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A TRAJETÓRIA DE POLICARPA SALAVARRIETA NA CONSTITUIÇÃO DA
IDENTIDADE COLOMBIANA.
Guilherme Henrique C. Vieira (UFG)
Resumo: O objetivo do trabalho é refletir sobre uma personagem emblemática na
história da independência de Nova Granada: Policarpa Salavarrieta, examinando o seu
papel na formação na identidade de um povo. Sua trajetória no interior das lutas foi tão
significativa a ponto de levar o presidente Carlos Leras Restreppo, em 1967, ratificar o
dia 14 de Novembro, dia de sua morte, como a data em que se homenageia a mulher
colombiana.Os pressupostos metodológicos dessa análise centram-se na trajetória dessa
personagem nas lutas pela independência no início do século XIX. Procurarei rastrear
como foi construída a imagem dessa heroína, ou seja, tendo em vista o contexto
histórico, a partir de documentos sobre a personagem procurarei entender qual o papel
da sua imagem para a nova nação.Além da análise de conceitos nação e construção de
identidade nacional, o fator gênero também se faz presente. Entretanto, é preciso
questionar versões que trazem mulheres como heroínas, sem desvelar os critérios
adotados para tal assertiva.
A historiografia produzida no século XIX e início do XX reservou pouco espaço
para personagens que não participavam das cúpulas políticas e militares. Com os
historiadores que se empenharam em escrever a história americana não foi diferente.
Generais, presidentes, ministros tiveram seus nomes gravados na história, alguns foram
elevados à categoria de heróis de suas nações.
Todavia, existem personagens dessa história que fogem dessas características.
Mesmo fazendo parte de grupos não privilegiados da sociedade, como mulheres e
negros, alguns desses atores que pareciam coadjuvantes conseguiram subir ao panteão
cívico de suas nações.
Policarpa Salavarrieta, ou Pola, é um desses personagens. Apesar da categoria
mulher conseguiu, na primeira metade do século XIX, ser lembrada e enaltecida como
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heroína. Seus feitos foram considerados marcantes e hoje ela é uma das poucas
representantes do sexo feminino no panteão cívico colombiano e sul americano.
Aqui pretendo analisar a construção dessa imagem de heroína após a sua morte.
Para isso, uma breve biografia se faz necessária para entendermos os seus feitos e assim
compreendermos o porquê deles terem entrado para história. Logo após sua morte, Pola
já foi reverenciada. Nas primeiras décadas já havia crônicas, anagramas, representações
de tragédias sobre a personagem. Até nas memórias do presidente liberal José Hilário
López (1798-1869) há relatos sobre Pola.
Há muitas controvérsias quanto ao local e data do nascimento de Policarpa.
Apesar da certidão de batismo ter se perdido, a maioria dos historiadores vê em
Guaduas e o ano de 1795 como o local e data de nascimento de Pola. Sua vida também
não é muito bem documentada. Suas biografias são romanceadas. Mas o que vale
ressaltar é que em sua cidade natal ela frequentou um convento, onde aprendeu a ler e
escrever.
Guaduas tinha uma importante posição geográfica. Ficava no caminho entre
Santa Fé de Bogotá e o rio Madalena, esse dava acesso ao porto caribenho. Assim,
muitos homens passavam por ali. Alguns traziam informações políticas e Pola se
interessava e registrava essas informações.
Um personagem importante que marca a história de Policarpa é Alejo Sabaraín.
Ele pertencia a uma respeitada família de Guaduas e alguns historiadores o consideram
como amante de Pola. Apesar da história não ser confirmada é certo que os dois
participavam do mesmo grupo que lutava pela independência.
Importante reiterar que mesmo Pola estando ligada a Alejo Sabaraín, não é ele
quem a legitima. Todas as mulheres que participaram das guerras de independência e
entraram para história têm seus nomes ligados a um homem. Porém, diferente de
muitas, Policarpa não necessita de uma referência masculina para ser lembrada. Preferir
a morte do que se ajoelhar perante os espanhóis é o que legitima seus feitos e a faz ser
lembrada.
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A ida de Pola para Santa Fé de Bogotá também não é bem documentada. O que
se sabe é que a mesma foi para a capital no início da década de 1810, para trabalhar
como costureira. No entanto, logo regressa a Guaduas e no final de 1816 volta para
Bogotá; dessa vez se hospeda na casa de Andrea Ricaurte, trabalhando como doméstica.
Essa casa pertencia a uma família de rebeldes e ali, segundo alguns documentos,
Policarpa passava aos insurgentes as informações obtidas por meio do trabalho de
costureira domiciliar nas casas dos realistas.
Todo esse período da vida de Policarpa está imerso no que alguns historiadores
nacionalistas chamam de Pátria Boba (1810 – 1816). Essa primeira experiência
republicana teve fim quando da vinda do Exército Expedicionário de Terra em 1816,
que retomou para a coroa espanhola muitas terras, entre elas Santa Fé de Bogotá.
Esses anos foram marcados por guerras civis, devido à coexistência de
Províncias independentes e outras leais a coroa, associadas à dominação de Napoleão na
metrópole colonial. Esse período passou à história como Pátria Boba, no sentido de que
a ruptura com a Espanha não foi total; diversas regiões competiam entre si pela
independência e autonomia.
Desde a ocupação pelas forças realistas, Bogotá enfrentou um regime de terror
implementado pelo comandante geral Juan Sámano. Perseguições eram frequentes.
Mesmo nesse clima incerto, Policarpa continuou ajudando os insurgentes com
informações vitais e até mesmo, segundo alguns biógrafos, na compra de material de
guerra. Em 1817, Alejo Sabaraín foi preso. Com ele haviam documentos que ligavam
Pola à causa dos insurgentes. Foi presa e julgada por um Conselho de Guerra e morta
em 14 de Novembro do mesmo ano.
A Colômbia teve um papel particular na independência da América do Sul de
colonização espanhola, tanto que o projeto de Simón Bolívar de unidade pósindependência e que pretendia unir Venezuela, a atual Colômbia, o Equador, o Peru e a
Bolívia foi por ele denominado de Grã Colômbia. Nesse país viveu seus últimos
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momentos de vida, tendo morrido em Santa Marta. A busca de uma identidade unívoca
foi o principal projeto bolivariano.
Analisar a identidade implica na leitura da História oficial que coloca
Salavarrieta como uma heroína. Porém devemos questionar tal versão, pois existem
muitos fatores que devem ser considerados. “Ainda que a trajetória e as escolhas das
mulheres retratadas não fossem das mais adequadas e corretas, as narrativas posteriores
transformaram-nas em heroínas respeitáveis.” (PRADO, 2004, p.37).
Reportando-me a March Bloch: “O passado é, por definição, um dado que ainda
se pode modificar. Mas o conhecimento do passado é uma coisa em progresso, que
incessantemente se transforma e se aperfeiçoa” (BLOCH, 2002, p.26). Ou seja, o
conhecimento que se faz de Policarpa é algo em curso.
No momento em que a nação estava sendo forjada, tornava-se importante a
constituição de heróis e heroínas para embasar as narrativas fundacionais. Com o intuito
de entender esse processo da construção identitária colombiana é fundamental
perscrutar essas escolhas que escondem e transformam fatos e personagens de acordo
com as demandas do presente.
Diferente da sua vida, a morte de Policarpa foi muito bem documentada. Não
muito depois de sua morte já começavam a aparecer trabalhos que a glorificavam. A
fonte mais antiga e segura sobre a morte de Policarpa é do cronista José Maria
Caballero, que escreveu uma narrativa heroica. Ela é descrita como boa moça, patriota e
de boas prendas.
A descrição de Caballero tomou forma: “Policarpa Salavarrieta, la mártir
prototipo de una clase de mujer heroica, encarnación de la raza hispana, cuyo
sacrificio
ejemplariza
y
dignifica
a
la
mujer
patriota
de
la
Nueva
Granada.”(GONZÁLES, 1996, p.8). Os escritos e pinturas sobre a heroína que se
seguiram incorporaram as características apontadas pela crônica.
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Andrea Ricaurte, dona da casa onde Policarpa se hospedou em Bogotá, tem um
relato que conta sobre a prisão de Pola em sua casa. Além de exaltar as qualidades de
Policarpa, ressalta-se também no documento trechos que mostram sua importância
política: “Con la llegada de Policarpa, los trabajos políticos se aceleraron i como ella
no era conocida en la ciudad salia e andaba con libertad, facilitava la correspondência
con las justas e con las guerrillas.” (RICAURTE, 1875)
Uma tragédia de José Dominguez Roche sobre Pola também traz a personagem
como uma heroína. Agora Pola é corajosa e morre apenas por querer ser livre. Ensina
aos homens com sua morte. Em uma parte da tragédia Policarpa fala a um militar
espanhol:
Adeus, ilustre povo de Granada,
Adeus, cidade amada, pátria bela,
Atendei a vossa filha que neste dia
O nome bogotona representa
Porque morre abatendo os tiranos
e ao morrer com valor ao homem ensina.
(FRANCO e PRADO, 2009, p.114).
Esse documento é datado de 1826, menos de 10 anos após a morte de Policarpa.
Torna perceptível como a mesma é retratada. Policarpa se despede do povo já como
uma heroína, como uma mulher que lutou pela independência de sua nação e assim
ensina os homens.
A tragédia de José Dominguez Roche está fazendo claramente um papel social.
Ao mostrar que uma mulher lutou com garra contra os déspostas espanhóis se pretende
mostrar o valor que Pola dava a sua pátria e, consequentemente, objetivava incitar os
cidadãos da nação neo-gradina a fazer o mesmo.
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Torna-se fulcral destacar a importância do termo cidadão. Este já vinha sendo
usado desde a primeira república como sinônimo da conquista de igualdade, liberdade,
além de trazer implícita a possibilidade de desenvolvimento. O status de cidadão se
tornou tão importante que em cartas e certidões de batismo o termo começou a ser
usado. Na reconquista espanhola, houve esforço para reeducar os americanos, porém o
termo, juntamente com as ideias intrínsecas a ele, já haviam sido difundidos.
(KÖNING, 2009, p.44)
As ideias em torno da palavra cidadão foram tão difundidas que mesmo depois
da reconquista e até mesmo em 1830, com a dissolução da República da Grande
Colômbia, o termo foi usado como símbolo de liberdade.
Mesmo o liberal José Hilário Lopez, presidente de 1849 a 1853, em suas
memórias refere-se a Policarpa. “O perfil de Pola traçado por López é de uma patriota
dedicada, uma verdadeira heroína romântica que incitou o povo à revolução”.
(FRANCO e PRADO, 2009, p.187).
Até mesmo uma canção fúnebre é feita à Pola nos primeiros anos após sua
morte:
Povo de Granada, a Pola não existe
Pela pátria chorai sua morte.
Pela pátria, aprendamos a morrer,
Ou juremos sua morte vingar.
Pelas ruas e aos pés do suplício, Assassinos,
gritava, tremei!
Consumai vosso horrendo atentado!
Já virá quem saiba me vingar! (FRANCO e PRADO, 2009, p.211).
Como nos outros documentos, vemos Policarpa sendo reverenciada pela Pátria.
Aqui claramente ela serve como exemplo. /Pela Pátria, aprendamos a morrer,/ Ou
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juremos sua morte vingar./ Policarpa aqui já é tomada como uma heroína, mesmo
poucos anos após sua morte. A morte dela deve ser um exemplo; morrer pela Pátria é
um ideal nacionalista que deve ser valorizado.
Essa ideia de lealdade era tudo que as elites criollas precisavam para manter a
nascente nação. Hans-Joachim Köning enfatiza esse aspecto:
Os grupos dirigentes não só tinham de apelar à população de Nova Granada
para a defesa da pátria diante do poder colonial ainda ameaçador, como
deveriam convencer a população da particularidade e qualidade do novo
Estado constituído – o que significava convencê-la da honra em defendê-lo –
para assim obter a lealdade e a aprovação da população. (KÖNING, 2009,
p.41).
Mesmo findado o século XIX ainda nos deparamos com documentos que ajudam
a manter a visão heroica de Policarpa. No século XX muitos trabalhos ajudam na
manutenção dessa grande heroína colombiana.
Nesse propósito, há que se destacar o Revivamos Nuestra Historia. Um
programa cultural da TV colombiana na década de 1980. O programa passava várias
minisséries que se dedicavam a veicular a história de heróis colombianos e de
momentos importantes para o país. Simon Bolivar, Manuela Saens e Policarpa
Salavarrieta foram ali retratados.
O presidente Carlos Leras Restreppo ratificou, em 1967, 14 de Novembro, dia da
morte de Policarpa, como o dia da mulher colombiana. Recentemente, em 2010, uma
novela intitulada La Pola foi veiculada na TV colombiana, baseada na história de
Policarpa Salavarrieta e enfocava de forma heroica seus feitos políticos.
Quando comparamos a vida e a morte de Policarpa, torna-se evidente uma
significativa diferença em sua trajetória. Como é recorrente em biografias heroicas e
quase hagiográficas, biógrafos e cronistas deram tamanha importância a sua morte que
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temos a impressão que toda sua vida foi um caminho percorrido exclusivamente para o
ápice que é sua morte.
Isso é compreensível quando entendemos o valor da imagem da personagem na
construção da identidade colombiana. Seus últimos anos de vida em Santa Fé de Bogotá
e até mesmo sua morte servem como exemplo. Não é possível debater aqui a questão da
veracidade dos escritos; o propósito é examinar a importância desses escritos sobre Pola
para a construção dessa nação. Ao olharmos as características dadas a Pola, vemos uma
mulher patriota e corajosa. Certamente ela serviu nos primeiros anos da independência
como uma heroína, como amálgama nesse ideal de construção nacional. Logo após sua
morte ela já se transformou em um ícone para a nascente nação colombiana. Todos os
textos, filmes, novelas e telas citadas no artigo certamente mostram que a personagem
foi usada em diversos períodos como um exemplo a ser seguido.
No início da República, quando era importante a lealdade ao Estado,
personagens como Policarpa cumpriam um papel de inclusão e pertencimento e, por
isso, nos anos seguintes a imagem é mantida e reforçada. Em cada período, por razões
políticas diversas, essa representação é reiterada, tornando-se poderosa e eficaz.
Certamente Pola sempre foi lembrada como uma mulher que preferiu a morte a sujeitarse aos espanhóis, tornando-se um símbolo da independência e liberdade.
Seu exemplo tornou-se ainda mais emblemático por se tratar de uma mulher
simples, com uma ocupação doméstica e que não viu a questão social e de gênero, em
uma sociedade patriarcal, como impeditivo para sua dedicação à causa da
independência. Esse apelo segue atual, incentivando a participação das camadas
subalternizadas na vida nacional. A mensagem subliminar e que os governos
colombianos legitimam é de que um país que tem heroínas é mais inclusivo e
democrático. Por isso esse exemplo segue sendo reforçado.
FONTES
RICAURTE, Andrea. Relacion de la heroina Policarpa Salavarrieta, su prison y su
morte.
1875.
Disponível
em:
8
<http://www.bibliotecanacional.gov.co/revistas/index.php/senderos/article/download/2
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2rKkZsmtA&sig2=Ukiz8NLXTfGo4GZERzF6UQ> Acessado em: 14 de Setembro de
2012.
ROCHE, José Dominguez. La Pola, tragédia em cinco actos, sacada de su verídico
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1826.
Disponível
em:
<http://www.bibliotecanacional.gov.co/index.php?idcategoria=37880> Acessado em:
14 de Setembro de 2012.
ROBERTO, Ramírez B. Libreto para la filmación de la película ‘Policarpa
Salavarrieta’.
1925.
Disponível
em:
<http://www.bibliotecanacional.gov.co/?idcategoria=39313> Acessado em: 14 de
Setembro de 2012.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro:
ZAHAR, 2002.
FRANCO, Stella Maris Scatena. PRADO, Maria Ligia Coelho. A participação das
mulheres na independência da Nova Granada: gênero e construção de memórias
nacionais. In: MÄDER, Maria Elisa. PAMPLONA, Marco A. Revoluções de
independência e nacionalismos nas Américas: Nova Granada, Venezuela e Cuba. São
Paulo: Paz e Terra, 2009
GONZÁLES, Beatríz... [et al.]. Policarpa 200, Serie, cuadernos iconográficos del
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nascimiento
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Policarpa
Salavarrieta.
1996.
Disponível
em:
<http://www.museonacional.gov.co/inbox/files//docs/Policarpa_200.pdf> Acessado em:
14 de Setembro de 2012.
KÖNING, Hans-Joachim. Independência e nacionalismos em Nova Granada /
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independência e nacionalismos nas Américas: Nova Granada, Venezuela e Cuba. São
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RÜSEN, Jörn. Razão Histórica – Teoria da história: os fundamentos da ciência
histórica. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001.
PRADO, Maria Lígia C. América Latina no século XIX: tramas, telas e textos. São
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