A universalidade da sapatada

Transcrição

A universalidade da sapatada
O GLOBO
G
G
AZUL MAGENTA AMARELO
PRETO
PRETO/BRANCO
PÁGINA 920 - Edição: 1/01/2008 - Impresso: 19/12/2008 — 15: 50 h
Sexta-feira, 1 de janeiro de 2010
CLASSIFICADOS
O GLOBO
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920
Arte de André Mello
Logo
Cadarços
bem amarrados
A PÁGINA MÓVEL
Reflexões sobre a arte de arremessar sapatos no presidente que o mundo adora odiar
Mesmo preso, com chances de permanecer de dois a 15 anos no cárcere, por
ter atirado seus sapatos e proferido “doces” palavras — “É o beijo de despedida, cachorro!" — contra George W. Bush, no último domingo, o jornalista
Muntazer al-Zaidi hoje dorme o sono dos vingados. Seu gesto, que quebra todas
as regras de conduta dos códigos de ética do jornalismo, foi o desabafo de seu
repúdio pelo líder da nação que transformou o Iraque no palco para uma carnificina. Muntazer calça 42. Até agora, ninguém sabe se ele tem calos, joanetes,
frieiras, micoses, pé-de-atleta ou chulé. Sabe-se apenas que seu ato é de um
simbolismo político e cultural que fez dele o homem do ano em seu país. Mas
pode haver algo de universal permeando a arte de arremessar ódio. É o que Ali
Kamel e Nelson Vasconcelos discutem a seguir. (Rodrigo Fonseca)
A universalidade da sapatada
Ali Kamel
Não pude deixar de rir. Todo mundo falou
a mesma coisa, aqui e lá fora. “Na cultura
árabe, arremessar sapatos é uma grande
demonstração de desrespeito”, publicou a
Bloomberg.com. “Arremessar sapatos contra
alguém é um insulto tremendo no Oriente
Médio”, divulgou a Reuters. “Na cultura
iraquiana, jogar sapatos contra alguém é um
sinal de desprezo”, informou a Associated
Press.
E eu pergunto: Haverá algum lugar do
mundo em que levar uma sapatada na cara
não seja um insulto ultrajante? Haverá
alguma cultura que interprete uma boa
sapatada como uma demonstração de afeto?
O que Muntazer al-Zaidi, o atirador de
sapatos, quis fazer foi ferir fisicamente Bush,
um ato bárbaro. Presumo que os sapatos
fossem os objetos à mão que ofereciam a
melhor aerodinâmica e o melhor potencial de
dano para os propósitos do jornalista. Afinal,
com os detectores de metal, nada preenchia
os mesmos requisitos: um bloco de notas,
uma caneta, mesmo um laptop, nada disso
voaria tão bem e causaria tanto estrago
quanto os tais sapatos.
Não resta dúvida de que sapatos ocupam
um lugar baixo na cultura árabe. Mas são
apenas regras de etiqueta, porque não há
nada na religião islâmica contra sapatos.
Deixar à mostra a sola quando se senta com
as pernas cruzadas é considerado de mau
gosto, porque ela é imunda. Pela mesma
razão, não se deve entrar com sapatos numa
mesquita, mas novamente isso tem a ver
com etiqueta, não é um mandamento
religioso: o Profeta Maomé às vezes rezava
com sapatos, às vezes sem. Citaram ditados
muito freqüentes no mundo árabe: “Fulano
não vale a sola do meu sapato” ou “Fulano é
da altura do meu sapato”, tudo isso
significando que Fulano não vale nada. Mas é
exatamente como o nosso “Fulano não chega
aos meus pés”. Quando da tomada de Bagdá,
iraquianos batiam com sapatos na cara da
estátua de Saddam, derrubada ao solo.
Provavelmente porque chutar ferro fundido
provoque dor. Eles também batiam com
sapatos em quadros de Saddam, talvez
porque seja mais fácil tirar os sapatos do
que procurar outro objeto para servir de
porrete. Tudo isso pode ter levado a
imprensa mundial a exagerar no simbolismo
G
Algumas
palavras não
mentem jamais
Nelson Vasconcelos
Em quem você daria uma sapatada de bom grado? Não vale falar em
chefe, nem na sogra, nem nos vizinhos barulhentos. Vamos pensar
numa figura pública. Você daria
uma sapatada, sei lá, no Cesar
Maia? No Lula? Paulo Coelho? Dado
Dolabella? Luana Piovani? Seriam
infinitas as opções. À exceção, talvez, daqueles que dizem não guardar ódio em seus corações, todos
teriam sua própria lista de sapatáveis — lista pessoal e intransferível,
posto que cada qual sabe onde lhe
apertam os próprios calos...
Claro que toda essa lenga vem a
reboque do surpreendente gesto do
jornalista iraquiano Muntader al-Zai-
G
da sapatada. Árabes que usam túnica e lenço
na cabeça, quando querem agredir alguém,
arremessam o turbante, mais fácil de tirar do
que os sapatos. O jornalista também chamou
Bush de “cachorro”, e todos lembraram que
o insulto provinha do fato de que o Profeta
Maomé considerava cachorros sujos. O
mundo cristão não liga a mínima para o que
o Profeta disse, mas, convenhamos, ninguém
pelas bandas de cá vai se sentir elogiado ao
ser chamado de cachorro.
No fundo, trata-se de uma tremenda
injustiça contra o gênio do arremessador de
sapatos. O sujeito demonstra ter uma
inventividade ímpar, consegue enganar o
serviço secreto americano, e tudo o que
dizem dele é que ele quis insultar Bush
usando os sapatos porque são símbolo de
mau gosto para os muçulmanos? Em
eventos com a presença de autoridades é
impossível entrar com objetos que possam
ser usados como arma. Estive na convenção
democrata em Denver, e não podíamos
entrar com maçãs ou laranjas, mas com
água, sim (se bebêssemos um gole). Um
guarda explicou: maçãs e laranjas facilitam a
pontaria, porque fazem um percurso reto e
direto, enquanto garrafinhas ziguezagueiam.
Sapatos eram liberados. Até surgir Muntazer
al-Zaidi. Ele olhou para os pés, sentiu o peso
de seus sapatos, experimentou a sua
aerodinâmica, e pronto: percebeu que tinha
duas armas nos pés. É como Bin Laden, que
transformou o avião numa arma de
destruição em massa. Se aqueles solados
grossos atingissem Bush, não sabemos as
conseqüências: cegamento de um olho,
afundamento craniano?
O que me intriga é como estarão os pés
dos repórteres na próxima vez em que um
presidente americano estiver em solo
estrangeiro. Estarão descalços ou será
inventado algum dispositivo anti-sapatada,
como um vidro na frente do entrevistado?
ALI KAMEL é jornalista e autor do livro “Sobre o Islã:
a afinidade entre muçulmanos, judeus, cristãos e
muçulmanos e a origem do terrorismo”
O GLOBO NA INTERNET
blog da Logo, José Meirelles Passos revê a
a Noagressão
ao presidente americano e Tom Leão escreve
sobre as sátiras à era Bush na TV
oglobo.com.br/blogs/logo
di, que durante uma entrevista coletiva em Bagdá, domingo passado,
aproveitou sua proximidade a W.
Bush e tascou um par de sapatos, tamanho 42, na direção do presidente
dos EUA. Ali, nas fuças de Bush, urbi
et orbe, mirou e disparou:
— É o beijo de despedida, cachorro!
E dá-lhe sapatada!
Gilberto Braga não criaria desfecho melhor para uma cena tão curta. A realidade, mais uma vez, deixa as novelas... no chinelo.
Como se sabe, Muntader não acertou no alvo. Conseguiu foi arrumar
problemas para sua vida, mas ao menos lavou a alma de muita gente. Não
só pela tentativa, mas também por
chamar de cachorro, em alto e bom
som, o supremo mandatário do mais
poderoso país do mundo.
Há quem diga que Muntader estava errado. Como jornalista que é,
sua arma deveria ser unicamente o
jornalismo. Mas não deve ser fácil
estar na pele de Muntader e fazer-se
de cordeiro. Ele é testemunha de
inúmeras misérias e atrocidades. E
isso satura, exaure, debilita, enche o
saco de qualquer santo. Uma hora,
alguém explode — às vezes, literalmente. Tem sido assim há tempos,
assim continuará sendo.
E veja você que, na guerra inventada pela Casa Branca & Associados, pelo menos 90 mil cidadãos
morreram lá no Iraque. Não foi de
graça. Até agora, o conflito custou
cerca de US$ 600 bilhões aos cofres americanos. Americanos? Não
é bem assim. Cofres de todo o planeta, e até o porquinho lá de casa,
já estão ou logo estarão contribuindo com essa derrama — de
sangue, sobretudo, e de muita grana investida apenas para o usufruto de meia-dúzia. Esses fatos da vida já não surpreendem — mas continuam enchendo o saco.
OK, a gente sabe que W. Bush
não é o único culpado dessa situação, mas ele representa a culpa na
conversa toda. É ele quem encarna
o mal, e o mal merece sapatadas.
Ou um cruz-credo. Assim, se W.
Bush é o cão — coitado dos cães
verdadeiros — se é o cão sarnento
em forma de gente, cara de pateta
e usando gravata, que não lhe faltem sapatos no focinho, já que as
rezas não têm adiantado.
Não foi à toa que Muntader desarvorou. Quando surgiu a oportunidade, o iraquiano rodou a baiana. Recusou o discurso mesquinho
do ressentido, que larga no colo
dos outros a responsabilidade por
sua própria falta de atitude. Agiu
meio estabanadamente, mas agiu.
(Será que, a partir de agora, jornalistas terão que ficar descalços em
entrevistas coletivas com presidentes? Se for o caso, agradeçamos ao Muntader).
Mas onde estávamos? Ah, sim: sapatadas e cães. A língua é pródiga.
Pense em sapatos e virão à tona
idéias depreciativas. Não importa se
o calçado é de fabricação alemã ou
iraquiana: está ao rés do chão, cir-
cula entre lixinhos ou lixões, então é
impuro, melhor deixar fora de casa a
ver se pega um pouco de ar porque
aqui está empesteando o ambiente.
Quem é tratado a sapatadas, portanto, vale menos que os sapatos.
E sobre os cães? Hmmm. Lembrei
da palavra “cínico” e sua etimologia
(via Houaiss): kunikós “que concerne a cachorro; cínico (falando-se
dos filósofos cínicos)” etc. etc. Se
Bush é cão, Bush é cínico. Algumas
palavras não mentem.
Enfim, não vou comentar o simbolismo do sapato para a cultura árabe.
Na minha filosofia de botequim, só
sei que nada sei sobre isso. Importa é
que, em qualquer canto do mundo
(acho, acho), sentar os sapatos na
cabeça de outro é nada mais que um
ato de desabafo. É manifestação veemente de raivas acumuladas, a demanda reprimida da vingança. Cá entre nós, deve ser muito gostoso. Digo
que deve ser porque ainda não fiz disso. Mas aviso: estou quase lá. Tem
muita gente que está merecendo.

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