Imoral Export - eRevista Performatus

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Imoral Export - eRevista Performatus
 Ano 2 | Nº 7 | Nov 2013
ISSN 2316-8102
IMORAL EXPORT
por Tales Frey
Folheto do mapa expositivo de Despair & METANOIA: Şükran Moral | VALIE EXPORT. Exposição que
ocorreu na Galeri Zilberman (Istambul, Turquia) entre os dias 12 de setembro e 26 de outubro de 2013
Paralelamente à Bienal de Istambul, na exibição intitulada Despair & METANOIA, na
Galeri Zilberman, de 12 de setembro a 26 de outubro de 2013, estavam expostos alguns
trabalhos realizados pela artista turca Şükran Moral e pela austríaca VALIE EXPORT, sendo
que quase todas as obras criadas por elas tiveram como base o gênero artístico da
performance e da videoarte. Em Despair & METANOIA – nome que faz referência,
respectivamente, ao vídeo Despair (2003), de Şükran Moral, e ao conjunto de 29 vídeos que
compõem a videoinstalação METANOIA (2011) de VALIE EXPORT – testemunhamos
trabalhos nada convencionais numa amálgama de estratégias que se amparam muitas vezes
em ativismos feministas, os quais são mais do que sublinhados quando expostos pelas duas
viscerais artistas reunidas.
De um lado, temos Şükran Moral, que universaliza o seu questionamento sobre as
normas da sociedade turca por sua conduta subversiva, que procura destronar uma sociedade
patriarcal, reivindicando uma posição igualitária entre os gêneros, criticando ferozmente a
intolerância, o preconceito social e todos os estereótipos pertencentes à conduta que um
indivíduo deve ter, de acordo com o seu sexo.
Şükran Moral, The Artist, 1994
Atentamos, então, para The Artist (1994), uma enorme fotografia dessa artista que a
revela como se ela própria estivesse crucificada, rescindindo, através da imagem do seu
próprio corpo, a imagem de Jesus Cristo. Com seu corpo feminino dotado de pelos nas axilas,
Moral achincalha o lugar-comum, ridiculariza toda tradição calcada na supervalorização de
uma representação masculina no âmbito religioso, o que pode ser só mais um exemplo do
apavorante machismo presente em uma sociedade patriarcal.
Obviamente, ao vermos essa imagem, podemos lembrar a icônica obra de Hannah
Wilke em que ela faz uma autorrepresentação intitulada Hannah Wilke Super-t-Art (1974),
com a qual procurou colocar em xeque a ideologia patriarcal do cristianismo em sua imagem
feminina, com seios à mostra e axilas peludas, a imitar a crucificação de Cristo também sem a
presença literal de uma cruz, algo que foi igualmente examinado por Şükran Moral em sua
concepção, vinte anos mais tarde.
Esse estudo iconográfico de Moral talvez tenha suscitado seu interesse pela
profanação de uma imagem sagrada, como, por exemplo, quando se apropriou da clássica
imagem da Pietà, de Michelangelo, para elaborar a sua ousada versão chamada Diffidate
Della Storia Dell’Arte/2 (1995), obra em que ela se ostentava como o Cristo, enquanto um
homem se assumia como a Virgem Maria. Infelizmente, essa fotografia não estava na
exposição ao lado de The Artist (1994), obra que provavelmente serviu como base motivadora
para que Şükran Moral desdobrasse essa composição em outras tantas da sua trajetória, como,
por exemplo, a sua performance Marriage with three (1994), realizada na Itália, onde dispôs
um altar composto por sua imagem a representar Jesus Cristo para realizar uma ação que
celebrava o seu casamento com dois homens e uma mulher também trajada como noivo, ou,
ainda, a fotografia Cristo Incinta (2004), com a qual expõe uma mulher grávida totalmente
nua a imitar a posição de Jesus crucificado.
Através da repetição da iconografia de Cristo crucificado, Şükran Moral obtém uma
forte e imediata narrativa de sofrimento. Através do processo de substituição, a artista
arquiva diretamente o seu alvo e, ao mesmo tempo, ela implicitamente desencadeia
um alcance infinito de outras sugestões reflexivas.
A presença física da cruz não é essencial; é suficiente para Moral retratar Cristo
através da posição do corpo em sua nudez para obter uma associação direta com a
imagem evocada. O corpo também faz evocar a natureza feminina da intérprete,
produzindo uma ruptura sacrílega da imagem sagrada. Essa subversão não foi
intencional, nem constitui uma pré-proposta de objetivo, mas sim a interpretação
realista do assunto que provoca uma inversão sexual inevitável do protagonista.
Şükran Moral reflete sobre a maneira que a imagem de Cristo na cruz foi proferida,
como tem sido objeto de um estudo crítico-científico na História da Arte, que tem,
acima de tudo, investigado seus componentes estéticos.
Através de todos os estudos, o valor semântico e simbólico não encontra um
entendimento idêntico, um mesmo método decifrável, e a imagem de Jesus na cruz
ainda mantém integralmente um impacto poderoso e forte.
Şükran Moral assume este valor expressivo forte para elucidar sua própria e única
condição de dor. [1]
Şükran Moral, Despair (detalhe), 2003
Despair (2003) não chegava a confrontar a esquizofrênica composição de
METANOIA (2011), pois o vídeo era projetado do lado oposto da tela que separava uma obra
da outra. Mas lembremos que Despair, assim como METANOIA, é uma obra que dá título a
essa exibição, ou seja, é uma das peças centrais, embora seja um trabalho menos provocador
que os demais dessa artista. Nesse vídeo, vemos um grupo de imigrantes ilegais quase
espremidos em um pequeno barco em águas abundantes. Assistimos, então, a uma metáfora
sensível e bem menos incisiva em sua conduta subvertedora, para narrar a esperança de
indivíduos por uma vida melhor, impressa em planos fechados nos rostos expressivos dos
sujeitos que ocupam o barco, os quais são dotados de sentimento, que é enfatizado pela
melancólica música que complementa a imagem. No mínimo, refletimos sobre a corajosa
ação daquele povo em enfrentar as águas imprevisíveis que fazem flutuar um inseguro barco a
transportar corpos em massa para virarem, talvez, os “novos escravos de hoje” ou “marginais
contemporâneos” em territórios estrangeiros [2].
A relação entre a obra acima mencionada e METANOIA está na tradução literal do
título da obra de VALIE EXPORT, ou seja, está na constante “mudança de ideia”, mas,
também, na atitude desesperada de um grupo de pessoas que almeja melhores condições de
vida. A superlotação de pessoas num espaço pequeno na obra de Moral também dialoga com
a vastidão de aparelhos de TV que ocupam um pequeno canto da sala da galeria na obra de
EXPORT.
VALIE EXPORT, METANOIA, 2011. Trabalhos em filme e vídeo, de 1968 a 2010. Registro fotográfico de
Tales Frey
VALIE EXPORT, Vertikal Gel, 1976
VALIE EXPORT, Dreieck mit Bogen, 1982
Da artista VALIE EXPORT, temos duas fotografias da sua série Body Configuration,
sendo elas: Vertikal Gel (1976) e Dreieckmit Bogen (1982), todas em preto e branco a exibir
seu corpo em comunhão com o espaço, ocupando quinas, relevos e variações, onde o seu
físico pode quase ser perfeitamente encaixado. Mas é com METANOIA (2011) [3] que temos
o maior impacto visual e sonoro, capaz de nos despertar um agudo e confuso conjunto de
emoções, tão variadas quanto o número de vídeos autônomos dispostos em televisores
espalhados em um pequeno espaço da sala, embaralhando o nosso foco, impossibilitando
qualquer tentativa de fixarmos a atenção em um vídeo de cada vez. Tudo é atraente ao mesmo
tempo e, para conseguirmos apreciar um vídeo por vez, precisamos transitar no meio do caos
de televisores e suportar os ruídos visuais que os aparelhos emitem quando vistos de forma
muito próxima.
Desse aglomerado, algumas imagens são cruas, angustiantes, violentas, como
…Remote …Remote (1973), em que EXPORT cava, com auxílio de um estilete,
incessantemente, pequenas fissuras em seu dedo até fazê-lo sangrar para banhá-lo num
recipiente com leite que permanece em seu colo. Além disso, ela aplica mordidas nesse
mesmo dedo ferido. Outra obra bastante aflitiva é um vídeo, “I turn over the pictures of my
voice in my head” (2008), em que ela expõe, utilizando-se de um exame de laringoscopia, a
imagem das suas próprias cordas vocais a narrar frases como “as vozes dos altos e baixos; as
vozes da guerra; as vozes da mídia; é no centro disso tudo que está a minha própria voz”.
Num outro vídeo, Mann & Frau & Animal (1973), a câmera explora, num primeiro instante
(Mann – Homem), planos em close-up de uma banheira e de elementos que ganham
significações fálicas, como uma mangueira metálica de um chuveiro, com a qual o órgão
sexual da artista é estimulado por um fino jato de água, num segundo momento (Frau –
Mulher), em que ela se masturba e emite eufóricos gemidos. O terceiro momento (Animal)
desta alegoria sobre o gênero é marcado por uma imagem de uma vagina estática, que é
banhada por uma mão manchada de sangue.
VALIE EXPORT, Mann &,Frau,& Animal (1973), a partir da videoinstalação METANOIA (2011). Este registro
foi realizado por Tales Frey durante a visita à exposição Despair & METANOIA: Şükran Moral | VALIE
EXPORT na Galeri Zilberman em setembro de 2013. Istambul, Turquia
O teor da exibição realizada na Galeri Zilberman, em Istambul, não é vaporoso, apesar
do pequeno espaço e das poucas obras que lá permaneceram, nem é ofuscado pelo importante
evento da Bienal de Istambul; a substância é densa e impregna no inconsciente, obriga-nos a
reavaliarmos uma moral retrógrada ainda bastante presente na nossa atual história, evidencia
o anacronismo de condutas conservadoras, faz com que exportemos de lá para onde formos o
tom “imoral” e tão mais livre dos desagradáveis convencionalismos, dos aborrecíveis tabus.
EXPORT e Moral convocam-nos à valorização da vida e da igualdade dos gêneros,
unificando os indivíduos como semelhantes, demandando a exportação do contrário de uma
falida postura moral em seu sentido repressor.
Notas
[1] VETROMILE, Tania. Opere – Schede. In: LUX, Simonetta; MANIA, Patrizia. Şükran Moral:
Apocalypse. Roma: Gangemi Editore, 2005, p. 145-146; tradução livre para o português.
[2] Ideias presentes no texto-conceito da fotografia gerada a partir deste vídeo, na qual a artista usa
rouxinóis digitais para enfatizar a fragilidade desses humanos que ocupam o barco. Afinal, se o barco afundar, os
pássaros voam para longe, enquanto os corpos não conseguem fugir de um trágico desfecho. Na literatura turca,
o rouxinol tem uma significação relacionada ao amor, à esperança e também à separação.
[3] Essa videoinstalação de VALIE EXPORT é composta pelos seguintes vídeos autônomos:
I. Adjungierte Distokationen II, 1978;
II. Anagrammatische Komposition mit Würfelspiel von VALIE EXPORT (nach W.A. Mozart, Klavier)
für Sopransaxophon, 2010;
III. ASEMIE – die Unfähigkeit sich durch Mienenspiel ausdrücken zu können, 1973;
IV. Bewegte Bilder über sich bewegende Personen, 1973;
V. Body Politics, 1974;
VI. BODY TAPE, 1970;
VII. DELTA. Ein Stück, 1977;
VIII. die süße nummer: ein friedliches konsumerlebnis, 1968;
IX. Die Zweiheit der Natur, 1986;
X. FACING A FAMILY, 1971;
XI. Fragmente Burgenland, 1970;
XII. Gedichte, 1966;
XIII. Hauchtext: Liebesgedicht, 1970;
XIV. HYPERBULIE, 1973;
XV. I (BEAT (IT)), 1978;
XVI. INTERRUPTED LINE, 1972;
XVII. "I turn over the pictures of my voice in my head", 2008;
XVIII. Mann & Frau & Animal, 1973;
XIX. Raumsehen und Raumhören, 1974;
XX. ... Remote ... Remote ..., 1973;
XXI. Restringierter Code, 1979;
XXII. Schnitte / Elemente der Anschauung, 1971-1974;
XXIII. Sehtext: Fingergedicht, 1968/73;
XXIV. Sehtext: Fingergedicht, 1968;
XXV. Selbstportrait mit Auge, 1970;
XXVI. Selbstportrait mit Kopf, 1967;
XXVII. Syntagma, 1983;
XXVIII. TAPP und TASTKINO, (1969) 1989;
XXIX. "The voice as performance, act and body", 2007.
Bibliografia
GALERI ZILBERMAN. Despair & METANOIA: Şükran Moral | VALIE EXPORT: catálogo.
Istambul: [s.e.], 2013. 16p. Catálogo de exposição das artistas Şükran Moral e VALIE EXPORT.
LUX, Simonetta; MANIA, Patrizia. Şükran Moral: Apocalypse. Roma: Gangemi Editore, 2005.
© 2013 eRevista Performatus e o autor