Nas traseiras do iluminismo
Transcrição
Nas traseiras do iluminismo
LIVROS FICÇÃO 09 PÚBLICO 9 FEVEREIRO 2007 Nas traseiras do iluminismo ● saídas Do arquivo histórico da província australiana da Tasmânia, Richard Flanagan resgatou a vida de William Buelow Gould, um deportado inglês que no século XIX ficou famoso por pintar um livro de peixes. FICÇÃO Damas, Ases e Valetes AUTOR Ana Benavente e Maria Manuel Viana EDITOR Teorema 188 págs. | Rui Lagartinho Dentro de uma cela condicionada pela maré a sobrevivência é feita de equilíbrios: “Flutuando na água fria, a tremer e cheio de arrepios, como se já estivesse a ensaiar para o velho vaivém da forca que me espera, há alturas em que a minha mente se perde e volto alegremente aos tempos em que pintava peixes.” Quando conhecemos William Gould, o seu fi m parece estar próximo, mas a história que nos quer contar está apenas no início. Começam os golpes de prestidigitação narrativa que depressa nos demonstram que “O Livro dos Peixes de Gould” é tudo menos simples memórias de cárcere. Este romance, em 2002, ganhou o Commonwealth Writers Prize. O objectivo de Flanagan não é esmiuçar a cabeça de um homem só e abandonado à sua condição, mas sim ilustrar o mundo através da vida que conduziu Gould a este destino. Uma vida que está datada no tempo em que os enciclopedistas plasmavam em encadernações a vida natural e em que a revolução industrial arrancava na sede do maior império colonial. É neste contexto que Gould recebe de Lempriere, um candidato a cientista, cirurgião da colónia penal, a grande encomenda: “Não podia então saber como é que essa loucura, esse trabalho de pintar peixes para ajudar a reputação de outro homem em outro país, podia dominar a minha vida de tal maneira que se ‘tornaria’ a minha vida – que eu chegaria ao ponto de tentar, como estou a tentar agora, contar uma história de peixes usando peixes para a contar, isto de todas as maneiras, mesmo até à pena feita de osso de tubarão e à tinta sépia com que escrevo este registo, feita de um choco que me atirou uma esguichadela há apenas algumas horas.” Infelizmente estes apartes cúmplices do narrador perdem-se na edição portuguesa. O original inglês seduziu livreiros e leitores com as cores variadas com que foram impressos cada um dos 12 capítulos do livro, bem como a ilustração que os encima. Não foi essa a opção da editora D. Quixote: “O Cavalo-Marinho Barrigudo”, “A Ondina” ou “Peixe-Balão Espinhudo” têm a mesma mancha gráfica. É pena, mas não chega para estragar a festa, até porque, para compensar estas distorções editoriais, a tradução de José Couto Nogueira é excelente. Flanagan tenta provar com este seu terceiro romance que todas as espécies são classificáveis menos o homem. O romance é uma parábola sobre quase todos os pecadilhos mais ou menos mortais: “Sou William Buelow Gould e quero pintar para vós o melhor que puder, que não é senão pobremente, não é mais do que arte de um homem rude, o som da água na pedra, o sonho louco do duro ceder ao mole, e espero que consigam ver reflectidas nas minhas aguarelas translúcidas, não as manchas do papel branco, mas a verdadeira opacidade das almas.” Gould afi nca-se em desafiar todo o racionalismo obstinado em classificar espécies, famílias e géneros a frio e sem espaço para os sentimentos. É por isso que ao longo do romance vai criando um mundo paralelo de homens transformados em bestas quase disformes, quase irreais e que escapam ao controlo dos sistemas científicos, mas também da legalidade penal em nome da qual se desenvolveu o continente australiano. Um mundo que se avizinha de “Alice” de Lewis Carroll, (também escrito à sombra do iluminismo) na capaci- O Livros dos Peixes de Gould AUTOR Richard Flanagan TRADUÇÃO José Couto Nogueira EDIÇÃO Dom Quixote 385 págs., €19,80 dade de gerar seres ainda antropomórficos, mas a caminho da desintegração, como nos sonhos. Flanagan afasta-se do registo que retrata o continente australiano como terra de oportunidades de garimpeiros heróis e assassinos moldados pelo destino, a marca de John Carrey, outro australiano. Em “O Livro dos Peixes de Gould” tudo o que já foi vida ainda vomita um lastro de história e tudo o que ainda mexe pode num ápice ser condenado à metamorfose. Os cientistas acabam a ser objecto de estudo científico, os escriturários dos registos douram a aplicação da lei, os verdadeiros heróis aparecem de soslaio, os condenados a pintar, que afi nal também sabem escrever, salvam-se empurrados pela mola do sonho que lhes oferece um legítimo par de barbatanas: “Como gostaria de ensaiar o universo que amava que também era eu e como queria saber porque é que nos meus sonhos voava através dos oceanos e por que é que quando acordava era a terra a cheirar a turfa acabada de arrancar.” • O nome é bastante conhecido, pois Ana Benavente foi, entre muitas outras coisas, secretária de Estado da Educação entre 1995 e 2001 e deputada até 2003, sendo actualmente investigadora principal do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e consultora da UNESCO. Ana Benavente era também reconhecida autora de artigos e livros sobre temas relacionados com a sua especialização académica (doutorou-se em sociologia da educação na Universidade de Genebra). O que se lhe desconhecia era esta vocação para a ficção. É verdade, senhoras e senhores, é a estreia de Benavente no romance, este “Damas, Asas e Valetes”, que foi escrito a meias com Maria Manuel Viana. Esta última, como os leitores saberão, é já autora de dois romances, “A Paixão de Ana B.” e “A Dupla Vida de Mª João”. Professora, Maria Manuel Viana prepara um novo romance (a solo): “Os Silêncios de Sara K.”. Tel: 213 432 617 • Tm: 96 60 90 589