país se encontra em meio a uma
profunda crise que não é apenas econômica,
mas também moral e política. Acredito que
uma manifestação esportiva jamais ajudou uma
realidade econômica a decolar, mas eventualmente serviu para confirmar sua vitalidade.
Enfim, a organização de uma competição esportiva como a Olimpíada pode se revelar um
bumerangue. Obviamente eu espero, para o
bem do Brasil, ser desmentido. Mas a eventualidade, a história nos ensina, existe.
33
ARTIGO
s
e
õ
ç
s
a
o
r ad
o
m
f
i
e un miz
34
A RELAÇÃO ENTRE ESPORTE E NACIONALISMO
SE CONSTRÓI A PARTIR DE UMA SÉRIE
DE FATORES, MAS ESPECIALMENTE PELA
POSSIBILIDADE DE UM FORTALECER O OUTRO
© A. RICARDO/SHUTTERSTOCK
por ARLEI SANDER DAMO
35
ARTIGO
ARLEI SANDER
DAMO
©LILYANA VYNOGRADOVA/SHUTTERSTOCK
é doutor em
Antropologia Social
pela Universidade
Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS)
e professor adjunto
no Departamento
de Antropologia
da mesma instituição.
p
or definição, a Antropologia contemporânea tende a enfatizar a diversidade dos significados em vez
de procurar uma essência, seja qual
for o tema em questão. Essa premissa é ainda mais importante quando se trata de
megaeventos esportivos, dadas a extensão e a
pluralidade de agentes envolvidos na sua realização. Qualquer síntese jamais conseguirá
abarcar a diversidade de significados, embora
seja possível identificar algumas tendências que
dão sentido e fazem dos eventos esportivos um
tipo peculiar de megaespetáculo.
Mas, afinal, o que há de tão interessante com
os esportes que mobiliza tantos apreciadores?
Duas são as tendências para tentar responder
a essa questão. Uma delas, representada pelo
filósofo Hans Ulrich Gumbrecht, destaca a
efemeridade das performances atléticas. Segundo o pensador alemão, a efemeridade estaria relacionada tanto à beleza e plasticidade
dos gestos quanto ao inusitado. Um “gol de
bicicleta” seria um exemplo perfeito dessa
combinação, pois é raro e acrobático. A quebra
de um recorde no atletismo – imaginemos os
feitos de Usain Bolt – também se enquadraria
nessa perspectiva, dada a expectativa que
cerca a prova dos 100 metros rasos. Em qualquer dos casos, e esta seria a aposta de Gumbrecht, o público esportivo atribuiria sentido
às performances a partir de outras do mesmo
gênero. O público teria, pois, um gosto informado, capaz de diferenciar tanto a performance de um profissional em relação a um amador
quanto dos profissionais entre si.
36
Outra linha tende a dar menos importância à
beleza e à raridade dos gestos e mais ênfase aos
nexos do esporte com o espectro mais amplo
da cultura e da sociedade. O antropólogo francês Christian Bromberger poderia ser tomado
como um dos representantes dessa perspectiva,
pois, na sua interpretação acerca do sucesso do
futebol, o destaque recai sobre o engajamento
do público, e não sobre as performances em si
mesmas. Para Bromberger, ninguém iria a um
estádio para ver um gol ou um drible inusitados,
embora eles sejam celebrados, mas para dar
suporte a um atleta ou equipe em relação aos
quais se tem identificação, sendo esta estabelecida de antemão. A abordagem de Bromberger prioriza a compreensão do engajamento
do público, da maneira como este se veicula a
dada agremiação, projetando-se nela e experenciando as performances dos profissionais
como se fossem sua.
As duas abordagens não são excludentes, embora aquela sugerida por Gumbrecht seja mais
apropriada para analisar o ponto de vista dos
experts – profissionais do esporte, sejam eles
atletas, treinadores, comentaristas e certas
frações do público. Quando se quer compreen-
der megaeventos do porte de uma Copa do
Mundo e dos Jogos Olímpicos, não há como
dispensar o olhar de Bromberger, uma vez que
eles suscitam o interesse de um público mais
amplo do que os seguidores habituais desses
esportes. Nos Jogos Olímpicos, temos 42 modalidades, e poucos especialistas estariam em
condições de falar apropriadamente sobre
todas elas. Isso não impede, no entanto, que
certas performances possam ser acompanhadas com enorme expectativa, bastando que
seja constituída uma identificação entre atleta ou equipe e público.
Olhando-se para os espetáculos esportivos e
seu público nos dias atuais, pode-se afirmar
que nenhum outro mediador é tão importante
quanto o nacionalismo, uma modalidade de
identificação que, na origem, nada tem a ver
com o esporte. Veja-se a Fórmula 1, por exemplo, uma competição totalmente privada, que
tem até proprietário. Embora seja uma disputa
entre construtores (equipes) e pilotos (indivíduos), nas premiações são executados os hinos
nacionais dos vencedores, uma forma sutil,
porém eficaz, de agregar valor simbólico às
disputas. O sucesso de Ayrton Senna como
piloto e como ídolo nacional, no final da década de 1980 e início da seguinte, tornou a Fórmula 1 um assunto recorrente entre os brasileiros, até para pessoas que jamais haviam tido
interesse pelo automobilismo e não tornaram
a ter depois da morte de Senna. Não há dúvidas
quanto à excepcionalidade técnica desse piloto,
mas seu sucesso no Brasil não pode ser compreendido sem considerar o fato de ele ser um
vencedor carismático que comemorava seus
feitos empunhando a bandeira nacional.
O mesmo vale para o caso de Daiane dos Santos, cuja expectativa pela medalha de ouro em
Atenas, em 2004, mobilizou a assistência brasileira para a prova de solo da ginástica artística, uma modalidade pouco conhecida pelo
público em geral. Estariam por acaso os brasileiros interessados na efeméride do “duplo
twist esticado”? Quantos espectadores saberiam diferenciá-lo do “duplo twist carpado”,
que consagrou a ginasta internacionalmente?
37
ARTIGO
Em que pese a performance extraordinária de
Daiane, seria mais crível imaginar que os brasileiros estavam torcendo por ela, identificados
com sua trajetória extraordinária – uma menina pobre, negra e “velha” para os padrões da
ginástica artística –, pelo seu carisma e mesmo
pelo uso do chorinho Brasileirinho em sua apresentação. Em síntese, é frequente que nas competições esportivas de massa a identificação
entre atleta e público seja mediada por sentimentos que tangenciam a modalidade em disputa ou a especificidade técnica dos gestos.
Parafraseando o historiador inglês Eric Hobsbawm, para quem nenhum outro símbolo
nacional pode ser mais verossímil do que um
atleta competindo, os saltos de Daiane – Dos
Santos I e II, como foram batizados oficialmente – e a direção arrojada de Senna possuíam
um significado hiperbólico para os brasileiros,
que excedia o reconhecimento usual do público da ginástica artística e do automobilismo,
respectivamente.
Para entender a lógica de como esses nexos são
produzidos e operacionalizados, é interessante
confrontar os vínculos nacionalistas com outras
formas de construção de identidades no espectro do próprio esporte. No futebol, por exemplo,
existem dois principais modelos de produção de
engajamento, aos quais correspondem dois grandes circuitos de competições, o clubista e o nacionalista, cada qual com múltiplas segmentações.
38
O circuito clubista é mais amplo e diversificado. Entre as competições mais vistas no mundo, algumas são entre clubes de futebol, casos
da Premier League (Campeonato Inglês) e da
Champions League (de clubes campeões nacionais europeus), mas não custa lembrar que
os primeiros lugares no ranking dos mais valiosos, à frente da Copa do Mundo de Futebol
e dos Jogos Olímpicos, encontram-se duas
outras ligas de clubes: a de futebol americano
e de beisebol, ambas estadunidenses. Seguindo com o futebol, temos outros exemplos de
circuitos clubísticos que vão desde a Libertadores da América a competições municipais e,
em muitos casos, ligas reunindo equipes de
bairros, que nem sequer são profissionais. O
que está em questão aqui não é a capacidade
desigual de mobilizar torcedores de cada qual
desses clubes ou dessas ligas, mas o fato de que,
no seu conjunto, essa forma de organização
das disputas é capilarizada, muito diferente de
uma Copa do Mundo, que é concentrada e
elitizada. Os chamados grandes clubes do futebol brasileiro – uma elite de aproximadamente 13 agremiações que detém em torno de 90%
da preferência dos torcedores – um dia foram
clubes de bairro ou mesmo de quarteirão. Enquanto eles prosperaram, outros tantos sucumbiram por razões muito variadas, cada clube
tendo uma história que não se limita às performances esportivas. Alguns são associados
a grupos étnicos ou religiosos, quase todos têm
vínculos com suas cidades e regiões de origem,
e observam-se entre eles rivalidades que exploram tensões de classe social e de raça, ainda que tais clivagens seguidamente sejam mais
um marcador simbólico do que sociológico.
No caso dos países europeus, cujas distâncias
geográficas entre as cidades são relativamente
menores do que no Brasil, e cuja malha viária
se estruturou muito antes do que em nosso país,
surgiram competições nacionais na primeira
metade do século XX, tanto para o futebol quanto para outros esportes. No Brasil, um campeonato nacional de futebol só se mostrou viável a
partir da década de 1970, quando o transporte
aéreo se tornou uma realidade. Tendo em vista
as longas distâncias entre as principais metrópoles nacionais e a precariedade dos outros
meios de transporte, teria sido impossível para
os clubes suportar a logística desses deslocamentos pelo país, sobretudo em termos de
tempo e de dinheiro. Isso revela que a história
do desenvolvimento do esporte não pode ser
circunscrita àquilo que observamos por ocasião
dos jogos. Antes o contrário: a possibilidade de
realizar competições em níveis cada vez mais
abrangentes – nacional, continental e até in-
tercontinental – possibilitou o incremento exponencial do valor simbólico das disputas e a
condensação do público em torno de algumas
poucas agremiações representativas. Em todo
caso, a questão do nacionalismo reaparece: por
que quase todas as modalidades esportivas
elegeram as fronteiras nacionais como um dos
critérios para circunscrever as competições? A
resposta parece óbvia: porque o nacionalismo
é um dos mais importantes espaços de produção de identidades coletivas na modernidade e
passível de ser apropriado.
Na verdade, o que ocorreu na relação entre o
esporte e o nacionalismo foi uma parceria com
vantagens de parte a parte: o nacionalismo
propiciando o adensamento dos significados
das competições e os esportes dramatizando o
sentido de pertencimento coletivo. Para compreender isso, é preciso ter em mente o fato de
que muitas das modalidades esportivas, em
particular as coletivas, possuem uma estrutura agonística. Trata-se de uma disputa, medida
© A. RICARDO/SHUTTERSTOCK
L,
O
EB IS
T
FU
DO LOS
O
M
N
E
DE
T
O
S
I
EX AIS M ÇÃO
:
O
U
P
I
T
D
INC PRO MEN
R
P
DE GAJA TA E
EN UBIS ISTA
E
L
L
D
A
C
N
O
CIO
A
ON
39
© VALERIA73/SHUTTERSTOCK
ARTIGO
por regras consentidas, em que, partindo-se
Se olharmos para a maneira como se organiza
de uma situação de igualdade, busca-se esta- boa parte das disputas esportivas, sobretudo
belecer uma diferença. Por causa disso, muitos
nas modalidades coletivas, notaremos como a
pensam ser o esporte uma guerra por outras
estrutura da guerra se reproduz, inclusive em
vias, mas não podemos deixar de notar algumas
relação a certa divisão dos papéis. A relação
diferenças bastante pronunciadas. A mais óbvia, entre os jogadores de uma equipe e seus torcepor certo, é que as guerras possuem consequên- dores é muito parecida com a relação entre os
cias reais, enquanto nos esportes elas são mi- soldados e a população civil. Não por acaso,
méticas ou, preferindo-se, ficcionais, o que lhes
dizemos que os jogadores são “convocados”
confere um trunfo inegável, como um entrete- para uma Copa do Mundo; que um goleador é
nimento altamente absorvente. É certo que
também um “artilheiro” e que um atleta de
alguns grupos, como os torcedores organizados, chute potente tem um “canhão” ou “petardo”,
seguidamente participam de conflitos que se
e assim por diante. Antes de afirmarmos de
aproximam das guerras, dado o emprego da
modo peremptório que as guerras são execráveis
violência física, com disputas que envolvem – é minha posição pessoal ao menos, devemos
prisões, feridos e até mortes. Mas o que se diz
admitir que elas são objeto de grande fascínio
sobre eles é que perderam a noção do que seria
entre diferentes grupos humanos; não por acaso existe a respeito extensa quantidade de ficção,
o sentido do esporte.
sobretudo no cinema. Se há algo que fascina
nas guerras e se o esporte tem tantas proximidades, por que não seria também fascinante?
1995
Ano da Copa
do Mundo
de Rúgbi, marcada
pela luta contra o apartheid
40
Embora possamos fazer um uso alargado do
termo “guerra”, para nos referirmos a uma
série vasta de contendas (desde os conflitos
entre traficantes até as disputas publicitárias),
é no espectro dos enfrentamentos bélicos entre Estados nacionais que a noção se aplica
com mais frequência. Estado é uma forma de
organização política e econômica que caracteriza o Ocidente no tempo presente. Já nação
é uma espécie de equivalente para o termo
“povo”. Nas Ciências Sociais seguimos basicamente um conceito de Benedict Anderson,
segundo o qual a nação é uma comunidade de
sentimento imaginada. Imaginada porque seus
membros não se conhecem pessoalmente uns
aos outros, embora se reconheçam por códigos,
como a língua; costumes, como a culinária; e
certos símbolos arbitrários, como o hino e a
bandeira. Usa-se o termo “sentimento” para
frisar que essa é uma modalidade de coletivo
amalgamado por laços mais sólidos do que os
de interesse instrumental (como seriam aqueles vigentes no mundo dos negócios), quase
tão profundos como os de parentesco (que
supomos sejam laços de “sangue”). A bibliografia a respeito é vasta e, num primeiro momento, enfatizou o processo de constituição
da ideia de nação, ou seja, de como determinado grupo pode vir a se reivindicar como tal,
exigindo um território com autonomia para
definir certas regras e cultuar determinadas
tradições. Uma das principais contribuições
dessa bibliografia foi afirmar que as tradições
nacionais e, portanto, as identidades coletivas
nacionais são inventadas, o que significa dizer
que elas são, em boa medida, manipuladas.
MO
S
I
TE
AL
R
N
CIO ESPO ASE
A
O N RA O E QU E
D
T
A
L
N
P
E
O
É
F
ÁV ÇÕES
A
T
UM SGO NTA
INE ESE IVAS
T
PR
RE COLE
Mais recentemente, a bibliografia passou a dar
mais ênfase aos dissensos, às tensões e aos grupos minoritários, àqueles não contemplados
pelas versões hegemônicas. Isso precisa ser dito
para posicionar adequadamente o uso que os
esportes fazem do nacionalismo. Salvo notáveis
exceções, as competições esportivas flertam com
símbolos consolidados e não raro com a perspectiva dos grupos dominantes, sejam eles políticos ou econômicos. Não por acaso, é recorrente a presença de chefes de Estado em eventos
dessa natureza, e isso vale tanto para o caso do
nazismo, como na Olimpíada de Berlim, em 1936,
quanto para a sua antítese, a luta contra o apartheid, como na Copa do Mundo de Rúgbi de 1995,
na África do Sul. Mas há também exceções, como
o protesto de Muhammad Ali, que lançou no rio
Ohio a medalha olímpica conquistada em 1960
para denunciar o racismo nos EUA.
O nacionalismo é para o esporte uma fonte quase inesgotável de representações coletivas que
podem vir a ser apropriadas, incluindo-se suas
versões extremadas, a partir das quais o chauvinismo nacionalista resulta em manifestações
racistas, xenófobas e sexistas no âmbito esportivo. Para o esporte, aproximações dessa natureza são essenciais, porque possibilitam expandir o sentido de certas práticas que, de outra
forma, despertariam pouco interesse como espetáculo. Mas também os nacionalismos se servem dos esportes, pois as competições são uma
ocasião única para performatizar publicamente
tais sentimentos, laicizando os símbolos nacionais e atualizando laços de pertencimento.
41
CRÔNICA
por ANTONIO PRATA
,
s
a
d
a
í
,
s
!
a
s
d
ía íada
l
o
b
o
c
s
s
a
s
e
a
d
n
a
fr
í
p
m
i
l
o
a
oponente, mas o empate com o/a parceiro/a. O frescobol é, como
diria outro frequentador das supracitadas areias cariocas, “a arte do
encontro, embora haja tanto desencontro”. Ele está menos próximo
do tênis, do basquete ou do taekwondo do que do nado sincronizado,
da ginástica artística ou do salto ornamental.
Minha ideia é que, transformado em modalidade olímpica, ele fosse
jogado diante de juízes e analisado enquanto performance: finda a partida, o júri levantaria suas notas naqueles famigerados quadradinhos
brancos, avaliando diversos quesitos. Número de bolas trocadas. Harmonia da dupla. Elegância das raquetadas. Gemidos. (Assim como no
tênis e nas artes marciais, geme-se muito no frescobol.) Criatividade.
(Sempre tem aquela bolinha rebatida entre as pernas, aquela rodopiada
marota, aquele salto duplo twist carpado pra pegar uma bola enviesada.)
A dupla cuja média fosse mais alta, naturalmente, sairia vencedora. Mais
do que a dupla, porém, seriam vencedores o Brasil, os Jogos Olímpicos
e a humanidade como um todo, pois não me parece exagerado dizer que
o frescobol é o mais democrático dos esportes, um esporte que pode ser
praticado por crianças e velhotes, por altos e baixos, por gordos e magros,
calvos e cabeludos, pode ser jogado até com um picolé ou uma latinha
de cerveja na outra mão – embora esta última possibilidade dificilmente fosse aceita pelo COI. Melhor nos restringirmos ao picolé.
Íadas, íadas, íadas! Frescobol nas Olimpíadas!
ANTONIO PRATA
é escritor e roteirista.
Autor dos livros Meio
intelectual, meio de
esquerda (Editora 34)
e Nu, de botas
(Companhia das
Letras), entre outros.
É colunista da
Folha de S.Paulo.
42
Como se sabe, o frescobol (ou raquetinha, para os íntimos) foi inventado nas areias de Ipanema, em alguma manhã da década de 50, pelo
escritor, cartunista, dramaturgo e, a partir dali, frescoboleiro Millôr
Fernandes. De Ipanema chegou a Copacabana, de Copacabana passou
para o Flamengo e do Aterro para o desterro mundo afora foi mais
rápido do que a bolinha de borracha rolando em areia dura. Hoje,
joga-se frescobol de Tegucigalpa a Honolulu, de Madagascar a Reikjavik, do Benim ao Butão.
© CARLO GIOVANI
Olimpíada do Rio de Janeiro é uma excelente oportunidade
de unirmos esforços em torno de um objetivo comum, honroso e urgente: pressionar o COI para que dê status de modalidade olímpica ao único esporte 100% brasileiro, o frescobol. Ora, se são esportes olímpicos o lançamento de dardo
ou de disco, coisa que ninguém pratica a não ser que esteja caçando um
antílope ou atirando os LPs do cônjuge pela janela, durante uma briga de
casal, por que o frescobol não seria? Se até o tênis de mesa entra na festa,
a cada quatro anos, por qual razão nosso tênis de praia não entraria?
Algum leitor mal-humorado, do tipo que está sempre tentando ver o
copo meio vazio – ou a praia meio cheia –, pode argumentar que a
raquetinha não se prestaria aos Jogos por não ser um esporte competitivo: como contar os pontos? Ora, amargo leitor, logo se vê que você
não sabe nada sobre o frescobol – e, eu me arriscaria a afirmar, sobre
a vida. Pois é justamente aí que está a beleza do frescobol. Ele é o único esporte – além do sexo, claro – em que se visa não a vitória sobre o
43
44
No limite do humano
Ponto a ponto
Quando o mundo
é mais mundo
À prova de obstáculos
Mudança de perspectiva
Espaços de provocações
© ALEX EMANUEL KOCH/SHUTTERSTOCK
46
52
58
A vida em movimento
64
70 74
80
45
ENTREVISTA
com KATIA RUBIO
E
T
I
M
I
L DO NO
A
M
U
H
NO
KATIA RUBIO
é professora da Escola
de Educação Física
e Esporte da
Universidade de São
Paulo (USP). Graduada
em Jornalismo e
Psicologia, tem
mestrado em Educação
Física, doutorado
em Educação e
pós-doutorado em
Psicologia Social.
É autora de 22 livros
sobre psicologia
do esporte e estudos
olímpicos.
© PAOLO BONA/SHUTTERSTOCK
o
46
A INCESSANTE BUSCA DA SUPERAÇÃO FAZ COM QUE
O ESPORTE ATRAIA A ATENÇÃO DE PESSOAS DE TODO
O MUNDO, NUMA ATIVIDADE EM QUE A AÇÃO HUMANA
SE DESDOBRA NO CAMPO DO SIMBÓLICO por PAULO JEBAILI
desejo de expandir os limites do
humano pode estar na origem do
fascínio que o esporte provoca
nas pessoas ao redor do mundo.
A busca incansável pelo melhor
serve de inspiração para as ações
humanas, especialmente numa atividade em
que um simples gesto pode separar a glória do
fracasso. Essa relação entre o concreto e o
imaginário, o individual e o coletivo foi o ponto de partida da entrevista com a psicóloga
Katia Rubio, realizada na Escola de Educação
Física e Esporte da Universidade de São Paulo.
Membro da Academia Olímpica Brasileira, órgão do Comitê Olímpico Brasileiro, destinado
ao estudo do olimpismo, a professora abordou
também questões que envolvem o esporte atual,
como midiatização e as negociações em torno
da figura do atleta.
47
ENTREVISTA
Por que o esporte encanta tanto as pessoas?
Por esse aspecto, a realização dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro tende a deixar um legado simbólico para o país?
No caso da Paralimpíada, a promoção dos
Jogos teria o potencial de deixar a sociedade
mais atenta e sensível para adotar uma atitude
mais inclusiva?
Eu acho que é esperar demais dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos. Os Jogos são também a
síntese do que é a sociedade. Então, se você tem
uma sociedade que discrimina, que desrespeita, que invisibiliza esse cidadão, esse atleta, não
dá para esperar que em 17 dias isso se reverta.
É muito pouco. Eu entendo que os Jogos Olímpicos e Paralímpicos podem ser a apoteose de
uma política pública bem-feita, de uma realização inclusiva. Isso, sim. Mas não o inverso.
Os Jogos Olímpicos e Paralímpicos ocorrem de
quatro em quatro anos. Naqueles dias do evento, é possível que haja uma grande audiência,
mas, se outras ações não forem realizadas ao
longo do processo, os Jogos não promovem
milagres, eles refletem aquilo que é a sociedade.
Deveria. Mas não sei se a gente consegue isso
diante de tanta dificuldade por que o país
passa neste momento e que tem, infelizmente, apagado aquilo que os Jogos poderiam deixar, que é justamente esse campo simbólico. Como se dá a relação entre desempenho esPouco se fala dos Jogos Olímpicos, pouco se
portivo e autoestima do povo? Por exemplo,
vê do público médio associado a isso. Mas
quando o Brasil perdeu a Copa do Mundo de
seria muito bom que isso tivesse sido traba- 1950, veio à tona o “complexo de vira-latas”.
lhado ao longo dos últimos anos para que fos- Quando venceu em 1958, a música falava que
se coroado agora com os Jogos Olímpicos. Mas, “com brasileiro não há quem possa”. Em 1982,
infelizmente, acho que eles vão deixar muito “a gente joga bola e não consegue ganhar, a
gente somos inútil”. A propósito, essa seria
menos do que a gente gostaria.
uma característica nossa?
Em edições anteriores, a Olimpíada cumpriu
esse papel?
Depende de como foi conduzido esse processo.
Barcelona, por exemplo, é um caso de vínculo
com os Jogos de 1992 que permanece vivo até
hoje. Mas, para que isso acontecesse, houve
todo um envolvimento da população com essa
questão muito antes da realização dos Jogos.
Infelizmente, nós temos vários casos na história dos Jogos Olímpicos em que nada aconteceu
depois: Seul [1988], Sydney [2000], Atenas
[2004], só para falar dos mais recentes. Passaram, foi só mais uma competição. Mas as cidades não ficaram com aquilo que se esperava que
ficassem depois que tudo aconteceu.
48
O esporte é um palco onde se desenrolam as
dramatizações sociais daquele momento histórico. O esporte nada mais era do que uma
competição, até que se começou a fazer do
esporte algo mais do que simplesmente uma
competição. O auge disso foi, por exemplo,
nos Jogos Olímpicos de 1936 [em Berlim],
quando o nazismo fez uso dos Jogos Olímpicos para demonstrar a superioridade ariana,
ou, durante a Guerra Fria, quando Estados
Unidos e União Soviética tentavam mostrar
para o mundo quem era melhor. Em diferentes
momentos históricos, isso é usado dessa forma.
Então, o complexo de vira-latas só acontece
depois da derrota, isso não foi pensado antes.
É fácil fazer análises depois que o fato já ocorreu. Eu quero ver alguém ter a capacidade de
antecipar alguns desses fatos para depois se
comprovar. O brasileiro é um povo que gosta
de festa, que tem prazer em desfrutar a vida, e,
em relação ao esporte, isso casa muito bem. E
ninguém gosta de perder. A derrota é a sombra
da sociedade contemporânea. Nessa condição,
brasileiro, americano, alemão, seja lá quem for,
ninguém entra numa competição com a disposição ou com a perspectiva da derrota. A
derrota acontece, ela dói, fere, magoa, baixa a
autoestima. Basta ver o Messi imediatamente
após o final dessa última Copa América [o jogador argentino perdeu a cobrança na disputa
de pênaltis e o título foi para o Chile; depois do
jogo, anunciou a intenção de não atuar mais
pela seleção argentina]. Então, isso não é só do
brasileiro, é de todo mundo que perde.
© PAOLO BONA/SHUTTERSTOCK
Porque é uma atividade de limite e, embora seja
absolutamente concreta – do ponto de vista de
medir a performance humana em segundos,
metros, centímetros, milímetros –, ela também
trafega no campo do imaginário. Ela trabalha
com elementos arquetipais que associam o ser
humano a um mito comum a todas as culturas,
que é o mito do herói. Esse atleta que busca
superar as marcas, os limites, cotidianamente,
ele é mais do que humano. Ele vive para isso.
Embora eu, você, outras pessoas não consigamos essas marcas, espelhamos aquilo que existe como possibilidade. E essa possibilidade nos
mobiliza diariamente a ser melhor naquilo que
nós fazemos, cada um na sua área.
49
ENTREVISTA
Eles não têm de pedir desculpas de nada.
Mas é que de certo modo atribui-se um papel ao
atleta como se ele tivesse de redimir o país das
mazelas ou afirmar suas potencialidades, não é?
A midiatização do atleta e da sua performance
é que leva a esse tipo de situação. Porque, quando você não tinha essa multiplicidade de meios
para divulgar o que o atleta fazia, ele saía de
campo comemorando ou lamentando o seu
resultado. Hoje, diante de todas as negociações
que se faz com a figura do atleta, ele se tornou
um objeto, uma mercadoria valiosa, e pede
desculpas para não perder o patrocinador. Ele
não está pedindo desculpas para o povo, está
pedindo desculpas para todas as empresas que
patrocinam a sua carreira e que depois desse
resultado podem ou não se manter vinculadas
a ele. Então, pedir desculpas ao povo brasileiro, na verdade, é uma extensão da desculpa
que ele deve a seus empregadores. Desde que
o esporte se tornou profissionalizado e o atleta
© PVERVERIDIS VASILIS/SHUTTERSTOCK
TA
O
RR A DA
E
A D MBR E
A.
SO DAD
E
A
N
É
CIE RÂ
O
S
PO OSTA
M
TE M G R
N
CO GUÉ RDE
NIN E PE
D
Há casos de atletas que pediram desculpas
para a torcida, para o povo. E estavam fazendo o trabalho deles...
se tornou esse trabalhador do espetáculo esportivo, o espetáculo depende dele. E ele pode
ser trocado ou não no meio do processo.
Mas ele não carrega essa carga de estar representando o país? E isso não pesa?
Isso acontecia mais no amadorismo do que no
profissionalismo. O atleta hoje é um profissional
do mundo, como qualquer profissional de qualquer profissão. Se você, na sua condição de
jornalista, for chamado pela BBC para trabalhar
em Londres, ganhando três vezes o que ganha
aqui, você irá. Com o atleta é a mesma coisa. Isso
leva inclusive a processos de naturalização onde
o mercado de trabalho é mais favorável a ele. Há
muito romantismo ou um discurso construído
para cobrar do atleta um nacionalismo que deixou de existir há muito tempo no esporte.
O fato de os Jogos serem aqui não aumentaria
a pressão sobre os atletas brasileiros?
Talvez isso possa acontecer para aqueles atletas que de alguma forma mantêm um vínculo
emocional com o que fazem, mas hoje em dia
os psicólogos trabalham intensamente esses
aspectos emocionais dos atletas justamente
para que eles não entrem em quadra no momento da competição. Eles competem ali pelo
resultado, que não é do país. Esse resultado é
do atleta. Essa individualização daquilo que o
atleta faz é fundamental inclusive para ele ter
um bom resultado. Houve épocas nos Jogos
Olímpicos em que a performance de um atleta garantia o seu futuro: casa para morar, benefícios para a família. Então, não era nacionalismo, era uma necessidade concreta, real,
material. Isso mobiliza, às vezes mobiliza mais
do que cantar o hino com a mão no peito.
A figura do psicólogo está cada vez mais disseminada nas modalidades esportivas. Quais
as principais funções da psicologia aplicada
ao esporte?
É preparar o atleta para enfrentar a vida de
treinamentos e competições. Entender quem
é essa pessoa, que escolha foi essa, os objetivos
que se tem e o repertório cognitivo e emocional para lidar com esse feito. E há então todo
50
um projeto de atendimento desenvolvido para
que esse atleta possa se mover nesse campo,
que é dinâmico, complexo e sobre o qual nem
sempre o atleta tem controle. Ele precisa lidar
tanto com aquilo que é possível quanto com
aquilo que é imediato, se apresenta como novidade e que é preciso resolver de imediato.
Há uma aproximação desse trabalho com os
treinadores? É possível notar, por exemplo, que
nos pedidos de tempo nas partidas de vôlei
treinadores ora procuram acalmar, confortar,
ora são mais incisivos para dar uma chacoalhada no time.
Os bons técnicos hoje não só estudam psicologia como trabalham com psicólogos especialistas nessa matéria. Porque o psicólogo hoje
faz parte da comissão técnica. Não é um sujeito que vem de fora, com uma varinha de
condão, um dia antes de um jogo decisivo ou
de uma competição decisiva fazer uma palestra para fazer o sujeito render. O trabalho de
psicologia demanda longo prazo tanto quanto
demanda, por exemplo, a preparação física.
Nenhum preparador físico põe um atleta em
condições de fazer uma maratona, por exemplo, na véspera. Esse é um trabalho de longo
prazo. E a psicologia também.
Até para conhecer o perfil de cada atleta e
saber como reage aos estímulos, não é?
Esse conhecimento demanda tempo. Não é a
aplicação de um questionário que faz você
saber quem é quem. É a dinâmica desse cotidiano de treino e competição que vai dar elementos tanto para o técnico quanto para o
psicólogo saber com quem ele lida.
VEJA NA
VERSÃO DIGITAL
Conteúdo exclusivo em
app.cadernosglobo.com.br
51
INSPIRAÇÃO
Giba
DETENTOR DE
TRÊS MEDALHAS
OLÍMPICAS NO
VÔLEI, GIBA
CONTA COMO
O ATRIBUTO DA
SUPERAÇÃO FOI
FUNDAMENTAL
EM SUA
TRAJETÓRIA
por GISELE GOMES
© RENATO VELASCO
o
t
n
o
a
p
o
t
n
o
p
52 52
f
oram 26 títulos em 20 anos jogando
pela seleção brasileira de vôlei. Entre as conquistas, três medalhas
olímpicas (ouro em 2004 e prata em
2008 e 2012) e oito títulos da Liga
Mundial, além de ter sido eleito o melhor jogador em seis competições internacionais. Não
há dúvida de que a carreira do paranaense
Gilberto Amauri de Godoy Filho, mundialmente conhecido como Giba, foi extremamente vitoriosa. Mas, para chegar a esse patamar,
ele precisou superar vários obstáculos – e não
apenas os montados pelos bloqueios adversários do outro lado da rede. Giba teve de enfrentar uma leucemia ainda bebê; aos 11 anos,
uma queda de uma árvore lhe custou 150 pontos justamente no braço. Pelo lado emocional,
ainda suplantou a falta de apoio da família no
início e uma reprovação na primeira peneira
de que participou.
Você teve leucemia com 4 meses de vida. Apesar de muito pequeno, como essa história lhe
foi passada e como marcou a sua vida? Esse
episódio serviu de motivação em algum momento da sua carreira como atleta?
Marcou bastante a minha infância. Até os 7
anos, havia exames a serem feitos, pois foi uma
leucemia rara, que ninguém sabe como foi
curada. No início, minha mãe achava que era
insuficiência de ferro. Um dia, minha tia entrou
no quarto, começou a rezar e pediu para Deus
ou que acalmasse a família ou que acalentasse,
porque poderia não ter volta. Ela falou que viu
minhas veias de brancas ficarem vermelhas.
No outro dia, eles fizeram um exame e eu não
tinha mais nada. Enfim, foi um milagre. Continuamos o tratamento – eu tinha 7 meses mais
ou menos –, foram três, quatro meses de perrengue com a família e minha mãe ainda não
sabia da doença. Na época, o médico falou:
“Ele só vai andar e falar com uns 4 anos”. Eu
não tinha nem feito quimioterapia, rádio, nem
Giba encerrou a carreira de atleta em 2014, aos
37 anos, e iniciou a de comentarista na Olim- nada, o tratamento foi só à base de medicação
píada de 2016. Também está prestes a inaugu- mesmo. E fiquei curado. Com cerca de 1 ano e
2 meses, fui fazer um exame e comecei a andar
rar o Núcleo do Gibinha, projeto social voltado
para incentivar a prática esportiva e a reedu- na sala do médico. Foi quando ele falou: “Não
cação alimentar para combater a obesidade
acredito que aquele menino com leucemia já
infantil. Na entrevista exclusiva concedida ao
está andando”. E minha mãe desmaiou. Isso
Caderno, ele conta como encarou os momentos
foi o começo de tudo. Depois dos 7 anos, não
mais difíceis dentro e fora das quadras.
tive mais nada. Acho que a superação disso me
mostra que não tem como desistir, se desde
pequeno eu já tive que brigar pela vida. Por
isso, hoje eu ajudo bastante. Já ajudei muitas
53 53
INSPIRAÇÃO
instituições e estou inaugurando em Araucária, região metropolitana de Curitiba, o primeiro Núcleo do Gibinha, um projeto social
contra a obesidade infantil, por meio do esporte e da reeducação alimentar.
Aos 11 anos, outro percalço: um acidente que
lhe rendeu 150 pontos no braço. Você estava
começando no vôlei e, diferentemente da leucemia quando bebê, já tinha memória do fato.
De que forma esse acidente afetou você?
Caí da árvore, o galho quebrou, e rasguei o
braço. Foi o ano em que eu comecei a jogar,
mas não afetou nada. Só que eu tive que ficar
um ano parado, foi mais uma superação pela
qual passei. E essas duas coisas [a leucemia e
o acidente], principalmente, me levaram a um
ponto, que foi em 1993. Eu estava muito bem
no Paraná [no Canadá Country Club, de Londrina], era um dos principais jogadores, mas
queria crescer. Fui para o Esporte Clube Banespa, no qual jogavam Tande, Giovane, Maurício, Marcelo Negrão, Montanaro – enfim, era
a elite do voleibol brasileiro. Fiz uma peneira
e não passei. Ali comecei, na verdade, a recordar as dificuldades que tinha passado na infância. E pensei: “Não posso desistir”. É uma
coisa que eu gosto, que eu amo fazer. E pensei:
“Vou treinar igual a um maluco, na areia”. Na
época, não passei por causa da altura. O técnico disse que não tinha como, pois eu tinha
1,88 m de altura – e o mínimo era 1,90 m. Hoje
eu tenho 1,93 m. Eu sabia que era um jogador
bom, mas se não fosse para ser “o jogador”,
chegar à seleção brasileira adulta, eu ia pegar
esse meu talento para estudar nos Estados
Unidos com bolsa. Eu tinha separado três universidades: Utah, Boston e uma universidade
54
no Havaí. Já estava quase indo para lá. Mas fui
indicado para a seleção infantojuvenil, por causa do Campeonato Brasileiro, em que o Paraná
ficou em segundo lugar. Eu fui e duvidaram
de mim. Em setembro do mesmo ano, em
Istambul [Mundial Infantojuvenil da Turquia],
fomos campeões mundiais e, na época, fui o
melhor jogador e o melhor atacante. Daí em
diante as coisas foram acontecendo muito
rápido. Eu disputei a primeira Superliga [Campeonato Brasileiro, o principal torneio nacional], fui o jogador mais novo, pelo Curitibano.
A questão é que, por volta de 1993, 1994, eu
estava um pouco na dúvida entre praia e quadra. No tempo livre, eu jogava praia. Até que
um dia o técnico falou: “Se você for jogar de
novo na praia, eu te mando embora”. Logo
depois, joguei na praia e ele me mandou embora mesmo. Fiquei aquele período inteiro
jogando na praia até que o técnico da seleção
juvenil me disse: “Se você não arrumar um
clube, eu não te convoco para a seleção”. Naquela semana mesmo, me ligou o Dema [o
técnico Valdemar Umbelino da Silva, da equipe Cocamar], de Maringá, para me contratar.
Foi quando eu optei realmente pela quadra.
Nesse momento, minha carreira deslanchou.
Quando você começou a enveredar mais firmemente pelo vôlei, como foi o apoio da família?
Minha família não me apoiou de jeito nenhum,
minha mãe não queria que eu jogasse. Na época, o que dava dinheiro era o futebol. O voleibol, não. Minha mãe dizia que eu tinha que
estudar e trabalhar. Em Londrina mesmo, ela
me colocou para fazer um curso de auxiliar de
escritório e de datilografia. Eu ia para a escola
de bicicleta – pegava carona no caminhão de
soja para chegar ao colégio. Eu ia de calção por
baixo da calça jeans e fazia o seguinte: segunda, quarta e sexta, eu fazia o curso de datilografia e, terça e quinta, o de auxiliar de escritório. Todos os dias eu treinava e estava
fazendo os cursos. Bobo eu, né? Porque minha
mãe dava aula no mesmo lugar em que eu fazia
o curso. Por outro lado, ela também fazia vista grossa. E assim as coisas foram acontecendo.
RE
P
EM
S
OI
ER
F
Z
A
IS ÍNUA
F
A
R
TA O A M ONT
N
TE ALG
A C VIDA
C
US HA
B
A
IN
UM NA M
Como atleta em formação, houve algum fundamento com o qual você tinha mais dificuldade e teve de superar?
Não. Eu sempre pensei em fazer tudo bem feito,
todos os fundamentos. Meu primeiro técnico
falava o seguinte para mim: “Baixinho tem que
saber passar e defender muito bem”. No começo, eu me aperfeiçoei muito nisso, e todas as
outras coisas – bloqueio, ataque, saque, levantamento – vieram com o tempo. Tentar fazer
sempre algo a mais foi uma busca contínua na
minha vida. Não deixar de se superar a cada dia.
Quando você se firmou na seleção e se tornou
um dos protagonistas, passou a ser requisitado
para publicidade, pela mídia em geral. Como
manter o foco?
O Brasil tem uma coisa muito ruim que impõe
que o atleta seja só atleta, ponto e basta. Hoje
eu estou fazendo MBA em Marketing Esportivo
na Universidade Federal do Rio de Janeiro e o
que vejo é que o atleta não é só um atleta. A
gente tem que seguir o modelo que funciona,
que é o norte-americano. O atleta é um produto. Ele tem que saber falar para a câmera sem
perder a concentração. Mas hoje a mentalidade brasileira imposta para os atletas diz o seguinte: “Você tem que treinar, não pode perder
horas de sono, não pode dar entrevista, não
pode gravar propaganda”. Isso não existe, nós
vivemos disso. Hoje eu vivo do que eu construí
durante 20 anos na seleção. Vivo da minha
imagem, de como eu falo, de como eu me apresento, onde eu me apresento. Para manter o
foco, a primeira coisa é nunca se esquecer de
onde você veio, das suas origens. Quando começar a querer ir além, tem que falar: “Calma,
pé no chão, lembra de quando você não tinha
dinheiro pra pegar ônibus?”. E tem deslumbre
no começo, sim, não tem como. Imagine você
com 17, 18 anos de idade, ganhando R$ 10 mil
por mês. Mas eu sempre tive um bom foco,
porque desde o começo ajudei muito minha
mãe, minha irmã, tinha contas a pagar e responsabilidades desde pequeno.
Na Itália, você foi pego no antidoping pelo
uso de maconha. O que passou pela sua
cabeça no momento em que o resultado do
exame veio à tona?
Todos falam que foi o momento mais difícil da
minha vida. Eu digo que foi o melhor momento da minha vida. Não pelo fato em si, mas por
como tudo aconteceu. Dali pra frente, eu fui
seis vezes o melhor jogador do mundo. Errar
é humano, persistir no erro é burrice, sábio é
aquele que aprende com o erro dos outros.
Aprendi bastante e passei a levar isso comigo.
Ou eu me enfiava num buraco ou eu me superava. A primeira coisa é levantar a mão e admitir: “Errei, desculpa, não vou errar mais”.
Não adianta ficar se enrolando, falando qualquer tipo de coisa.
55
INSPIRAÇÃO
Depois de chegar ao topo, campeão olímpico,
com a prateleira cheia de títulos e prêmios individuais, como conseguir se manter motivado
e focado? Quais os maiores fatores de risco
para o jogador de ponta se acomodar?
56
campeão no
3 vezes
Mundial de Voleibol
2004
Ouro na Olimpíada
de Atenas
2006
Eleito o melhor
jogador do mundo
2008
Prata na Olimpíada
© TONY BAGGETT/SHUTTERSTOCK
O Bernardo [Rezende, o Bernardinho, técnico
da seleção brasileira] teve uma influência muito grande nesse sentido. Ele falava muito sobre
essa zona de conforto, é algo muito normal
entre atletas, que ganham, chegam ao topo e
falam “eu sou”. Nessa hora, caem. Pelo fato de
ele incutir isso na gente, nós buscávamos não
só melhorar, mas procurávamos a excelência.
O bom não estava bom. Ele tinha que ser ótimo,
perfeito. Com isso, a gente escreveu a história
da nossa seleção campeã. Tinha também o
modo como a gente jogava, a garra, o fato de
a gente mostrar emoção, paixão, orgulho de
representar o país. Nessa fase, por exemplo, o E o vôlei é um esporte que envolve o individual
Bernardo passava o exercício e não abria a boca. e o coletivo.
Nós nos cobrávamos tanto que ele não preci- O vôlei é o único esporte que é completamente
sava falar nada. Ele marcava duas horas de individual e totalmente coletivo. Se eu erro um
treino, às vezes dava uma hora e quinze e fa- saque, estou errando individualmente, mas um
time inteiro está pagando. E eu não tenho como
lava: “Gente, não tem mais o que fazer”.
pegar a bola e pedir para sacar de novo, como
E o que passava na sua cabeça quando estava no futebol, no basquete, em que a gente corre
atrás da bola para roubar e fazer de novo. No
jogando uma final?
A final olímpica [de 2004] foi quando mais vôlei não, a bola já foi. Tem que ter essa consestávamos tensos, porque era a primeira que ciência de que você tem que fazer muito bem
estávamos disputando em Olimpíadas, um num nível individual para o bem do coletivo.
sonho de qualquer atleta. Estávamos na decisão contra a Itália – que naquele ciclo olímpi- Como foi o seu processo de aposentadoria das
co estava sendo o maior adversário. Mas, quan- quadras?
do se chega a uma final, você só quer ganhar. Um atleta precisa saber a hora dele. Não adianPassa a lembrança do quanto você ralou, o ta prorrogar uma coisa que você não vai conquanto treinou, o quanto ficou fora de casa, seguir. O Giba de 2004, de 2008, de 2012 não
quanta dor sentiu, o que sacrificou para chegar seria o Giba de 2016. Fisicamente, a idade pesa,
àquele momento. Acho que, tanto num mo- não adianta falar que não. Você já não é mais
mento difícil quanto num momento fácil, a aquele atleta que era. O corpo às vezes não
superação, principalmente num esporte cole- corresponde, eu já tinha uma cirurgia na tíbia
tivo, é muito grande e você precisa muito do que foi consequência disso. Eu tive uma fratuparceiro que está do seu lado.
ra por estresse de tanto saltar. É muito impacto, eu cheguei a saltar 1,10 m, 1,15 m. Chega
uma hora que o corpo fala: “Ei, se você não
parar, eu vou parar com você”. Imagine, 95 kg
caindo o tempo inteiro? Duro é o atleta que para
frustrado ou por lesão ou porque alguém parou
com ele – veio outro mais novo e conseguiu
fazer o que ele mesmo havia feito antes –, e a
pessoa não consegue entender isso.
na seleção
15 anos
brasileira de vôlei
medalha
8Mundialvezes
de ouro na Liga
de Voleibol
de Pequim
2012
Prata na Olimpíada
de Londres
O que você considera mais difícil para um
atleta de alto rendimento?
A pior coisa para um atleta é ficar parado por
lesão. Porque é difícil, você quer fazer e teu
corpo não te responde. Você sabe que consegue
e a dor não te deixa fazer. Eu tive uma tendinite crônica no joelho antes da Olimpíada e
consegui me curar a tempo. Mas para o atleta
a dor é a pior coisa. E o segundo ponto: acho
que depois que você tem filho tudo muda.
O que o esporte deu de mais significativo para
você em termos de experiência de vida, de
convivência com outras culturas e de valores
como ser humano?
Conhecimento. A gente nasce e morre aprendendo. A primeira vez em que eu fui jantar com
o time na Itália, já entendia italiano, eles ficaram 15 minutos falando sobre o treino, o jogo,
o campeonato. E os demais 45 minutos falaram
sobre Van Gogh, Napoleão, a Segunda Guerra
Mundial. Eu pensei: “Gente, fugi da escola”.
Tive que aprender aquilo ali para poder continuar conversando. Isso tudo me trouxe um
conhecimento muito grande. Eu falo muito isto
para os meus filhos: “Aproveitem esse legado
que vocês tiveram, de morar na Itália, na Rússia, o fato de a mãe de vocês ser estrangeira [a
ex-jogadora de vôlei Cristina Pirv, romena],
de a gente viajar bastante, todas as línguas que
vocês têm a possibilidade de conhecer”. O
esporte me trouxe todo esse conhecimento,
além dos valores de viver em sociedade, ajudar
o próximo. Isso se reporta à humanidade: se
você ajudar o próximo e não viver de forma
egoísta, estará pulverizando o bem e fazendo
que tudo à sua volta seja melhor.
VEJA NA
VERSÃO DIGITAL
Conteúdo exclusivo em
app.cadernosglobo.
com.br
57
COBERTURA
© CHRIS MCGRATH /GETTY IMAGES
© PEDRO PALMEIRO
Jornalistas
Em 23 anos de coberturas esportivas, o diretor executivo de Esportes
na Globo trabalhou em oito Olimpíadas, seis de verão e duas de inverno. Para ele, os Jogos mantêm o espírito de congraçamento entre os
povos que marcaram sua origem. Além disso, têm a capacidade de
atrair as pessoas diante da expectativa de presenciar uma façanha
humana, que não necessariamente resulte em medalha ou em quebra
de recorde. Hoje atrás das câmeras, Paes Leme conta que sua função
atual exige um olhar diferente de quando acompanhava as competições
de perto, como repórter. Mas que as duas perspectivas têm em comum
a emoção que o esporte desperta.
Os Jogos Olímpicos modernos nasceram com
o espírito de congraçamento entre povos. Ainda se vê isso nas Olimpíadas?
o
o
d
o
d
n
u
is
m
a
o
m
d
é
n
u
m
n
a
qu
58
João Pedro Paes Leme
PROFISSIONAIS
RELATAM
EXPERIÊNCIAS NA
COBERTURA DE
GRANDES EVENTOS
ESPORTIVOS E
CONSIDERAM AS
OLIMPÍADAS UM
MOMENTO ÚNICO DE
UNIÃO DOS POVOS
por GISELE GOMES
e ANA PAULA BRASIL
Os Jogos Olímpicos começaram, na Antiguidade, com um simbolismo muito forte: eles
interrompiam as guerras helênicas. E isso acabou inspirando os Jogos Olímpicos da atualidade. Na Grécia antiga, os Jogos não eram só
esportivos, eram também desafios musicais,
de oratória, eram jogos culturais. Depois, ficaram atrelados ao esporte, que foi o que sobreviveu. Isso era no século XI a.C., época de
muitas conquistas, disputas. Mas também era
uma época de nascimento da inteligência, digamos assim. Os gregos estavam no auge da
filosofia, começando alguns textos também
poéticos. Isso, trazido para 1896, quando o
barão de Coubertin começou a recuperar esse
espírito, fez com que a imagem da Olimpíada
moderna trouxesse alguns daqueles elementos.
E acho que isso nunca se perdeu, na verdade.
Acho que até hoje, nesse ciclo olímpico que se
chama Olimpíada exatamente por isso – é um
ciclo de quatro anos, assim como uma década
são dez anos –, é o tempo suficiente, do ponto de vista ideal, utópico, para criar um ciclo
de reflexão sobre o que aquilo que passou,
simbolizou. E quatro anos depois repetir aque-
le congraçamento. Acho que a gente vive um
mundo hoje tão louco, com atentados por todo
lado, com todos os tipos de violência, que a
Olimpíada tenta trazer talvez um humor diferente, uma coisa que seja própria dela, para
despertar esse congraçamento nas pessoas.
Tanto que o lema do Comitê Olímpico Internacional é “Celebrate humanity”, que é celebrar
a humanidade.
Eu lembro do caso de um nadador da Guiné
Equatorial, na Olimpíada de Sydney, 2000. Um
atleta que veio nadando de uma maneira quase
cômica, mas que, no final, as pessoas não riam
do que ele estava fazendo. Viram que ele estava
fazendo o máximo esforço que podia. Depois se
soube da história: chamava-se Eric Moussambani e tinha treinado na única piscina que existia na cidade dele, dentro de um hotel. E ele
treinou, treinou porque queria ir como único
representante do seu país na Olimpíada. É claro
que ele não era o Michael Phelps e nem ia chegar
perto de medalha – tanto que o tempo que ele
tinha para entrar nas eliminatórias era tão distante do último colocado, do penúltimo colocado, que ele teve que nadar sozinho. Mas as pessoas o aplaudiram de pé. Aquele foi um
momento em que o esporte falou sem palavras.
59
COBERTURA
besse assistência médica. Ele levantou a mão,
levantou o corpo e saiu mancando. Os outros já
tinham chegado. O mais emocionante é que um
senhor invadiu a pista. E as pessoas ficaram sem
Participar de uma Olimpíada é um dos pontos
saber o que fazer, podia ser um atentado. Mas
era o pai dele, que pegou o filho pelo braço e foi
altos da carreira de um atleta. Todos estão lá
para testar seus limites. Que casos refletem
abraçado até o fim. Ele foi balançando a cabeça
para você esse ideal de superação?
e dava para ver, na leitura labial, o pai falando:
Eu olho para a Olimpíada com o olhar da Ga- “Eu vim com você até aqui e eu vou até o fim”.
brielle Andersen, aquela suíça que chegou aos
É de arrepiar. A mensagem de um superatleta
trancos e barrancos na Olimpíada de 1984. Para
que mostra sua dimensão humana. Seria o framim, aquilo ali também é o espírito do que deve
casso, mas a família estava ali como suporte.
ser a superação humana. Ela sabia que não ia
conquistar uma medalha e foi até o fim, prefe- Tem um outro caso também, na Olimpíada de
riu chegar em último – ela foi uma das últimas
1988, de um velejador canadense [Lawrence
– e continuar. Ela acabou inspirando muitas
Lemieux]. Era praticamente certa a medalha
pessoas. Em 1992, eu vi um caso parecido e
de ouro dele, mas a regata estava muito turtenho certeza que aquele atleta se inspirou nela. bulenta, com vento. Quando ele fez a curva
para a última boia, para ir em direção à reta
Era um caso de superação de um atleta [Derek
Redmond] que estava indo para a final com
de chegada, viu que um velejador tinha capomuitas chances. Ele corria os 400 metros. De
tado e estava se afogando. Ele voltou, perdeu
repente, como um carro que quebra, você sen- a medalha, resgatou a pessoa, botou dentro do
barco e foi aplaudido de pé. Perdeu a medalha
te que o músculo da coxa dele rompeu. Ele caiu
de ouro, mas naquele dia deram pela primeisofrendo de dor, se debatendo, e os médicos já
iam entrar – ele seria desclassificado se rece- ra vez a Medalha Pierre de Coubertin a um
atleta em vida, que condecora esse tipo de
atitude. Quem ganhou depois foi o Vanderlei
Cordeiro de Lima [foto na pág. 58], nosso brasileiro que foi atacado por aquele padre em
Atenas (2004). São histórias muito simbólicas
de fazer o que é certo, ter uma atitude ética. O
fato de o velejador se importar com a vida do
sujeito antes de se importar com a medalha é
um pouco a dimensão do que se tem de um
grande atleta, de um grande herói, aquilo que
se espera da atitude de um grande herói olímpico. Seria a atitude humanamente correta,
aquela que seria esportivamente esperada.
M
UÉ
G
AL
A
O
D
NT A
N
A
A
C
RI
Ó
QU E EN
T
A,
S
I
S
O
A H PESS
L
PE MA
TA
N
U
CA RTE
N
DE
E
O
SP
SE
E
LO
E
P
60
O que difere a cobertura de uma Olimpíada de
uma de futebol ou Fórmula 1, por exemplo?
Você tem mais países na Olimpíada do que na
Organização das Nações Unidas (ONU). Então,
de certa forma, não é um acaso, é uma prova,
talvez, de que a linguagem que o esporte propõe tem muito mais do que apenas o esporte,
Geração 16
tem também a linguagem do respeito, da ética, de algum elemento de relacionamento
humano que a gente vê se perder no dia a dia.
O que eu acho que há é um certo desencanto
com a humanidade e a Olimpíada, de certa
forma, traz uma esperança de que haja – e isso
pode ser totalmente utópico – um jeito de
celebrar a humanidade de uma forma mais
divertida, lúdica e respeitosa. Talvez não exista em outro esporte ou competição. Talvez exista em um esporte isoladamente, como vemos o
respeito no judô, atitudes bonitas no tênis, mas,
quando juntamos todos esses esportes numa
supercompetição – até alguns que são mais
agressivos –, vemos que eles acabam assumindo um comportamento que é olímpico, e isso
talvez explique e seja explicado por aquela raiz
olímpica ancestral de 700 anos antes de Cristo.
Ao longo de quatro anos, a reportagem do Fantástico acompanhou
a vida de oito atletas: Ygor Coelho
(badminton), Gabi (vôlei), Laís Nunes (luta olímpica), Rebeca (ginástica artística), Tamiris (atletismo),
Lucas (basquete), Matheus (natação) e Thiago Braz (salto com vara).
Quais os desafios da cobertura jornalística de
uma Olimpíada, sobretudo no caso do brasileiro, que está familiarizado com alguns esportes e não com todos?
Como o futebol é autoexplicativo para o público brasileiro porque ele nasce vendo aquilo,
dificilmente esse público terá visto algum outro
esporte tanto quanto. Então, não é necessário
no futebol o excesso de informação ou de explicação. A emoção já convive com essa compreensão que o cara tem desde pequenininho.
A grande questão desses outros esportes é mostrar que eles são tão ou mais desafiadores que
o futebol e que, ao mesmo tempo, para entender como o sujeito é desafiado ou vai ao limite
da sua força ou talento, você precisa entender
o que aquilo é. Então, é importante conhecer
as regras, os limites, mas o que é fundamental
e sempre normatiza a nossa cobertura é que é
importante conhecer o ídolo. O ídolo inspira
demais. A gente vai sempre para a Olimpíada
com três pilares de cobertura muito definidos:
os grandes atletas do Brasil, os grandes atletas
do mundo e as grandes histórias. Tenho certeza de que, quando alguém se encanta pela história de uma pessoa, se encanta pelo esporte.
O ídolo vem antes do esporte. Por exemplo, o
Isaquías Queiroz, um menino do interior da
Bahia, que começou a remar a canoa porque
era de uma cidade ribeirinha, e ele convivia
com aquilo desde pequeno. Ele simplesmente
YGOR
LAÍS
MATHEUS
© REPRODUÇÃO
Sem nenhuma palavra você consegue comunicar mil mensagens, porque diante daquele
negro da Guiné Equatorial, com o esforço todo
que tinha sido feito, havia judeus, muçulmanos, católicos, protestantes aplaudindo uma
façanha humana. E essa é a dimensão olímpica que me encanta.
THIAGO
61
COBERTURA
© REPRODUÇÃO
ARTHUR ZANETTI
YANE MARQUES
62
Durante muito tempo você participou da cobertura jornalística em campo, muito perto do fato.
Hoje, na área de planejamento, ainda se emociona da mesma forma?
Passei muito tempo cobrindo, quando eu era
repórter. Fui correspondente por quase dez
anos, morando fora ou circulando com a Fórmula 1 e saindo para fazer muitos eventos. O
jeito de olhar o esporte quando você está lá em
campo, próximo do atleta, vendo a emoção do
atleta, é um. E o jeito de você olhar quando
planeja, decide aquilo que vai ao ar e como
vamos fazer o aquecimento de um evento é
outro. Mas tem uma coisa em comum, que
continua sendo a emoção. Olhar a emoção de
um atleta de perto, entrevistando, claro que
te faz ficar emocionado. Cansei de chorar junto com atletas. Mas você também se emociona quando olha uma série bem construída, de
atletas que você conhece, às vezes, pela história, pela televisão, mas que de certa forma
foi um planejamento que sua equipe fez, se
juntou para pensar nas minúcias. Olhando as
séries que a gente fez de aquecimento para a
Olimpíada, algumas muito fortes, como a do
Fantástico, a Geração 16, com atletas que a
gente seguiu por quatro anos sem saber se
iriam se classificar ou não – e alguns não se
classificaram, outros sim –, ou a do Jornal
Nacional, com o perfil de 16 superatletas do
Brasil, que é uma síntese da emoção, não consegui ficar sem chorar em nenhuma delas.
Aquilo, talvez inconscientemente, meio que
me transportou para a época em que eu ficava
do lado deles. Mas de fato é emoção que tento
passar dentro de casa para os meus filhos. Eles
veem que eu vibro e vivo intensamente isso. São
dois momentos diferentes, mas, se tem um
ponto de interseção, é a emoção.
CONSCIENTE E COLETIVO
União dos povos é traço marcante nas recordações de jornalistas em coberturas de Jogos Olímpicos
Marcos Uchôa
© GLOBO/JOÃO COTTA
O repórter Pedro Bassan apresenta,
na série exibida no Jornal Nacional
os perfis de 16 atletas olímpicos
brasileiros. Um trabalho que durou
um ano, 21 viagens e 170 horas de
gravação em busca das histórias,
curiosidades e intimidade de alguns
dos principais atletas que representam o Brasil na Rio 2016.
se tornou o melhor do Brasil e o melhor do
mundo na canoagem. E até hoje convivem o
canoísta com os canoeiros no mesmo rio. São
histórias quase de conto de fadas. Então, essas
transformações – acho que o esporte transforma demais – dificilmente são vistas em outro
setor da sociedade de uma forma tão possível.
Porque, se você der uma oportunidade e o cara
tiver um mínimo de talento, você realmente
democratiza aquele tipo de atividade.
“A minha primeira Olimpíada foi a de Los Angeles, em 1984. Daí em diante, cobri todas as de verão e uma de inverno, em dez cidades. Embora nós,
brasileiros, tenhamos uma predileção por Copas do Mundo de futebol, eu
prefiro bem mais os Jogos Olímpicos: um esporte x 28 esportes (com várias
modalidades); 32 países x 206 países; 1 sexo x 2 sexos; 736 atletas x 10.500
atletas. E tudo concentrado na metade do tempo. Não tem comparação!
Numa época em que nacionalismos e xenofobia gritam contra o diferente,
essa variedade humana que, ao mesmo tempo tem tanto em comum,
deveria ser celebrada não só em Olimpíadas. Se o exemplo desse grande
evento pudesse frutificar em outras áreas, alguns dos maiores problemas
do mundo, como a poluição e o aquecimento global, seriam de mais fácil
solução. Só numa Olimpíada nós podemos sentir que, entre tantas identidades possíveis, pode-se acrescentar mais uma: somos todos terráqueos.” Renato Ribeiro
© GLOBO/RENATO MIRANDA
Perfis nacionais
“O que é mais impressionante em Olimpíada, que a torna diferente da
Copa do Mundo, é o fato de estar realmente o mundo todo em um lugar
só. Desde o círculo de imprensa nas Olimpíadas – em que você vê jornalistas do mundo inteiro – até a cerimônia de abertura, que é impactante e talvez a única oportunidade em que vemos representantes de
todos os países juntos em um mesmo lugar. Na minha primeira Olimpíada, em Atlanta (1996), eu trabalhava em jornal ainda, lembro que na
área de imprensa, perto de mim, tinha uns jornalistas de Belarus, que a
gente chamava Bielorrússia. Era a primeira Olimpíada em que os antigos
países da União Soviética estavam disputando com o nome dos seus
países. Então, quando teve o desfile e entraram os atletas de Belarus, o
grupo de quatro ou cinco jornalistas chorou de um jeito, porque era a
primeira vez que eles estavam se vendo representados como um país. É
uma dimensão que, talvez, a gente nem tenha como perceber, como entender e sentir. Esse é um
exemplo claro. Acho que a todo instante nas Olimpíadas você se depara com quem é diferente de
você. Religiões diferentes e formas de entender o outro, um gesto que alguém faz e que se torna
especial. Lembro em Sydney (2000), quando as duas Coreias entraram juntas na cerimônia de
abertura, que foi algo bem simbólico também: países inimigos estarem juntos ali em um mesmo
lugar. É uma grande utopia, na verdade, que dura 17 dias, mas é uma utopia bonita e que acontece.”
VEJA NA VERSÃO DIGITAL
Conteúdo exclusivo em
app.cadernosglobo.com.br
63
INSPIRAÇÃO
Terezinha Guilhermina
A DOENÇA
CONGÊNITA
QUE AFETOU
A VISÃO
DESDE O
NASCIMENTO
FOI SÓ UM
DOS DESAFIOS
DE TEREZINHA
GUILHERMINA
NO PERCURSO
QUE A
GUINDOU
À CONDIÇÃO
DA CORREDORA
CEGA MAIS
RÁPIDA DO
MUNDO
© PAULO URAS
por JUAN CRISAFULLI
de
á
à
t
s
s
b
o lo
u
c
64 64
a
v
o
r
p
Em que condições você nasceu?
e
la tem uma compreensão tão clara
da vida que os obstáculos que surgiram no seu caminho aparentam ser
minúsculos. Apequenam-se a tais
dimensões que parecem nem mais
existir. Não obstante, ela reconhece
já ter tropeçado, aliás, que nasceu tropeçando,
mas que nunca deixou de buscar sua meta.
Nem quando o cenário parecia desfavorável.
Quem a acompanha no dia a dia atesta que,
diante de sua determinação, não há desafio
grande o suficiente para tirá-la do pódio.
Tricampeã paralímpica nos Jogos de Pequim
(2008) e de Londres (2012), Terezinha Guilhermina possui também um título de técnica em
Administração e um diploma de graduação em
Psicologia. Nasceu em Betim (Minas Gerais),
com retinose pigmentar, uma doença congênita que provoca a perda gradual da visão. O
problema também acometeu outros quatro dos
seus 12 irmãos. A corredora conversou com o
Caderno sobre sua trajetória antes de começar
seu treino matinal sobre o tartan, pista que a
consagrou como a atleta mais rápida do mundo em sua modalidade.
Sou de uma família de 12 irmãos, na qual cinco são deficientes visuais. Meu pai era faxineiro e minha mãe, empregada doméstica. Na
época em que eu nasci, meu pai era carroceiro, ele trabalhava fazendo carreto. As pessoas
compravam as coisas no mercado e ele entregava em suas casas. Minha mãe já tinha ficado
internada mais de uma semana e eu não tinha
nascido, aí o médico a mandou voltar para
casa. Ela voltou, passaram-se alguns dias e ela
resolveu acompanhar meu pai na cidade para
fazer esses carretos. Na volta, ela começou a
sentir as dores do parto. A bolsa estourou e ela
disse: “Eu preciso passar para trás”. Havia um
saco de ração para animais, ela deitou sobre
ele e foi ali que eu nasci. Meu pai pegou a faca
de pão, cortou o meu cordão umbilical. Chamaram uma parteira para fazer a higienização,
e eu nasci no meio do caminho. Por isso sou
velocista, até para nascer eu fui rápida.
Como a sua doença nos olhos [retinose pigmentar] começou a se manifestar? Como ela
impactou a sua infância?
Desde criança, já bem pequena, eu nunca
consegui enxergar as coisas nitidamente. Sempre tive perda superior a 95% – fui descobrir
isso depois –, mas eu brincava com as outras
crianças. Como os meus últimos irmãos tinham
a deficiência – que é a falta de célula de luminosidade na retina –, para mim todo mundo
enxergava igual. Não era eu que trombava nas
pessoas, eram as pessoas que trombavam em
mim. Quando entrei na escola, percebi que era
diferente. Era a única que não enxergava na
lousa o que a professora escrevia. E aí eu tive
a sensação e a clara informação de que eu
realmente tinha alguma deficiência, algo muito grave que me impediria de fazer algumas
coisas como as outras crianças. Porque, até
então, tudo que elas faziam eu fazia também
– só que eu não sabia que fazia trombando,
65 65
INSPIRAÇÃO
caindo. Como eu não conseguia enxergar no
quadro na escola, minhas irmãs, que enxergavam melhor, me ensinaram a ler e a escrever.
Eu colocava a mesa no meio do quintal, porque
precisava de muita luz. E aí, quando o sol
quente batia diretamente no papel, eu conseguia escrever, mas não conseguia ler o que eu
tinha escrito, então não tinha como corrigir,
tinha que escrever certo. E assim fui alfabetizada. Na escola, as professoras não percebiam
isso, então eu era tachada como a menina
hiperativa, que não obedece. Até que entrou
uma professora que percebeu que eu era alfabetizada, mas o meu problema era que eu não
enxergava. Eu já tinha repetido duas vezes o
primeiro ano. Quando ela percebeu, passou a
ditar para mim o que escrevia no quadro. E foi
assim que eu consegui passar de ano. Quando
eu tinha 17 anos, descobri que a minha doença era a retinose pigmentar e era incurável.
Como você descobriu o seu talento para a corrida? E como você equacionou essa habilidade
para correr com a dificuldade para enxergar?
Nessa escola onde eu estudei no primeiro momento, tinha uma menina que era mais repetente que eu, e maior também. E ela me batia.
E, como eu só conseguia perceber vultos, quando estava muito próxima, eu corria para não
apanhar. E tinha que ser rápida. Eu descobri
que podia correr, e nas brincadeiras de criança eu sempre fui muito rápida para correr,
mesmo sem enxergar. Depois de ter concluído
o segundo grau técnico em Administração, eu
já tinha 22 anos, soube de um projeto da prefeitura de Betim que iria oferecer atletismo e
natação para as pessoas com deficiência. No
primeiro momento, eu me inscrevi para natação, porque eu tinha maiô. Eu queria correr,
mas não tinha tênis. Voltei para casa e contei
isso para a minha irmã, que me deu um tênis,
e eu me inscrevi, no dia seguinte, para o atletismo. Eu encontrei no atletismo uma porta
que o preconceito não fechou. Ninguém me
impediu. Embora eu tenha cursado Administração e tenha sido uma das melhores alunas,
não consegui emprego por ser deficiente. No
66
atletismo eu podia correr. Mas, por ter a visão
muito baixa, eu tinha que correr em horários
meio alternativos, em condições um pouco
arriscadas. Eu corria na rua, tropeçava, desviava de saco de lixo achando que era cachorro, cumprimentava poste, mas eu treinava e
falava para mim mesma: “Ninguém vai me
impedir de treinar”. Tive alguns problemas,
porque esse tênis que minha irmã me deu
desgastou muito rápido e virou um “tamanco”
na lateral. Tive dores na canela bem terríveis,
fui para a fisioterapia e um dos fisioterapeutas
avisou: “Terezinha, se você não parar de correr, a gente vai ter que amputar a sua perna
de tanto que a canela está inflamada”. E eu
respondi: “Primeiro vocês amputam, depois
eu paro. Antes, não”. Eu chegava para o treinador e sempre falava: “Eu vou ser a melhor
do mundo”. Muitas vezes as pessoas me falavam que eu sonhava alto demais para quem
não tinha nada nas mãos.
Você praticou algum outro esporte antes ou
durante o seu início na corrida?
Eu pratiquei natação, por isso até eu tinha maiô.
Quando era adolescente, participei de um
programa em Betim que tinha natação para
crianças carentes. Mas era com convencionais,
era um pouco complicado, porque a professora não tinha dimensão do quanto eu enxergava. Mas eu conseguia nadar bem.
Suas primeiras corridas foram provas de rua.
Em que circunstâncias você decidiu participar?
Como na pista não tinha dinheiro, não tinha
nada, soube que ia ter uma corrida de rua que
ia dar premiação para pessoas com deficiência.
E a premiação seria de R$ 100, R$ 80 e R$ 60
para os três primeiros lugares. Era uma corrida de 5 km. Eu fui lá, me inscrevi. Não tinha
guia nessa corrida para mim. Eu corri meio
trombando no povo. Como eu via vultos, ia
acompanhando aqueles que eu via correndo.
Eu ganhei em segundo lugar, ganhei os R$ 80.
Sempre quis comer um iogurte quando eu era
criança, aí peguei esse dinheiro e me senti rica.
Eu nunca tinha visto tanto dinheiro na minha
mão, na minha frente, então comprei um iogurte. Assim, entendi e acreditei ainda mais
que eu realizaria todos os meus sonhos.
AS AM
S
ZE ALAV TO
E
S V ME F A AL ÃO
A
N
V
IT
MU SOAS NHA UEM OS
S
SO A Q MÃ
U
PE
E E S PAR NAS
U
Q
AI ADA
M
DE
AN
H
TIN
Como foi quando você começou a treinar em
clubes?
A maioria dos meus primeiros treinadores não
acreditava que eu realmente tinha potencial.
Meu irmão, que começou a correr depois de
enxergavam um pouco melhor do que eu e
mim, corria mais e já começou ganhando de
também competiam, passavam por essa classificação. Eles entravam antes na sala e falavam:
todo mundo. Só que eu corria errado. Por ter
canelite, precisava chegar muito antes para “Você anda dois passos e vira à direita para não
aquecer, para os treinadores não verem que eu
trombar”, porque eu tinha muito medo de
estava sentindo dor, que eu estava mancando. mudar de classe. Desde as primeiras classifiEu ouvi muitas coisas. Ouvi que a diferença
cações, os oftalmologistas sempre falavam:
entre mim e as minhas adversárias era a mes- “Você é uma 12, mas que pode competir como
ma que existia entre um fusquinha e um avião. 11 porque enxerga muito pouco”. E eu falava:
Ouvi que eu não tinha nada e elas tinham tudo. “Não, eu enxergo muito, eu enxergo muito”. Eu
Eu não enxergava, não tinha dinheiro, a minha
achava que enxergava que era uma beleza! Só
família não tinha como me ajudar financeira- que, em uma das classificações, a minha irmã
mente e as competições eram muito novas para
entrou numa sala e eu, em outra. E já entrei
mim. Só que eu falei: “Eu vou ser a melhor do
trombando, porque eu não sabia o que estava
à frente. Numa das classificações, eu lembro
mundo e vou mudar a minha história”.
que o médico mostrou umas letras e eu sempre
Hoje você corre vendada e com um atleta-guia
falava o alfabeto inteiro para tentar adivinhar
ao lado. A doença nos olhos evoluiu depois qual era. Mas tinha uma pessoa do Comitê
que você começou a competir?
Paralímpico me acompanhando e ela explicou
São três classes. A T11 é para cegos ou atletas
que na verdade era um número [risos]. Deu
que têm a visão desprezível e precisam com- para perceber nitidamente que eu estava tenpetir vendados. A T12 é para atletas que têm
tando burlar, mas me mantive no T12 até 2005
resíduo visual até 10%, que seguem as mesmas – com o campo visual muito ruim. Já antes de
regras que T11, com duas raias, guias, mas não Atenas, em 2004, como eu não queria me submeter à classificação funcional, fui ao oftalmoprecisam ser vendados. E a T13 é para atletas
que enxergam acima disso e na qual se aplicam
logista e pedi para ele dar um laudo constatanas regras convencionais. Desde o primeiro
do que eu enxergava 10%. Ele foi fazer os
momento, o meu campo visual era muito re- exames e, para a minha surpresa, não muito
duzido. Eles faziam a classificação com o of- agradável, ele me falou que não poderia me dar
talmologista. Minha irmã e meu irmão, que
o laudo porque eu não enxergava mais que 5%.
67
seguir mudar a história dele. No final de 2008,
consegui dar essa casa para ele. Para mim, foi
uma realização. Eu consegui ajudar a minha
família e realizar muitos sonhos.
© PAULO URAS
Como você fez para conciliar os
estudos com os treinamentos? Você
se formou no curso técnico de
Administração. Por que escolheu
essa área?
2004
Bronze nos 400 metros rasos na Paralimpíada
de Atenas. Com o avanço da retinose
pigmentar, é obrigada a trocar de categoria, para a T11,
na qual passa a correr acompanhada por um guia.
2007
Nos Jogos Parapan-Americanos do Rio, conquista o
ouro nos 100 e 200 metros e prata nos 400 metros.
2008 200 metros rasos, prata nos 100 e bronze nos 400.
Na Paralimpíada de Pequim, conquista o ouro nos
2012 200 metros rasos. Na prova dos 400, seu guia
Em Londres, conquista dois ouros, nos 100 e
sofre uma lesão na perna, cai, e ela, em solidariedade, se
joga no chão. Com o índice da prova dos 100 metros livres em
Londres, 12s01, bate o recorde mundial e entra para o Guinness,
o livro dos recordes, como a cega mais rápida do mundo
68
O técnico em Administração foi
no meu segundo grau. Eu escolhi
porque não me considerava com
habilidade para fazer Magistério
e era um dos dois cursos técnicos
que a escola oferecia. A diretora
da escola me chamou e falou: “Terezinha, você está fazendo uma
escolha totalmente louca. Você não vai conseguir. Tem que usar calculadora e você não
enxerga nem a calculadora, quanto mais os
números”. Aí eu disse que ia fazer de qualquer
jeito e acabei fazendo. Acho que eu gosto de
desafios. Depois, em 2005, eu entrei na Faculdade de Psicologia na Pontifícia Universidade Católica [PUC]. Essa foi difícil, porque
eu já estava fazendo esporte e precisava ler a
matéria, então alguém lia para mim e me
mandava o texto gravado em fitas. Conclui o
curso de Psicologia em 2013, cursei em três
universidades diferentes. Acabei fazendo em
nove anos o que daria para fazer em cinco. A
mesma disciplina que eu uso no esporte eu
usava na faculdade.
Qual foi o seu maior incentivo?
Meu pai. Por ele, eu não desisti. Por causa dele.
Eu queria mudar a história dele. Eu perdi a
minha mãe com 9 anos de idade. Quando eu
vi o meu pai, ao voltar de Pequim, com a medalha na mão e ele não tinha nem luz em casa
pra ver a medalha, pensei: “Vou comprar uma
casa pro meu pai”. Vou treinar, vou correr tudo
que eu tiver para correr, vou melhorar e con-
Agora que você obteve todos esses recordes e
essas medalhas, que você já venceu muitas
coisas na vida, não sofre uma pressão, uma
responsabilidade muito grande?
centro de treinamento para o nosso esporte
com uma estrutura de deixar de queixo caído.
Além de ter um governo federal que fez uma
lei criando a Bolsa Atleta, que respeita as especificidades de uma pessoa com deficiência
e atleta, dando as mesmas condições e as mesmas oportunidades que eles dão para uma
atleta convencional. Hoje o Brasil é uma potência paralímpica, porque várias e várias pessoas, várias empresas e o governo federal, sem
dúvida, e alguns governos estaduais e municipais reconheceram que somos tão brasileiros
quanto os atletas que não têm deficiência.
Essa pressão constante sempre foi interna
minha, independentemente de a Paralimpíada ser no Rio, aqui no Brasil. Em todas as competições em que entrei, eu me preparei. Essa
pressão interna minha, essa vontade de ganhar
e de fazer bem feito sempre foi maior do que
Você está sempre maquiada. Você é muito
qualquer torcida, sempre foi maior do que a
vaidosa?
opinião da sociedade em si. Eu quero vencer, Eu gosto. Até o mundial de Christchurch, na
eu quero ganhar, porque eu sei que eu fiz para
Nova Zelândia, em 2011, eu não era tão colochegar lá. Eu sei que eu fiz por merecer. Eu
rida. Eu sempre corria de óculos escuros e meio
não decidi ganhar medalha de ouro na Para- padronizada. Quando cheguei lá, eles me delimpíada este ano. Eu estou treinando inten- ram uma venda para correr. Mas aquela era
samente desde que saí de Londres. Eu não
uma venda de dormir, de avião. Aí eu disse:
parei para ir para balada e virar a noite. Eu não “Eu não vou dormir, vou correr”. A partir de
parei para comer tudo que eu tenho vontade
então, decidi fazer vendas para mim que nine engordar. Eu escolhi abrir mão porque eu
guém teria igual. Eu sempre gostei de combiconsidero que, para ter aquele momento ali no
nar as cores, as coisas. Eu digo que não precipódio, vale qualquer renúncia.
sa ficar bonito, tem que ficar colorido. Porque
meu mundo é colorido. Não gosto do estereóComo você avalia o apoio ao esporte paralím- tipo de que – nada contra – a pessoa que é cega
não tem expressão. Eu mesma me maquio, só
pico no Brasil?
Faz 16 anos que eu corro, e a evolução foi mui- preciso de alguém que confirme que está tudo
to estável, muito constante. O Comitê Para- ok, mas às vezes não tenho essa pessoa e vou
límpico fez um trabalho plausível no que tan- do mesmo jeito. A gente está na vida para ser
ge a realmente fortalecer o movimento, a
feliz, e eu não quero ser menos que isso.
oferecer estrutura para que novos atletas surgissem, para que os atletas que existem fossem
bem estruturados. Hoje nós somos uma potência paralímpica. Estamos em sétimo lugar
no mundo. E estamos buscando estar entre os
cinco nessa Paralimpíada, o que eu acho extremamente possível. Hoje nós temos uma
paralimpíada escolar, de atletas entre 13 e 18
anos, com mais de mil atletas. É a maior paralimpíada escolar do mundo. Nós temos um
VEJA NA
VERSÃO DIGITAL
Conteúdo exclusivo em
app.cadernosglobo.
com.br
69
ARTIGO
por RODRIGO HÜBNER MENDES
e
d
a
ç
n
a
d
u
s
m
r
© VERVERIDIS VASILIS/SHUTTERSTOCK
e
a
p tiv
c
e
p
70
RESSIGNIFICAÇÃO DA
EDUCAÇÃO FÍSICA ENFATIZA
MAIS A COOPERAÇÃO
DO QUE A COMPETIÇÃO
E TORNA-SE UMA
IMPORTANTE FERRAMENTA
DE INCLUSÃO SOCIAL
71
ARTIGO
RODRIGO HÜBNER
MENDES
é fundador do Instituto
Rodrigo Mendes,
organização que
desenvolve programas
de educação inclusiva.
É mestre em
Administração pela
Fundação Getulio
Vargas (Eaesp),
membro do Young
Global Leaders (Fórum
Econômico Mundial)
e da Ashoka
Empreendedores
Sociais.
Atualmente, estamos acompanhando o surgimento da educação física inclusiva, que promove a participação de todos estudantes em
uma mesma atividade, sob as mesmas regras,
que podem até mesmo ser concebidas de forma colaborativa entre professores e alunos.
Essa proposta implica o entendimento das
especificidades de cada aluno e a flexibilização
de recursos e regras das atividades. Isso significa tanto alterações nas práticas físicas existentes como a criação de novas atividades.1
Um exemplo é o projeto de miniatletismo desenvolvido na Escola Municipal Professora
Terezinha Souza, em Belém. Segundo o professor de Educação Física Itair Santos de Medeiros, no início “as atividades eram executadas de acordo com os métodos de competição
aplicados nos esportes institucionalizados, ou
seja, com a observação da técnica, o uso de
cronômetros, a fixação de distâncias etc.”.
n
1. O Instituto Rodrigo
Mendes realizou,
em 2012, o estudo
Educação física inclusiva
no Brasil, que mostra
um panorama dessa
área do conhecimento,
seu histórico e
aspectos desafiadores:
bit.ly/28ZqERW.
72
Em 2015, uma grande mudança ocorreu após
o Brasil, pelo menos 30 milhões
de pessoas têm algum tipo de de- a participação do professor Itair na segunda
ficiência. Essa parcela da popula- turma do projeto Portas Abertas para Inclusão
ção envolve crianças e adolescen- – Educação física inclusiva,2 do Instituto Rotes que enfrentam enormes
drigo Mendes em parceria com o Fundo das
barreiras para exercer a cidadania
Nações Unidas para a Infância (Unicef) e a
e construir sua autonomia com dignidade. O
Fundação Futebol Clube Barcelona. De maneira sucinta, a iniciativa busca formar educadoesporte, assim como a educação física, pode
atuar como uma ferramenta extraordinária
res de diversas regiões do Brasil para promover
para a mudança desse contexto, desde que
a inclusão escolar de meninas e meninos com
pensado de uma perspectiva inclusiva, ga- deficiência por meio de práticas esportivas
rantindo a participação de todos. Para isso, seguras e inclusivas. Nesse sentido, dialoga
precisa romper com o paradigma do alto de- com o ideal de garantir o “desfrute total e igual
de todos os direitos humanos e liberdades”,
sempenho, da competição e da formação de
atletas, concepção que tem gerado, sistema- previsto no artigo 1º da Convenção Internaticamente, a exclusão de muita gente, em
cional sobre os Direitos das Pessoas com Deespecial a pessoa com deficiência.
ficiência, publicada pela ONU em 2006.
Durante o curso, Itair e outros 450 educadores,
incluindo professores de diversas disciplinas
do Atendimento Educacional Especializado
(AEE)3 e gestores escolares, desenvolveram
projetos de forma integrada, unindo diferentes atores da comunidade escolar para encontrar e implementar propostas que beneficiaram
todos os estudantes.
Para isso, além de ajudarem a todos no desenvolvimento motor, cognitivo, afetivo e social,
elaboraram uma estratégia de implementação
da prática esportiva que trabalhou desde aspectos da comunicação, passando por reuniões
com a família para reforço do uso das mesmas
estratégias e adaptação de regras e materiais
para todos os alunos participantes.
Foi o que aconteceu em Belém, onde ocorreu
a flexibilização das atividades de educação
física e passou-se a valorizar o potencial dos
estudantes, especialmente daqueles atendidos
pelo AEE (16 crianças e adolescentes com deficiência intelectual e auditiva, paralisia cerebral, distúrbio de comportamento, hiperatividade, transtorno do espectro autista e
síndromes de Turner e Down). “Ao entendermos que as diferenças individuais são potenciais
favoráveis ao aprendizado, reformulamos os
exercícios, possibilitando a plena participação
dos estudantes a partir do respeito às condições
físicas, sensoriais, comportamentais e comunicacionais de cada um”, conta Itair.4
Os estudantes praticaram a atividade em duplas,
variando a forma de arremesso em pé, sentados e até com a calha para jogarem nas mesmas
condições. O tapete esticado na quadra evitava que as bolas rolassem demais. A professora
Ingrid ajeitava a bola branca (chamada de jack),
e os participantes se posicionavam em uma
das extremidades do tapete. O resultado foi a
vivência da bocha inclusiva por todos os alunos.
O miniatletismo passou a ter oito estações,
com salto em altura, triplo, sobre pneus, em
distância, com vara, corrida com obstáculos,
arremesso de dardo e peso e corrida de revezamento com bastão. Todas foram planejadas
dentro dos fundamentos do atletismo: correr,
saltar e lançar, mas com flexibilização nos
conceitos. “Atirar-se de um lugar para o outro”
mudou para “passar”. Em vez de “arremessar
esferas com força”, valia “abandonar em determinado ponto”. E a relação tempo/velocidade da corrida deu lugar à superação de limites individuais. Durante o circuito, não
havia o mais rápido ou correção dos colegas.
Todos podiam brincar do seu jeito.
Em Belo Horizonte, as professoras Keyla Murched,
Ingrid Lobo e Jane Silva, da Escola Municipal
Dom Orione, ao longo do curso de formação do
projeto Portas Abertas, abraçaram o desafio de
tornar a bocha adaptada, um esporte paralímpico, uma atividade inclusiva, que estimula os
alunos com e sem deficiência a jogar juntos.
Além de novas possibilidades de atuação e
ampliação de conhecimentos por diferentes
atores envolvidos no projeto Portas Abertas,
um dos resultados a destacar foi a maior interação entre os alunos. Por conviverem mais
intensamente com as diferenças humanas,
passaram a compreender que todos têm dificuldades e habilidades e podem participar
de tudo, desde que haja algumas flexibilizações
em determinadas atividades. Os educadores
notaram também um avanço no convívio
entre todos os estudantes, favorecendo valores como respeito às diferenças, colaboração
e empatia. A educação inclusiva, nessa perspectiva, é realmente uma grande oportunidade, e a educação física, como área do conhecimento, potencializa sua relevância
quando permite que todos brinquem, joguem
e aprendam juntos.
Pensando no contexto da realização dos megaeventos esportivos no Brasil (Copa do Mundo 2014 e Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio
2016), inspirações para o projeto Portas Abertas, acreditamos que o esporte pode ser uma
ferramenta de complemento à educação, com
potencial de aumentar o interesse dos estudantes pela escola e de melhorar seu desenvolvimento integral.
2. Os resultados,
relatórios e vídeos
estão disponíveis em
rm.org.br/portas-abertas.
Em 2015, cerca de
51 mil pessoas foram
impactadas pelo
Portas Abertas para
Inclusão – Educação
Física Inclusiva.
3. O AEE é um
serviço de atendimento
gratuito aos estudantes
com deficiência,
transtornos globais
do desenvolvimento
e altas habilidades/
superdotação,
para ser oferecido
de forma transversal
a todos os níveis,
etapas e modalidades,
preferencialmente na
rede regular de ensino.
Compreende um conjunto
de atividades, recursos
de acessibilidade
e pedagógicos,
organizados institucional
e continuamente,
prestados de forma
complementar à
formação de estudantes
com deficiência e
transtornos do espectro
autista, e suplementar à
formação de estudantes
com altas habilidades/
superdotação.
4. Itair Pedro Medeiros
foi vencedor do segundo
lugar no Prêmio
Paratodos de Inclusão
Escolar e escreveu um
artigo sobre a mudança
das atividades para se
tornarem mais inclusivas
e seus resultados
positivos, disponível
em bit.ly/29816Yo.
73
ARTIGO
por GUSTAVO ANDRADA BANDEIRA
s
o
ç
a
p
s
e de
© MARCHELLO74/SHUTTERSTOCK
o
r
p
o
v a
c s
e
õ
ç
74
OS CÂNTICOS E OS GRITOS DA
TORCIDA SERVEM PARA DAR
ÂNIMO AOS JOGADORES, MAS
TAMBÉM PARA DIMINUIR AS
VIRTUDES DOS ADVERSÁRIOS.
QUASE SEMPRE COM INSULTOS
75
ARTIGO
Infelizmente no Brasil, vivemos uma monocultura esportiva. Quase todas as narrativas
vinculadas à apreciação esportiva se traduzem
por intermédio do futebol masculino. Esse
esporte é o que possui a maior cobertura midiática, além de ser o único com calendário
cheio durante o ano todo, e ainda se diferencia
das demais práticas esportivas se pensamos
tanto no montante de dinheiro envolvido quanto na presença constante de público.
GUSTAVO ANDRADA
BANDEIRA
é doutorando do
programa de pósgraduação em Educação
da Universidade
Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS)
e técnico em assuntos
educacionais da
mesma instituição.
Se nos propusermos a pensar no que sejam
práticas torcedoras no Brasil, acabaremos, de
um modo ou outro, pensando sobre as práticas
dos torcedores de futebol.
O que significa ser torcedor no Brasil? O futebol brasileiro é vivido e narrado de forma local
com as principais rivalidades circunscritas a
star em um estádio, em um ginásio
pares opostos, como Grêmio e Internacional,
ou em uma quadra de quaisquer das
em Porto Alegre; Atlético e Cruzeiro, em Belo
Horizonte, ou Bahia e Vitória, em Salvador.
modalidades olímpicas que veremos
no Rio de Janeiro durante os Jogos, Mesmo no Rio de Janeiro ou em São Paulo, que
geralmente remete a emoções e sen- possuem um maior número dos chamados
sações narradas como espontâneas “clubes grandes”, os enfrentamentos também
ou livres das amarras da vida social. Por se
se dão de forma binária, a partir de um contratar de experiências bastante mais vincula- fronto agonístico.
das com experiências afetivas do que com o
que, no senso comum, chamamos de racional, Uma das primeiras aprendizagens que o torexiste uma expectativa de que essas ações
cedor de futebol faz é a vinculação a um clube
aconteceriam a partir de impulsos mais pró- ou time. Mais do que um apreciador ou especximos da natureza.
tador, o sujeito se faz torcedor, ele faz parte
de uma das equipes. O objetivo de um torcedor
Dentro dos estudos culturais em educação, vincula-se mais à vontade de vencer do que à
entretanto, trabalhamos com o entendimen- vontade de ver um espetáculo virtuoso.
to de que as mais diferentes experiências
sociais estão envolvidas por diferentes cur- Fazendo parte desse ritual disjuntivo, o torcedor
rículos que nos ensinam modos adequados
é convidado a participar do enfrentamento. Ao
de ser e estar no mundo. Em diálogo com a
contrário dos atacantes, que procuram usar a
antropologia das emoções, nos permitimos
velocidade e a capacidade de finalização, ou de
supor que existe aprendizagem para que de- um defensor, que buscará utilizar sua força e
capacidade de antecipação, aos torcedores soterminadas práticas nos emocionem e outras
bram os cânticos e os gritos. Essas manifestações
não. É preciso passar por diferentes processos
pedagógicos para se tornar um espectador e, servem para dar ânimo aos seus, mas também
especialmente, um torcedor.
para diminuir as virtudes dos adversários quase sempre com distintos insultos.
e
76
A partir dessa observação, como pensar gênero e heterossexismo nos ginásios, arenas e
estádios? Como dito acima, vivemos uma monocultura esportiva. Essa limitação de nossas
experimentações também aparece quando
olhamos para os modos de torcer. Há uma
lógica masculina nos enfrentamentos das mais
diferentes arquibancadas ou cadeiras. Se a
moeda que o torcedor possui para participar
ativamente dos enfrentamentos contra os adversários é o insulto, este precisa dialogar com
o que pode ser considerado ofensivo em determinado contexto cultural específico.
2011
Michael, do vôlei, é
vítima de homofobia
em semifinal da Superliga
2014
Goleiro Aranha é alvo
de ofensas racistas
em partida da Copa do Brasil
Não é possível usar qualquer xingamento em
qualquer contexto. Quando olhamos para as
torcidas de futebol em um contexto machista
e heterossexista, a ofensa quase sempre dialoga com o que historicamente se atribui como
Quando estamos em um contexto de enfreno contrário do homem heterossexual. Nesse
tamento, em que valores de uma masculinicaso, um jogador ruim chutará como uma
dade hegemônica são postos em cena, seriam
mulher, e o árbitro que marcar alguma infra- “esperados” comportamentos que diminuíssem
sujeitos identificados com outras práticas seção contra sua equipe será um “viado” (sic).
xuais. Termos como “viado” e “bicha” nunca
A naturalidade que esses gritos adquiriram, são citados quando se pretende discutir a vioespecialmente os heterossexistas, é tão gran- lência nos esportes.
de que mesmo os ofendidos entendem que isso
faz parte do esporte. Lembremos o caso Michael, E o racismo nesses contextos? Se diminuir a
então atleta do Vôlei Futuro, que foi vítima de
masculinidade do adversário faz parte do jogo
homofobia na semifinal da Superliga Mascu- de provocações socialmente aceito e esperalina de Vôlei, edição de 2011. Quando reclamou
do nesse contexto, parece que, felizmente, o
da ofensa, o atleta lembrou que estava acos- mesmo não ocorre mais em relação ao racistumado a escutar gritos dessa ordem quando
mo. O caso mais paradigmático nesse sentiditos pelo público de torcidas de futebol. Ele
do talvez envolva o goleiro Aranha, alvo de
afirmou ter feito a reclamação após perceber ofensas racistas na Arena do Grêmio, em 2014
que todo o ginásio gritava contra ele. Ou seja, [em partida válida pela Copa do Brasil, quana expectativa de que torcedores de futebol
do defendia o Santos].
(mesmo quando integrantes do público do
voleibol) gritem impropérios diminuindo as Algumas das explicações que justificariam a
masculinidades não heteronormativas apare- diferença de tratamento se dão na própria
lógica de construção dos enfrentamentos esce até mesmo entre os sujeitos ofendidos.
portivos no Brasil. Em nossa cultura, a disputa esportiva é lida, comumente, como um
enfrentamento entre homens. Nesse contexto,
seria “natural” que a sexualidade aparecesse
como um elemento relevante em disputa. O
enfrentamento se daria entre duas torcidas,
personificadas em dois sujeitos pretensamente heterossexuais que colocariam na representação do outro uma identidade que ele nega;
77
ARTIGO
S,
O
EM NDO
C
OR OCA
T
AS
L
O
D
O
M
AN OS C DILE A
U
R
Q
M
O
U
Ã
A
T
T
L
AB
ES A CU
U
AC
Q
SS
M
O
E
N
DE
© MARCHELLO74/SHUTTERSTOCK
de comportamento podemos prever dos torcedores brasileiros para os Jogos do Rio? Aqui
talvez caiba uma rápida distinção. Não teremos,
nesse contexto, os torcedores de clubes. Seria
possível acreditar que em alguns casos teremos
espectadores, e não torcedores. Tenho dúvidas
sobre o quanto o “time Brasil” conseguirá
mobilizar uma torcida eufórica.
no caso, a homossexualidade. No contexto
dessas disputas, todos os atores são possivelmente xingados. Ser mais homem ou mais
masculino do que o adversário é um desejo
que temos como participantes do enfrentamento esportivo.
Felizmente, essa situação não mais ocorre
quando pensamos nas construções étnicas.
Aparentemente, no esporte brasileiro, não
existe mais o desejo de pertencer a uma torcida mais branca que a do adversário. Nesse
caso, a ofensa proferida a um atleta negro
fugiria do campo da disputa esportiva. Além
disso, é necessário lembrar que não são todos
os envolvidos nos confrontos que poderão ser
ofendidos pela alcunha de “macaco”.
O próprio caso Aranha mostra o quanto certo
“zoológico linguístico” transita entre o permitido e o proibido nas manifestações torcedoras.
Como torcedor do Grêmio, consegui acompanhar os episódios que envolveram o goleiro,
78
Nos Jogos Pan-Americanos, em 2007, tivemos
uma experiência muito interessante quando
torcedores comemoravam a queda de estrangeiros durante a ginástica artística para aumentar a possibilidade de medalhas para os atletas
brasileiros. Por mais que não tenham existido
vaias ou ofensas heterossexistas, machistas ou
xenófobas, torcer contra não era uma experiência adequada naquele contexto. Como viveremos
situações como essa desta vez?
então no Santos, e os torcedores gremistas. No
polêmico jogo em que Aranha foi ofendido, o
termo “macaco” foi entendido como injurioso,
constituindo uma violência. Três semanas mais
tarde, o goleiro retornou à Arena do Grêmio
para outra competição [pelo Campeonato Brasileiro] e foi novamente ofendido. Entretanto,
dessa vez os termos referiam-se a suas capacidades técnicas, como o popular “frangueiro”,
ou a sua suposta falta de masculinidade, com
o recorrente “viado”. Nesse caso, o entendimento que se seguiu ao final da partida era que
o comportamento dos torcedores foi adequado:
pressionou o goleiro, mas sem ofendê-lo.
Se a hipótese de que é necessário um importante processo pedagógico para nos ensinar
formas adequadas de torcer e de nos manifestar nas diferentes praças esportivas, que tipo
Na memória mais recente, temos a Copa do
Mundo de 2014. É interessante que, ao menos
em Porto Alegre, a relação com os estrangeiros
foi muito distinta. Enquanto brasileiros “se
fantasiaram” de holandeses, australianos e
franceses (chegando a carregar a bandeira
desses países), a relação com nossos hermanos
argentinos não seguiu a mesma lógica. Para a
participação de nossos vizinhos, sobraram
muitas reclamações quanto à falta de modos,
à ocupação das ruas e, mesmo, à falta de consumo em nossos comércios locais.
Torcer exige um engajamento que talvez os
atletas brasileiros não consigam despertar nos
espectadores dos Jogos. Ao mesmo tempo,
quando torcemos, acabamos colocando em
questão dilemas de nossa cultura.
Se a transposição dos torcedores de clubes
fosse feita para as arenas e ginásios dos Jogos
Olímpicos, me arriscaria a apontar que o heterossexismo e o machismo produziriam uma
homofobia e misoginia intensas. No Brasil de
2016, a responsabilidade pela violência contra
mulheres e homossexuais ainda é colocada nas
vítimas. Em nosso país, os direitos humanos
ainda não estão estabelecidos como uma política de Estado, sendo atacados por grupos
conservadores, defensores da tortura, que
destilam discursos de ódio. Isso autoriza aqueles que nunca experimentaram essas violências
a praticar diferentes ofensas sem perceber
nisso seu conteúdo reprovável.
Em tempos de informação rápida, em que vemos notícias serem trocadas por opiniões simplistas e com diferentes manifestações preconceituosas, seria de imaginar que a relação com
o estrangeiro poderá variar de acordo com a
região do mundo de onde esses atletas ou visitantes vierem. Em tempos em que refugiados
das guerras e misérias são tratados a pontapés
em diferentes pontos do globo, espero que esse
intervalo festivo dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos seja um momento especial de congraçamento, e não de reforço aos discursos
preconceituosos. E que momentos excepcionais
como este nos permitam refletir sobre nosso
cotidiano nas praças esportivas e nos demais
espaços públicos de nosso país.
79
CRÔNICA
a
a
d
i
v m
o
t
e en
m
i
v
o
m
o
esporte se apresentou na minha vida quando eu tinha 12 anos.
Porque sempre fui meio comprida, me convidaram para
treinar basquete com o time do colégio. A princípio fui porque tinha colegas que jogavam e pareceu divertido. Logo
levei a sério, ralei pra ser titular e, nos quatro anos seguintes,
só pensei naquilo. Quando comecei a arranhar meu violão,
era pra animar o fundão dos ônibus que nos levavam para as competições.
O esporte coletivo me ensinou muitas coisas que trago comigo até hoje,
como um ensinamento sagrado. A importância de passar a bola, não ser
fominha. Entender que um bom passe faz parte do próximo ponto tanto quanto as mãos que levam a bola até a cesta. Não ser violenta nas
divididas, ser punida se o for. Comemorar, incentivar, mesmo do banco. Consolar e ser consolada. Ceder, olhar pra frente, não desistir. Saber
que nem a vitória nem a derrota são eternas, tudo depende do que se faz
durante a partida e de como nos preparamos para ela.
ZÉLIA DUNCAN
é cantora e
compositora,
com 12 CDs autorais,
colunista de
O Globo e corredora
80
Amava a bola, a quadra, o uniforme e, sobretudo, sonhava em jogar na
seleção. Meu ídolo era Magic Paula. Quando já profissional, soube que
ela estava na plateia, tive que me sentar, tomar um gole d’água, me
preparar para enterrar a bola e impressionar aquela que foi a inspiração
da atleta que sonhei ser, até que me apareceu um microfone e essa
paixão avassaladora me levou das quadras. Melhor pro basquete eu sei
que foi! Mas eu até que dava meus pulinhos bem dados na quadra. Hoje
Paula, ainda um ídolo, é também amiga querida e damos boas risadas.
Cantar me consumiu e deixei o esporte por muitos anos. Não sem pesar, mas por necessidade. Fazia algo aqui e ali, mas nada realmente
consistente, em termos de exercício físico. Até que um belo dia, an-
dando numa esteira, resolvi correr nos últimos três minutos. Aquilo
evoluiu para uma aulinha de corrida na própria academia. Depois,
influenciada por duas amigas, comecei a correr na rua.
Porém, correr já foi um sacrifício. Mais que isso, eu olhava para um
corredor de rua com pena, achava que estava diante de um extraterrestre, carente de tudo, fazendo aquilo por desespero. Mesmo assim, aproveitando o privilégio das paisagens cariocas, comecei. Me inscrevi numa
corrida de 5 k. Completei em 28 minutos. Todos acharam bem bom, a
medalha piscou pra mim. Amei o evento, as pessoas com uma disposição
bonita. Então, treinemos um pouco mais: 10 k. Por que não sonhar com
uma meia maratona? Isso foi em 2009. Jamais vou esquecer quando, já
munida de um relógio GPS, alcancei os 16 k. Correr se tornou uma arma
secreta, um brilho interno e particular, um alento, um vício bom. Foi
em Nova York. A saída era no Central Park, eu nem acreditava que
tinha ido tão longe com aquilo tudo. As pessoas levam cartazes para
incentivar os corredores. Crianças, mães, pais, namorados,
amigos. Há os que vão pelos desconhecidos mesmo, só pra
dizer: “Vamos lá, você pode!”. Aqui no Rio o povo não liga
muito, espera a gente passar pra atravessar a rua, mas há
sempre uma alma boa que não quer que você desista.
Qualquer estímulo é bem-vindo, podem ter certeza!
O esporte salva vidas. Devia ser uma obsessão para
qualquer governo estimular e
promover a atividade física.
© CARLO GIOVANI
por ZÉLIA DUNCAN
Hoje, cinco maratonas depois, minha vida mudou bastante. Duas
no Rio, a primeira em Chicago,
depois Berlim e, em 2015, Tóquio.
Esta última, minha melhor e mais
deliciosa, terminei em 4h19. Oito
meias-maratonas, uma de 25 k em
São Paulo e outras menores.
Escolha algo que te afaste de móveis e
eletrodomésticos, tipo sofá e geladeira.
Escolha o movimento, escolha a saúde
pra enfrentar os dias!
81
82
Direito fundamental
Para além do esporte
Urbanismo estético
Legado simbólico
A volta das calçadas
Somos Todos Olímpicos
© SPORTPOINT/SHUTTERSTOCK
84 90
98
110
112
106
83
ARTIGO
por MARLOVA JOVCHELOVITCH NOLETO e FABIO EON
© COREPICS VOF/SHUTTERSTOCK
o
t
i
e
r
i
D da al
t
n
n
u
f me
84
OS MEGAEVENTOS PODEM OFUSCAR OUTRAS DIMENSÕES
SOCIAIS DO ESPORTE. TIRANDO O FOCO DA COMPETIÇÃO
E DO ALTO RENDIMENTO, A ATIVIDADE FÍSICA PODE
SER UM INSTRUMENTO DE EDUCAÇÃO E PARTICIPAÇÃO
85
ARTIGO
ARTIGO
A inatividade física contribui para
MARLOVA
JOVCHELOVITCH
NOLETO
3,2 milhões
de mortes prematuras por ano,
assim como é responsável por
da mortalidade
mundial em
decorrência de enfermidades
é diretora da
Área Programática
da Organização
das Nações Unidas
para a Educação,
a Ciência e a Cultura
(Unesco) no Brasil.
6%
Parafraseando uma reflexão de um professor
do programa Escola Aberta – que, criado pela
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), se tornou política pública federal, de abertura das
escolas nos finais de semana para atividades
esportivas, culturais e sociais –, “quando você
dá uma bola a um menino, você incute nele
um sentido e uma direção”. De fato, a prática esportiva fornece a qualquer criança um
primeiro contato com a vida em sociedade,
com um conjunto de regras, objetivos e senso de equipe. Em uma quadra, em princípio,
não há distinções, e todos estão sujeitos – em
pé de igualdade – aos regulamentos do esporte praticado.
FABIO EON
é coordenador
adjunto de Ciências
Humanas e Sociais
da Unesco no Brasil.
A
Olimpíada e a Paralimpíada do Rio
de Janeiro brindaram o Brasil com
a oportunidade ímpar de sediar o
maior encontro dedicado ao esporte no mundo. O frenesi em
torno das chances advindas de ambos os eventos – em particular aquelas relacionadas ao
potencial de atração de investimento, desenvolvimento e prestígio internacional para o país
– tem pontuado o imaginário dos brasileiros.
1. TUBINO, M. J. G.
Dimensões sociais
do esporte. São Paulo:
Cortez/Autores
Associados, 1992.
86
O esporte é mecanismo que permite a autodescoberta e o aumento da autoconfiança e da
autoestima, mas é também um meio poderoso
de mobilização, ao reunir pessoas de diferentes crenças, culturas ou origens étnico-raciais.
As competições esportivas internacionais, além
de oferecerem entretenimento, reforçam a
construção da identidade cultural e do sentimento de pertencimento dos povos.
Contudo, o gigantismo da organização de megaeventos como os Jogos Olímpicos, somado
aos consideráveis investimentos financeiros
envolvidos, por vezes tende a ofuscar outras
dimensões sociais relacionadas ao esporte, apontadas pelo professor Manoel Tubino (1939-2008),
em especial as ideias de “esporte de educação”
e “esporte de participação”.1 O chamado “esporte de alto rendimento”, como o próprio
nome diz, é por natureza extremamente seletivo e, dadas as dinâmicas de transmissão e
cobertura da mídia esportiva, muitas vezes se
torna um simples item de entretenimento e
consumo de massas, sem que se realize uma
reflexão apropriada sobre as trajetórias pessoais,
os sacrifícios ou as conquistas daqueles homens
e mulheres que conseguiram participar do seleto grupo de esportistas de alto desempenho.
Portanto, há que se rever a proporcionalidade
e razoabilidade na atenção dada pelas políticas
públicas às três tradicionais dimensões do esporte: alto rendimento, participação e educação.
Sem desmerecer a importância dos megaeventos esportivos, os ministros do Esporte dos 195
Estados membros da Unesco, reunidos na V
Conferência Internacional de Ministros e Altos
Funcionários Responsáveis pela Educação Física e o Esporte (Mineps V), realizada em Berlim em maio de 2013, já reconheceram o efeito
nefasto do chamado overbidding, que ocorre
quando os países comprometem recursos além
dos suficientes para sediar eventos esportivos
internacionais.
Na Declaração de Berlim, carta firmada pelas
autoridades esportivas presentes no encontro,
é claro o compromisso de “tratar os grandes
eventos esportivos como parte do planejamento nacional da educação física e do esporte, assegurando que outros programas não sofram
desvios orçamentários em decorrência da realização desses grandes eventos ou do esporte de
alto rendimento”. O mesmo documento apresenta recomendações claras e incisivas sobre os
limites máximos de custo para as candidaturas,
critérios para a escolha das sedes de grandes
eventos esportivos, preceitos de sustentabilidade e apelos para que tais investimentos não
acarretem efeitos negativos para o desenvolvimento econômico do país e das cidades-sede.
O fato é que grande parte da discussão sobre o
eventual “legado” dos Jogos Olímpicos para o
Brasil, infelizmente, tem menosprezado o uso
do esporte como instrumento de educação ou
de participação. Apesar dos reconhecidos investimentos em centros esportivos e de treinamento de ponta, segundo o Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (Inep), pouco mais de 30% das escolas
brasileiras contam com quadras de esporte ou
outros bens ou equipamentos esportivos.
Segundo uma pesquisa recente da Unesco,2 97%
dos países declararam que a educação física é
parte obrigatória do currículo escolar. Apesar
de essa ser, à primeira vista, uma declaração
animadora, existe ainda um enorme hiato entre o discurso e a prática no que diz respeito a
políticas de apoio à educação física nas escolas.
Dos países que responderam à enquete, 54%
reconhecem que a educação física tem um
“status considerado inferior” comparado a outras matérias “tradicionais” do currículo, e
apenas 53% das escolas primárias desses mesmos países contam com professores de educação física adequadamente treinados.
2. UNESCO, Toward
universal learning –
recommendations from
the learning metrics
task Force, 2013.
Disponível em
bit.ly/1odrmiT.
O mesmo estudo da Unesco aponta efeitos
alarmantes se nada for feito quanto à valorização do esporte e da atividade física entre os
jovens. A inatividade física contribui para 3,2
milhões de mortes prematuras por ano, assim
como é responsável por 6% da mortalidade
mundial em decorrência de enfermidades
relacionadas ao sedentarismo, como doenças
coronarianas, diabetes e hipertensão. Em outras palavras, a educação física e o esporte,
ministrados por sistemas formais ou não formais de ensino, levam a estilos de vida mais
sustentáveis e mais saudáveis e, consequentemente, a uma redução na sobrecarga e na
demanda por serviços públicos de saúde.
87
© MICROGEN/SHUTTERSTOCK
ARTIGO
Assim, existem inúmeras definições ou maneiras de entender o
esporte. Além de uma questão de
saúde pública, o esporte pode ser,
por exemplo, um importante fator
de empoderamento para mulheres
e meninas e, também, de superação de estereótipos de gênero, uma
manifestação cultural – veja-se a
capoeira, reconhecida pela Unesco como Patrimônio Imaterial da
Humanidade – ou, ainda, um mecanismo para a construção e transmissão de valores, como a promoção do jogo
limpo (fair play), do companheirismo e do
espírito de equipe.
Independentemente de que definição se adota para o esporte, a postura oficial da Unesco
é considerá-lo, antes de mais nada, como um
“direito humano por excelência”.
1978
Unesco cria a Carta
Internacional
da Educação Física e do Esporte
88
Tal visão ganhou força a partir da década de
1970, quando o mundo ainda se encontrava
polarizado pela Guerra Fria e as Olimpíadas
eram um grande palco para manifestações de
poder e grandeza dos dois blocos. A partir
daquele momento, a comunidade internacional passou a cobrar da Unesco a construção
de um consenso internacional que reconhecesse o enorme potencial do esporte para a paz
e para o desenvolvimento internacional. Como
um importante divisor de águas, surgiu então,
em 1978, a Carta Internacional da Educação
Física e do Esporte, que já em seu Artigo 1º,
reconhecia a “prática da educação física, da
atividade física e do esporte como um direito
fundamental de todos”.
Passados quase 40 anos, atletas e formuladores de políticas públicas para o esporte apontaram a compreensível necessidade de realizar uma releitura e uma atualização da Carta
de 1978. Assim, em novembro de 2015, a Unesco promulgaria sua nova versão, agora intitulada Carta Internacional da Educação Física, da Atividade Física e do Esporte. Nesse que
é, sem dúvida, o principal posicionamento da
ONU sobre a importância do esporte, foram
agregados novos conceitos e demandas que,
talvez, não fossem tão visíveis ou presentes
nos anos 1970. Dentre esses conceitos, destacam-se, por exemplo, a própria ideia de “atividade física”, a importância da igualdade de
gênero, o acesso ao esporte para pessoas com
deficiência e a busca incessante pela integridade no esporte – aqui, não limitada apenas
à luta contra a dopagem, mas englobando o
combate à combinação de resultados (match
fixing), às apostas ilegais e à corrupção na
gestão de recursos ligados ao esporte.
O esporte é o que fazemos dele e é – teoricamente – um elemento neutro. Ele será violento se assim o praticarmos. Será segregador ou
excludente se assim o quisermos. Será supérfluo ou desnecessário se assim o virmos.
Portanto, há que se pensar no esporte em uma
escala mais ampla e evitar um foco exclusivo
no esporte de competição. Assim, torçamos
para que a realização dos Jogos Olímpicos e
Paralímpicos de 2016 não se converta em uma
oportunidade perdida para o país e saibamos
pensar e cobrar de nossos governantes políticas públicas e maiores investimentos nessa
área. Que esporte e que legado queremos para
o Brasil após as Olimpíadas e as Paralimpíadas
de 2016? Essa é a pergunta que nós, como
cidadãos brasileiros, devemos fazer.
R
SA
N
E
E P E EM
S
IS
UE ORT
A
Q
A M UM
SP
HÁ
L
E
NO ESCA ITAR O
A
EV
SIV
M
E
U
U
L
A
PL EXC RTE
M
A
O
CO
PO
FO O ES ETIÇÃ
N
MP
O
C
DE
É preciso resgatar, nas discussões sobre os programas e as políticas de esporte, os próprios
elementos educacionais, lúdicos e prazerosos
relacionados à atividade física. A Unesco, em
sua Carta da Educação Física, da Atividade
Física e do Esporte, reconhece que esses elementos podem trazer diversos benefícios individuais e sociais, como a saúde, o desenvolvimento social e econômico, o empoderamento
dos jovens, a reconciliação e a paz. Por meio do
documento, a Unesco ressalta ainda que a oferta da educação física, da atividade física e do
esporte de qualidade é essencial para a plena
realização do seu potencial na promoção de
diversos valores, entre eles a igualdade, a integridade, a excelência, o compromisso, a coragem, o trabalho em equipe, o respeito pelas
regras e pelas leis, a lealdade, o respeito por si
próprio e pelos demais participantes, o espírito de comunidade e de solidariedade, bem como
a diversão e a alegria.
Que possamos fazer dessa oportunidade para
o Brasil uma maneira de ver o esporte como
direito e como instrumento de inclusão e de
transformação social.
89
MOSAICO
Atletas
m
é
l o
a
r
pa
e
t
r
o
p
s
e
2
QUAL O PESO DE SER UM
ESPORTISTA NESSA TOMADA
DE DECISÃO?
3
COMO O ESPORTE PODE
FUNCIONAR COMO FERRAMENTA
DE INCLUSÃO SOCIAL?
por PAULO JEBAILI
FLÁVIO CANTO
90
ANA MOSER
© DIVULGAÇÃO/SÉRGIO MELO
© DIVULGAÇÃO
LEANDRO RIBELA
FERNANDA KELLER
© DIVULGAÇÃO
1
QUE ASPECTOS VOCÊ LEVOU EM
CONSIDERAÇÃO PARA SE TORNAR
UM EMPREENDEDOR SOCIAL?
RAÍ
© GLOBO/JOÃO COTTA
CRAQUES EM DIFERENTES
MODALIDADES, ELES RESOLVERAM
AMPLIAR SUA ATUAÇÃO E INVESTIR
EM PROJETOS SOCIAIS. SEIS ATLETAS
RESPONDEM A TRÊS PERGUNTAS
© DIVULGAÇÃO/JAIRO GOLDFLUS
d
© DIVULGAÇÃO/LUIZ DORO
a
PAULA
91 91
MOSAICO
1
Sempre acompanhei de perto os movimentos sociais. Eu
joguei cinco anos na França e,
quando estava decidido a voltar
ao Brasil, em 1996, 1997, estava
preparando o meu pós-carreira.
E, a cada vinda ao Brasil, via movimentos da sociedade civil se
organizando e isso foi me contagiando. Eu tinha uma vivência
limitada e queria começar a minha
atuação na área social com um
projeto de ponta. Considerava e
ainda considero que uma das
maiores injustiças do país está nas
diferenças de oportunidades.
2
Em 20 anos no esporte, isso
me impactou de diferentes
formas. O esportista é acostumado a desafios. E eu tinha desafios
novos, não tinha experiência na
área, mas o esporte traz muito essa
coragem de lidar com os desafios.
Outro aspecto é que, por ser de
um esporte coletivo, sabia contar
com outras pessoas. A liderança
no esporte me encorajou também
a liderar um grupo e a trazer pessoas com o conhecimento que eu
não tinha. Em termos de repercussão, pelo fato de eu ser uma
figura reconhecida e respeitada,
havia um potencial que eu não
poderia desperdiçar e resolvi canalizar isso para uma causa na qual
eu acredito.
3
O esporte sempre foi subestimado. Não só no Brasil, mas
aqui é um desperdício muito maior,
porque o país tem uma vocação esportiva e o esporte sempre foi relegado a uma coisa quase supérflua e
elitizada, tirando o futebol ou outro
esporte de fácil acesso. Existem
provas de que a atividade esportiva,
de maneira geral, pode impactar a
saúde, a segurança e a educação.
Eu acho que está crescendo essa
conscientização, mas ainda falta
uma política. Faço parte de uma
O MUNDO RODA
associação chamada Atletas pelo
Brasil, e uma de suas grandes causas é participar da discussão de um
sistema nacional de esportes. O
esporte, além de tudo, é uma atividade barata pelo impacto que pode
ter. E, quando falo em sistema de
esporte, significa debater qual o
papel da cidade, qual o papel do
estado, qual o papel da Federação,
das escolas, dos clubes no esporte.
Isso ainda não está bem definido.
Há programas esportivos parecidos
em todas as esferas: federal, estadual
e municipal. Mas são programas que
não se conversam, então há um
desperdício ou sobreposição. É uma
questão de repensar para onde vão
os recursos do esporte, qual o orçamento e quem vai fazer o quê.
Numa visão mais macro, é uma
questão de inteligência e de vontade política para ter o esporte com
representatividade, peso e impacto muito maiores nessas questões
que produzem benefício social.
RAÍ SOUZA VIEIRA DE OLIVEIRA
EX-JOGADOR DE FUTEBOL
– Campeão na Copa do Mundo
de 1994
– Medalha de ouro nos Jogos PanAmericanos de Indianápolis (1987)
– Campeão mundial interclubes
pelo São Paulo (1992)
FUNDAÇÃO GOL DE LETRA
Em parceria com o ex-jogador
© DIVULGAÇÃO
Leonardo, a entidade surge em
92
1998, com o objetivo de propiciar
acesso à educação para crianças,
adolescentes e jovens em
situação de vulnerabilidade social.
LEANDRO RIBELA
ESQUIADOR DE CROSS-COUNTRY
– Disputou duas Olimpíadas
de Inverno: Vancouver (2010)
e Socchi (2014)
– Hexacampeão brasileiro de ski
cross-country (de 2007 a 2012)
SKI NA RUA
O projeto social teve origem em
2012 e busca promover a inclusão
social pelo esporte, apresentando
o esqui cross-country por meio do
© DIVULGAÇÃO
O GOLAÇO DE RAÍ
1
A questão da desigualdade
social sempre me incomodou
e me intrigou, no sentido de tentar conhecer os fatores culturais,
econômicos e sociais que levaram
o Brasil a ter esse quadro. Sempre
utilizei o espaço da USP [Universidade de São Paulo] para os meus
treinamentos. Via milhares de
pessoas usando o espaço para praticar esportes e as crianças e adolescentes da comunidade vizinha
guardando carro, entregando água.
Essa situação sempre me incomodou e despertou o desejo de mudá-la. Surgiu o projeto social Ski
na Rua. A proposta despertou
bastante interesse e começaram a
ocorrer transformações num curto espaço de tempo: a questão da
autoestima, a maneira como encaravam as pessoas e o espaço que
utilizavam. Vimos que era preciso
ir além da parte esportiva e trabalhar efetivamente com a parte
educacional pelo esporte.
rollerski (equipamento com rodinhas)
e dando oportunidade a crianças
e adolescentes de baixa renda.
2
Nesses dois ciclos em que
competi nos Jogos Olímpicos de Inverno (2010 e 2014), tive
oportunidade de conhecer mais de
20 países, treinar fora, vivenciar
várias realidades, e isso proporcionou uma aquisição de conhecimento grande. E sempre tive o desejo
de retribuir isso de alguma forma.
O atleta precisa se desenvolver e
trabalhar com pessoas que o ajudam
na conquista de um objetivo. Nem
sempre é possível retribuir para a
pessoa que nos ajudou, mas, se a
gente propuser algo que transforme
a vida de alguém e essa pessoa fizer
o mesmo pelo próximo, geraremos
uma corrente infinita. Outro ponto é que o fato de ser esportista e
contar com a admiração das pessoas
abriu muitas portas. Conheço o
meio do esqui, sei onde estão as
oportunidades, quem são os contatos, potenciais patrocinadores,
doadores, e resolvi criar algo que
tivesse um impacto social.
3
Os esportistas têm incorporado os valores do olimpismo, como amizade, igualdade,
solidariedade e fair play. Eles são
muito presentes no nosso dia a dia
e podem ser extrapolados para
qualquer outra realidade: escola,
trabalho, família. São valores que
podem ser trabalhados e abordados
dentro do esporte, de uma maneira muito mais acessível, principalmente quando se fala com crianças
e adolescentes. Falar de valores
numa sala às vezes pode ficar maçante ou idealista demais, enquanto com atividades é possível propor
uma reflexão sobre isso de uma
forma muito mais simples. Esse é
um dos pontos de como se pode
trabalhar por intermédio do esporte a questão da educação com valores, extrapolando para o dia a dia,
de modo a atingir muitas outras
pessoas – família, colegas, comunidade –, e não apenas aquelas com
quem trabalhamos diretamente.
93
MOSAICO
1
Eu comecei a fazer ação social
pensando muito mais em
compartilhar o meu aprendizado
como atleta com crianças e jovens,
principalmente de comunidades
menos favorecidas, que não têm
acesso ao esporte. Nunca pensei
“vou ser uma empreendedora social”. Sou mais uma sonhadora
social, uma pessoa que conseguiu
tudo por intermédio do esporte,
uma atleta que quis compartilhar
a experiência e a atitude positiva.
A capacidade que o esporte tem de
transformar é enorme, então este
era o meu objetivo: atingir, transformar e deixar um legado.
2
Perseverar, nunca desistir
– isso vem muito da atitude
positiva que o atleta tem. Eu vejo
um monte de coisa feia no meu
país, mas quero acreditar que é
possível mudar. Não vou conseguir
mudar a vida de todo mundo, mas
as pessoas que eu conseguir atingir,
se elas forem beneficiadas, para
mim já é uma vitória enorme. Às
vezes as pessoas falam: “Ah, mas
você não vai conseguir atingir o
mundo inteiro”. Tudo bem, mas eu
faço a minha parte. Eu acredito em
fazer o que eu consigo e o máximo
possível. E tento fazer o impossível
virar possível. Vou acreditando,
lutando o tempo inteiro. Meu sonho
era ver o Brasil sem criança na rua,
sem criança assaltando, sem criança abandonada. Que elas estivessem
estudando, aprendendo línguas,
fazendo esporte, arte. O país só vai
estar no topo quando houver oportunidade igual para todos, e isso só
vem com educação.
3
O esporte faz com que você
sonhe. No meu esporte, por
exemplo, eu acordo pensando no
que tenho de correr, pedalar, nadar,
que eu tenho um objetivo. E a criança precisa aprender que ela tem um
objetivo na vida, que é preciso tra-
GOLPE NA DESIGUALDADE
balhar muito para atingi-lo, que
nada cai do céu. Que é preciso ter
disciplina, que tudo tem ônus, embora o esporte tenha muito bônus.
Que ela tem de lidar com a superação; quando dá tudo errado, tem
de fazer tudo de novo até conseguir
acertar. E é muito parecido com o
que acontece na vida. Aprender
que perder não é o fim do mundo.
Tem a questão da regra, do respeito ao próximo, de saber que aquele que compete com você não é seu
inimigo, mas uma pessoa que vai
te estimular a buscar o seu melhor.
É só um adversário momentâneo
e que você ganha sendo melhor do
que você é. Quando a criança tem
acesso ao esporte, ela respeita muito mais a regra, ela entende o processo. Quando ela não tem, não
entende os limites, fica desgovernada, acha que vale tudo. O esporte tem essa capacidade de apontar
um rumo certo, uma visão de respeito ao próximo.
FERNANDA KELLER NUNES
TRIATLETA
– Recordista de participação no
Campeonato Mundial de Ironman
no Havaí: 24 vezes
– Seis vezes terceira colocada na
prova, que consiste em 180 km
de ciclismo, 3,8 km de natação
e uma maratona (42 km)
INSTITUTO FERNANDA KELLER
© DIVULGAÇÃO
A sociedade civil sem fins lucrativos
94
foi criada em 1998 com finalidades
educacionais, sociais e desportivas
destinadas a crianças e adolescentes
da rede pública de ensino.
FLÁVIO VIANNA DE ULHÔA
CANTO EX-JUDOCA
– Medalha de prata na Olimpíada
de Atenas (2004). Disputou ainda
os Jogos de Atlanta (1996)
– Medalhista em três Pan-Americanos:
bronze em Mar del Plata (1995),
prata em Winnipeg (1999) e
ouro em Santo Domingo (2003)
INSTITUTO REAÇÃO
A ONG promove o desenvolvimento
humano e a inclusão social por
© RAFAEL MOSCA
TRABALHO DE FÔLEGO
1
A primeira motivação veio do
Rio de Janeiro, cidade em que
cresci. Nasci na Inglaterra, minha
família é toda brasileira, vim para
cá, depois fui para a Califórnia, aí
voltei para o Brasil. Com 19 anos,
fui para a seleção. Essa minha vida
de viajante me ajudou a ter um olhar
com um distanciamento mais crítico do Rio de Janeiro. Foi um componente importante para essa minha caminhada no terceiro setor.
E com 18, 19 anos, comecei a fazer
com amigos ações pontuais de filantropia. Aos poucos, o que começou como assistencialismo foi chamando para fazer algo maior. A
história do Instituto Reação nasceu
em agosto de 2000, eu tinha ido
para a Olimpíada de Atlanta (1996),
mas perdi a seletiva para a de 2000,
em Sydney. Aquilo, para mim, foi
muito ruim, mas, ao mesmo tempo,
libertador. Acho que percebi que o
mundo não acabava e que eu tinha
que iniciar outros sonhos.
meio do esporte e da educação,
fomentando o judô desde a iniciação
esportiva até o alto rendimento.
2
Esse olhar eu carrego desde
garoto. Sempre olhei para
uma favela, e a primeira coisa que
vinha na minha cabeça era potencial. O que mais me chateia é ver
essa desigualdade alargada que a
gente tem. Não sei até que ponto o
esporte contribuiu para esse olhar,
mas certamente o esporte foi escolhido porque é o que eu acredito.
A gente trabalha com luta, então
ela atrai muito a garotada, até os
jovens em maior situação de risco,
que tendem a ter um lado que pode
ser levado para a violência, vão
descobrindo que no judô a última
coisa que existe é a relação com a
violência. Então, o judô foi um aliado incrível na minha transformação. Na minha e na do meu irmão
Geraldo, também judoca. Meu
técnico Geraldo [Bernardes] foi meu
segundo pai, apoiou minha educação a vida inteira. Meus pais
também sabiam disso, hoje eu sei
disso e quis compartilhar um pou-
co do que eu aprendi com o esporte. Agora, na Olimpíada do Rio,
temos dois atletas do Reação competindo [Rafaela Silva e Victor Penalber] e dois congoleses que foram
convocados para essa primeira
delegação de refugiados [Popole
Misenga e Yolande Mabika].
3
Quando comecei a dar aula
na Rocinha, notei uma
transformação muito rápida das
crianças, na melhora na escola,
comportamento em casa, relação
interpessoal. E fui percebendo que
o esporte é uma ferramenta poderosa. Teve um acontecimento que
foi duro, mas ao mesmo tempo me
fez perceber ainda mais essa força.
Um dos nossos alunos foi assassinado e, no enterro, um outro aluno colocou uma camisa do Reação
em cima do corpo. Ali eu vi que
tinha encontrado aquilo que eu
sabia que faltava para muitos: pertencimento, autoestima.
95
MOSAICO
1
Empreender era o único caminho para construir a visão
que eu tinha, no caso, com relação
ao ensino do esporte e o esporte
como fator de desenvolvimento
humano e comunitário/social.
Isso porque era um tipo de visão
e atuação que não existia, precisava ser criada em termos de tecnologia e formas de financiamento. Começou como uma coisa a
mais que fazia, pouco antes de
encerrar a carreira de atleta e continuou após a aposentadoria. Aos
poucos, foi se realizando e crescendo, o que foi demandando o
meu comando de forma mais profissional. Eu fui então me qualificando como empreendedora,
fazendo parte de redes etc.
2
© IEE/CÉLIA SANTOS
A vivência no esporte me
deu esta visão como forma
de contribuir para o desenvolvi-
mento das pessoas e do país. Por
vestir a camisa da seleção, parece
que a gente carrega esse patriotismo, não sei, mas comigo foi
assim. E o esporte me deu a coragem, confiança e várias habilidades pessoais e de gestão, que são
a base da trajetória de 15 anos do
Instituto Esporte & Educação.
Montei um time de especialistas e
comando a visão coletiva, a missão e os objetivos daquele time,
muito do que aprendi no esporte.
3
O esporte é holístico, é um
ambiente em que a pessoa
se experimenta e aprende com o
corpo, o pensamento e o sentimento. Existe a questão do desafio e superação, de pequenas coisas, como uma nova habilidade
técnica, tática ou condicionamento físico. Existe também o ambiente de convivência, de troca,
MAGIA DA TRANSFORMAÇÃO
de competição com regras iguais,
que vai dando uma forma ética
para as pessoas se relacionarem.
Também é uma forma de expressão e representatividade de grupos
e comunidades: a maneira de jogar,
a música que é cantada, os intercâmbios dos quais participa, tudo
isso fala do jeito daquele grupo. E
nesse ponto é importante levar em
consideração os princípios e estratégias que o esporte apresenta.
Porque, para o esporte funcionar
de acordo com os resultados acima,
ele precisa desenvolver estratégias
para isso. Para não deixar meninas
de fora, ou trabalhar somente com
os mais fortes e habilidosos. Respeitando essa forma, o esporte
fortalece as pessoas e os grupos,
cria esse ambiente que vai preparando para a vida e criando vínculos sociais e fortalecendo comunidades.
ANA BEATRIZ MOSER
EX-JOGADORA DE VÔLEI
– Medalha de bronze na Olimpíada
de Atlanta (1996)
– Disputou também os Jogos de Seul
(1988) e Barcelona (1992)
– Tricampeã do Grand Prix de Vôlei:
1994,1996 e 1998
INSTITUTO ESPORTE
& EDUCAÇÃO
Criado em 2001, atua no
atendimento direto a crianças
e adolescentes em atividades
esportivas e socioeducativas,
na formação de professores e
estagiários e no desenvolvimento de
metodologia de esporte educacional.
96
1
O grande aprendizado absorvido durante minha vida
como atleta: como podemos ser
educados para a vida praticando
esporte de forma lúdica. Muitos
daqueles com quem convivi não
chegaram a viver como profissionais do esporte, mas tenho a certeza de que todos aprenderam valores para a vida.
2
As ações sociais eram frequentes na minha família,
por isso acredito que, de alguma
forma, eu iria seguir o exemplo dos
meus pais.
MARIA PAULA GONÇALVES DA SILVA
EX-JOGADORA DE BASQUETE
3
– Medalha de prata na Olimpíada de Atlanta
O esporte é um fenômeno
cultural e uma linguagem
de expressão humana, mas, para
promover inclusão social de fato,
precisa estar atrelado intencionalmente a princípios e valores éticos
e conduzido por pessoas bem treinadas que levem essa visão da inclusão para o desenvolvimento
humano com metodologia e muita alma à população vulnerável.
(1996)
– Campeã mundial de basquete na Austrália (1994)
– Campeã pan-americana em Havana (1991)
INSTITUTO PASSE DE MÁGICA
Fundado em 2004, tem como objetivo desenvolver
atividades de esporte educacional e atividades
complementares para crianças e adolescentes
em situação de vulnerabilidade social.
Salto no tempo e no espaço
Esporte Espetacular visita projeto social na Austrália que nasceu da admiração de uma inglesa por atleta olímpico brasileiro
O ano era 1956. Adhemar Ferreira
da Silva se preparava para a final do
salto triplo na Olimpíada de Melbourne, na Austrália. Rosemary
Mula, 10 anos, havia acabado de se
mudar da Inglaterra para a Oceania.
Fascinada, assistia pela primeira vez
a uma prova olímpica. “Eu estava
com um grupo de crianças de colégio bem perto da pista. Ele foi o
único que veio falar com a gente. A
partir daí, torcemos para ele durante toda a competição”, recorda.
Contei que o vi ganhar a medalha
de ouro em 1956. Ele ficou eufórico
e me abraçou”, rememora. A admiração se transformou em amizade. Na Olimpíada de Sydney, em
2000, Adhemar ficou hospedado
na casa de Rosemary e do marido,
onde comemorou seu aniversário
de 73 anos. Seria o último. Em janeiro de 2001, Adhemar morreria
em São Paulo, de parada cardíaca.
Aos 25 anos, Adhemar conquistou
o ouro no salto triplo. Assim como
havia feito quatro anos antes, nos
Jogos de Helsinque, na Finlândia.
Tempos depois, Rosemary ouviu no
rádio que alunos de uma escola pública em Sydney precisavam de
ajuda para competir. Foi assim que
começou um projeto para formar
atletas, uma homenagem ao amigo.
Vinte anos depois, Rosemary e
Adhemar voltaram a se encontrar
em Cingapura. “Eu o vi e perguntei:
‘Você é o Adhemar Ferreira da Silva?’. Ele disse: ‘Eu te conheço?’.
A escola de Westfields fica na periferia de Sydney e tem uma estrutura inferior em relação ao padrão
australiano. Todos os anos, um
aluno recebe uma bolsa, uma via-
gem de duas semanas para treinar
em São Paulo e um convite para
disputar o Troféu Brasil de Atletismo. Estar com boas notas é um
pré-requisito.
Com o projeto, alunos australianos
vêm ao Brasil. Do
mesmo modo, desde 2007, jovens
brasileiros têm a
chance de competir na Austrália.
VEJA NA
VERSÃO DIGITAL
Conteúdo exclusivo
em app.
cadernosglobo.
com.br
© ACERVO ESTADÃO
SEMPRE PELO COLETIVO
97
ARTIGO
por JOÃO MASAO KAMITA
o
m
s
i
n
a
b
r
o
u
ic
INTERVENÇÕES NO RIO DE JANEIRO PARA A OLIMPÍADA ESPELHAM
A LÓGICA DO EMPREENDEDORISMO E DO CRESCIMENTO IMOBILIÁRIO
© DONATAS DABRAVOLSKAS/SHUTTERSTOCK
t
é
t
s
e
98
99
ARTIGO
JOÃO MASAO
KAMITA
s
e até a Olimpíada de Los Angeles, em
1984, o esporte ainda se alinhava
simbolicamente com as disputas
nacionalistas e/ou disputas ideológicas entre o bloco capitalista e o
socialista, após a queda do Muro de
Berlim, em 1989, o cenário se alterou e os Jogos
logo entrariam na era da globalização. Nesse
novo estágio, os Jogos de Barcelona, em 1992,
se impuseram como paradigmáticos. O sucesso do empreendimento transformou a cidade
catalã e sua imagem, tornando-a um centro
turístico singular em sua história e cultura e, ao
mesmo tempo, cosmopolita em sua modernidade e inovação.
O momento espanhol conjugava dois fatores
fundamentais: a redemocratização do país após
a queda do regime de Franco e o crescimento
econômico com a integração na comunidade
europeia. Após longo período de decadência,
a cidade viu a oportunidade de recuperar vitalidade com o projeto olímpico.
100
Em termos de gestão urbana, o modelo adotado se inseria já nas políticas neoliberais inauguradas na década anterior, com o encolhimento do papel do Estado na regulação e
condução de políticas públicas, inclusive com
corte no repasse de verbas federais para estados e municípios. O próprio Comitê Olímpico
Internacional (COI) precisou se adequar às
novas políticas, aproximando-se igualmente
do mercado com uma estratégia mais agressiva de marketing com as grandes empresas
esportivas e transformando os Jogos em um
evento midiático global.
2007 do Pan,
Ano
que deixou parte
da infraestrutura
para ser reaproveitada
em 2016
A candidatura do Rio se apoiava no bem-sucedido Pan de 2007 e reaproveitou parte dessa
infraestrutura para a Olimpíada 2016, em seus
três polos principais: Barra da Tijuca, que concentra a maioria das arenas e a Vila Olímpica, o
estádio do Engenhão e o complexo de Deodoro.
Nesse ponto já notamos a diferença para com
o projeto social de Londres, na medida em que,
ao voltar o foco sobre a região da Barra, reproduz e intensifica o sentido dominante do crescimento imobiliário que vem ocorrendo na
região urbana do município. A grande concentração de intervenções na zona sul da cidade complementa o programa traçado de
fortalecer as centralidades já existentes.
Do ponto de vista do planejamento urbanístico, a ação dos administradores públicos e dos
urbanistas catalães abrangeu toda a cidade, que
desde a década anterior já tinha elaborado um
Plano Diretor, dando base às ações planejadas
que consistiram na recuperação do centro histórico, na revitalização da área do porto, na
criação de novas centralidades, na melhoria
do sistema de infraestrutura de transporte, na
construção de grandes edificações esportivas
e culturais e no investimento forte nas novas
tecnologias, sobretudo as de comunicações,
pela expansão da rede de fibras ópticas.
Das edições subsequentes dos Jogos, cabe
destacar duas: Pequim 2008 apostou na grandiloquência de suas principais instalações, o
Cubo d’Água e o Ninho de Pássaro; Londres
2012, ciente do início da recessão mundial,
assumiu uma postura objetiva e realista e retomou o modelo de Barcelona de valorização
da cidade (e não de sua arquitetura espetacular) e de preocupação com o equilíbrio social.
© MARCHELLO74/SHUTTERSTOCK
é arquiteto formado
pela Universidade
Estadual de Londrina,
mestre em História
Social da Cultura
pela PUC-Rio e
doutor em Arquitetura
pela Faculdade
de Arquitetura e
Urbanismo da USP. É
professor da PUC-Rio.
Os contrastes entre os projetos de Pequim e
Londres são evidentes: um, regime comunista
que censura a liberdade de expressão, decide
exibir sua modernidade e poder investindo na
ostensiva (e custosa) retórica arquitetônica
desenhada pelo star system da arquitetura contemporânea; outro, um governo de esquerda,
rebaixa o monumentalismo arquitetônico para
valorizar a dimensão social do legado. A decisão
de locar o Parque Olímpico na parte leste de
Londres, no bairro industrial de Stratford, zona
proletária pobre e desassistida em relação à
City e à parte oeste, exprime claramente a
intenção de reequilibrar o tecido urbanístico e
social, favorecendo as camadas populares e
segregadas da área periférica. Evidentemente,
a avaliação do legado londrino ainda está por
ser feita, mas o que nos interessa na comparação Pequim/Londres são os modelos adotados
e como o projeto olímpico da Rio 2016 dialoga
com estes, tendo novamente como paradigma
o caso de Barcelona 1992.
101
ARTIGO
© ANDRE LUIZ MOREIRA/SHUTTERSTOCK
UÁ
A
A M IA
Ç
RA A IDE
P
VA IME
RA
O
U
N
R
O
T
P
UL
UL
EX
C
C
DE PETÁ
ES
O
D
102
O projeto urbanístico vencedor do concurso
organizado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil [IAB-RJ] foi o do escritório inglês Aecom, o
mesmo que fez o Parque de Londres. Na península triangular se implantam as principais modalidades esportivas, bem como o centro de
transmissão e a Vila da Mídia, áreas de lazer e
estacionamento. Uma ampla via sinuosa corta
o terreno ao meio, concentrando a maior parte das instalações esportivas na parte leste; na
oeste, apenas as arenas de natação e tênis. A
razão é liberar a área após o evento para a construção de edifícios e assim converter o parque
em bairro residencial de alto padrão, o mesmo
ocorrendo com a Vila dos Atletas nas proximidades. As opções são claras: o usufruto pósJogos será da alta classe média carioca.
A revitalização da zona portuária não estava
contemplada nem no projeto do Pan nem no
documento de candidatura da Olimpíada, mas
foi incluída como estratégia da expansão comercial e cultural do centro histórico do Rio.
O estágio de abandono dos grandes armazéns
do cais e a deterioração dos antigos bairros da
Gamboa, Santo Cristo e Providência reiteraram
a importância e a urgência de intervir na área,
dando origem ao projeto Porto Maravilha. Primeiro, promoveu-se uma mudança na legislação do uso do solo, liberando o gabarito e a
densidade de ocupação da faixa ao longo do
porto, estabelecida sob o regime das parcerias
público-privadas para viabilizar os recursos
para financiar as obras de renovação. A ligação
de continuidade entre o tradicional centro
histórico e de negócios do Rio e a renovada
zona portuária se localizou na praça Mauá. Ali,
arte e arquitetura encontraram o seu grande
palco. Nenhuma outra intervenção exprime
melhor a ideia da cultura do espetáculo que a
nova praça Mauá com seus equipamentos culturais (museus e monumentos históricos) e
vista deslumbrante para a baía de Guanabara,
consequência da demolição do elevado da
Perimetral, que seccionava a área.
A nova praça é, em certo sentido, a síntese das
aspirações da cidade do Rio de Janeiro pelos
grandes eventos. Árida e abstrata, a nova praça tem por função se colocar como palco de
chegada dos transatlânticos turísticos e mirante de contemplação da paisagem da baía.
As duas instituições culturais – O Museu do
Rio de Janeiro e o Museu do Amanhã – evidenciam a contradição fundamental do projeto de cidade do urbanismo olímpico. O MAR
representa a conciliação do passado com o
presente: o palácio eclético e o edifício modernista unidos pela jocosa cobertura sinuosa.
A história do Rio de Janeiro é o seu conteúdo,
por isso toma como partido curatorial expor
as singularidades da cultura, do passado, da
vida carioca. O Museu do Amanhã representa
4 os Jogos: Barra,
regiões abrigam
Deodoro, Maracanã
e Copacabana
o voo para o futuro, essa promessa de redenção
trazida pelo novo ciclo de prosperidade. Com
sua arquitetura espetacular, ele é a expressão
da linguagem internacional, lugar de todas as
línguas, sotaques e idiomas. Essa arquitetura
poderia estar em qualquer localização, pois o
seu usuário-tipo é o turista. O ponto em comum
entre os dois museus é a abertura para a deslumbrante paisagem da baía de Guanabara.
Por fim, o Parque Olímpico de Deodoro, construído na área militar, recebeu novas instalações
para as competições menos divulgadas, como
canoagem, tiro, hipismo, ciclismo, mountain
bike e outras, com a promessa de que como
legado a área se converta num grande parque
de esportes radicais e de lazer para a população
da região. O complexo de Deodoro é o que tem
menos evidência na cobertura da mídia, embora se encontre na área de maior densidade
habitacional da região metropolitana do Rio.
Os Jogos ocorrerão em quatro regiões: Barra,
Deodoro, Maracanã e Copacabana. Logo a
conexão entre tais núcleos tornou-se prioritária no projeto olímpico da cidade. Uma série
de alternativas foi aberta para implementar a
mobilidade urbana, como a expansão do metrô com a linha 4 e a introdução dos sistemas
de ônibus rápido (BRT) e de veículos leves
sobre trilhos (VLT). Acrescentem-se os investimentos na área de segurança pública (apesar
da crise atual do estado), que começaram com
a implementação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), em vista da preparação para
a Copa do Mundo de 2014.
103
ARTIGO
O discurso oficial da administração municipal
não cansa de afirmar que o custo das obras foi
financiado em grande parte pelo capital privado, pouco mobilizando a verba pública. Esse
modelo de gestão ficou conhecido como o novo
empreendedorismo. Se a parceria com a iniciativa privada se justifica pela agilidade, flexibilidade e mobilidade, fatores que a burocracia do Estado não consegue ultrapassar, o
que fica em suspenso (intencionalmente, eu
diria) é o papel da autoridade pública.
Na retórica oficial, tudo se sintetiza em uma
palavra: legado. Melhoria na mobilidade urbana, criação de novos empregos, acréscimo
de áreas públicas, atração de investimentos,
visibilidade internacional. Porém não só de
promessas de futuro se alimenta a retórica
oficial; outra mais perniciosa, reiteradamente
acionada, foi a de, em nome dos prazos exíguos
e da necessidade das obras, invocar argumentos de “força maior” para justificar e implementar as mudanças: decisões não passíveis
de discussão e avaliação, mecanismos legais
de dispensa de licitações, verbas adicionais,
alterações súbitas no projeto-base, enfim, um
conjunto de deliberações tomadas entre as
instâncias (administração pública, Fifa, COI,
COB, empresas patrocinadoras) sem participação da sociedade civil, configurando um
processo obscuro e arbitrário. Apenas para
darmos um exemplo, tomemos o caso da linha
4 do metrô. Até agora não houve uma explicação razoável (técnica, econômica ou política)
para a adoção do trajeto único e linear, atravessando meia cidade. O sistema de metrô
predominantemente se define por um conjunto de linhas articuladas, para garantir uma
cobertura mais abrangente do serviço. A opção
pelo trajeto linear implica sobrecarga das composições e das estações ao longo do percurso,
contrariando a lógica de distribuição adotada
para qualquer transporte público de massa.
As repercussões dessa parceria entre público e
privado na esfera do urbanismo são evidentes
e sintomáticas. Quando o Estado tinha atribuições regulatórias tanto do uso e construção do
espaço físico como da implementação de políticas públicas para suprimir desequilíbrios
sociais, o urbanismo tinha a totalidade da cidade como objeto de suas estratégias e formulações. O modernismo aceitou o desafio e desenvolveu metodologias de ordenação do
espaço físico para assim garantir o bem coletivo, porém a eficácia e viabilidade de suas
proposições dependiam de uma forte centralização das decisões políticas. Com a crise do
modernismo, surgiu a desconfiança em relação
a qualquer modelo totalizador, e a cultura do
local e do fragmento se impôs no pós-modernismo. No Rio de Janeiro, vimos tal mudança
de concepção com o projeto Rio-Cidade, elaborado pelo arquiteto, urbanista e depois prefeito Luiz Paulo Conde, cuja ideia propulsora
fora revitalizar os principais corredores da cidade para desse modo incrementar a qualidade de vida e irradiar sua energia renovadora na
escala do bairro, configurando-se desse modo
uma operação flagrantemente contextualista.
© VINICIUS TUPINAMBA/SHUTTERSTOCK
A lógica do “urbanismo olímpico” é completamente distinta: sua estratégia é realizar
“grandes projetos urbanos”1 capazes de atrair
investimentos e desse modo trazer vitalidade
econômica, especialmente pela valorização
imobiliária, para áreas novas ou requalificadas.
104
A intenção é apresentar a cidade como um
lugar inovador, estimulante, atrativo, com
instalações modernas e adequadas para visitar
e consumir.2 Um investimento maciço é mobilizado para criar zonas de alta tecnologia e
interatividade, intensificando centralidades
existentes e requalificando outras para produzir uma nova sinergia. Porém o mais perturbador é que essa lógica não considera a questão da desigualdade urbana e social; muito ao
contrário, aceita tal condição e a estimula.
ICA
R
TÓ UDO
E
R
T
NA IAL,
IZA A:
T
C
I
TE AVR
OF
N
I
L
S
SE A PA O
UM GAD
EM
LE
Nessa lógica do capitalismo tardio, o urbanismo perde sua importância de instância regulatória e organizacional do território, e a arquitetura deixa de lado sua preocupação com
o programa de natureza social e com o ajuste
rigoroso entre funcionalidade, economia e
razão estrutural para se converter em imagem
sedutora para atrair uma nova massa de consumidores. Contudo, diante da competição
entre os grandes centros para captar novos
olhares, a cidade deve contrabalançar a imagem
de pulsante espaço cosmopolita com a afirmação da sua particularidade em relação aos
seus competidores. Assim, o Rio 2016 deve
oferecer estruturas tão ou mais modernas quanto as competidoras, logo deve ser equivalente
a elas em brilho, velocidade e espetáculos, mas
isso, paradoxalmente, significa se igualar a
todas as outras cidades. Por isso, deve simultaneamente produzir a imagem de uma cidade única, singular, inigualável. Trata-se, portanto, de uma “guerra de imagens”, e aí a
cultura assume importância na confecção
desse capital simbólico,3 colocando a estética
a serviço do empreendedorismo urbano.
1. NOVAIS, P.
“Urbanismo na
cidade desigual:
o Rio de Janeiro
e os megaeventos”,
Revista Brasileira
de Estudos Urbanos
e Regionais, v. 16, n. 1,
p. 11, maio de 2014.
2. HAVEY, D.
A produção capitalista
do espaço.
São Paulo: Annablume,
2005, p. 176.
3. Op. Cit., p. 235.
105
ARTIGO
por LAMARTINE DACOSTA e ANA MIRAGAYA
o
d
a
g
o
e
c
l
i
l
ó
b
m
i
s
a
s questões suscitadas pela realização dos Jogos Olímpicos no Rio
de Janeiro em 2016 – tanto antes,
durante e depois do evento – têm
centrado a atenção na criação de
legados. O tema é controverso pela própria
natureza desde que são identificados legados
“intangíveis”, reconhecidos como existentes,
porém de difícil tradução em dados e números.
© PAOLO BONA/SHUTTERSTOCK
Um exemplo típico desse produto abstrato
dos megaeventos esportivos é a imagem renovada das cidades que abrigam tais grandes
acontecimentos. Ou seja, uma cidade mais
receptiva a visitantes ganha uma moldura
simbólica nem sempre quantificável, mas que
se torna uma referência de suas atrações e
sentido de pertencimento. Nessa perspectiva,
insere-se habitualmente Barcelona, que hospedou os Jogos Olímpicos de 1992 e, desde
então, tornou-se um modelo de legado simbólico por manter viva sua imagem de cidade acolhedora até os dias presentes.
106
TEMA QUE ENVOLVE OS BENEFÍCIOS
INTANGÍVEIS DA REALIZAÇÃO DE GRANDES
EVENTOS É CONTROVERSO, A COMEÇAR POR
SUA DEFINIÇÃO, MAS ESTUDOS RELACIONAM
CIDADES OLÍMPICAS À CONSOLIDAÇÃO
DE MEGALÓPOLES E CIDADES GLOBAIS
Há, entretanto, outras possibilidades de criação de legados simbólicos, entre os quais pode-se incluir a megalópole São Paulo-Rio, uma
aglomeração há muitas décadas existente, mas
hoje potencialmente habilitada à incorporação
de uma imagem de maior receptividade a visitantes, além de outras vantagens; tal possibilidade é decorrente da renovação da cidade
do Rio de Janeiro com consequentes impactos
em regiões vizinhas em razão dos Jogos Olímpicos de 2016 e de seu longo período de preparação, iniciado em 2009.
107
ARTIGO
tecnológico e industrial de classe mundial. Por
sua vez, a feição subjetiva foi entendida pela
simples significação da megalópole em seu todo.
LAMARTINE
DACOSTA
é professor da
Universidade Estadual
do Rio de Janeiro
(Uerj) e pesquisador
do IOC Advanced
Research Grant
Programme, do
Comitê Olímpico
Internacional.
ANA MIRAGAYA
é professora da
Faculdade de
Educação Física da
Universidade Estácio
de Sá e membro do
Selection Committee
– Olympic Studies
Centre do Comitê
Olímpico Internacional
1. Andrea Deslandes,
Lamartine DaCosta e Ana
Miragaya (eds), O futuro
dos megaeventos
esportivos, livro digital
disponível em:
http://bit.ly/1Rm5TjR.
2. Lamartine DaCosta e
Ana Miragaya, O Futuro
dos Megaeventos
Esportivos: Legados e
Parcerias Responsáveis,
in O futuro dos
megaeventos esportivos,
Op. Cit.
108
A hipótese da geração de um legado simbólico
pós-evento 2016 no eixo São Paulo-Rio foi desenvolvida pelos autores do presente texto em
associação com Cristiano Belém e André Gavlak
numa pesquisa promovida em 2010-2011 pela
Universidade de East London, no Reino Unido.1
O foco do estudo incidiu sobre o legado como
resultado da melhoria ou regeneração da cidade-sede (city building) e de seu entorno (place
shaping). A justificativa dessa opção é que a
escala e o custo dos Jogos Olímpicos na atualidade solicitam de seus organizadores a entrega
de resultados não esportivos como legados das
cidades e da nação que os sediam.
No contexto da definição da East London sobre
legados, a aglomeração São Paulo-Rio tinha
sido identificada por várias fontes, incluindo
as Nações Unidas em 2005. Esses estudos em
geral indicavam a existência de uma conurbação como efeito de expansão urbana descontrolada, típica dos países em desenvolvimento. Na pesquisa citada, porém, delimitou-se a
megalópole contrapondo fatores subjetivos ao
equilíbrio ecológico (florestas naturais e áreas
de proteção ambiental) e à distribuição da
população e dos meios de emprego e renda.
O resultado da análise socioambiental foi a identificação da megalópole SAM RIO, denominação
para os relacionamentos da cidade São Paulo
(SA) – maior centro econômico e industrial do
Brasil e da América Latina – com áreas limítrofes do estado de Minas Gerais (M) e do estado do
Rio de Janeiro (RIO), que criaram um continuum
de polos urbanos em rede que incorporam a
cidade do Rio de Janeiro. Nessa região definida
por corredores de montanhas cobertas por florestas, há um diversificado desenvolvimento
Uma tentativa de identificar os fundamentos da
SAM RIO ocorreu no ano 2000 por um estudo
desenvolvido na Universidade de São Paulo (USP)
por Bruno Padovano, que integrava aquela megalópole às cidades vizinhas formando uma rede
de núcleos habitacionais autônomos. A proposta criava a então denominada “Ecópole Oeste”,
que unia São Paulo à cidade de Sorocaba (400 mil
habitantes), passando por diversos outros centros
urbanos menores, criando um corredor de áreas
verdes entremeado de edifícios residenciais a
serem construídos e apoiados por transporte
ferroviário. O modelo Padovano pode hoje ser
tipificado como city building e place shaping, ao
passo que o modelo Alquéres atribui prioridade
à sinergia econômica a ser obtida pelas históricas
conexões entre as cidades do Rio de Janeiro e de
São Paulo. Em suma, ambas as propostas são
complementares e constituem respostas iniciais
à questão central de postular a sustentabilidade
(social, econômica e ambiental) como base para
a ampliação da região de influência e respectivo
legado dos Jogos Olímpicos de 2016.
Nessa questão particular, definiu-se outro
estudo,2 que considerou a base do legado olímpico de 2016 relativo à SAM RIO como associada ao fenômeno das cidades globais. Essa
tendência geralmente refere-se à rede de localizações urbanas internacionalizadas, que
estão crescentemente se tornando interdependentes entre si, com suporte na tecnologia de
informação (TI) relacionada mais a intercâmbios internacionais – cultura, finanças, turismo etc. – do que à população ou ao tamanho.
Portanto, cidades globais são produtos finais da
crescente expansão da urbanização em qualquer
país, agora alcançando cerca de 80% da população mundial. Tal tendência planetária não tem
sido, todavia, considerada de modo explícito
pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) nas
licitações para escolha das cidades anfitriãs dos
Jogos Olímpicos, preferindo-se, no caso, escolher cidades-sede com o significado de “legado”
diante dos novos contextos de sustentabilidade.
Nessas circunstâncias, o estudo citado de 2015
partiu tanto de tendências atuais das cidades
globais quanto se dirigiu à crescente adoção
da sustentabilidade na qual se pôde inserir a
cidade do Rio de Janeiro e de seu entorno urbanizado como cenário para testar interpretações de legados. Desse modo, fez-se um
exercício comparativo, considerando o grupo
das três cidades finalistas para a candidatura
dos Jogos Olímpicos 2020, em conjunto com
Londres 2012 e Rio de Janeiro 2016, ambas já
antes selecionadas.
Tendo o Global Cities Index, desenvolvido pela
A. T. Kearney Consulting (2014), como base de
indicadores para a pretendida comparação,
Londres situa-se na segunda posição entre 84
cidades globais – consolidadas e emergentes –,
um total que reflete tendências abrangentes da
intensa urbanização hoje em progresso nos
cinco continentes. O estudo inclui também o
Rio de Janeiro na 56ª posição, porém, ao fazer
a associação com São Paulo, em face à amplamente reconhecida megarregião São Paulo-Rio,
essa última classificação pode se alterar para a
34ª posição, referente à cidade de São Paulo.
Nessa listagem, Tóquio aparece em 4º e Madri
em 15º, com Istambul alcançando a 28ª colocação, depois de estar em 41ª em 2010. Em
termos de conjunto, as cidades olímpicas Londres e Rio de Janeiro, em adição às três cidades
candidatas aos Jogos Olímpicos de 2020, estão
todas hipoteticamente mantendo seu status ou
procurando uma melhor posição entre as cidades globais. Não houve surpresa, portanto, com
a escolha pelo COI de Tóquio para sediar a Olimpíada que se seguirá à do Rio de Janeiro.
Nessa agregação, qualquer escolha para sede dos
Jogos 2020 compreende um ciclo de tempo válido para comparações de 15 anos. Portanto, as
cinco cidades envolvidas com candidaturas dos
últimos anos revelam a coincidência de terem
ou buscarem influência global. Em suma, essa
constatação pode ser entendida também pelo
fato de as cidades globais estarem sobrepujando
os países em que se situam. Tais evidências confirmam, por meio de comparações, a existência
de uma sobreposição de tendências globais que
estão influenciando os Jogos Olímpicos.
AIS
B
LO
G
OS
S
T
E
TE
U
D
N
D
A
E
O
C
CID O PR
ES O
R
SÃ DA C AÇÃ
AÍS
Z
I
S
P
I
N
A
R
FIN URBA QUE
AL
QU
EM
Um teste para se apreciar tais relações globais
incide sobre a observação das mudanças climáticas associadas à gestão de risco, que são inerentes à sustentabilidade. Isso posto, importa
destacar que a região SAM RIO tem 46,8 milhões
de habitantes, distribuídos em corredores típicos,
consistindo o primeiro em agregados industriais
e de serviços – incluindo tecnologias – e os demais, em três áreas longitudinais com montanhas
e florestas em que ocorrem frequentemente
acidentes ambientais (deslizamentos e enchentes). Essa combinação de áreas verdes, comunidades residenciais (pobres e remediadas) e locais
de trabalho implica o desafio de ter uma governança ambiental que possa combinar mudanças
climáticas com requisitos de sustentabilidade,
além do controle de impactos negativos. Assim,
a pesquisa de DaCosta, Miragaya e associados,
de 2011, focalizou a distribuição da população
com emprego e oportunidades de ciência e tecnologia usando o Geographic Information System (GIS, dados espaciais coletados por satélites),
método que identificou uma área com extensão
de 700 km lineares, que delimitou a megacidade SAM RIO, correspondendo, portanto, à área
previsível de governança dos Jogos Olímpicos
de 2016. Embora não seja uma área de reconhecimento oficial, o aglomerado SAM RIO representa uma moldura simbólica para a observação
das relações entre cidade global e cidade olímpica. De resto, a delimitação de legados, nesse
contexto de governança, será sempre um exercício de gestão e responsabilidade localizada.
109
CRÔNICA
por JOAQUIM FERREIRA DOS SANTOS
s
a
d
a
ç
l
a
c
t
ão importante quanto os textos de Rubem Braga, a calçada é fundamental para se entender a crônica carioca. Tirem
a calçada da Avenida Central, no século passado, e não
teríamos João do Rio. Sem elas, J. Carlos não poderia desenhar as melindrosas perseguidas pelos almofadinhas, a
melhor crônica visual da belle époque. Meio século depois,
Tom e Vinicius não teriam visto passar, pela calçada da rua Montenegro,
a Garota de Ipanema a caminho do mar, a melhor crônica musical da
mulher carioca.
Há quem tenha saudade do frapê de coco do bar Simpatia ou do lapskaus
do restaurante Ficha, ambos no Centro, ambos findos. Eu, cronista da
cidade, tenho saudade das calçadas. Foram-se, atravancadas pela multidão, tomadas por ocupações diversas, por fradinhos e obstáculos impeditivos de sua precípua finalidade – a de passarela suave, para que a
vida se deixe escorrer, leve e sem atropelamentos, como tudo deve ser.
JOAQUIM FERREIRA
DOS SANTOS
é escritor, jornalista
e crítico musical.
Autor dos livros Leila
Diniz (Companhia
das Letras) e Em busca
do borogodó
perdido (Objetiva),
entre outros.
110
Por isso, sem saber se serão resolvidos os problemas viários, e principalmente sem qualquer proselitismo político, eu saúdo o novo desenho
do Centro. A abertura das monumentais Praça XV e Praça Mauá, mais
a transformação em boulevard de trechos da Rio Branco e da Rodrigues
Alves trazem de volta os largos espaços para que as pessoas exerçam
um dos mais delicados exercícios da existência – o prazer de irem daqui
até ali, conversando com quem lhes estiver ao lado, chutando chapinhas
ou olhando o que vai em volta.
A crônica existe em todos os lugares do mundo e em cada um desenvolveu um jeitão de tratar o cotidiano. É um meio de caminho descomplicado entre a literatura e o jornalismo. As calçadas do Rio foram fundamentais para que se desenvolvesse um estilo próprio, que tem a cidade
como musa e o cronista como observador persistente. Ora ele é deslumbrado com a beleza invulgar do cenário, ora é crítico com os descaminhos do “progresso”. A uma ou outra conclusão, o cronista chegava
durante a caminhada. Deixava que o vento das ruas batesse no rosto
da sua literatura peripatética e daí dava-se o milagre da palavra que
puxa outra palavra, numa conversa que flui fácil com aquele gosto de
a insustentável leveza do texto.
© CARLO GIOVANI
s
a
d
a
t
l
o
v
a
Todos tinham a pena com uma tinta mais delicada que a dos demais “transeuntes”, um palavrão que certamente evitariam. O talento, no entanto,
não basta. Sem as calçadas a lhes servirem de inspiração, nada da cena
carioca descreveriam. Elas eram o grande mirante da nossa aldeia.
O novo Centro reconhece a importância das calçadas como um
direito intrínseco à carioquice. É uma pena que os tatuís tenham
se ido de Copacabana, da mesma maneira que os coretos sumiram
do carnaval suburbano – mas ter essas passarelas de volta, uma
delícia antiga, contrastando com o design atualizado do Centro,
não é pouca coisa. Fernando Sabino, Drummond e Bandeira
passearam por aqui. Agora é com vocês, jovens cronistas – ocupem as calçadas modernas.
Elas permitiam a meus antepassados – cidadãos como Machado de
Assis e Lima Barreto – flanar de um lado para o outro. Os dois, e Benjamim Costallat, e Olavo Bilac, e mais tantos outros cronistas, observavam as modas, davam uma geral para onde caminhava a humanidade. Depois, cheios de assunto, com estilo serelepe, bem-humorado,
como se conversassem com o leitor sobre o que tinham visto, escreviam
suas crônicas geniais.
O cronista é uma instituição tão clássica do Rio quanto o malandro na Lapa
e a mulata assanhada na roda de samba. Joaquim Manuel de Macedo via
o mundo a partir da rua do Ouvidor, assim como João do Rio reuniu suas
andanças em A alma encantadora das ruas. Antonio Maria descreveu a
Copacabana dos anos 1950; Carlinhos Oliveira, o Leblon dos anos 1970.
111
© GLOBO/JOÃO COTTA
CONCEITO
O movimento que descreve a trajetória de um atleta de ponta e simboliza a busca de
qualquer pessoa por um momento de superação está presente no lema Somos Todos
Olímpicos, criado pela Globo para expressar o espírito de união em torno do maior
evento esportivo mundial, que tem sua 31ª edição da era moderna no Brasil.
Somos Todos Olímpicos é um ideal que não se restringe à cobertura esportiva. É
também uma estratégia de comunicação, que pretende engajar os brasileiros no
conceito. Diversas ações fazem parte dessa campanha, iniciada 500 dias antes da
abertura dos Jogos. Na volta às aulas, estimulando alunos a encarar a escola com
garra e dedicação; no Dia Internacional da Mulher, reforçando as conquistas femininas de cada dia; na Ação Global 2016, mutirão de serviços oferecidos à população,
em parceria com o Sesi, que enfatizou o esporte como elemento promotor da cidadania e de melhoria da qualidade de vida; e nos filmes de contagem regressiva, de
um ano e, depois, de 100 dias antes da abertura.
Em termos audiovisuais, o conceito Somos Todos Olímpicos foi traduzido pelo
filme Looping e virou música, com versões interpretadas pela Orquestra Sinfônica
de Los Angeles e por um time de estrelas da MPB, como Zeca Pagodinho, Michel
Teló, Carlinhos Brown e Ivete Sangalo, entre outros.
No diapasão do espírito olímpico, a Globo faz, nesta edição dos Jogos, a maior e mais
abrangente cobertura da história, com 10 horas diárias de conteúdo olímpico no ar, além
de um canal exclusivo, disponível na plataforma Globo Play na internet. Para ajudar a
contar essas histórias, a emissora formou seu Time de Ouro, reunindo alguns dos mais
importantes ídolos do esporte brasileiro: Guga, Hortência, Giba, Gustavo Borges, Daiane dos Santos, Flávio Canto, Maurren Maggi, Tande, Emanuel, Fabi, Shelda e Lars Grael.
Todos os telejornais da rede são transmitidos do Estúdio Olímpico, que foi especialmente construído no coração do Parque Olímpico da Barra da Tijuca. Um espaço
tecnológico de três andares, com visão privilegiada de todas as arenas. Um camarote
para o maior evento esportivo do planeta, que reúne 206 países, em delegações com
mais de 14 mil atletas, num dos principais exemplos de congraçamento de povos que
o mundo pode produzir. Por isso, somos todos olímpicos.
VEJA NA VERSÃO DIGITAL
Os filmes da campanha Somos Todos Olímpicos estão
disponíveis em app.cadernosglobo.com.br
112
160
horas
de cobertura no ar
2.000
profissionais envolvidos
na cobertura
40 comentaristas
8K é a tecnologia
de transmissão de imagens
inaugurada durante
os Jogos em sessões
abertas ao público
no Museu do Amanhã
800
m
é o tamanho da redação
2
no Centro Internacional
de Imprensa
500
m
é a área do
2
Estúdio Olímpico
As opiniões expressas nos artigos
assinados são de inteira
responsabilidade de seus autores.
Todo material incluído nesta
publicação tem autorização dos
autores ou de seus representantes
legais. Nenhuma parte dos artigos
pode ser reproduzida sem a
autorização expressa da Globo,
dos autores ou seus representantes.
O Caderno Globo é uma publicação periódica,
com edições temáticas que se dedicam a
aprofundar o debate e estimular a reflexão sobre
assuntos relevantes para a sociedade. Concebido
e produzido pela Globo, o Caderno faz parte de
um amplo projeto de relacionamento da empresa
com o meio universitário, estudantes e jovens,
que inclui a realização de seminários, encontros
e atividades que promovem a escuta, a troca e a
disseminação de conhecimento.