38. gt - hermenêutica, caos e incerteza
Transcrição
38. gt - hermenêutica, caos e incerteza
ANAIS CONGRESSO DO MESTRADO EM DIREITO E SOCIEDADE DO UNILASALLE GT – HERMENÊUTICA, CAOS E INCERTEZA CANOAS, 2015 3018 A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL EXERCIDA PELOS TRÊS PODERES EM UM ESPAÇO CONSTITUCIONAL CURVO Igor Domingos do Altíssimo RESUMO: Este artigo propõe uma redefinição da interação entre os Três Poderes no processo de interpretação constitucional a partir do paradigma da física pósnewtoniana. Funda-se em uma concepção de espaço constitucional curvo que afeta e é afetado pela ação dos entes estatais, provocando distorções que afetam as ações um do outro. Para a física newtoniana os objetos massivos exercem força um sobre o outro através de um espaço “místico”. A física pós-newtoniana entende o espaço como curvo e afetado pelos objetos com massa, ao mesmo tempo que os afeta também. Propomos uma interpretação do espaço público a partir deste paradigma. Também, a partir de uma definição de democracia movida pelo constante desejo das massas e de República como permanente limitação desse desejo, ou seja, limitação do exercício de poder, repensamos a dinâmica dos Poderes da União e propomos uma solução para o sempre presente conflito entre o Legislativo, Executivo e o Judiciário. PALAVRAS-CHAVES: princípio da separação dos poderes; teoria da constituição; controle de constitucionalidade; física newtoniana; física pósnewtoniana; República; Democracia. 1 INTRODUÇÃO O ano é 1857. O local, Springfield, Illinois, nos Estados Unidos. Um proeminente político autodidata Abraham Lincoln, que mais tarde tornar-se-ia o 16º presidente norte-americano em um momento decisivo daquele país, discursava sobre as decisões judiciais. Dizia ele: Decisões judiciais têm dois usos: primeiro, servem para determinar absolutamente o caso decidido; e segundo, servem para indicar ao público como outros casos similares devem ser decididos quando estes surgirem. No segundo caso, eles são chamados de “precedentes” e “vinculativos”. Nós acreditamos tanto quando o Juiz Douglas (talvez até mais) em obediência e respeito às decisões judiciais. Acreditamos que suas decisões em questões constitucionais, quando assentadas, deveriam aplicar-se não apenas ao caso concreto decidido, mas de forma geral e abstrata em todo o país, sujeitas a revisão apenas por emendas à 3019 Constituição, como previsto nesta própria. Mais do que isso seria uma revolução. Mas nós acreditamos que Dred Scott foi uma decisão errada. Nós sabemos que o Tribunal que a decidiu constantemente tem revogado suas próprias decisões, e nós faremos o que pudermos para vê-lo revogar essa decisão também. Nós não oferecemos nenhuma resistência a ela. Decisões judiciais possuem maior ou menor autoridade como precedentes dependendo das circunstâncias (LINCOLN Apud ROE: 1907, p. 50, tradução livre do autor). O caso a que Lincoln faz referência é Dred Scott v. Sandford decidido pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 1856. A escravidão, desde o início da história norte-americana como um país independente, foi um ponto de dificuldade para a formação da união das ex-colônias e uma série de compromissos foram firmados para solucionar a divergência. À medida que o território se expandia para o Oeste a questão se complicava, porque cada estado que era formado podia representar força para os escravocratas ou abolicionistas, dependendo se o novo estado escolhesse ser livre ou escravagista. Em 1856 a questão já estava em ponto quase limite para a guerra civil. O Congresso por anos vinha editando leis que visassem apaziguar os estados escravagistas e abolicionistas, mas sem muito sucesso. Um dos atos do Legislativo foi o Missouri Compromisse, passado em 1820, que delimitava uma linha divisória de leste a oeste e determinava que ao norte dela os novos estados deviam obrigatoriamente ser livres da escravidão, proibindo com isso a escravidão no território da Louisiana. A lei é submetida a grande questionamento em 1854 quando os estados de Nebraska e Kansas estão para ser admitidos na União. Com o Congresso sem mais força política para resolver o conflito, resta a Suprema Corte emitir uma solução. O Tribunal então se reúne para decidir o caso Dred Scott. Tratava-se de um escravo no estado do Missouri que durante algum tempo residiu no território da Louisiana, livre da escravidão pelo Missouri Compromisse. De volta ao Missouri ele acionou o judiciário estadual requerendo sua liberdade, porque havia morado em um território livre e por isso tinha adquirido o direito à liberdade. Depois de perder na corte estadual, ele ingressa em um tribunal federal e o caso chega à Suprema Corte por via de recurso com intensa pressão para uma solução da questão escravagista. A primeira decisão a que chega o Tribunal é 3020 que nenhum americano de descendência africana pode nunca ser considerado um cidadão dos Estados Unidos e, portanto, não tinha o direito de ingressar com ação no Poder Judiciário. Essa opinião contrariava as leis de muitos estados que até previam direito de voto a ex-escravos e também, do ponto de vista formal, a Corte deveria ter parado de decidir aqui, se essa era a sua opinião. Se Dred Scott não era um cidadão, não havia caso a ser decidido por ilegitimidade ativa da parte. Mas havia uma questão a ser resolvida e a Suprema Corte não podia parar aqui. Decidiu então que o Congresso não tinha competência para restringir a escravidão e esta deveria ser legal em todo o território dos Estados Unidos, portanto o Missouri Compromisse era inconstitucional. Com isso os juízes achavam terem obtido uma solução definitiva para a questão da escravidão. Em seus discursos, Lincoln abertamente diz que se eleito irá institucionalmente desobedecer a decisão da Suprema Corte. Essa questão levanta um problema de teoria da constituição de solução nada fácil. Em todos os países que adotam o judicial review, aqui no Brasil denominado de controle de constitucionalidade, a doutrina dominante é de que o órgão máximo do Poder Judiciário tem a última decisão sobre questões constitucionais. O conflito surge quando os demais poderes e, de certa forma, a comunidade política que diretamente elege os membros dos demais poderes discordam desse entendimento do Judiciário. A questão que se apresenta é, dentro da teoria da divisão dos três poderes, como deve funcionar a interação entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário? Dizemos que estes devem ser independentes e harmônicos entre si, mas o que isso realmente significa? Partimos da ideia apontada por Luís Roberto Barroso (1999, p. 116): “A interpretação da Constituição é exercida por órgãos dos três Poderes estatais. Assim se passa, em primeiro lugar, para a delimitação de sua própria esfera de competências”. Portanto, cada um dos órgãos estatais da União tem papel na interpretação constitucional, mas como órgãos representantes de vontade política em uma sociedade plural e democrática eles podem divergir quanto à interpretação da norma fundamental. A doutrina é pacífica em afirmar que, em países que adotam o controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário, sua decisão vincula os demais Poderes, mas “Não é incomum que a interpretação 3021 judicial venha sobrepor-se à interpretação feita pelo Legislativo – como se passa quando declara uma lei inconstitucional – ou pelo Executivo” (Ibidem, p. 118). Isso significa que Lincoln, no exercício do cargo de chefe do Poder Executivo, não detinha a autoridade de desobedecer a opinião da Suprema Corte sobre a constitucionalidade das leis editadas pelo Congresso sobre escravidão? Essa concepção adota um entendimento da divisão dos Três Poderes que se centra na característica de independência e que harmonia é cada um exercer autoridade dentro do seu âmbito de competências. Não partilhamos dessa concepção. Em uma sociedade aberta e plural em que se concebe que todos os afetados pela norma são também seus intérpretes (HABERLE: 1997), entendemos “que todos os cidadãos têm o direito, desde que discursiva e racionalmente fundados, de desobedecer a um comando normativo que considerem inconstitucional” (CATTONI: 2006, p. 177). E isso inclui o chefe do Poder Executivo e os membros do Poder Legislativo, haja visto que todos eles fizeram um juramento de defender e aplicar a Constituição e esta é mais do que o que o Tribunal Constitucional de um país diz que ela é. O problema que se apresenta, então, é a adequação da teoria dos Três Poderes a essa concepção de como eles devem interagir. Necessita-se de uma reformulação dos conceitos de independência e harmonia, para uma concepção em que eles atuariam em constante choque, criando e destruindo os atos de uns dos outros. Buscaremos o referencial para essa conceituação na física, como procedido pelo professor de direito constitucional de Harvard, Laurence Tribe. Tribe (1989, p. 2-3) expõe que a ideia do funcionamento dos órgãos dos Três Poderes pelos teóricos jusnaturalistas teve origem na física newtoniana. Imaginava-se que os Poderes funcionariam como um sistema mecânico, que a partir da aplicação de uma força permaneceriam em movimento autônomo. A ciência natural, assim com a ciência do Direito, evoluiu desde as proposições de Newton e a Teoria da Relatividade Geral e a Física Quântica deram soluções a fenômenos que a física newtoniana não foi capaz de explicar. A física pós- 3022 newtoniana apresenta-se, então, como possibilidade para um novo referencial para a conceituação dos institutos do Direito1. Sobre o problema aqui abordado, merece as relevantes palavras de Luís Roberto Barroso (2009, p. 391): No Brasil, só mais recentemente se começaram a produzir estudos acerca do ponto de equilíbrio entre supremacia da Constituição, interpretação constitucional pelo Judiciário e processo político majoritário. O texto prolixo da Constituição, a disfuncionalidade do Judiciário e a crise de legitimidade que envolve o Executivo e o Legislativo tornam a tarefa complexa. 2 ESPAÇO CONSTITUCIONAL CURVO A Constituição origina-se de um processo revolucionário, produzida pelo Poder Constituinte tem um caráter de supremacia no Ordenamento Jurídico por ser o texto legal que o funda e delimita (BARROSO: 2006, p. 94-121). Fundar não significa que a Constituição apenas descreve as características das instituições do Estado, pelo contrário, como afirma Barroso (Ibidem, p. 74), “a Constituição não tem caráter meramente descritivo das instituições, mas sim a pretensão de influenciar sua ordenação, mediante um ato de vontade e de criação, usualmente materializado em um documento escrito”. Em conclusão, o emérito constitucionalista diz que a Norma Fundamental cria ou reconstrói o Estado, organizando e limitando o poder político, dispondo acerca de direitos fundamentais, valores e fins políticos e disciplinando o modo de produção e os limites de conteúdo das normas que integrarão a ordem por ela instituída (BARROSO: 2006, p. 74, grifos acrescidos). Cattoni (2006, p. 70-72), fundado na teoria do autor alemão Jürgen Habermas, procede a uma análise das concepções de espaço público e privado – bem como a produção do Direito – de acordo com as visões de justiça liberal e republicana, com o fim de reconstruí-las de uma forma que ele considera “mais 1 Cabe esclarecer que em absoluto este artigo propõe um retorno à concepção jusnaturalista. Como assevera Tribe (1989, p. 2): “A melhor visão da ciência é uma contínua e, acima de tudo, crítica exploração de visões frutíferas, a melhor metáfora é a de uma jornada. Ciência não se baseia tanto em provar, quanto em desenvolver. Olhar para as ciências naturais em busca de autoridade – isto é, para se ter certeza – é olhar para algo que não está lá” (tradução livre do autor) (grifos acrescidos). 3023 adequada ao paradigma procedimentalista do Estado Democrático de Direito” (Ibidem, p. 70). A partir do momento que se supera tanto a concepção republicana quanto a concepção liberal de processo político, a Constituição, para articular-se com uma visão discursiva da Democracia, deverá ser compreendida, fundamentalmente, como a interpretação e prefiguração de um sistema de direitos fundamentais, que apresenta as condições procedimentais de institucionalização jurídica das formas de comunicação necessárias para uma legislação política autônoma. Essa institucionalização jurídica das formas de comunicação necessárias para uma legislação política autônoma deverá estabelecer, em termos constitucionais, as condições para um processo legislativo democrático, no qual a soberania popular e os direitos humanos, concebidos desde o início, como princípios jurídico-constitucionais, fazem valer o nexo interno entre autonomia pública e autonomia privada dos cidadãos, estas também consideradas, desde o início, de forma jurídica, co-originárias e com igual relevância, em contraponto com as tradições republicana e liberal, que relevam apenas uma delas e as compreendem inicial e respectivamente ou como autodeterminação ética, ou como autonomia moral (CATTONI: 2006, p. 71-72). Não abriremos mão dessa conceituação de espaço público, ou espaço constitucional como denominamos no título seguindo a nomeação de Tribe (1989), mas apresentaremos uma perspectiva desse espaço em conceitos da física pós-newtoniana. A física newtoniana entendia o universo como composto de objetos massivos cujos comportamentos no espaço podiam ser explicados por leis objetivas sem que se precisasse fazer análises mais complexas sobre a estrutura do universo. Os objetos podiam interagir, mas nunca alterar o espaço em si. Segundo Newton, a gravidade varia linearmente dependendo da massa do objeto. Newton foi capaz de desenvolver uma fórmula matemática que possibilitava calcular com muita precisão a força gravitacional que dois objetos exercem um sobre o outro. Contudo, algumas questões foram deixadas em aberto na sua teoria. A teoria newtoniana não é capaz de explicar por que a variação na distância entre os objetos afeta a força gravitacional entre eles. De alguma forma, o Sol e a Terra “sabem” a que distância estão um do outro, como se uma “corda” invisível ligasse cada átomo um do outro (TRIBE: 1989, p. 3). 3024 A teoria da relatividade de Einstein irá mudar essa concepção, percebendo que os objetos com massa podem alterar a estrutura do tecido espaço-temporal e a física quântica postula que a interação entre o objeto e o observador a um nível subatômico muda a realidade do experimento. A Teoria da Relatividade Geral postula, como solução ao problema deixado em aberto na teoria newtoniana, que os corpos massivos distorcem o espaço ao seu redor; e os outros objetos, ao entrar nesse espaço distorcido, movem-se seguindo essa distorção. Para os objetos em movimento eles estão apenas seguindo a trajetória formada pela curvatura do tecido espacial e não são, realmente, afetados por algum tipo de conexão à distância. Da teoria newtoniana para a einsteiniana ocorre uma mudança de paradigma, de percepção, da natureza do espaço. Para Newton o espaço é fixo e imutável, para Einstein ele é relativo (TRIBE: 1989, p. 3-4). Em uma perspectiva do Direito, a teoria newtoniana seria aquela em que os atores estatais atuariam sem afetar o espaço no qual agem. Já em um paradigma pós-newtoniano é possível perceber que a ação órgãos dos Três Poderes do Estado afeta o espaço em que agem, como também o espaço afeta a ação dos atores. Em paralelo com a ciência do direito, isso quer dizer que a o Direito não pode ser percebido como à parte espaço público no qual ele é produzido (TRIBE: 1989, p. 4). (o direito) não pode ser um referencial neutro, e seletivamente adentrar, como se fosse um agente externo, para fazer ajustes em conflitos particulares. Cada decisão reestrutura o Direito em si, assim como a realidade social na qual ele opera, porque, como toda atividade humana, o direito está fatalmente inserido no processo dialético através do qual a sociedade constantemente se recria (TRIBE: 1989, p. 4, tradução livre do autor). Diante do exposto, percebe-se que a natureza do espaço público de ação política das instituições do Estado é curvo, ou seja, não é imutável e rígido, mas distorce-se como consequência da ação política. O que isso significa é que os entes estatais não estão lançando decisões de um ponto externo à realidade social, mas completamente imersos nela. Se vamos conduzir um discurso constitucional através de uma conversa verdadeira para valores contemporâneos – abandonando o prisma da física newtoniana e suas analogias – então devemos entender o Estado não como uma coisa mas como um sistema de regras, princípios e concepções que 3025 interagem com um espaço que é em parte produto de uma ação política anterior. E devemos sobre os eventos e as pessoas envolvidas sem pretender que eles são pré-políticos; eles também são, em parte, formados pelas ações políticas. [...] A mudança de paradigma para um modelo que contenha tanto a geometria do espaço público e a interação entre o observador e o fenômeno observado tem raízes profundas em práticas existentes e maneiras de se pensar o Direito (TRIBE: 1989, p. 12-13, tradução livre do autor). 3 A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL EXERCIDA PELOS TRÊS PODERES 3.1 República como Constante Contenção do Exercício de Poder O tensionamento gerado pela revisão judicial dos atos do Poder Legislativo tem origem na contradição existente entre os conceitos de democracia e constitucionalismo. Constitucionalismo significa, em essência, limitação do poder e supremacia da lei (Estado de direito, rule of law, Rechtsstaat). Democracia, por sua vez, em aproximação sumária, traduz-se em soberania popular e governo da maioria. Entre constitucionalismo e democracia podem surgir, eventualmente, pontos de tensão: a vontade da maioria pode ter de estancar diante de determinados conteúdos materiais, orgânicos ou processuais da Constituição. Em princípio, cabe à jurisdição constitucional efetuar esse controle e garantir que a deliberação majoritária observe o procedimento prescrito e não vulnere os consensos mínimos estabelecidos na Constituição (BARROSO: 2009, p. 87-88). O conflito pode ser entendido também como uma divergência entre os conceitos de República e Democracia. Rancière (2014, p. 14-18) e Ribeiro (2000, p. 13-14) trabalham os conceitos clássicos de democracia e república de Aristóteles e Platão e percebem que na democracia o elemento crucial é o “desejo” das massas, que comanda ditatorialmente o governo da sociedade com o fim de confiscar e redistribuir os bens dos mais ricos entre os mais pobres. Como afirma Rancière (2014, p. 15) “a democracia, diziam os relatores, significa o aumento irresistível de demandas que pressiona os governos, acarreta o declínio da autoridade e torna os indivíduos e os grupos rebeldes à disciplina e aos sacrifícios exigidos pelo interesse comum”. É, portanto, um regime fundado no 3026 princípio anárquico, subversivo e é, consequentemente, ingovernável. Em conclusão, “a democracia não é nem uma sociedade a governar nem um governo da sociedade, mas é propriamente esse ingovernável sobre o qual todo governo deve, em última análise, descobrir-se fundamentado” (RANCIÈRE: 2014, p. 66). A República tem como fundamento a constante contenção do desejo das massas, a constante contenção do exercício de poder. É um governo de cunho aristocrático, fundado em uma virtude aristocrática de contenção do desejo individual em prol do interesse comum (RIBEIRO: 2000, p. 17-18). A tensão entre democracia e república é evidente. A primeira tem como premissa a crucificação dos reis dos homens, enquanto a segunda reflete a necessidade do bom pastor na condução da sociedade (RANCIÈRE: 2014, p. 47-49). Nessa linha de raciocínio, a Constituição de uma dada sociedade política reuniria um conjunto de consensos mínimos que limitariam o poder de decisão das maiorias em uma democracia. Além, é claro, de definir os limites do espaço político de deliberação sob o qual se produz um Direito legítimo (BARROSO: 2009, p. 89-90). Longe de serem conceitos antagônicos, portanto, constitucionalismo e democracia são fenômenos que se complementam e se apoiam mutuamente no Estado contemporâneo. [...] Por meio do equilíbrio entre Constituição e deliberação majoritária, as sociedades podem obter, ao mesmo tempo, estabilidade quanto às garantias e valores essenciais, que ficam preservados no texto constitucional, e agilidade para a solução das demandas do dia-a-dia, a cargo dos poderes políticos eleitos pelo povo (Ibidem, p. 90). A uma mesma conclusão chega Ribeiro (2000, p. 22-23), sobre as contradições entre república e democracia: o problema da democracia, quando ela se efetiva – e ela só pode efetivar sendo republicana -, é que, ao mesmo tempo que ela nasce de um desejo que clama por realizar-se, ela também só pode conservar-se e expandir-se contendo e educando os desejos. Essas considerações têm grande impacto ao se pensar na legitimidade do processo democrático de produção legislativa como um todo, bem como a atuação dos juízes em uma democracia e o papel do executivo na concretização do que é preceituado na Constituição. É necessário ter em mente a falácia 3027 inerente ao sistema representativo, como expõe com propriedade Rancière (2014, p. 68): A “sociedade democrática” é apenas uma pintura fantasiosa, destinada a sustentar tal ou tal princípio do bom governo. As sociedades, tanto do presente quanto no passado, são organizadas pelo jogo das oligarquias. E não existe governo democrático propriamente dito. Os governos se exercem sempre da minoria sobre a maioria. E em outro trecho o autor fala especificamente do modelo de democracia representativa: a representação nunca foi um sistema inventado para amenizar o impacto do crescimento das populações. Não é uma forma de adaptação da democracia aos tempos modernos e aos vastos espaços. É, de pleno direito, uma forma oligárquica, uma representação das minorias que têm título para se ocupar dos negócios comuns (Ibidem, p. 69). Por fim, o que está subjacente a esse conflito entre república e democracia, ou entre constitucionalismo e democracia, é a luta pela dominação do espaço público. É no contexto dessa luta que deve ser compreendido o processo democrático. Uma vez que o vínculo com a natureza está cortado, e os governos são obrigados a se mostrar como instância do comum da comunidade, separadas da lógica única das relações de autoridade imanentes à reprodução do corpo social, existe uma esfera pública que é uma esfera de encontro e conflito entre as duas lógicas opostas da polícia e da política, do governo natural das competências sociais e do governo de qualquer um. A prática espontânea de todo governo tende a estreitar a esfera pública, a transformá-la em assunto privado seu e, para isso, a repelir para a vida privada as intervenções e os lugares de intervenção dos atores não estatais. Assim, a democracia, longe de ser a forma de vida dos indivíduos empenhados em sua felicidade privada, é o processo de luta contra essa privatização, o processo de ampliação dessa esfera. Ampliar a esfera pública não significa, como afirma o chamado discurso liberal, exigir intervenção crescente do Estado na sociedade. Significa lutar contra a divisão do público e do privado que garante a dupla dominação da oligarquia no Estado e na sociedade (RANCIÈRE: 2014, p. 72). 3.2 O Devido Processo Legislativo e a Mutação Constitucional por Via Legislativa 3028 Em uma sociedade democrática moderna é imprescindível para a produção legítima de leis a observância de um Devido Processo Legislativo. Cattoni (2006, p. 40) define o processo de produção da lei como atos jurídicos que, ao densificarem um modo jurídicoconstitucional de interconexão prefigurada, constituem-se em uma cadeia procedimental. Essa cadeia procedimental se desenvolve discursivamente, ou, ao menos, em condições equânimes de negociação, ou, ainda, em contraditório, entre agentes legitimados, no contexto de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição, visando à formação e à emissão de um ato público-estatal do tipo pronúncia-declaração, um provimento legislativo que, sendo o ato final daquela cadeia procedimental, dá-lhe finalidade jurídica específica. O autor irá explorar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e perceber que a Egrégia Corte reluta em exercer um controle de constitucionalidade do processo legislativo, considerando como uma questão interna corporis do Legislativo (CATTONI: 2006, p. 48-51). Vale grifar: segundo o Supremo Tribunal Federal, é somente nos casos de descumprimento direto de normas constitucionais referentes às formalidades do processo legislativo que os parlamentares teriam legitimação ativa para impetrar mandados de segurança contra os atos processuais legislativos que imediatamente descumprissem a Constituição, porque lhes assistiria um direito público subjetivo [...] de não terem de votar projetos de lei ou propostas de emenda que julguem inconstitucionais (CATTONI: 2006, p. 49). Esse entendimento, como ressalta e contundentemente critica o autor, tem levado à “privatização” do processo legislativo, como se tal pertencesse ao parlamentar (CATTONI: 2006, p. 49). O processo legislativo não é um direito privado do parlamentar; é uma “função pública de representação política” (Ibidem, p. 51). A posição do STF tem levado, de uma perspectiva não somente normativa, mas também objetiva, ao surgimento de verdadeiras ilhas corporativas de discricionariedade, o que estará resultando numa quase total ausência de parâmetros normativos, abrindo espaço, dessa forma, para um exercício cada vez mais arbitrário do poder político (Ibidem, p. 51). A interpretação do Supremo sobre o processo legislativo, em uma perspectiva pós-newtoniana, é como se houvesse alguma região do espaço constitucional em que a Constituição não exercesse força gravitacional. Um Buraco Negro dentro do Estado Democrático de Direito, que sugaria toda a 3029 normatividade das normas constitucionais e deixaria o processo legislativo a um puro exercício de força e não de poder político2. Tribe, analisando o papel do Estado ao editar leis, conclui que ao editar uma lei está-se distorcendo o espaço sob o qual todos nós vivemos. A abordagem que eu estou sugerindo aqui não precisa levar, nem abraçar, uma ideologia paternalista. A heurística pós-newtoniana não força respostas sobre nós; ao contrário, ela nos compele a questionar. Não é um clamor por “todos os poderes aos juízes”, mas um questionamento de como a distribuição e direção de todos os poderes políticos – incluindo os dos juízes – definem o espaço público no qual todos nós vivemos, e no qual nas lacunas estamos perdidos (TRIBE: 1989, p. 7). É ilógico que exista uma descontinuidade no tecido do espaço constitucional, uma área fora do Direito. Também é inerente ao próprio processo de produção normativa a capacidade que os próprios órgãos do Poder Legislativo interpretem a Constituição. Como coloca Barroso (1999, p. 117), A interpretação constitucional pelas Casas do Congresso, por Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais é indispensável para que exercitem sua atividade legislativa nos limites da Lei Maior, e, talvez mais importante, para que legislem de forma a realizar os fins constitucionais. No processo de edição de leis é possível ocorrer que o Legislativo tente mudar uma interpretação dada pelo Judiciário a determinada norma constitucional. A esse processo Barroso (2009, p. 132) denomina “mutação constitucional por via legislativa”. Trata-se do problema de Lincoln proposto na Introdução, de que ele pretendia continuar forçando o Congresso a editar leis que, segundo o entendimento da Suprema Corte dos Estados Unidos, eram inconstitucionais. No Brasil também houve tentativa do Legislativo de alterar interpretação da Constituição dada pelo STF, caso que passamos a analisar. Sempre foi uma questão controversa a prerrogativa de foro perante o Supremo Tribunal Federal, mais especificamente sobre a sua persistência ou não caso a causa de privilégio cesse de existir. Ainda hoje não é pacífico na Corte a Já não é mais possível imaginar áreas de uma sociedade política não afetadas pelo Direito, regiões de descontinuidade do tecido do espaço constitucional reservadas à atuação de um pretenso direito natural. Tribe (1989, p. 8, tradução livre do autor) coloca nestes termos: “Esse conceito manipulador de uma ordem social “natural”, que serve de suporte para ações estatais, é muitas vezes empregado para retirar do Estado o papel e a responsabilidade de criar e reforçar relações de poder”. 2 3030 questão, sendo a jurisprudência oscilante e muito casuística. Durante décadas, contudo, mesmo já no regime da Constituição de 1988, o STF entendeu que a prerrogativa de foro permanecia mesmo após a perda da causa de privilégio. Esse era o sentido da Súmula n. 394: “Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal seja iniciados após a cessação daquele exercício” (BARROSO: 2009, p. 131). No entanto, em julgamento de Questão de Ordem no Inquérito 687/DF, de relatoria do Ministro Sydney Sanches, o Supremo cancelou a referida Súmula, mudando a interpretação adotada para o artigo 102, I, b, da Constituição de 1988 e “passando a afirmar que a competência especial somente vigoraria enquanto o agente estivesse na titularidade do cargo ou no exercício da função” (BARROSO: 2009, p. 131). Os representantes do Poder Legislativo não concordaram com essa mutação constitucional adotada pelo STF e editaram a Lei n. 10.628, de 2002, que dava a seguinte redação ao artigo 84 do Decreto-Lei n. 3.689/41 (Código de Processo Penal): Art. 84. A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e de responsabilidade. § 1o A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública. § 2o A ação de improbidade, de que trata a Lei no 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1o. (BRASIL: 2002, s/p, grifos acrescidos). Em análise simples, a Lei restaurava o estado que existia antes do cancelamento da Súmula n. 394. Não procedia a uma alteração do texto da Constituição em si, apenas dava-lhe outro sentido. O STF, contudo, invalidou a pretensão do Legislativo de ser também intérprete da Constituição por meio de edição de leis ordinárias, declarando a Lei inconstitucional (BRASIL: 2006, p. 1-2). No seu voto o Ministro Sepúlveda Pertence faz colocações pertinentes sobre as 3031 vinculações dos outros poderes à interpretação constitucional procedida pelo Supremo Tribunal Federal: Certo, a Constituição não outorgou à interpretação constitucional do Supremo Tribunal Federal o efeito de vincular o Poder Legislativo, sequer no controle abstrato de constitucionalidade das leis, quando as decisões de mérito só terão força vinculante para os “demais órgãos do Poder Judiciário e Poder Executivo”. Menos ainda cabe cogitar de vinculação do Legislativo às decisões do STF que diretamente aplicam a Constituição aos fatos: ao contrário das proferidas no controle abstrato de normas, são acórdãos que substantivam decisões tipicamente jurisdicionais, de alcance restrito às partes. O ponto está em que às leis ordinárias não é dado impor uma dada interpretação da Constituição (BRASIL: 2006, p. 17-18). Pode-se perceber desse caso, independentemente se a Lei ordinária é ou não é meio formalmente constitucional de se proceder a uma mutação constitucional, é uma antiga concepção da ideia de divisão dos Três Poderes, fundada no paradigma newtoniano. A ideia de que o princípio de harmonia entre os poderes é simplesmente um corolário do princípio da independência, ou seja, que apenas garantindo que cada poder estatal exerça autoridade dentro dos seus limites de competência garante harmonia entre eles, não é sempre verdade. Essa concepção newtoniana leva inevitavelmente a um conflito direto, em que cada poder fica constantemente tentando destruir os atos uns dos outros “à distância”. No caso em análise, o STF decidiu que, apesar dos demais poderes terem o poder de interpretar a Lei Fundamental – e realmente precisam fazê-lo no exercício de suas funções –, apenas a Excelsa Corte tem a competência de interpretar de forma vinculativa e terminativa a Constituição. É pertinente a observação que faz Barroso (2009, p. 133-134), de que a mudança na própria jurisprudência do STF é indício de que existem, no mínimo, duas interpretações para o dispositivo constitucional e ambas são legítimas, “é discutível que ao legislador não fosse facultada a escolha de uma delas” (Ibidem, p. 134). Voltemos à experiência norte-americana. Após a Guerra Civil o Congresso aprovou a 13ª e 14ª emendas à Constituição com clara intenção de reverter os precedentes adotados pela Suprema Corte. No entanto, a Corte reluta em mudar seu entendimento e mantém-se conservadora por ainda cem anos após a Guerra Civil. Veja, por exemplo, Lochner v. New York, caso em que o Tribunal invalida 3032 leis trabalhistas do estado de Nova York em defesa de uma liberdade quase absoluta dos particulares de firmarem contratos entre si, e Plessy v. Ferguson onde é adotada a doutrina do “iguais mas diferentes” legitimadora da segregação racial que permanece por mais de um século após a Guerra Civil. A situação começa a se alterar na década de 1930 quando outro confronto direto entre os Poderes Executivo e Legislativo e o Poder Judiciário se apresenta e dessa vez a Corte abre espaço para a atuação dos demais poderes. Em West Coast Hotel Co. v. Parrish a Suprema Corte reverte a decisão Lochner e permite ao Congresso legislar sobre questões trabalhistas (BARROSO: 2009, p. 134). O que é evidente nesses casos é o confronto direto entre os Três Poderes, porque interpreta-se a divisão de poderes com foco na independência, em uma perspectiva newtoniana de gravidade, em que cada corpo exerce uma força independente um sobre o outro através de um espaço “místico”. A mudança de paradigma deve ser orientada para o entendimento de que esses entes estatais estão exercendo poder em um espaço constitucional curvo compartilhado e suas ações distorcem esse espaço, como também são afetadas pelo próprio espaço (TRIBE: 1989, p. 10). A Suprema Corte chega a esse nível de harmonia em Brown v. Board of Education, quando reverte o entendimento sobre segregação de Plessy v. Ferguson. Apesar de a decisão da Corte em si ter sido praticamente inócua, ela alterou o espaço constitucional suficientemente para dar início a um movimento de questionamento da segregação (TRIBE: 1989, p. 14). Os demais poderes seguiram a distorção criada pela força gravitacional do Tribunal no tecido do espaço constitucional. O Poder Legislativo aprovou uma série de leis – Civil Rights Act, de 1964, Voting Rights Act, de 1965, Fair Housing Act, de 1968 – e o Executivo executou essas legislações, garantindo proteção policial para as crianças que iriam frequentar as escolas desegregadas (BARROSO: 2009, p. 125). É uma nova perspectiva de interação entre os Poderes, fundada em um paradigma pós-newtoniano. Semelhante controvérsia foi verificada no Brasil em relação a Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, que gerou intensa resistência nos tribunais pátrios que a consideravam inconstitucional. O Presidente da 3033 República então impetrou uma Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC 19) visando encerrar a divergência quanto a constitucionalidade da lei e permitir que ela surtisse seus efeitos plenamente. Neste caso, os Três Poderes atuaram conjuntamente para garantir governança. Diferente da ideia que harmonia deriva da independência, a harmonia deriva da atuação visando à estabilização das relações sociais. 3.3 A Interpretação Constitucional no Poder Executivo O Poder Executivo, órgão competente por dar efetividade às políticas públicas criadas no âmbito do Poder Legislativo, exerce também interpretação constitucional no exercício de suas funções. Esta é a interpretação administrativa, ou orgânica, assim definida por Ferraz (1986, p. 148): Consiste, assim, na interpretação constitucional operada mediante atos, resoluções ou disposições gerais ou não, que não tenham por objetivo a elaboração de leis interpretativas ou complementares à Constituição ou decisões jurisprudenciais visando a aplicação da Constituição a casos concretos ou à declaração de inconstitucionalidade de leis e atos normativos. Apesar de ser o Poder Executivo órgão que exerce a interpretação constitucional administrativa por excelência, devido ao teor de suas funções, os demais órgãos estatais também a exercem quando, autorizados pela Constituição, realizam funções administrativas (FERRAZ: 1986, p. 147). Ela pode ser exercida de diferentes meios e modos e possui características particulares em relação à interpretação exercida nos demais poderes. Ferraz (1986, p. 149-150) dá o exemplo do ato de nomeação de ministros para o Supremo Tribunal Federal, no Brasil reservado ao Presidente da República. Esse ato implica em interpretação constitucional, pela própria linguagem aberta do artigo 101 da Constituição da República de 1988, que fala em cidadãos de “notável saber jurídico e reputação ilibada”. Esses termos abrangentes conferem autonomia ao Chefe do Poder Executivo para interpretar a norma constitucional na sua aplicação. A interpretação constitucional administrativa pode ser direta, quando fundada diretamente na Constituição, ou indireta, quando fundada em leis 3034 infraconstitucionais que complementam preceitos constitucionais (FERRAZ: 1986, p. 150-152). Pode, quanto a sua finalidade, serem atos políticos ou puramente administrativos. Os atos políticos são, em regra, livres porque são discricionários, já os administrativos podem ou não ser livres, dependendo do que prevê a Constituição, e, portanto, estão sujeitos a controle de constitucionalidade (Ibidem, p. 154). E ainda, quanto aos seus efeitos, a interpretação constitucional administrativa pode ser vinculante interna corporis, quando restrita a uma cadeia hierárquica da administração pública; e vinculante externa corporis, quando feita por meio de regulamentos, decretos, etc., vinculantes aos demais poderes (Ibidem, p. 156). Destaca-se uma última característica da interpretação constitucional do Poder Executivo, a mais controversa, que é a negativa de eficácia. Pode o Presidente da República recursar-se a dar efetividade a um ato emanado do Poder Legislativo por considera-lo inconstitucional? Ferraz (1986, p. 153) alude ao jurista mexicano Fix-Zamudio que, em análise ao ordenamento jurídico mexicano, conclui que não cabe aos administradores desobedecer uma lei. Ferraz (Ibidem), contrariamente a essa posição, aponta que, em ordenamentos jurídicos nos quais existam controle concentrado de constitucionalidade pelo Poder Judiciário, essa restrição é atenuada, na medida que, muitas vezes, parte do próprio Poder Executivo a provocação para o controle direto. Nesses ordenamentos, a posição do administrador, sob esse ângulo, quase que se equipara à do legislador que sofre, diretamente, o controle jurisdicional de constitucionalidade. Observe-se, ainda, que a faculdade de o Executivo não aplicar leis inconstitucionais, negada pelo Autor, vem se afirmando em alguns ordenamentos, ainda que reservada, conforme lembra Manoel Gonçalves Ferreira Filho, aos órgãos de cúpula do Poder Executivo que atuam por sua conta e risco (FERRAZ: 1986, p. 153-154). Neste caso, tem-se um ponto aberto de conflito entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo. Barroso (1999, p. 117) segue o mesmo posicionamento de Ferraz de que a doutrina e a jurisprudência majoritariamente conferem ao Presidente a discricionariedade de não cumprir leis que considere inconstitucionais até o pronunciamento definitivo do Poder Judiciário. Campos (2011, p. 12) contrapõe essa doutrina majoritária a uma minoritária, que entende 3035 que o Chefe do Poder Executivo não detém essa prerrogativa. Como argumentos, a corrente minoritária apresenta que a Constituição prevê um momento para o Presidente da República questionar a constitucionalidade do ato legislativo, que é quando da sanção ou veto presidencial, nos termos do artigo 66 e parágrafos da CR/88 (Ibidem, p. 14-15). Também é argumentado pela corrente minoritária que o posicionamento majoritário conflitaria com o princípio constitucional de constitucionalidade dos atos legislativos (Ibidem, p. 18-20). Concordaremos aqui com a posição majoritária, destacando a preponderância do princípio da supremacia da Constituição. No ordenamento jurídico pós 1988 é inegável que a Carta Magna tem um caráter preponderante em relação às leis infraconstitucionais. O processo de constitucionalização do direito infraconstitucional passa também pela constitucionalização dos atos da administração pública, cabendo ao administrador observar os ditames constitucionais antes dos infraconstitucionais. Para os que acreditam que essa postura conferiria um grande poder discricionário ao Poder Executivo e deixaria seus atos sem limitações, postulamos que esses limites estariam delineados pela própria Constituição ao lançar as bases do processo político da sociedade democrática. Como define Barroso (1999, p. 117), o Poder Executivo interpreta a constituição orientando sua conduta pelos princípios constitucionais da Administração Pública, das restrições previstas e na aplicação das políticas governamentais. Por fim, a interpretação constitucional administrativa nem sempre será caso de mutação constitucional. Ferraz (1986, p. 157) diz que A interpretação constitucional administrativa configura processo de mutação constitucional sempre que, atuando para concretizar, integrar e aplicar a Constituição, conduz, permite ou possibilita a transformação do sentido, do significado e do alcance das disposições da Lei Fundamental, amoldando-a a realidades novas, a situações novas, novas necessidades sociais. Destaca a autora que a mutação constitucional no âmbito do Executivo terá destaque nas normas constitucionais programáticas de eficácia limitada e nas de eficácia contida (FERRAZ: 1986, p. 158). Nas normas programáticas há a presença de princípios genéricos e esquemáticos dirigidos pelo constituinte não ao legislador ordinário propriamente, 3036 mas ao administrador para interpretá-los no ato de execução da norma. É essa atividade interpretativa que dará o verdadeiro conteúdo e sentido da norma constitucional (FERRAZ: 1986, p. 158). A atividade interpretativa administrativa, concretizando as normas programáticas, ainda que observados, necessariamente, os limites constitucionais dará em grande medida o sentido real e concreto da Constituição. De outro lado, a inércia do intérprete constitucional administrativo é sobretudo significativa, quer quando lhe cumpre, diretamente, integrar a eficácia da norma constitucional, quer quando deve fazê-lo, indiretamente (FERRAZ: 1986, p. 160). 3.4 Controle de Constitucionalidade e o Mundo Além do Espelho Clássica forma de exame de constitucionalidade dos atos emanados do Poder Legislativo, o controle de constitucionalidade, ou judicial review, exercido pelo Poder Judiciário teve uma origem conturbada e até hoje não é pacífico sua legitimidade, apesar de amplamente aceito. Tem origem nos Estados Unidos, com o brilhante precedente firmado pela Suprema Corte em Marbury v. Madison em 1803, com a presidência do chief justice John Marshall (BARROSO: 1999, p. 159162). O mecanismo de controle de constitucionalidade deriva da própria característica de supremacia da Constituição em relação às demais normas do Ordenamento Jurídico e isso está expresso no voto de Marshall: “ou a Constituição controla todo ato legislativo que a contrarie, ou o legislativo, por um ato ordinário, poderá modificar a Constituição. Não há meio termo entre tais alternativas” (HUGHES Apud BONAVIDES: 2013, p. 318). Não está explícito no texto constitucional norte-americano que competiria ao Judiciário a revisão de leis emanadas do Legislativo, mas Marshall raciocina que essa função derivaria do próprio trabalho dos Tribunais que é o de aplicar as leis ao caso concreto. Na realização dessa função, ao se deparar com duas leis que igualmente se aplicam ao caso – de um lado a Constituição e do outro uma lei ordinária – seria contraditório ao princípio da supremacia constitucional escolher aplicar a lei ordinária (BARROSO: 1999, p. 160-162). Também não poderia ser deixado a cargo do Legislativo – órgão do qual emanou a lei – o controle de 3037 constitucionalidade do próprio ato. Por isso mesmo da ideia de checks and balances da divisão dos Poderes (Ibidem, p. 162-163). Por uma Constituição limitativa, eu entendo aquela que contém certas exceções específicas à autoridade legislativa, como por exemplo as de que não aprovarão bills of attainder nem leis ex post facto ou outras semelhantes. Tais limitações na prática somente poderão ser preservadas por via dos tribunais, cuja obrigação deve ser a de declarar nulos todos os atos contrários ao teor manifesto (manifest tenor) da Constituição. Sem isto todas as reservas de direitos particulares ou privilégios se reduzirão a nada (HAMILTON Apud BONAVIDES: 2013, p. 317). Mesmo com essa fundamental função de guardião da Constituição, o Judiciário ainda é, dentre os três poderes, o mais fraco. Nesse sentido Schwartz (Apud BONAVIDES: 2013, p. 326-327) diz que o judiciário é incomparavelmente o mais fraco dos três ramos do poder [...] não exerce nenhuma influência sobre a espada ou sobre a bolsa; falece-lhe a direção da força ou da riqueza da sociedade; e nenhuma resolução ativa pode tomar qualquer que seja. Em verdade, é possível dizer que não possui nem a força nem a vontade, mas um mero julgamento Assim é que o controle de constitucionalidade, principalmente o concentrado por sua grande intervenção na vontade emanada do Poder Legislativo deve ser utilizado com contenção. Uma série de princípios regem e limitam a ação do Poder Judiciário no controle de constitucionalidade. O já mencionado princípio da supremacia da Constituição é princípio fundante da revisão judicial dos atos do Legislativo, mas outros princípios agem de forma a limitar a capacidade interventiva do Judiciário, como: princípio da presunção de constitucionalidade, princípio da interpretação conforme a constituição, princípio da razoabilidade e proporcionalidade. Ao apresentar os princípios, a todo momento o constitucionalista Luís Roberto Barroso dá sinais da limitação que se impõe ao exercício do controle de constitucionalidade. A declaração de inconstitucionalidade de uma norma, em qualquer caso, é atividade a ser exercida com autolimitação pelo Judiciário, devido à deferência e ao respeito que deve ter em relação aos demais Poderes. A atribuição institucional de dizer a última palavra sobre a interpretação de uma norma não o dispensa de considerar as possibilidades legítimas de interpretação pelos outros Poderes. No tocante ao controle de constitucionalidade por ação direta, a atuação do Judiciário deverá ser ainda mais contida. É que, nesse caso, além da excepcionalidade de rever 3038 atos de outros Poderes, o Judiciário desempenha função atípica, sem cunho jurisdicional, pelo que deve atuar parcimoniosamente. (BARROSO: 1999, p. 170). Em outro momento, ao falar do princípio da interpretação conforme a Constituição, Barroso (1999, p. 184) é enfático que, quando a norma infraconstitucional comporta diversas interpretações, e uma dela é constitucional, o judiciário deve preferir validar a norma de acordo com essa interpretação do que invalidá-la segundo as demais inconstitucionais. foi ao Poder Legislativo, que tem o batismo da representação popular, e não ao Judiciário, que a Constituição conferiu a função de criar o direito positivo e reger as relações sociais. Só por exceção – e em resguardo de inequívoca vontade constitucional – é que deverão juízes e tribunais superpor sua interpretação às decisões e avaliações dos legisladores. São princípios fundamentalmente republicanos, que se inserem a visão de República exposta acima, que prevê o exercício de poder constantemente limitado e autocontido. Um outro aspecto dos efeitos de sua decisão que os juízes devem ter em mente é de que o próprio ato de decidir altera o espaço constitucional no qual o Poder Judiciário atua (TRIBE: 1989, p. 10). Tribe (1989, p. 9) trabalha essa ideia a partir do Princípio da Incerteza de Heisenberg. Este postula que é impossível saber com precisão ao mesmo tempo a velocidade e a posição de um determinado objeto. O ato de observar um objeto sempre requer interação com ele o que, inevitavelmente, leva a uma alteração do seu estado. Esse fenômeno foi brilhantemente explicado por Erwin Schrödinger no seu experimento teórico conhecido como “gato de Schrödinger”, com a intenção de permitir entender a interpretação da Conferência de Compenhague sobre o resultado do experimento das duas fendas. Considere um gato preso dentro de uma caixa que contém um equipamento armado com um veneno letal que matará o gato instantaneamente. A cada trinta minutos o equipamento tem 50% de probabilidade de ser acionado e liberar o veneno. Passados os trinta minutos, a pergunta que se faz é: o gato está vivo ou morto? A resposta a que chega Schrödinger, através da sua equação de estado, é a de que o gato está vivo e morto ao mesmo tempo. Ocorre o que se chama de superposição de estados, que só se colapsa através da abertura da 3039 caixa pelo agente e a observação direta do estado do gato. Aqui se tem que a observação do evento altera substancialmente o seu resultado. No direito pode-se fazer um paralelo de que todo caso judicial é um experimento como o do gato de Schrödinger. A decisão dos juízes é um ato de abrir a caixa e determinar se o gato está vivo ou morto. O importante é que é a decisão em si que altera o estado da realidade. Tribe (1989, p. 10-12) coloca isso muito bem analisando o caso Wooley v. Maynard, no qual a Suprema Corte foi chamada a decidir sobre a obrigatoriedade de se usar o slogan “Live Free or Die” nas placas de automóveis, tornado obrigatório por legislação do estado de New Hampshire. Alguns indivíduos reclamavam que a lei do estado impunha a eles emitirem uma opinião religiosa, ação proibida ao governo pela 1ª Emenda. A Suprema Corte entendeu também nesse sentido, e invalidou a legislação dizendo que é inconstitucional “[...] obrigar um indivíduo a disseminar uma mensagem ideológica [...]” (Ibidem, p. 10). A questão torna-se complexa quando se percebe que, a declaração de inconstitucionalidade fez do uso da mensagem um ato de opção ideológica. Isto porque, enquanto todos eram obrigados a usar a mensagem, seu uso não representava nenhuma opção, era apenas uma obrigação legal. Ao dizer que era opcional o uso da mensagem o que o Tribunal fez foi decidir que tanto quem usa a mensagem quanto quem não a usa estariam expressando uma opção ideológica – justamente o que a decisão dizia que era proibido ao Estado fazer (TRIBE: 1989, p. 10-12). O juiz está, nessa situação, assim como Alice olhando para o mundo através do espelho, sem saber o que é real e o que é sonho e sem saber quem é o sonhador daquela ilusão. Sobre o exercício da função do judiciário, fica-se, por fim, com sempre sábias palavras de Luís Roberto Barroso: Por ser uma competência excepcional, que se exerce em domínio delicado, deve o Judiciário agir com prudência e parcimônia. É preciso ter em linha de conta que, em um Estado democrático, a definição das políticas públicas deve recair sobre os órgãos que têm o batismo da representação popular, o que não é o caso de juízes e tribunais. Mas, quando se trate de preservar a vontade do povo, isto é, do constituinte originário, contra os excessos de maiorias legislativas eventuais, não deve o juiz hesitar. O controle de constitucionalidade se exerce, precisamente, para assegurar a preservação dos valores permanentes sobre os ímpetos circunstanciais. Remarque-se, porque 3040 relevante, que a última palavra poderá ser sempre do Legislativo. É que, não concordando com a inteligência dada pelo Judiciário a um dispositivo constitucional, poderá ele, no exercício do poder constituinte derivado, emendar a norma constitucional e dar-lhe o sentido que desejar (BARROSO: 1999, p. 222-223, grifos acrescidos). 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Chegamos a um ponto que podemos delinear a ação dos Três Poderes segundo as definições de República, democracia e espaço constitucional curvo que apresentamos. A física esteve presente na formulação teórica dos pensadores iluministas do século XVIII durante a conceituação de instituições do Direito que são utilizadas até hoje. A física newtoniana daquela época entendia a interação entre objetos massivos como o exercício de força gravitacional variante através da distância em um espaço “místico”. Einstein muda essa percepção, entendendo que os objetos distorcem o próprio espaço afetando o movimento dos outros objetos próximos. Para o direito, a mudança de paradigma newtoniano para o pósnewtoniano na percepção dos institutos jurídicos pode representar uma completa redefinição dos seus papéis. Na interpretação constitucional e na interação entre os Três Poderes nesse processo significa dizer que, contrariamente à concepção clássica que foca na independência entre os poderes e acaba gerando descontinuidades no espaço constitucional em que o Direito não é aplicado, a visão pós-newtoniana entende a atuação dos entes estatais como situadas em um espaço constitucional curvo compartilhado. Cada decisão distorce esse espaço, como também é afetada pela própria distorção. É fundamental perceber que uma República impõe a constante contenção do exercício de poder, porque a democracia – por mais justa que seja essa forma de governo – é paradoxalmente ingovernável. Conter os impulsos da massa por meio da estipulação de consensos mínimos e duradouros é o papel da Constituição e do Poder Judiciário como seu guardião primeiro. Contudo, também a ação do Judiciário deve ser limitada, com risco de que se perca a própria essência da democracia de que o poder emana do povo. 3041 Todo caso judicial encontra-se em um estado de incerteza, quebrado apenas com a decisão do juiz. Nesse caso, todo magistrado deve ter em mente que a sua própria decisão é responsável por definir o estado em que a realidade do espaço constitucional ficará após cada caso. Ele encontra-se em uma situação paradoxal de observador e agente simultaneamente e isso impõe uma completa nova reflexão sobre sua atuação. REFERÊNCIAS BARROSO, L. R. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 1999. _________________. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. BONAVIDES, P. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros Editores ltda, 2013. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.797/DF. Tribunal Pleno. Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a Lei nº 10.628, de 24 de dezembro de 2002, que acresceu os §§ 1º e 2º ao artigo 84 do Código de Processo Penal. Relator Min. Sepúlveda Pertence. DJU Brasília, 19 de dez. 2006, pp. 37. ______________. Supremo Tribunal Federal. Acórdão. Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 19/DF. Tribunal Pleno. Ação Declaratória de Constitucionalidade para declarar a constitucionalidade dos artigos 1º, 33 e 41 da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). Relator Min. Marco Aurélio. DJe-080, Divulg 28-04-2014 Public 29-04-2014. _______________. Lei nº 10.628, de 24 de dezembro de 2002. Altera a redação do art. 84 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10628.htm>. Acessado em: 16/02/2015. CAMPOS, M. R. Poder Executivo. Negativa de aplicação de lei supostamente inconstitucional: correntes doutrinárias. Controvérsia. In: Revista Jurídica da Procuradoria Geral do Estado do Paraná, Curitiba, n. 2, 2011. Disponível em: <http://www.pge.pr.gov.br/arquivos/File/Revista_PGE_2011/Poder_executivo.pdf> . Acessado em: 01/04/2015. 3042 CATTONI, M. Devido processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006. FERRAZ, A. C. C. Processos informais de mudança da constituição: mutações constitucionais e mutações inconstitucionais. São Paulo: Max Limonad, 1986. HABERLE, P. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta aos interpretes da constituição, contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da constituição. Porto Alegre: Fabris, 1997. RANCIÈRE, J. O ódio à democracia. Tradução Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2014. RIBEIRO, R. J. Democracia versus república: a questão do desejo nas lutas sociais. In: BIGNOTTO, N. Pensar a república. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. ROE, M. Speeches and letter of Abraham Lincoln, 1832-1865. London: J. M. Dent & Sons Ltd, 1907. Disponível em: <http://munseys.com/diskfour/sabe.pdf>. Acessado em: 16/02/2015. TRIBE, L. H. The curvature of constitucional space: what lawyers can learn from modern physics. Harvard Law Review: The Harvard Law Review Association, November 1989. 3043 A LINGUAGEM LEGISLATIVA DE CONSENSO NOS ESTADOS CONSTITUCIONAIS PROBLEMATIZADA NOS CONFLITOS INTERPRETATIVOS DE APLICAÇÃO DO DIREITO: INCOMENSURABILIDADE, PONDERAÇÃO E “DIÁLOGO” ENTRE SURDOS Mauricio Martins Reis RESUMO: A incomensurabilidade no direito pode ser entendida como a impossibilidade de se comparar duas ou mais interpretações para um dado problema concreto pendente de solução decisória, eis que mecanismos de resolução pautados em fórmulas de racionalidade não evitam modos distintos de resposta ou, noutros termos, não alcançam o consenso acerca de uma pretensa decisão correta ou mais adequada. Nesse sentido, resulta indispensável agregar ao impasse da interpretação, às teorias da decisão, um complemento justificativo da ordem da previsibilidade, para o fito de acomodar as decisões difíceis numa arena pública de razões calibrada pelo valor da coerência discursiva, isto é, assegurando que a polissemia interpretativa eventualmente admitida para algumas específicas e excepcionais situações de fato e de direito seja estabilizada em torno de uma interpretação paradigmática tratada com força de precedente obrigatório de modo a evitar futuras arbitrariedades interpretativas que desabonam o cumprimento do princípio da igualdade. PALAVRAS-CHAVE: Incomensurabilidade; interpretação; igualdade; razões argumentativas. 1 INTRODUÇÃO O objetivo deste artigo visa a utilizar o conceito de incomensurabilidade no campo jurídico da interpretação prática, ou seja, no espaço resolutivo efetivo e hipotético de conflitos sociais3. O espaço de resolução efetiva das controvérsias abrange a competência jurisdicional, quando o Poder Judiciário é mobilizado pelas partes litigantes a elaborar um discurso de aplicação apto a resolver o impasse e configurar um modelo decisório para casos semelhantes ulteriores. Já 3 Sobre a relação entre incomensurabilidade, direito e principiologia, mediante uma vertente crítica com ascendência sistêmica predominante em Niklas Luhmann: NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules. Princípios e regras constitucionais. São Paulo: Martins Fontes, 2013, pp. 148-152. 3044 o espaço hipotético de resolução de conflitos abrange a prática acadêmica, quando estudiosos do Direito estimulam por meio de suas pesquisas fórmulas de solução para impasses que se apresentam no cotidiano. A característica de hipótese verificada neste último caso decorre da falta de competência constitucional por parte das soluções recomendadas pela doutrina, muito embora a qualidade de fundamentação desses conteúdos seja (ou possa ser) rigorosamente o mesmo do teor incidente nos discursos oficiais e autênticos de resolução das lides. A incomensurabilidade remonta a um conceito da filosofia da ciência4, o qual se mostra bastante pertinente para a análise do direito na sua perspectiva hermenêutica, vale dizer, no ambiente onde as decisões jurídicas são produzidas. Assim sendo, a hermenêutica é tomada aqui em um significado neutro (não problematizável enquanto ponto de partida5), como o contexto a partir do qual a temática do artigo virá à tona, o qual acena para o espaço de apresentação de razões, fundamentos ou interpretações divergentes, com a finalidade de se chegar a um adequado termo decisório nos marcos do ordenamento jurídico. Nesse aspecto, mostra-se indispensável a análise empírica do objeto de estudo, ou seja, o desmembramento minucioso do fato – nos termos de sua complexa Sobre o tema específico da incomensurabilidade, é de consulta indispensável o livro de Paul Hoyningen-Huene (Kuhn, Feyerabend e Incomensurabilidade. Organização e introdução de Luiz Henrique de Lacerda Abrahão. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2014). 5 Portanto, a hermenêutica como fundamento do discurso ou como filosofia primeira na tarefa de refletir sobre o mundo e sobre o próprio pensamento (reformulação hermenêutica da ontologia a partir da matriz fenomenológica de Heidegger e da substantivação da hermenêutica filosófica com Gadamer) deixa de ser o propósito deste ensaio. Sobre tal aspecto, são indicativos por excelência os seguintes textos: a apresentação da hermenêutica filosófica por Manfredo Araújo de Oliveira (Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo: Edições Loyola, 2006, pp. 225-248), a problematização do caráter filosófico da hermenêutica filosófica por Ernildo Stein (É a hermenêutica filosófica filosofia? Revista Filosofia Unisinos, volume 3, número 4. São Leopoldo: UNISINOS, 2002, pp. 65-86) e as implicações da hermenêutica filosófica para o direito por Alexandre Pasqualini (Hermenêutica: uma crença intersubjetiva na busca da melhor leitura possível. In Hermenêutica plural: possibilidades jusfilosóficas em contextos imperfeitos. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 159-180). Em contrapartida, conforme dito no corpo principal do texto e de acordo com o escopo do artigo, a hermenêutica concernente à interpretação do direito no tocante à análise do discurso argumentativo como metodologia de decisão para casos concretos é inerente ao horizonte de estudo de qualquer operador jurídico, o que não nos impede, senão nos impele, a falar da hermenêutica nesse segundo aspecto. 4 3045 estrutura jurídica qualificada sob moldes argumentativos, a abranger tanto elementos fáticos como normativos – para que bem se compreenda o efeito desencadeador do conflito característico do excesso de interpretações. Desenvolvimento A partir do momento em que se verifica o excesso de interpretações para o mesmo caso concreto e, depois de depurada a procedência desse conflito como um problema genuinamente limítrofe para o sistema jurídico – na medida em que muitas ocorrências supostamente tidas como difíceis nada mais engendram do que uma aparente antinomia interpretativa, nas quais subjaz uma incapacidade técnica ou mesmo uma manipulação simbólica de modo a ficticiamente justificar um impasse decisório digno de empate entre razões concorrentes –, irrompe para si desafio análogo ao enfrentado pela ciência no papel de árbitro imparcial entre duas teorias rivais. E, ao se falar da rivalidade entre duas teorias científicas – assim como, essa é a nossa hipótese de estudo, da concorrência entre duas ou mais interpretações simultâneas para o mesmo problema jurídico – chegamos ao conceito de incomensurabilidade como a descontinuidade paradigmática entre hipóteses adversativas, cuja discrepância faz supor uma espécie de fissura radical a tal ponto de se questionar uma base teórica comum (compartilhável) capaz de empreender uma solução satisfatória mediante consenso dos envolvidos. Em caráter introdutório, o conceito de incomensurabilidade nos traz uma importante diferença – e transição – nos marcos da filosofia da ciência, a partir do momento em que por seu intermédio questionou-se a invariância, isto é, a base comum irretocável, dos dados observacionais ou das propriedades fenomênicas suposta pelos referenciais empíricos de descrições teóricas. Isto quer dizer que a incomensurabilidade proporcionou uma crítica ao modo (oriundo de Karl Popper) de conceber as evidências empíricas como medida comum inconteste para mensurar com êxito explicativo, isto é, rumo à refutação (falsificação) de conjecturas, o conteúdo de teorias divergentes, com o que diluiu-se o demarcar estanque entre fato e teoria diante da dependência (ou comunicabilidade) entre o 3046 significado das sentenças observacionais e a teoria.6 Portanto, a incomensurabilidade ostenta a conclusão, baseada nas hipóteses científicas sucessivas de explicação sobre fenômenos do mundo, de que “teorias que substituem umas às outras, separadas por uma revolução científica, não fazem uso exatamente dos mesmos conceitos”7. Vamos nos utilizar de um caso concreto julgado pelo Supremo Tribunal Federal como objeto da problemática da incomensurabilidade.8 Em primeiro lugar, utilizamo-nos de uma ocorrência existencial já julgada para o fito de demonstrar que o tema em tela concerne, como pano de fundo, à interpretação jurídica (como processo e resultado) e aos seus limites e possibilidades frente à expansão hermenêutica do direito constitucional.9 Sobre o caso eleito como referência, o 6 Popper chegou a utilizar a expressão “base empírica” em seus escritos, depois substituindo-a por “enunciado básico”. Entretanto, mesmo ao fazer isso, por mais que ele próprio afirme não existir base empírica destituída de interpretação (os alegados dados da experiência, supostos pelos empiristas, são sempre para Popper interpretações à luz de teorias), remanesce o índice demarcatório (de segundo grau, pois agora o teste de falsificação decorre não da experiência, mas de enunciados com teor empírico suscetíveis de comparação e teste) advindo do campo da experiência, porquanto o denominado “enunciado básico” denota uma classe de enunciados (verdadeiros ou falsos) aos quais pode ser adjudicado um indiscutível caráter empírico capaz de ser facilmente testável. Assim, a base empírica continua vigente nos escritos popperianos, de modo a se propiciar ali o conjunto de enunciados – que se reportam à experiência – que podem funcionar como teste de teorias sobre a realidade. Note-se, enfim, para fazer justiça ao filósofo, que a permanência da base empírica possui caráter aberto ou conjectural, isto é, a experiência como argumento jamais elidirá novas possibilidades de teoria, de modo a se chegar ilusoriamente a um ponto último e definitivo avesso a interpretações (POPPER, Karl. Conjecturas e refutações. Traduzido por Benedita Bettencourt. Coimbra: Almedina, 2003, pp. 511-515). 7 HOYNINGEN-HUENE, Paul. Kuhn, Feyerabend e Incomensurabilidade. Organização e introdução de Luiz Henrique de Lacerda Abrahão. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2014, p. 36. 8 Trata-se do Habeas Corpus 82.424-2/RS, o caso Ellwanger, o qual versava sobre a produção editorial de livros com conteúdo discriminatório frente aos judeus, numa linha revisionista singular comparativamente à abordagem historiográfica tradicional retratadora dos quadros do regime nazista alemão sob a égide de Adolf Hitler. O proprietário da editora Revisão, Siegfried Ellwanger Castan, paciente daquela ação constitucional, publicou livros tidos como de conteúdo antissemita no Rio Grande do Sul sendo, com isto, processado pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), julgado pelo crime de racismo (Lei 7.716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8.081/90) sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII) e condenado pela 3ª Câmara Criminal do Rio Grande do Sul. 9 A constitucionalização do direito, assim, inaugura estações interpretativas de debate que se integram dialeticamente, como por exemplo, o tema da normatividade dos 3047 seu caráter privilegiado se justifica, dentre outros motivos de metódica decisória, mediante uma paradoxal circunstância: diz-se que o julgamento efetuado pelo STF nesse precedente adotou uma decisão acertada – correta, adequada, tida como a mais justa – embora a articulação argumentativa tenha enveredado por fundamentos errôneos.10 Num segundo passo, evidencia-se exemplificativamente através desse processo judicial o polêmico recurso hermenêutico ao método da ponderação11, tido por muitos como o álibi retórico com o objetivo de sufragar princípios constitucionais, o foro da chamada hipertrofia dos direitos fundamentais, além do aspecto dos limites do recurso à ponderação e ao sopesamento (a título ilustrativo acerca desse imbricamento conceitual e dos efeitos para o sistema de aplicação do direito: DUQUE, Marcelo Schenk. Direitos fundamentais. Teoria e prática. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014). 10 Defendendo o posicionamento adotado pela maioria dos Ministros do STF nesse caso paradigmático, mas apenas quanto ao resultado decisório em prol da improcedência do Habeas Corpus, perfilham-se CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. A ponderação de valores na jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal: Uma crítica teorético-discursiva aos novos pressupostos hermenêuticos adotados na decisão do Habeas Corpus n. 82.424-2-RS. In Constituição e crise política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006; STRECK, L. L.. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo: Saraiva, 2011; TASSINARI, Clarissa; MENEZES NETO, Elias Jacob de. Liberdade de expressão e hate speeches: as influências da jurisprudência dos valores e as consequências da ponderação de princípios no julgamento do caso Ellwanger. Passo Fundo: IMED, Revista Brasileira de Direito, volume 9, n. 2, 2013. Um pouco diferenciada é a posição de Virgílio Afonso da Silva, o qual simplesmente contestou o procedimento metodológico adotado, sem ter ingressado no mérito sobre o acerto ou equívoco da decisão resultante do STF nesse precedente: “A única discussão possível, em sede de habeas corpus no STF, seria uma discussão sobre a qualificação do ato como sendo ou não racista. [...] Não há aqui espaço para sopesamento na forma como feito pelo Supremo Tribunal Federal” (A constitucionalização do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005, pp. 168169). Noutro escrito, Afonso da Silva entrevê a possibilidade de a ponderação, no aspecto do sopesamento de razões, albergar a procedência daquela ação constitucional em favor do paciente: “Se, como era o caso dos livros escritos ou publicados por Ellwanger, a idéia era, entre outras, negar o holocausto, poder-se-ia concluir que não se deve proibir essa possibilidade, porque é a própria liberdade de expressão e o livre fluxo de comunicação (e não um tribunal) que devem, eventualmente, mostrar que o autor do livro está errado” (Ponderação e objetividade na interpretação constitucional. In Direito e interpretação: racionalidades e instituições. São Paulo: Direito GV/Saraiva, 2011, p. 374). 11 Falar de ponderação, ao nosso ver, com a tônica hermenêutica adequada tendente a uma teoria da decisão, consiste mais no controle de proporcionalidade apto a congraçar o critério a ser virtualmente adotado no caso concreto. Entenda-se aqui, então, a ponderação como ponderabilidade de razões, não como uma técnica ou metodologia abstrata promissória em antecipar parâmetros objetivos de resolução de conflitos de modo a imunizar satisfatoriamente a interpretação casuística calibrada na figura do processo argumentativo de razões, até mesmo porque referida acepção – em seu 3048 dada interpretação em detrimento de outras sem o legítimo escrutínio dos fundamentos em debate. Finalmente, ao se adentrar no tema do conflito entre interpretações dissonantes numa específica controvérsia de índole constitucional, chegaremos ao ponto último da incomensurabilidade no direito. Como alcançar, perante duas (ou até mais) teses razoáveis para o mesmo caso, embora irredutíveis entre si nas suas plataformas interpretativas – com o que se poderia afirmar ser uma “surda” em relação à outra, cujo relacionamento, no foro da arena pública, se limita à cordialidade de tratamento baseada no prelúdio gentil característico do “data venia” –, um tratamento hermenêutico, no seu processamento e resultado, consentâneo com o Estado Democrático de Direito? Ocorre, antes de mais nada, que a incomensurabilidade contesta a prioridade de argumentos isentos de pressupostos axiológicos.12 Nesse sentido, todo o argumento pertence geneticamente a uma determinada premissa de valor; significado e desiderato práticos – não encontra guarida efetiva no mundo da vida. De acordo com Jorge Reis Novais, acerca da metodologia da ponderação, “por maior sofisticação que ALEXY e os seguidores procurem dar à fórmula, ela não poderá fornecer qualquer indicação vinculante e pré-determinadora de um resultado concreto para uma solução de colisão de bens nem avançar verdadeiramente qualquer progresso nesse sentido, uma vez que se limita à descrição dos factores de bom senso que um operador necessariamente tem presentes quando decide enveredar por uma metodologia de ponderação de bens que, em abstracto, sejam igualmente valiosos” (Direitos fundamentais e justiça constitucional em estado democrático de direito. Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 127). De maneira que os adeptos da ponderação assim entendida, diversamente do que propugna Lenio Luiz Streck, postulam, pressupondo, que o respectivo recurso consiste em prática interpretativa de resolução casuística por critérios transparentes de razão intersubjetiva à luz do ordenamento vigente, com o que anuiriam sobre a impossibilidade de se cogitar da ponderação como uma técnica a consagrar o objetivo e direto deslinde da controvérsia jurídica (Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 49-50). 12 É o que assinala Juarez Freitas com arrimo em estudo sobre os desvios cognitivos e a sua influência na interpretação jurídica: “Dito de maneira frontal, a interpretação jurídica, encarada com objetividade, apenas se deixa compreender paradoxalmente em sua inextirpável subjetividade. Só floresce quando se reconhece interativa e não acredita em fantasias como a autonomia do objeto, como pretendia Emilio Betti, nada corroborado, nesse aspecto, pelas descobertas recentes sobre o funcionamento do cérebro. Bem por isso, indispensável ampliar a vigilância contra as simplificações de cânones hermenêuticos, inclusive porque se mostram alheios ao fato de que o cérebro nunca toma decisões somente com o córtex pré-frontal e combina razão com emoção (tanto nos casos “fáceis” como nos “difíceis”), sob pena de extraviar os sentimentos morais no processo interpretativo. Mais: sem emoção, os julgamentos, a rigor, resultam inviáveis” (Hermenêutica e desvios cognitivos. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, n. 13, jan./jun. 2013, p. 289). 3049 nas ciências, qualquer fato tido como bruto é incapaz de ser isento de teoria, enquanto no direito, qualquer argumento dogmático retoma um ponto de partida interpretativo parcial. Assinalar, por exemplo, que a resposta jurídica adequada para certo caso concreto decorre da incidência de dado preceito legal especificamente considerado nada mais implica do que a indicação dogmática de um critério normativo existente no conjunto de diretrizes sistemáticas vigentes no sistema jurídico nacional, cujo consenso perante a comunidade de intérpretes não consegue solapar o fato de que aquele enunciado normativo resultou de alguma concretização axiológica via legitimação procedimental.13 O procedimento a legitimar aquele critério, pois, não desnatura sua natureza axiológica14; em termos comparativos, o argumento empírico de uma constatação factual nas ciências não é capaz de imunizar a teoria (a carga de valor) presente nos autos conclusivos do relatório científico. 13 Importante a esse respeito é o esclarecimento tópico de Lenio Luiz Streck, que se nos mostra indispensável para fins de contextualizar – salvaguardando a si com fins até revisionais nesse lugar confuso, ambíguo e indeterminado que passou a ser a “Nova Crítica do Direito” – o seu próprio pensamento acerca da ponderação: “Quando concordamos que as questões morais, políticas, etc., façam parte da “tarefa legislativa”, isso não quer dizer que haja, de minha parte – e, por certo, dos adeptos das posições substancialistas – uma viravolta na questão “procedimentalismo-substancialismo”. Se as posturas procedimentalistas pretendem esgotar essa discussão a partir da garantia do processo democrático de formação das leis, isso, no entanto, não esgota a discussão da concreta normatividade, locus do sentido hermenêutico do direito” (Decisão jurídica, integridade, norma de decisão e concretização da Constituição em tempos póspositivistas. In Estudos em homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho. Volume II: Constituição e Estado, entre Teoria e Dogmática. Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 687). Por isso é que se discorda do alegado excesso da hipertrofia interpretativa no direito, como se reprovável fosse a invocação da hermenêutica para lidar com a resolução decisória dos conflitos. A hermenêutica, nesse condão, deve ser tomada não como instrumento metodológico, mas como a ambiência argumentativa em busca das melhores razões, eis que o processo interpretativo, querendo-se ou não, se mostra permanente e não ocasional (FREITAS, J.. Hermenêutica e desvios cognitivos. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, n. 13, jan./jun. 2013, p. 294). 14 Como bem diz Jorge Reis Novais, na realidade prática, “um juiz respeitador da separação de poderes tenderá, naturalmente, a aceitar o resultado da ponderação que lhe foi apresentada para controlo e que foi anteriormente feita pelo órgão político, designadamente quando ele é o legislador democraticamente legitimado, desde que essa ponderação não seja manifestamente infundada” (Direitos fundamentais e justiça constitucional em estado democrático de direito. Coimbra: Coimbra Editora, 2012, pp. 127-128), o que nos levaria, nesse último caso de excesso, ao desempenho da fiscalização de constitucionalidade em seu desdobramento máximo, para efeito de extirpar a norma jurídica do ordenamento legislativo pátrio. 3050 A incomensurabilidade, assim, atesta a incontornável rivalidade de duas interpretações que se digladiam paritárias especialmente perante a jurisdição constitucional. Trata-se de situações limítrofes de modos distintos e incomensuráveis de interpretar o mundo (o direito, o caso concreto), inclusive, preconizado por alguns teóricos da incomensurabilidade, de cada qual diferentemente perceber os fenômenos do ambiente como mundo. Nesse passo, a incomensurabilidade justifica, resolvendo sob certo aspecto, o alegado problema da arbitrariedade de modelos interpretativos conducentes a respostas discrepantes: é que como não existem modelos neutrais de interpretação conducentes a um resultado de tipo algébrico15, uma vez que em toda a observação empírica incorre uma teoria e em toda a matriz de pensamento se irriga uma determinada valoração ou teoria de conteúdo subjacente, os discursos de aplicação do direito inevitavelmente se socorrem de pressupostos que invadem o suposto enclausuramento metodológico das correspondentes ferramentas interpretativas. No direito, a polêmica sobre o alegado decisionismo ou arbitrariedade ínsito ao tema da ponderação adquire, então, uma estatura contraditória em alguns foros de debate, na medida em que a crítica ao recurso da ponderação – sob o risco de se produzirem decisões resistentes à ordem jurídica e incongruentes entre si – é protagonizada por estudiosos que defendem a mesma consequência – especialmente em se tratando das hipóteses em que uma lei poderá não ser aplicada – sob a batuta de uma outra intervenção que não a ponderativa.16 Ou seja, para as mesmas possibilidades arriscadas de 15 É o que Lenio Streck intitula de "calcanhar de Aquiles" da interpretação jurídica, ao criticar os métodos ou cânones hermenêuticos, os quais não oferecem uma diretriz primária indicadora do caminho a seguir como critério resolutivo das controvérsias de fato e de direito apresentadas ao intérprete, carecendo por isso, e contraditoriamente face ao que propõem no trato de sua metodologia formal, de concretização argumentativa no processo de aplicação: "Antes de a metodologia tradicional ter a função de dar segurança ao intérprete, é ela o seu verdadeiro calcanhar de Aquiles, porque não há como sustentar meta-critérios que possam validar ou servir de fundamento ao método empregado" (Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 278) 16 A contradição aparece no seu aspecto mais geral em qualquer fundamento sobre discursos de aplicação quando, ao se criticar a falta ou deficiência de racionalidade no 3051 interpretação rejeitadas pelo recurso à ponderação, onde a lei resulta concretamente relativizada no seu critério decisório para acolher uma interpretação tida como a constitucionalmente adequada, resolve-se absolver e defender dito procedimento sob o pálio justificador de outras escolas de pensamento, baseadas, por exemplo, em aportes da hermenêutica filosófica (Hans-Georg Gadamer) em sintonia com a doutrina do direito como prática interpretativa (Ronald Dworkin).17 No que padeceria a ponderação diante da recurso à ponderação, se supõe que a matriz argumentativa alternativa seja absolutamente isenta de subjetividade interpretativa ou, então, que ela ofereça – sem dizer como – melhores requintes de suporte para oferecer racionalidade e objetividade no modo de aplicar o direito. Por conseguinte, há de se concordar com Virgílio Afonso da Silva, ao dizer que “muitos daqueles que vêem no sopesamento um método irracional e subjetivo de aplicação do direito parecem supor que outros métodos seriam capazes de garantir uma racionalidade quase perfeita” (Ponderação e objetividade na interpretação constitucional. In Direito e interpretação: racionalidades e instituições. São Paulo: Direito GV/Saraiva, 2011, p. 367). Portanto, não se vislumbra oponível objetivamente – tomada a ponderação como processo de sopesamento entre razões concorrentes – a diferença entre hermenêutica e teoria da argumentação (STRECK, L. L.. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 652), esta condenável por uma abertura interpretativa conducente à arbitrariedade, aquela ofuscando a subjetividade do intérprete, repita-se, sem se dizer como ou através de que meios, de modo a legitimar a introdução do mundo prático no direito pelo (idêntico) uso dos princípios apenas pela hermenêutica! Ademais, os adeptos da crítica ao relativismo da ponderação, quando explicam o seu rechaço por conta da hipertrofia desmedida para interpretações dissonantes possibilitadas pelo recurso ao mesmo expediente ponderativo, olvidam que a matriz teórica por eles esposada igualmente confere margem para adjudicações diferenciadas de sentido, a não ser que cogitem – o que seria uma contradição performativa para a hermenêutica filosófica – de uma exclusividade autoral (esta sim, autoritária e característica da arbitrariedade) diante do que a hermenêutica seria capaz de chancelar em termos de interpretações adequadas. Ou não se poderia cogitar de um hipotético “Congresso de Hermenêutica Filosófica: Gadamer e o Direito” onde nele se debateriam teses antitéticas acerca de controvérsias concretas na jurisdição constitucional? Portanto, chegar a resultados completamente opostos a partir da mesma “técnica interpretativa” não é consequência exclusiva da ponderação. 17 Resta saber o que a tese da descontinuidade proposta por Lenio Luiz Streck, com sede em especial na hermenêutica filosófica gadameriana e em Dworkin, possui de diferencial frente à ponderação argumentativa para somente ela (ou pelo menos preferentemente ela como a mais adequada entre ambas) legitimar o recurso aos princípios constitucionais de maneira a se institucionalizar o mundo prático no direito (Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 57). Ora, as duas posições se equivalem no concernente ao direito como prática interpretativa, isto é, na sua estrita dependência para com a aplicação argumentativa concreta via processo judicial, não sendo o critério de interpretação necessariamente exaurido pelos discursos prévios de fundamentação do legislador. É contundente e corroborativa a esse respeito a fala de Streck em favor da inevitável 3052 hermenêutica, se ambas lidam com fundamentos concretamente manejáveis de maneira a arejar legitimamente via discurso de aplicação as indicações vinculantes e pré-determinadoras das prescrições legislativas? Assim sendo, a ponderação afigura-se inevitável no quadro casuístico de se proceder, com vistas ao temperamento pontual e harmônico entre sistema e problema, o equilíbrio entre as normas abstratas e as configurações particulares circunstanciadas nos interesses concorrentes vislumbráveis no caso concreto. Com tal mote, bem mais importante do que debater a possibilidade de o Poder Judiciário manejar a ponderação, porquanto as ponderações resultam inevitáveis como processo de interpretação de razões concorrentes18, consiste em se aplicação principiológica incidente na interpretação do direito, a justificar a não aplicação da regra a determinado caso, “já que não há regra sem princípio e o princípio só existe a partir de uma regra” (Idem, p. 557; faltou inclusive citar essa hipótese como mais uma dentre as seis categoriais das hipóteses em que o Poder Judiciário pode deixar de aplicar um preceito legal, conforme Idem, pp. 605-606, 2011, 4ª edição, sistemática corrigida a partir da 5ª edição daquela obra (2014) com o incremento da alínea "f" (sexta hipótese), quando se cogita de deixar de aplicar uma regra em face de um princípio, p. 605). 18 Assim sendo, admitindo-se que a ponderação pode angariar mais de um significado, adota-se aqui a sua acepção no sentido de sopesamento ou valoração de razões, na esteira de Humberto Ávila, segundo a qual a atividade de ponderar representa o balanceamento hermenêutico de razões divergentes para a solução do mesmo caso jurídico, sendo que “a ponderação não é método privativo de aplicação dos princípios, mas critério de aplicação de qualquer norma, tendo em vista o caráter argumentativo do próprio Direito” (Teoria dos princípios: Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 81). É importante registrar que o repúdio justificado ao arbítrio ou à discricionariedade desmedida do intérprete por força do recurso à ponderação consiste na contrapartida (no “outro lado da moeda”) de uma outra forma – bem mais grave – de se lidar com a insegurança jurídica, a saber, por intermédio de uma “trivialização do funcionamento das regras, transformando-as em normas que são aplicadas de modo automatizado e sem a necessária ponderação de razões” (Idem, p. 114). Isto faz com que, por exemplo, o tema fundamental das decisões interpretativas (como a interpretação conforme a Constituição por excelência) seja solapado por um critério autômato – certamente, porque engessado uniforme, invariável e em abstrato o discurso de aplicação nas fórmulas legislativas, avesso a proliferar em arbitrariedades – de interpretação da Constituição conforme às leis. Assim, a abertura do direito como prática argumentativa pela força das normas constitucionais se mostra, ao nosso ver, como um mal menor passível de superação e aperfeiçoamento por intermédio, por exemplo, de uma doutrina séria e comprometida hermeneuticamente com a força orientadora dos precedentes judiciais. Assim, com o direito jurisprudencial alicerçado em casos paradigmáticos, o alegado arbítrio de uma assim denominada “decisão inédita” transforma-se numa adequada fórmula casuística de solução dotada das melhores razões (com potência ordenadora em virtude da capacidade de generalização do seu conteúdo valorativo para futuros casos semelhantes) com inequívoca 3053 determinar a maneira como essas operações ponderativas – não assumidas, pois, como técnicas objetivamente neutras e apriorísticas ao problema posto em causa – deverão ser processadas frente à necessidade de se garantir a previsibilidade, estabilidade e igualdade dos critérios adotados num Estado Democrático de Direito.19 No caso Ellwanger, é preciso dizer que os julgadores do STF que fizeram uso do recurso da ponderação, nomeadamente o Ministro Marco Aurélio, pretenderam responder à preliminar acerca da configuração do crime de racismo de acordo com o acervo probatório dos autos, o que indiretamente trouxe à tona uma indagação de matriz constitucional: a defesa de uma ideologia mediante veiculação editorial, mesmo com contornos preconceituosos, é por si uma prática racista ou já em si instiga ou incita comportamentos dessa índole? Mediante a análise ponderativa da extensão desse direito fundamental é que se dedicou a concluir sobre a não qualificação do ato como racista.20 Portanto, a natureza preferência diante da invariância de se replicar do preceito legal invocado os mesmos fundamentos ante casos concretos diferenciados que lhe requerem distintas interpretações, harmoniosas entre si mediante uma adequada especificação hermenêutica (distinguishing) ou sucessivas umas face a outras no indispensável desenvolvimento do direito (overruling). 19 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 695. E prossegue, com toda a razão, ao asseverar que a crítica contra a ponderação deve ser relativizada, “na medida em que se tenha em conta que a impossibilidade de chegar, aqui, a decisões jurídicas consensualmente obtidas e de vinculatividade jurídica racional e intersubjectivamente comprovável não é exclusiva do recurso à ponderação de bens; ela é, sim, co-natural aos sistemas normativos e persiste, ineliminavelmente, qualquer que seja a metodologia jurídica a que se recorra” (p. 698). Para o autor, “na resolução dos chamados casos difíceis, e mesmo que se recorra exclusivamente aos métodos jurídicos clássicos, duas pessoas chegam, ou sempre podem chegar, a resultados opostos e susceptíveis, todavia, de fundamentação nos mesmos cânones interpretativos” (Idem, ibidem). Assim, o problema maior não reside na mera possibilidade de soluções diferentes para o mesmo caso, uma consequência, conforme visto, típica de todo e qualquer método jurídico, senão na eventual incapacidade de se fundamentar racionalmente – com comprovação argumentativa intersubjetivamente válida – um resultado obtido para fins de vinculação geral como critério. No mesmo sentido se inclinam as lições de Virgílio Afonso da Silva (Ponderação e objetividade na interpretação constitucional. In Direito e interpretação: racionalidades e instituições. São Paulo: Direito GV/Saraiva, 2011, pp. 363-380). 20 Diz o Ministro Marco Aurélio: “A questão de fundo neste habeas corpus diz respeito à possibilidade de publicação de livro cujo conteúdo revele ideias preconceituosas e antisemitas. Em outras palavras, a pergunta a ser feita é a seguinte: o paciente, por meio do livro, instigou ou incitou a prática do racismo? Existe dados concretos que 3054 deliberativa da qualificação ou não do comportamento como racista não deixa de ser já um empreendimento ponderativo! Noutras palavras, ponderou-se indiretamente sobre a inconstitucionalidade, inscrita no artigo 20 da Lei 7.716/89, da tipificação penal de manifestações racistas nas circunstâncias fáticonormativas demonstradas nos autos do caso Ellwanger, efetuando-se, pois, uma decisão interpretativa (nulidade parcial sem redução de texto) com notória força de precedente.21 Interessantemente, mesmo os julgadores que se filiaram à tese da improcedência do habeas corpus, esclarecidos os seus fundamentos por esse prisma, endossariam (por ponderação de razões) que o crime de racismo, uma vez configurado como tal, não poderia ser negligenciado sob o manto do exercício demonstrem, com segurança, esse alcance? A resposta, para mim, é desenganadamente negativa. Bem afirmou o ministro Carlos Britto que não achou, ao analisar minuciosamente o livro sob enfoque – e a denúncia está basicamente lastreada naquele escrito do paciente – qualquer afirmação categórica acerca da superioridade da raça alemã sobre uma “raça” judaica, ou de que os judeus se constituiriam grupo inferior se comparado com uma “raça” ariana. [...] O livro do paciente deixa claro que o autor tem uma ideia preconceituosa acerca dos judeus. Acredito que, em tese, devemos combater qualquer tipo de ideia preconceituosa, mas não a partir da proibição na divulgação dessa ideia, não a partir da conclusão sobre a prática do crime de racismo [...]” (BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 82.424-2 Rio Grande do Sul. Habeas-corpus. Publicação de livros: antissemitismo. Racismo. Crime imprescritível. Conceituação. Abrangência constitucional. Liberdade de expressão. Limites. Ordem denegada. Siegried Ellwanger e Superior Tribunal de Justiça. Relator: Min. Moreira Alves. Decisão: 17 set. 2003. DJ 19 mar. 2004, pp. 887-888). 21 Concordamos com Virgílio Afonso da Silva nesse ponto, quando ele viabiliza a discussão – aceitando teoricamente o questionamento – acerca do acerto do legislador em incluir o exercício da liberdade de expressão como uma possível (diríamos quase inevitável) forma de racismo, nos moldes daquele descritivo legal: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Para o autor, “seria possível, especialmente se se partir de uma teoria democrático-funcional dos direitos fundamentais, considerar que prática de racismo seja somente tratar alguém de forma diversa em razão de sua raça (ou cor, ou credo, ou orientação sexual, etc.). Manifestar seu pensamento sobre determinadas religiões, raças, orientações sexuais não seria, segundo essa perspectiva, prática de racismo. Esse seria um outro resultado possível de uma ponderação entre a exigência do art. 5º, XLII, e as liberdades de imprensa e de manifestação do pensamento” (A constitucionalização do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 170). Apenas discordamos de sua doutrina, quando Afonso da Silva assevera que o debate acerca da inconstitucionalidade em tela (de estirpe interpretativa, ao nosso ver conatural à própria aplicação do direito) seria estranho ao mérito de um habeas corpus, sendo apenas reivindicável como pretensão por meio de prejudicial de constitucionalidade ou nas ações de controle concentrado. 3055 regular do direito de liberdade de expressão.22 O mesmo vale para os detratores doutrinários da ponderação: mesmo supondo que a decisão do julgado deveria ter sido “constrangedoramente simples” em prejuízo do paciente, estar-se-ia diante de uma efetiva ponderação valorativa, embora não assumida nominalmente como tal, pois resultou confessadamente realizada na medida em que, para justificar o juízo adequado de desacolhimento do habeas corpus, fundamentou-se que “a liberdade de manifestação de pensamento simplesmente não abarca a liberdade de manifestar um pensamento racista”23. Perceba-se que o raciocínio ponderativo nem seria evitado caso se aduzisse que o problema se circunscreveria apenas à 22 De se notar, destarte, que as críticas enveredadas contra o recurso da ponderação no caso Ellwanger na realidade se dirigem contra o resultado da interpretação procedida em torno da preliminar de não-configuração do fato como prática de racismo, cuja problemática angaria ponderação de razões para os dois lados da contenda. Tome-se a solução adotada por Cattoni de Oliveira: “Considerando os argumentos dos impetrantes do HC, a argumentação do MP e dos seus assistentes, as fundamentações das decisões anteriores, do TJ-RS e do STJ, de modo a reconstruir imparcialmente as diversas pretensões apresentadas pelos envolvidos no caso, podemos afirmar que não se tratava simplesmente de uma discriminação religiosa, ou até mesmo de revisionismo histórico; mas da atribuição intolerante, estigmatizada, a todo um povo, de uma pretensa natureza corrupta e má, portanto indigna, a ser denunciada e combatida. Tratava-se, assim, de crime de racismo e não do exercício regular do direito de liberdade de expressão, justificando-se, assim, a não concessão do HC” (A ponderação de valores na jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal: Uma crítica teorético-discursiva aos novos pressupostos hermenêuticos adotados na decisão do Habeas Corpus n. 82.424-2-RS. In Constituição e crise política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, pp. 197-198). Digna de nota é a restrição de Lenio Streck apenas aos votos vencidos no HC 82.424-2 no tocante ao recurso do “relativismo ponderativo” (Jurisdição constitucional e decisão jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 650, Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 599-600), esquecendo-se de se reportar (talvez pela concordância com o resultado decisório favorável à tipificação de racismo) aos votos vencedores que igualmente se utilizaram do sopesamento, como, aliás, atesta o artigo de autoria de dois profissionais acadêmicos partilhantes da mesma matriz hermenêutica de pensamento: “os votos, vencedores e vencidos, demonstram a fragilidade dos debates, baseados em argumentos de política ou nos juízos de ponderação de valores” (TASSINARI, Clarissa; MENEZES NETO, Elias Jacob de. Liberdade de expressão e hate speeches: as influências da jurisprudência dos valores e as consequências da ponderação de princípios no julgamento do caso Ellwanger. Passo Fundo: IMED, Revista Brasileira de Direito, volume 9, n. 2, 2013, p. 25). Marcelo Cattoni de Oliveira (A ponderação de valores[...], op. cit., pp. 195-196) também registra que o raciocínio de ponderação foi indevidamente utilizado pelas duas linhas interpretativas (vencedores e vencidos) do Tribunal, sendo que tomou como parâmetro de crítica os votos dos Ministros Gilmar Mendes (vencedor) e Marco Aurélio (vencido). 23 STRECK, L. L.. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 650. 3056 eventual configuração delituosa pela repercussão estrita do tipo penal inscrito no artigo 20 da Lei 7.716/89: a ponderação não consegue ser evitada diante da constatação de que o tipo penal em comento demonstra-se inevitavelmente aberto e sujeito ao exame da proporcionalidade para o fito de coadunar concretamente a conduta de Ellwanger como comportamento criminoso típico, antijurídico e culpável24. 2 CONSIDERAÇÕES FINAIS A hermenêutica filosófica consiste na matriz de pensamento universal mais adequada (porque ela não é a única e tampouco ela pretende conviver pacificamente – sem o debate de força dos melhores argumentos – com outras que preconizam indicações diversas) para a reflexão do direito jurisprudencial. Isto porque o nó górdio acerca da pergunta “por que se vinculam essas – e não outras – razões de decidir” ou “por que essa decisão merece vincular” ou ainda “por que devemos obedecer o caso-precedente” somente poderá ser desatado se, adrede quaisquer outros motivos, a obrigatoriedade dos precedentes suceder do seu êxito conteudístico material, cuja órbita dependerá, pois, do mérito dos argumentos na concorrência dialética frente aos demais esgrimidos – direta ou indiretamente pelo escopo de uma reconstituição razoável e verossímil – na constelação argumentativa. De nada adianta reconhecer atualmente o caráter argumentativo-discursivo do direito, que os enunciados legais são inerentemente ambíguos, complexos e indeterminados, que a norma é o produto da interpretação jurídica (e não o seu As palavras de Gilmar Ferreira Mendes no seu voto são ilustrativamente claras a esse respeito, cujo teor conclusivo manifestou-se pela improcedência do habeas corpus: “É verdade, ainda que a resposta possa ser positiva, como no caso parece ser, que a tipificação de manifestações discriminatórias, como racismo, há de se fazer com base em um juízo de proporcionalidade. O próprio caráter aberto – diria inevitavelmente aberto – da definição do tipo, na espécie, e a tensão dialética que se coloca em face da liberdade de expressão impõem a aplicação do princípio da proporcionalidade” (BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 82.424-2 Rio Grande do Sul. Habeas-corpus. Publicação de livros: anti-semitismo. Racismo. Crime imprescritível. Conceituação. Abrangência constitucional. Liberdade de expressão. Limites. Ordem denegada. Siegried Ellwanger e Superior Tribunal de Justiça. Relator: Min. Moreira Alves. Decisão: 17 set. 2003. DJ 19 mar. 2004, p. 655). 24 3057 objeto), que não existem sentidos preliminares suscetíveis de descoberta pelo intérprete no confronto com a ordem legislada, que por trás de todo o critério hermenêutico reside uma confessada (ou negligenciada) teoria da decisão (com o que não se basta a mera genealogia da fonte como fundamento per si), que a fundamentação das decisões deve ser transparente em torno de quais razões abonam um determinado significado ao qual se empresta eficácia vinculante. Todas as justificativas precedentes, quando muito, possuem a capacidade de dissuadir o auditório jurídico quanto ao fracasso de expedientes teóricos tributários do positivismo exegético e discricionário, sendo o primeiro caudatário da única resposta antecipadamente posta pelo sistema legislativo (“caso-decreto”) e o segundo derivado de uma matriz de fungibilidade decisória cuja moldura interdita arbitrariedades extremas, muito embora consinta com a proliferação concomitante de múltiplas respostas para casos idênticos sob o crivo do livre convencimento (“caso-secreto”). Para que o direito jurisprudencial seja competentemente vinculante, resulta indispensável angariar a teoria hermenêutica da resposta correta, finalidade a que não se consegue chegar tão somente pela substituição do discurso formalista pelo empreendimento discursivo (argumentativo) da intersubjetividade. Apenas a hermenêutica contempla a justificativa adequada em torno da hierarquia de argumentos, promovida concretamente a partir do enfrentamento interpretativo de controvérsias. Para tanto, haverá de se compreender que a resposta correta nem é a única, porquanto jamais resultará descoberta (ou revelada) como se sempre estivesse à disposição da comunidade de intérpretes (o que a tornaria invariável e submetida à sorte de mudança com o advento de transformações na fonte de direito), tampouco será a verdadeira, como se, embora construída justificadamente, fosse dotada de incolumidade ante ulteriores questionamentos. A hermenêutica não pode ser tomada como técnica de interpretação, pelo menos se a situarmos historicamente após o surgimento de Verdade e Método, de Hans-Georg Gadamer. É certo que o filósofo responsável pela substantivação da hermenêutica jamais outorgou um método seguro para se alicerçar uma interpretação como a melhor; porém, tampouco a sua filosofia descredenciou o estatuto da verdade, entendida esta como uma fórmula histórica e, pois, não- 3058 definitiva, de se identificar em concreto o critério correspondente para a correção da compreensão E no direito isso significa, por primeiro, a precedência de todo e qualquer juízo como sendo interpretativo antes de ser dogmático e, em segundo lugar, a necessidade do confronto com um saber puro alheio à pertença do intérprete com o caso problemático posto. Trata-se de uma inevitável e complementar ponderação da equidade. Assim sendo, não se está a credenciar um discurso irresponsável – e arrogante – de “hermeneutização” do direito, uma espécie de ferramenta ad hoc apta a legitimar interpretações afins às volições subjetivas do intérprete. No entanto, a universalidade hermenêutica é um pressuposto com o qual o mais ortodoxo dogmático jurista haverá de lidar, sem poder replicar que a técnica interpretativa em si – ou o preceito normativo literalmente considerado – engendraria a dispensabilidade da hermenêutica filosófica. REFERÊNCIAS ÁVILA, H. Teoria dos princípios: Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2014. DUQUE, M. S. Direitos fundamentais. Teoria e prática. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. FREITAS, J. Hermenêutica e desvios cognitivos. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, n. 13, jan./jun. 2013. HOYNINGEN-HUENE, P. Kuhn, Feyerabend e Incomensurabilidade. Organização e introdução de Luiz Henrique de Lacerda Abrahão. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2014. NEVES, M. Entre Hidra e Hércules. Princípios e regras constitucionais. São Paulo: Martins Fontes, 2013. NOVAIS, J. R. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003. NOVAIS, J. R. Direitos fundamentais e justiça constitucional em estado democrático de direito. Coimbra: Coimbra Editora, 2012. 3059 OLIVEIRA, M. A. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo: Edições Loyola, 2006. OLIVEIRA, M. C. A ponderação de valores na jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal: Uma crítica teorético-discursiva aos novos pressupostos hermenêuticos adotados na decisão do Habeas Corpus n. 82.424-2-RS. In: Constituição e crise política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. PASQUALINI, A. Hermenêutica: uma crença intersubjetiva na busca da melhor leitura possível. In: Hermenêutica plural: possibilidades jusfilosóficas em contextos imperfeitos. São Paulo: Martins Fontes, 2005. POPPER, K. Conjecturas e refutações. Traduzido por Benedita Bettencourt. Coimbra: Almedina, 2003. SILVA, V. A. A constitucionalização do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005. SILVA, V. A. Ponderação e objetividade na interpretação constitucional. In: Direito e interpretação: racionalidades e instituições. São Paulo: Direito GV/Saraiva, 2011. STEIN, E. É a hermenêutica filosófica filosofia? Revista Filosofia Unisinos, volume 3, número 4. São Leopoldo: UNISINOS, 2002 STRECK, L. L. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. STRECK, L. L. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo: Saraiva, 2011. STRECK, L. L. Decisão jurídica, integridade, norma de decisão e concretização da Constituição em tempos pós-positivistas. In: Estudos em homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho. Volume II: Constituição e Estado, entre Teoria e Dogmática. Coimbra: Coimbra Editora, 2012. STRECK, L. L. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. TASSINARI, C.; MENEZES NETO, E. J. Liberdade de expressão e hate speeches: as influências da jurisprudência dos valores e as consequências da ponderação de princípios no julgamento do caso Ellwanger. Passo Fundo: IMED, Revista Brasileira de Direito, volume 9, n. 2, 2013. 3060 INCERTEZAS HERMENÊUTICAS: RAZÃO E EMOÇÃO NA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Maria Carolina Santini Pereira da Cunha RESUMO: Este ensaio aborda a hermenêutica e as incertezas no discurso dirigido ao auditório particular, público do qual se conhece as características pessoais, conforme a obra Tratado da Argumentação: a nova retórica. Os membros do júri são abordados pelos discursos da defesa e da acusação, que utilizam recursos de oratória para conduzi-los a determinar o futuro de uma vida. A investigação tem como metodologia a contraposição de argumentos, a fim de persuadir os jurados a condenar ou absolver os réus por meio de revisão da literatura existente na área da Filosofia do Direito. PALAVRAS-CHAVE: argumentação jurídica; hermenêutica; razão; emoção. 1 INTRODUÇÃO Chaïm Perelman, importante filósofo do Direito que desenvolveu uma teoria da argumentação, na qual analisa o discurso em relação ao auditório – público para quem o orador se dirige. Há dois tipos de auditório: o auditório universal e o auditório particular. Este, trabalha com a persuasão dos ouvintes, a fim de explorar sua emoção. Tal auditório é real, exemplificado pelo conselho de sentença: os jurados. Tribunal do Júri é a instituição que condena ou absolve o acusado, que delibera acerca da existência do fato criminoso imputado a uma pessoa. Jurados que estão sob juramento, cidadãos componentes do júri com outros jurados, no total 25. O auditório universal é ideal, imaginário. Trata-se de experts em determinado assunto. Os maiores especialistas estariam aptos a serem convencidos por argumentos racionais. Este artigo é dividido em três seções, descritas a seguir: a primeira é uma breve exposição da retórica, precursora da argumentação jurídica, e sua evolução ao longo do tempo, perpassando pelas falácias, especificamente a do apelo à emoção. A emoção pode ser usada, pelo orador, como falácia, a fim de persuadir o auditório por meio de apelos emocionais. A segunda seção retrata a teoria 3061 perelmaniana, cujo filósofo investigou os discursos em torno do auditório, que pode ser particular ou universal. A terceira aborda a parte acusatória e da defesa em seus discursos, lançando mão de um jogo emocional com os jurados. Por derradeiro, apresenta-se as considerações finais. 2 UM PANORAMA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Retórica, ou oratória, é a arte de falar bem utilizando recursos da linguagem, cujo objetivo é provocar determinado efeito no ouvinte (BARSA, 2002, p.319b). Nesse sentido, diz espirituosamente Isócrates, "de que adianta escrever discursos cuja maior vantagem só poderia ser não poder persuadir nenhum dos ouvintes?" (ISÓCRATES apud PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. 2005, p.58). Atienza (2003, p.17) comenta que, indubitavelmente, a prática do Direito consiste, “fundamentalmente, em argumentar, e todos costumamos convir em que a qualidade que melhor define o que se entende por um ‘bom jurista’ talvez seja a sua capacidade de construir argumentos e manejá-los com habilidade.” Söhngen (2011, p.23) diz que a argumentação é a essência da atividade jurídica oriunda do raciocínio humano; que a teoria do direito é aceita quando bons argumentos a sustentam, aplicada a um caso concreto, e demonstram a sua coerência com este caso. E Rodríguez (2005, p.13) esclarece que argumentar é a arte de procurar, em situação comunicativa, os meios de persuasão disponíveis, que processa-se por meio do discurso, por “palavras que se encadeiam, formando um todo coeso e cheio de sentido, que produz um efeito racional no ouvinte”. Quanto mais coeso e coerente for o discurso, explica o autor, “maior será sua capacidade de adesão à mente do ouvinte, porquanto este o absorverá com facilidade, deixando transparecer menores lacunas”. Em Retóricas, Perelman (2004. p.177) conta que a retórica clássica – a arte de falar ou escrever de modo persuasivo – "se propunha estudar os meios discursivos de ação sobre um auditório, com o intuito de conquistar ou aumentar sua adesão às teses que se apresentavam ao seu assentimento". 3062 A retórica clássica fornece um modelo capcioso para os estudiosos da linguagem enquanto comunicação ou transmissão de conhecimento. A verdade não é mais definida como ideia prefixada que a linguagem apresenta de forma atraente, mas como ideia relativa a uma perspectiva que é intrínseca à própria linguagem; retóricas instituídas para persuadir e provocar resultados específicos (BARSA, 2002, p.319b). A partir do texto, percebe-se que retórica clássica é o mesmo que oratória e que o discurso não é neutro, A seção seguinte aborda o contextualiza historicamente a arte da oratória. 2.1 Desenvolvimento histórico Nascida na Sicília, no século V a.C. No mundo grego, a oratória veio a ser necessidade do cidadão, que teria de defender seus direitos nas assembleias. Surgiam profissionais – os primeiros advogados – que ainda não representavam seus clientes na tribuna, mas orientavam seus discursos, obrigando os clientes a decorá-los, para obter o ganho da causa. Os primeiros retores, Córax e Tísias, definiram-na como a arte da persuasão e começaram a sistematizar as regras do discurso forense. No mesmo século, os sofistas impulsionaram a evolução da retórica, consideravam a verdade relativa, que poderia depender da forma do discurso no qual fosse apresentada. Platão discordava das ideias dos sofistas, postulando a existência de uma verdade absoluta, inquestionável; a linguagem seria um meio de expressão dessa verdade e das leis da moral (BARSA, 2002, p.319b). Retórica, de Aristóteles, o mais importante tratado da antiguidade sobre o tema, estabeleceu como qualidades máximas a clareza e a adequação dos meios de expressão ao assunto e ao momento do discurso. Relacionou os métodos de persuasão do júri e da assembleia e classificou-os em três categorias: os que induzem atitude favorável à pessoa do orador, os que produzem emoção e os argumentos lógicos e exemplos. Concordou com Platão quanto aos aspectos morais da retórica e distinguiu três tipos de discurso: deliberativo, para ser pronunciado nas assembleias políticas; forense, para ser ouvido no tribunal; e epidíctico, ou demonstrativo. Cada tipo de discurso se estruturava segundo regras próprias para efetuar a persuasão (BARSA, 2002, 3063 p.319b). Esses gêneros oratórios são descritos por Perelman, que explica o judiciário como referente ao justo, à argumentação perante os juízes (PERELMAN, Retóricas, 2004, p.66). Rodríguez (2005, p.13) aponta, conforme Aristóteles, e explica o discurso judiciário, que se dirige ao juiz ou tribunal e decidem questões referentes ao passado. Reforça o autor que tais fatos passam a ser comprovados até irem a julgamento, “atingidos por um juízo de valor, para que se lhes aplique determinada consequência”. O discurso judiciário, para a visão aristotélica, pode lidar com a acusação ou a defesa. A retórica romana, cujos maiores oradores foram Cícero e Quintiliano, elaborou as práticas gregas e desenvolveu um processo de composição do discurso em cinco fases: a invenção, escolha das ideias apropriadas; a disposição, maneira de ordená-las; a elocução, que se referia ao uso de um estilo apropriado; a memorização; e a pronunciação. A retórica oferece um discurso que permite aplicações de falácias e técnicas especiais de convencimento e persuasão. O objetivo é induzir a determinado ponto de vista. Há diversos tipos de falácias, neste artigo é abordada a falácia do apelo à emoção. 2.2 A emoção é uma falácia O fato de selecionar certos elementos, como a emoção, que é uma falácia, pode ser qualificado de pseudo-argumento. "O argumento seduz. Porém, trata-se de uma sedução intelectual: progressão discursiva deve agradar o raciocínio lógico do interlocutor, e é nesse sentido que as falácias devem ser evitadas" (RODRÍGUEZ, 2005, p.237). Conforme Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p.16), para influenciar por meio do discurso e de adesão a teses, não se deve menosprezar as condições psíquicas e sociais, sem as quais a argumentação perderia o efeito, já que esta visa à adesão dos espíritos e, assim, pressupõe a existência de um contrato intelectual. Os autores (2005, p.204) se preocupam com o fato de que "juízos de valor e, mesmo, sentimentos puramente subjetivos podem, mediante artifícios de apresentação, ser transformados em juízos de fato". Explicitam Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p.133) que o sentimento considera apenas o presente; a razão, o futuro dos tempos e sua sequência. E 3064 pelo fato de o presente fartar a imaginação, a razão costuma ser vencida; "mas, depois que a força da eloquência e da persuasão fizeram as coisas distantes e futuras parecerem presentes, então a razão prevalece sobre a revolta da imaginação". Nesse sentido, Söhngen (2011, p.33) articula: conhecer sua relevância “nos processos de raciocínio não significa que a razão seja menos importante do que as emoções [...]”. Verifica-se que a ampliação das emoções, pode “enfatizar seus efeitos positivos e reduzir seu potencial negativo”. Conclui ser “natural que se queira proteger a razão da fraqueza que as emoções anormais ou a manipulação das emoções normais podem provocar no processo de planejamento e decisão”. A autora (2011, p.44) revela a impossibilidade de negar uma forte influência dos sentimentos exercidos sobre a razão, que os “sistemas cerebrais necessários aos sentimentos se encontram enredados” nos mecanismos imprescindíveis à razão. Há circunstâncias em que é evidente que não há dúvidas no caso, mas cumprirá conceber os “raciocínios como uma corrente cuja solidez é a do mais frágil dos elos? Quando se trata da reconstituição do passado, o raciocínio se parece muito mais com um tecido cuja solidez é, de longe, superior à de cada fio que constitui a trama” (PERELMAN, Retóricas, 2004, p.163). Perelman nota que uma ciência racional não pode contentar-se com opiniões imprecisamente verossímeis, que devem estar em acordo, pois o desacordo é sinal de erro. Então elege Descartes para exprimir que quando duas pessoas se manifestam no mesmo tema em juízos contrários, certamente um deles se engana. Sua obra busca na retórica clássica aprimorar seu desenvolvimento. Segue sua teoria. 3 TEORIA PERELMANA: RAZÃO E EMOÇÃO NOS AUDITÓRIOS Chaïm Perelman nasceu em Varsóvia, mas viveu a maior parte de sua vida na Bélgica. Ganhou título de Barão por seu trabalho na Filosofia. Sua Teoria da Argumentação gira em torno dos auditórios. O auditório particular é específico, do qual se conhece características pessoais e particulares. Enquanto o auditório particular é influenciado por persuasão, o universal o é por convencimento. Este último, não existe propriamente. Nos anos 70, Perelman inseriu o curso de 3065 argumentação em Bruxelas. Por séculos, a função da argumentação jurídica era acessória e as decisões judiciais dispensavam fundamentos. Após arbitrariedade, o juiz submete-se à lei. Essa evolução "parece trazer à argumentação [...] menor valor, [...] afastados da exatidão que demandava o raciocínio jurídico àquele tempo, impregnado de concepções naturalistas" (RODRÍGUEZ, 2005, p.8). Perelman, em Lógica jurídica: nova retórica (2004, p.141-143), diz que a “retórica procura persuadir por meio do discurso”, sendo mais adesão do que verdades, mas a “adesão é sempre a adesão de um ou mais espíritos aos quais nos dirigimos, de um auditório”. Informa que a “noção de auditório é central na retórica”: “um discurso só pode ser eficaz se é adaptado ao auditório que se quer persuadir ou convencer”. Ao usar termos apropriados ao discurso, em Retóricas, Perelman (2004. p. 113) chama de orador aquele que apresenta uma argumentação, assim como auditório àqueles a quem é destinada. O filósofo (1996, p.196) estabelece uma espécie de técnica para discursar: o orador apresenta a argumentação; o auditório, o conjunto de quem ele quer ganhar a adesão. Seu discurso deve se adaptar ao auditório, “trate-se [...] de um juiz que deve decidir sobre um litígio, do sujeito que delibera ou, enfim, do auditório universal que encarna o que tradicionalmente denominamos a razão”. Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p.6) defendem que é em função de um auditório que qualquer argumentação se desenvolve uma noção da retórica convencional. Para os autores, (2005, p.556-557) "se a argumentação é, essencialmente, adaptação ao auditório, a ordem dos argumentos de um discurso persuasivo deveria levar em conta todos os fatores suscetíveis de favorecer-lhes a acolhida pelos ouvintes". Os filósofos (2005, p.556) tratam do condicionamento do auditório. Chamam persuasiva a uma argumentação que pretende valer só para um auditório particular; e, convincente àquela que deveria obter a adesão de todo ser racional (2005, p.31). Distinguem as técnicas que visam a persuadir das que procuram convencer. O auditório engloba o próprio orador, deliberação íntima ou argumentação que se pretenderia válida para todos [p.23/31?]. Em Retóricas, Perelman (2004. P.59) distingue “os meios de convencer aos meios de persuadir, sendo os primeiros concebidos como racionais, os segundos como irracionais, 3066 dirigindo-se uns ao entendimento, outros à vontade". Assim, o “auditório universal não é efetivamente dado, é apenas um auditório ideal (2004, p.204). Este trabalho é centralizado no auditório particular, o qual retrata-se a seguir. 3.1 Persuasão no auditório particular Perelman, escreve em seu livro Retóricas (2004, p.325) "Dentre as condições prévias da argumentação, deve-se levar em consideração o desejo de persuadir, o de escutar e de se deixar convencer, a existência de uma linguagem comum ao orador e ao auditório". Ao ser constituído por apenas um ouvinte, o auditório – identificado o ouvinte com o orador –, “é essencial saber quais são as opiniões e os valores aos quais ele adere com mais intensidade e nos quais o orador pode basear o seu discurso, de modo que este último tenha uma ascendência garantida sobre a personalidade de seu ouvinte” (idem, p.181). Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p.556) lecionam que no auditório particular é usada a persuasão, cujo referencial é “um auditório concreto, que se modifica no tempo, com as concepções que dele tem o orador”. A persuasão era usada em Atenas, onde cidadãos voluntários formavam júri popular. Segundo Söhngen (2011, p.31), “o conhecimento jurídico deve preocupar-se com os meios de sustentar determinada decisão como sendo a mais justa, equitativa, razoável, oportuna ou conforme o direito em face de outras decisões igualmente cabíveis”. Para os preocupados com o resultado, Perelman, em Retóricas (2004. P.59) sugere que persuadir é mais do que convencer; é o essencial: "abalar a alma para que o ouvinte aja em conformidade com a convicção que lhe foi comunicada”. Ao encontro desse raciocínio, Chaignet (p.93 apud PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.46) observa: "Quando somos convencidos, somos vencidos apenas por nós mesmos, pelas nossas ideias. Quando somos persuadidos, sempre o somos por outrem". Contudo, Perelman e OlbrechtsTyteca (2005, p.34) exibem os inconvenientes da argumentação que visa apenas ao auditório particular: o orador, ao se adaptar à visão de seus ouvintes, arrisca- 3067 se apoiar-se em teses estranhas ou opostas às pessoas que não aquelas a quem se dirige no momento. Perelman, Retóricas (2004, p.182) questiona: "Como se dirigir a todos de modo a ganhar a adesão de cada qual, ou pelo menos a adesão de todos os que o orador se empenha em persuadir?" Na argumentação é comum que o orador precise persuadir um auditório heterogêneo, “reunindo pessoas diferenciadas pelo caráter, vínculos ou funções”. “Ele deverá utilizar argumentos múltiplos para conquistar os diversos elementos de seu auditório. É a arte de levar em conta, na argumentação, esse auditório heterogêneo que caracteriza o grande orador”. (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.24). Perelman (Retóricas, 2004, p.269) explica que a retórica examina os argumentos dos quais utilizamos seja numa deliberação íntima, seja os que supomos dirigir-se à toda humanidade, e a retórica dos antigos constitui uma espécie particular cuja meta é persuadir. Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p.169) assinalam que toda persuasão supõe um auditório, a quem se quer persuadir. Não existe escolha neutra – mas há uma escolha que parece neutra e é a partir dela que se podem estudar as modificações argumentativa. Os autores (2005, p.172) insistem: ao nos perguntarmos por que um orador se expressa de maneira neutra, subentendemos que ele tem um objetivo, pois poderia não o fazer. "Nós o encontraremos a cada passo: a ausência de técnica pode ser um método, não há neutralidade que não possa ser intencional". Söhngen revela que a persuasão busca “atingir a vontade, o sentimento do interlocutor, por meio de argumentos plausíveis ou verossímeis [...] dirigindo-se a um auditório particular, ao passo que o convencimento envolve inferências que podem levar o auditório à adesão aos argumentos apresentados”. Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p.22) expõem sua teoria em que a argumentação concebe "o auditório presumido tão próximo quanto o possível da realidade. [...] Uma argumentação considerada persuasiva pode vir a ter as mais desagradáveis consequências". Estabelecem (2005, p.133) que "uma argumentação tendenciosa, adotada de caso pensado, com vistas a uma posição que se favorece por interesse ou por função, deveria ser completada pela argumentação adversa, a fim de permitir um equilíbrio na apreciação dos elementos conhecidos". 3068 Perelman (2004, p.381) observa que há importância considerável na ordem adotada na argumentação pelo condicionamento do auditório, visto que "o discurso exerce uma ação tal sobre o auditório que, à medida que se vai desenrolando, o modo como o auditório reage, como apreende os dados, se modifica". O réu e o procurador geral poderão, cada um deles, recusar seis membros do júri, sem ter de indicar nenhuma razão. (idem, 2004, p.217). Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p.363) "As funções exercidas, bem como a pessoa do orador, constituem um contexto cuja influência é inegável: os membros do júri apreciarão de modo muito diferente as mesmas observações pronunciadas pelo juiz, pelo advogado ou pelo promotor". Há dois tipos de auditório: o universal, trabalha com convencimento, seria um auditório ideal – os maiores especialistas em determinado tema; e o auditório particular, da persuasão, do qual se conhece características pessoais. O enfoque deste auditório é nos jurados do Tribunal do Júri. 4 ACUSAÇÃO VERSUS DEFESA NOS TRIBUNAIS DE JÚRI Veredicto, do latim, verum dictum, em busca da verdade. Jurados, representantes da sociedade, seriam neutros. Júri, do latim jurare, significa fazer juramento. Assinala Plácido e Silva que o júri é a instituição popular a que se atribui o encargo de afirmar ou negar a existência do fato criminoso imputado a uma pessoa. Júri é Tribunal do Júri. Conjunto de jurados denomina-se conselho de sentença. Surgiu nos países anglo-saxões. Na França Itália e Alemanha foi substituído por outros órgãos. Tradições, júri místico na Inglaterra. Lembrança dos 12 apóstolos, “12 homens de consciência pura se reuniam sob a invocação divina, a verdade infalivelmente se encontrava entre eles. Dessa crença teria nascido o júri. Ainda se observam no júri inglês o caráter religioso (ACQUAVIVA, 2011, p.513). O Art.5º XXXVIIII da CF diz que: “É reconhecida a instituição do tribunal do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida”. Art.12, §2º CF. estrangeiro não pode ser jurado, só brasileiro naturalizado. O artigo 437 trata da isenção do 3069 júri. O Art.438 sobre a recusa ao serviço do júri, importa serviço alternativo, sob pena de suspensão dos direitos políticos. O artigo 425 especifica o alistamento dos jurados. O Art.436 do CPP diz que é serviço obrigatório, maiores de 18, notória idoneidade. Acquaviva (2011, p.514) explica que, diferentemente do júri da Grã-Bretanha, no Brasil não deu os melhores resultados. O júri brasileiro sofreu diversas restrições. O Tribunal do Júri, conhecido também por Tribunal Popular, é composto por um juiz togado (bacharel em Direito e magistrado de carreira), seu presidente, e por 25 jurados, sorteados dentre os alistados dos quais constituirão o Conselho de Sentença em cada sessão de julgamento, de acordo com o art.447 CPP, com redação dada pela lei 11.689/08. Jurado, do latim juratus é o cidadão que, sob juramento comporá o júri com outros jurados, no total 25. Pimenta Bueno, em 1857: “A intervenção dos jurados na administração da justiça é uma garantia muito importante para as liberdades, interesse e justiça sociais. [...] independência judiciária” (ACQUAVIVA, 2011). Mário Rocha Lopes Filho (2004, p.5) introduz que o Júri Popular foi um dos procedimentos idealizados para julgar infratores; e entregava-se à sociedade o direito de julgar seu semelhante ainda que esta forma de julgamento tivesse características diversas das atuais e observa que o objetivo, meta, ideal a ser perseguido é a imparcialidade da atividade jurisdicional, embora seja difícil de atingi-la na prática, pois “o julgamento é atribuído a criaturas humanas, imperfeitas por natureza, não havendo [...] possibilidade de investigarmos, de modo pleno [...] pelo julgador”. Segundo Perelman (1996, p.553), o papel da argumentação e da retórica crescem toda vez que, por ocasião de uma controvérsia, delibera-se sozinho, ou com outros, para chegar a uma decisão que se quer razoável. Em Lógica jurídica: nova retórica (2004, p.217), o autor diz que um advogado só é obrigado a aceitar defender um cliente se lhe é imposto, devido ao réu não ter defesa, por temer conflitos de interesses que defende ou funções que exerce; pode recusar causa que julgue indefensável ou contrária a suas convicções, mas lhe é vedado enganar o juiz, assim como dizer o que sabe ser falso, sem poder revelar o que sabe das confidências cujas causas aceita defender, pois o papel do advogado é “fazer o tribunal ou o júri admitir a tese que está encarregado de defender. Para 3070 consegui-lo, adaptará sua argumentação ao auditório, do qual depende o desfecho do processo, que lhe é imposto”. Devido ao “papel central que, em toda lide, compete aos juízes ou ao júri, é normal que regras de processo permitam recusar aqueles cuja parcialidade se teme” (PERELMAN, 2004, p.217). O Tribunal do Júri, para Lopes Filho, “é uma forma de exercício popular do poder judicial, daí derivando sua legitimidade, constituindo-se num mecanismo efetivo de participação popular”. A instituição do júri representa o auge da argumentação e da oratória (RODRÍGUEZ, 2005, p.284 a 286). De fato, os tribunais, e não os teóricos, é que são encarregados de dizer o direito, motivando suas decisões (PERELMAN, Lógica jurídica: nova retórica, 2004, p.221). Perelman em Lógica jurídica: nova retórica, (2004, p.195) diz que é problema vasto a relação entre a verdade e a justiça: “de fato, a ficção fornece um exemplo extremo em que, por preocupação com equidade, o júri qualifica erradamente os fatos dos quais deve conhecer, mas este não é o único caso em que o direito atribui maior importância a outros valores que não à verdade”, apesar de “o respeito a esta seja ligado a um dos valores fundamentais do direito, a saber, a segurança jurídica. Em nosso direito, a mentira só é punível se a testemunha comprometeu-se sob juramento a dizer a verdade, toda verdade e nada mais que a verdade”. Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p.2) observam que uma ciência racional não pode contentar-se com opiniões imprecisamente verossímeis, que devem estar em acordo, pois o desacordo é sinal de erro. Então elege Descartes para exprimir que quando duas pessoas se manifestam no mesmo tema em juízos contrários, certamente um deles se engana: "[...] nenhum deles possui a verdade; pois se um tivesse dela uma visão clara e nítida poderia expô-la a seu adversário, [...] que ela acabaria por forçar sua convicção". Da discordância entre partes, ironiza um Anônimo do Século XVII (2006. p.272): Nos advogados e julgadores há também excelentes unhas e todas verdadeiras, porque não se pode presumir que minta gente douta e que professa justiça e razão. O que me admira é que tomem dois advogados uma demanda entre mãos e entre dentes – um para a defender e outro para a impugnar, este pelo amor, e aquele pelo réu – e que ambos afirmem a ambas as partes que têm justiça. Como pode ser, se contrariam e um diz que sim e outro 3071 que não? Necessariamente um deles há de mentir, porque a verdade consiste em indivisível, como diz o filósofo. Com tudo isso, ambos falam verdade, porque cada um diz à sua parte que tem justiça, isto é, que terá sentença por si, se quiserem os julgadores. Chaïm Perelman, em Lógica jurídica: nova retórica, (2004, p.8-9) explica que os raciocínios jurídicos “são acompanhados por incessantes controvérsias, e isto tanto entre os mais eminentes juristas quanto entre os juízes que atuam nos mais prestigiosos tribunais”. Assim, “o papel do jurista, [...] seria o de preparar, com suas reflexões e [...] análises, a solução mais justa em cada caso específico”. [...] O filósofo relata que (2004, p.10) é por meio de controvérsias, oposições dialéticas, e das argumentações em sentido diverso que se elabora o direito. [...] E “admitia-se como justa uma decisão conforme à regra da justiça que exige tratamento igual de casos essencialmente semelhantes”. Em Retóricas, Perelman (2004. p.359-360) diz que se deve apurar os dois lados da história, ouvir testemunhas, analisar provas físicas do processo. O choque de palavras em contraste com fatos provocaria, em tese, ao menos, a elaboração do acontecido, conduzindo o julgador à verdade. A busca pela verdade material, na hora de tomar uma decisão, é aperfeiçoada pelo discernimento que surge apenas no momento em que, com relação a um mesmo objeto, “as opiniões se chocam, as aparências se opõem, as impressões deixam de concordar”. Desse modo, “fica-se sabendo, desde então, que há opiniões falsas, aparências ilusórias e impressões enganadoras, mas nem todas são dessa natureza: é preciso um critério para salvar o que merece ser salvo.” O filósofo designa a relevância dos juízos de valor e que a retórica deve voltar a ser um estudo vivo, trazendo J. Stuart Mill (apud PERELMAN, 2004, p.89), que pondera que se deva pesar argumentos opostos que "podem dar mostra de uma evidência plausível quando cada uma delas se expõe e se explica por si só”; e comparando essas contradições das partes “que é possível decidir qual delas tem razão". O júri é um direito da sociedade, do réu? A argumentação é decisiva em debates e sustentações orais. O Conselho de Sentença ou o Juiz togado é mais justo em duas decisões? Cada indivíduo traz consigo arcabouço de experiências que se reflete na escolha. 3072 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Tratou-se no presente trabalho de expor a teoria de Chaïm Perelman, em sua obra Tratado da Argumentação: a nova retórica, a falácia “apelo à emoção” no discurso como forma de persuadir o Tribunal do Júri. A partir do exposto conclui-se, que o direito não necessariamente pressupõe ética. Perelman é um autor que traz essa questão. Na retórica, o embate não se destina a fazer prevalecer a verdade e portanto o justo. Destina-se a vencer o debate, objetiva a vitória. A argumentação é uma ciência perigosa, uma vez que possibilita sua prática por meio de falácias sutilmente perceptíveis. Há várias espécies de falácia. Este trabalho estudou a do apelo à emoção – argumentum in misericordiam – que é altamente eficaz, em sua persuasão, no discurso para um auditório particular. Pode-se entender a teoria perelmaniana da argumentação jurídica, a diferenciação entre o auditório particular e o auditório universal, que tratam da persuasão e do convencimento respectivamente. Este tema versa sobre a ética e o direito. Até que ponto é tolerável o discurso em prol de um veredito? O júri tem sido criticado atualmente: no Brasil a escolha dos jurados é aleatória: não há como saber um perfil dessas pessoas, diferentemente da realidade dos EUA, por exemplo, em que existe uma indústria de profissionais psicólogos para escolher os jurados. Os jurados não necessitam fundamentar sua decisão, podem ficar mais à mercê da emoção do que juízes togados. Abusar da falácia, frisar aspectos que se conhece da vida dos jurados não é ético. Magistrados, promotores, advogados podem equivocar-se em suas decisões, aplicar leis injustas. É possível que advogados, sabendo da culpa de seus clientes ainda assim os defendam inescrupulosamente para obter ganho da causa. Não há como saber. Cada pessoa é diferente em sua maneira de pensar: pode haver um acusador excelente ou péssimo; um defensor excelente, ou um péssimo; um magistrado excelente, ou um magistrado péssimo. Está além do sistema, da função ou do cargo exercido. Hodiernamente, deve-se buscar um significado ético e limites na retórica, para um discurso não com a finalidade de convencer, mas com o fim original de obter justiça em vez de “refutações sofísticas” como definiu Aristóteles. Verifica-se que advogados famosos valeram-se de falácias, em 3073 julgamentos, de maneira astuciosa. Nesse sentido, Perelman alerta para se ter uma visão ampla. Por isso os jurados devem estar atentos para não se deixarem manipular. REFERÊNCIAS ACQUAVIVA, M. C. Dicionário jurídico Acquaviva. São Paulo: Rideel, 2011. ANÔNIMO do Séc.XVII. Arte de Furtar. São Paulo: Martin Claret, 2006. ATIENZA, M. As Razões do direito: Teorias da Argumentação Jurídica; tradução de Maria Cristina Guimarães Cupertino. – São Paulo: Landy Editora, 2003. BARSA, Nova Enciclopédia. Retórica. 6.ed. São Paulo: Barsa Planeta Internacional Ltda, 2002. CHAIGNET, A. Ed. La rhétorique et son histoire, p.93. Apud PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da Argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005. DESCARTES, O., t. XI: Règles pour la direction de l'esprit, pp.205-6. Apud PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da Argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ISÓCRATES, Discursos, t. I: A Demonicos, §37. Apud PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da Argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005. LOPES FILHO, M. R. O Tribunal do Júri e algumas variáveis de influência. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: Edipucrs, 2004. MILL, J. S. Système de logique, baseada na 6ª ed. inglesa, de Louis Peisse, 2 vols. Paris,1866, t. I, Prefácio, p.XXII. Apud PERELMAN, C. Retóricas. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. PERELMAN, C. Ética e direito; tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996. PERELMAN, C. Lógica jurídica: nova retórica. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. PERELMAN, C. Retóricas. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 3074 PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da Argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005. RODRÍGUEZ, V. G. Argumentação Jurídica: técnicas de persuasão e lógica informal. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005 SÖHNGEN, C. B. da C. Argumentação e discursos criminológicos. Porto Alegre: Edipucrs, 2011. VALVENDE, K. J. Pensando como um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 3075 REFLEXÕES ACERCA DA PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DO DIREITO AUTORAL E SUA FUNÇÃO SOCIAL EM RELAÇÃO AO ENSINO A DISTÂNCIA (EAD) Michele Vollrath Bento25 Thilara Lopes Schwanke Xavier26 RESUMO: Contemporaneamente, a doutrina e a legislação vêm reconhecendo a crescente importância dos direitos de autor e os que lhes são conexos. O combate à reprodução sem autorização de obras protegidas no mercado tem sido objeto de relevantes estudos. Nesse sentido, a proteção legal dos direitos autorais, espécie de propriedade intelectual, bem como a consagração da função social da propriedade através do referido instituto jurídico será discutida na legislação específica e na esfera constitucional, neste caso, no âmbito da produção intelectual para o ensino a distância PALAVRAS-CHAVES: direito autoral; ensino a distância; função social da propriedade. 1 INTRODUÇÃO A temática relativa à proteção da propriedade intelectual tem se tornado de extrema importância no cenário nacional e internacional. O foco do estudo das questões referentes ao direito de propriedade, cada vez mais, tem se direcionado aos bens intangíveis. Adquire importância fundamental também, o ensino a distância, como consagração do direito à educação, uma vez que o mesmo amplia consideravelmente o acesso da sociedade brasileira as diferentes 25 Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pelotas (2003), Especialista em Direito Processual pela Universidade Católica de Pelotas (2006). Advogada (2004). Professora do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Campus Pelotas – Visconde da Graça do Instituto Federal Sul-Rio-Grandense (IFSul). Professora-pesquisadora da Equipe Multidisciplinar da Rede e-Tec Brasil/IFSul (EAD). Integrante do Grupo de Pesquisa Primas do Direito CivilConstitucional/PUC/RS. Mestranda em Direito PUC/[email protected] 26 Bacharel em Administração de Empresas e Turismo pela Universidade Federal de Pelotas (2008/). Especialista em Gestão Integrada do Capital Intelectual pela FATEC/SENAC Pelotas (2008). Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Pelotas (2014). Professora do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Campus Pelotas – Visconde da Graça do Instituto Federal Sul-Rio-Grandense (IFSul). Coordenadora do Curso Técnico em Administração da Rede e-Tec Brasil/IFSul (EAD). Doutoranda em Política Social [email protected] 3076 modalidades de ensino. As pesquisas relativas a novas tecnologias, as invenções, modelos de utilidades, assim como relativo a outros sinais distintivos, no caso os direitos autorais se mostram, ainda, incipientes e carecem de reflexões acerca da regulamentação existente. O fomento a produção e distribuição do conhecimento bem como sua tutela judicial ocupam importante espaço no ordenamento jurídico. No Brasil, hoje, segundo a Consumers Internacional, organização que reúne entidades de proteção ao consumidor de todo o mundo, incluindo o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), responsável por levantar os dados do estudo — chamado de IP Watchlist — as leis de direitos autorais são tão rígidas que prejudicam o acesso à cultura e o uso educacional de obras protegidas. Hoje, a lei de propriedade intelectual não permite cópias físicas ou digitais, na totalidade das obras, para uso educacional ou científico. O estudo da proteção constitucional dos direitos de autor e os que lhes são conexos no tocante a função social da propriedade, mais que um instituto regulamentado pela ordem jurídica vigente consiste na possibilidade efetiva de proteção das obras intelectuais da exploração econômica desordenada. Portanto, justifica-se a realização do presente trabalho de investigação. O problema da pesquisa se encontra justamente em definir se a proteção conferida aos direitos autorais está em conflito como o acesso ao direito à educação, em especial, aquele consagrado através da do ensino a distância, uma vez que a proteção da propriedade intelectual referida poderá limitar este direito, bem como ambos consubstanciam preceitos constitucionais explícitos. A metodologia utilizada no estudo foi análise da bibliografia existente sobre a temática abordada, em especial, a doutrina e a legislação pátria. O presente estudo tem como objetivo identificar a proteção conferida pela Constituição Federal ao instituto da propriedade intelectual como direito fundamental, em especial se os direitos de autor e os que lhes são conexos poderiam colidir com o acesso à educação, outro direito fundamental, em particular o caso do ensino a distância (EaD). A Lei dos Direitos Autorais (LDA), Lei n.º 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, confere proteção infraconstitucional aos direitos de autor e os que lhes são 3077 conexos, uma vez que estabelece expressamente quem é o autor27, bem como o que pode ser especificamente objeto de registro28. Tal regulamentação foi construída a partir das diretrizes estabelecidas pela Convenção de Berna, de 1886, revista em Paris, a 24 de julho de 1971 e recepcionada no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro, pela promulgação do Decreto n° 75.699, de 06 de maio de 1975 e, posteriormente, pelo Decreto n° 76.905, de 24 de dezembro de 1975. A Organização Mundial do Comércio (OMC), através de acordos internacionais tem buscado a regulamentação específica atinente a este assunto. Por essa razão, a referida temática encontra proteção constitucional no Brasil no art. 5º. da Carta Magna: Art. 5º. XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar; XXVIII - são assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas; b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas; 27 Art. 11. Autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica. 28 Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como: I - os textos de obras literárias, artísticas ou científicas; II - as conferências, alocuções, sermões e outras obras da mesma natureza; III - as obras dramáticas e dramático-musicais; IV - as obras coreográficas e pantomímicas, cuja execução cênica se fixe por escrito ou por outra qualquer forma; V - as composições musicais, tenham ou não letra; VI - as obras audiovisuais, sonorizadas ou não, inclusive as cinematográficas; VII - as obras fotográficas e as produzidas por qualquer processo análogo ao da fotografia; VIII - as obras de desenho, pintura, gravura, escultura, litografia e arte cinética; IX - as ilustrações, cartas geográficas e outras obras da mesma natureza; X - os projetos, esboços e obras plásticas concernentes à geografia, engenharia, topografia, arquitetura, paisagismo, cenografia e ciência; XI - as adaptações, traduções e outras transformações de obras originais, apresentadas como criação intelectual nova; XII - os programas de computador; XIII - as coletâneas ou compilações, antologias, enciclopédias, dicionários, bases de dados e outras obras, que, por sua seleção, organização ou disposição de seu conteúdo, constituam uma criação intelectual. 3078 Conforme aduz BARBOSA (2009), a Carta Magna de 1988 além de recomendar a tutela dos direitos subjetivos individuais, no tocante à produção autoral, distingue a existência de interesses coletivos no mesmo âmbito temático, confiando ao Estado o dever de garantir o acesso a tais objetos culturais, conforme preceituado no art. 215 Caput e § 1º. A revolução tecnológica a que a sociedade foi submetida com o advento da internet, fez com que os fatores tempo e espaço fossem drasticamente reduzidos, bem como as relações daí advindas , especialmente no tocante ao acesso ao conhecimento disponibilizado na rede. A LDA brasileira é uma das legislações mais restritivas do mundo.29 Vejamos que a lei enumera de forma específica e restritiva todas as situações de proteção, conforme segue: Art. 5º Para os efeitos desta Lei, considera-se: I - publicação - o oferecimento de obra literária, artística ou científica ao conhecimento do público, com o consentimento do autor, ou de qualquer outro titular de direito de autor, por qualquer forma ou processo; II - transmissão ou emissão - a difusão de sons ou de sons e imagens, por meio de ondas radioelétricas; sinais de satélite; fio, cabo ou outro condutor; meios óticos ou qualquer outro processo eletromagnético; III - retransmissão - a emissão simultânea da transmissão de uma empresa por outra; IV - distribuição - a colocação à disposição do público do original ou cópia de obras literárias, artísticas ou científicas, interpretações ou execuções fixadas e fonogramas, mediante a venda, locação ou qualquer outra forma de transferência de propriedade ou posse; V - comunicação ao público - ato mediante o qual a obra é colocada ao alcance do público, por qualquer meio ou procedimento e que não consista na distribuição de exemplares; VI - reprodução - a cópia de um ou vários exemplares de uma obra literária, artística ou científica ou de um fonograma, de qualquer forma tangível, incluindo qualquer armazenamento permanente ou temporário por meios eletrônicos ou qualquer outro meio de fixação que venha a ser desenvolvido; VII - contrafação - a reprodução não autorizada; VIII - obra: a) em co-autoria - quando é criada em comum, por dois ou mais autores; b) anônima - quando não se indica o nome do autor, por sua vontade ou por ser desconhecido; c) pseudônima - quando o autor se oculta sob nome suposto; d) inédita - a que não haja sido objeto de publicação; e) póstuma - a que se publique após a morte do autor; f) originária - a criação primígena; g) derivada - a que, constituindo criação intelectual nova, resulta da transformação de obra originária; 29 3079 Na doutrina, os direitos autorais dividem-se em direitos morais e direitos patrimoniais. Os direitos morais são aqueles considerados inalienáveis e irrenunciáveis; constituindo ligações perenes autor e sua respectiva obra. O autor poderá reivindicar, a qualquer momento, a autoria, ter seu nome identificado como autor e assegurar a integridade da obra, podendo ainda alterá-la a qualquer momento, bem como retirá-la de circulação quando afrontar sua reputação. Os direitos patrimoniais referem- se à utilização econômica da obra. As reproduções da obra sejam estas realizadas de forma parcial ou integral, edição, adaptação, tradução - ou ainda quaisquer outras espécies de utilização que venham a ser inventadas, necessitam da expressa autorização do autor. (VIEIRA, RODRIGUES E BARCIA, 2003). Nesse sentido, o principal desafio das inovações tecnológicas é a adequação dos direitos autorais (morais e patrimoniais) com as novas ferramentas disponibilizadas. Os avanços tecnológicos ocasionam uma série de modificações, tanto na sociedade, como no desenvolvimento humano. Portanto, a educação a distância, enquanto modalidade de ensino criadora de objetos de h) coletiva - a criada por iniciativa, organização e responsabilidade de uma pessoa física ou jurídica, que a publica sob seu nome ou marca e que é constituída pela participação de diferentes autores, cujas contribuições se fundem numa criação autônoma; i) audiovisual - a que resulta da fixação de imagens com ou sem som, que tenha a finalidade de criar, por meio de sua reprodução, a impressão de movimento, independentemente dos processos de sua captação, do suporte usado inicial ou posteriormente para fixá-lo, bem como dos meios utilizados para sua veiculação; IX - fonograma - toda fixação de sons de uma execução ou interpretação ou de outros sons, ou de uma representação de sons que não seja uma fixação incluída em uma obra audiovisual; X - editor - a pessoa física ou jurídica à qual se atribui o direito exclusivo de reprodução da obra e o dever de divulgá-la, nos limites previstos no contrato de edição; XI - produtor - a pessoa física ou jurídica que toma a iniciativa e tem a responsabilidade econômica da primeira fixação do fonograma ou da obra audiovisual, qualquer que seja a natureza do suporte utilizado; XII - radiodifusão - a transmissão sem fio, inclusive por satélites, de sons ou imagens e sons ou das representações desses, para recepção ao público e a transmissão de sinais codificados, quando os meios de decodificação sejam oferecidos ao público pelo organismo de radiodifusão ou com seu consentimento; XIII - artistas intérpretes ou executantes - todos os atores, cantores, músicos, bailarinos ou outras pessoas que representem um papel, cantem, recitem, declamem, interpretem ou executem em qualquer forma obras literárias ou artísticas ou expressões do folclore. XIV - titular originário - o autor de obra intelectual, o intérprete, o executante, o produtor fonográfico e as empresas de radiodifusão. 3080 aprendizagem e demais materiais didáticos a partir da utilização das novas mídias, terá que se adaptar à legislação vigente. Segundo Gandelman (1997, p. 152), “só a experiência e o tempo é que indicarão os caminhos a seguir e fornecerão as molduras jurídicas atualizadas pela nova cultura, no que se refere à proteção justa dos direitos autorais”. Martins Filho (1998, p. 08) ressalta que “as obras intelectuais, mesmo quando digitalizadas, não perdem sua proteção”. Dessa forma, o referido doutrinador salienta que “não podem ser utilizadas sem prévia autorização e que, apesar de qualquer pessoa ter acesso à internet e poder inserir nela material e qualquer outro usuário poder acessá-la”, os “direitos autorais continuam a ter sua vigência no mundo online, da mesma maneira que no mundo físico” (Gandelman, 1997, p. 154). Para Cabral (1998, p.09), “a paternidade da obra é indissociável do nome do autor”, e acrescenta que o avanço tecnológico não nega o direito do autor, ao contrário, pressupõe o pagamento do trabalho de quem cria algo para o aproveitamento de outro. Sendo assim, resta incontestável a importância da internet na divulgação das obras e de seus autores, porém se ressalta que ainda não há mecanismos suficientes que evitem com absoluta segurança danos ao patrimônio dos direitos autorais. (VIEIRA, RODRIGUES E BARCIA, 2003). Assim, o direito autoral constitui espécie do gênero propriedade intelectual, protegidos pela CF/88 em seu art. 5º inc. XXII. Conforme aduz SARLET (2011), o direito de propriedade constitui um direito fundamental de primeira dimensão, de cunho “negativo”, configurando uma abstenção do Estado. Porém, o mesmo Autor, reconhece que na doutrina alemã existe “uso alternativo do direito e garantia fundamental da propriedade, sinalizando de forma paradigmática as diversas funções que podem ser deduzidas dos direitos fundamentais e das transformações que estes sofreram ao longo dos tempos”. Por outro lado, o direito à educação, neste caso a modalidade a distância, consiste em um direito de prestação positiva do Estado, a fim de consagrar o bem-estar social de seus cidadãos, com o objetivo precípuo de assegurar a igualdade material. Assim, o 3081 referido direito também, restaria consagrado pela doutrina, já positivado no art. 6º da CF/88. Conforme aduz José Afonso da Silva (2005), a função social da propriedade é intrínseca a todas as espécies proprietárias previstas, uma vez que o art. 5º, XXIII da Carta, sempre será considerado em consonância com o artigo anterior. Assim, a CF/88 assegura de forma inequívoca que o direito de propriedade, deve ser sempre contrastado com as restrições do inciso seguinte, ou seja, as de que a propriedade atenderá sua função social. Da mesma forma, no art. 170 da CF, a propriedade privada é definida como princípio essencial da ordem econômica, sempre com o limitador do cumprimento de sua função social. Dessa forma, tal situação se estende a propriedade imaterial, no tocante aos direitos autorais. De outro lado, a Constituição Federal também consagra o direito à educação, como direito social, sendo o mesmo plenamente garantido pelo Estado Brasileiro como requisito de exercício pleno da cidadania, referido este em seu conceito amplo: Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Na legislação infraconstitucional, a educação a distância possui referência na lei de diretrizes e bases da educação (LDB), Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, em seu art. 80, dispõe: “O Poder Público incentivará o desenvolvimento e a veiculação de programas de ensino a distância, em todos os níveis e modalidades de ensino, e de educação continuada.” Além deste artigo 80, a LDB traz em seu artigo 87, parágrafo terceiro, que cada Município, Estado e a União deverá “prover cursos presenciais ou a distância aos jovens e adultos insuficientemente escolarizados”. A legislação atinente ao ensino a distância (EAD), tendo em vista que se trata de uma modalidade relativamente recente, ainda está sendo atualizada por 3082 textos oficiais complementares. No dia 10 de fevereiro de 1998, o Governo Federal publicou o Decreto nº. 2.494, com intuito de regulamentar o artigo 80 da LBD, o qual trata diretamente da educação à distância. Assim, a primeira norma regulamentadora do ensino a distância no Brasil, o Decreto nº. 2.494, de 10 de fevereiro 1998 que regulamenta o art. 80 da LDB, traz uma definição primeira do que é a educação a distância, em seu at. 1º: Educação a distância é uma forma de ensino que possibilita a auto-aprendizagem, com a mediação de recursos didáticos sistematicamente organizados, apresentados em diferentes suportes de informação, utilizados isoladamente ou combinados, e veiculados pelos diversos meios de comunicação. Posteriormente, o Decreto nº 5.622, de 19 de dezembro 2005, revogou o decreto acima referido, regulamentando novamente o art. 80 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, alterando parcialmente a caracterização da educação a distância, conforme art. 1º abaixo transcrito: Para os fins deste Decreto, caracteriza-se a educação a distância como modalidade educacional na qual a mediação didáticopedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorre com a utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação, com estudantes e professores desenvolvendo atividades educativas em lugares ou tempos diversos. Esta nova caracterização se fez necessária, uma vez que a evolução da referida modalidade de ensino, especialmente em relação às novas figuras envolvidas (professores, tutores, coordenadores de pólo, de cursos e de tutoria), bem como pela flexibilidade de horários e inclusão social daqueles que além de estudar, também trabalham era premente no Brasil. Assim, se pode verificar que este novo olhar da legislação também se reflete (ou tem origem, pois essa é cronologicamente anterior à aquela) na doutrina, onde se seu conceito de EAD: [...] um sistema tecnológico de comunicação bidirecional (multidirecional) que pode ser massivo, baseado na ação sistemática e conjunta de recursos didáticos e com o apoio de uma organização e tutoria que, separados fisicamente dos estudantes, propiciam a eles uma aprendizagem independente (cooperativa) (ARETIO, 2001, p. 39). Assim, quanto às figuras envolvidas no processo ensino-aprendizagem a distância, diretamente no tocante à produção de atividades e material didático, 3083 quais sejam professor-pesquisador e professor-conteudista, tem se a Resolução nº 36, de 13 de julho de 2009 do Conselho Deliberativo do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (CD/FNDE) que estabelece orientações, diretrizes, critérios e normas para a concessão de bolsas de estudo e de pesquisa no âmbito do Sistema Escola Técnica Aberta do Brasil (Rede e-Tec Brasil), nos termos da Lei 11.273, de 06 de fevereiro de 2006, a partir do exercício de 2009. O professor pesquisador (ou formador) é aquele que possui como responsabilidades acompanhar e operacionalizar a disciplina durante o período em que ela está disponibilizada no Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA). É atribuição do mesmo a elaboração das avaliações e atividades, assim como conduzir os tutores quanto aos objetivos e eventuais dificuldades do conteúdo. Este professor pode ser ou não o autor do material didático utilizado pelo aluno. O foco deste professor é buscar alternativas para facilitar o processo de aprendizagem, pensando em momentos presenciais e no formato adequado do conteúdo para ser utilizado virtualmente. O papel deste professor é estabelecer uma ponte entre a aprendizagem realizada presencialmente a partir do contato com o tutor e a aprendizagem realizada através das diferentes mídias propostas (vídeo, ambiente virtual, CD-Rom, material impresso, etc.). (CARVALHO, 2007). Essas atribuições estão descritas 18/2010/CD/FNDE/MEC), no item 2.5. 30 no Anexo 1 da Resolução e possuem titularidade quanto aos direitos autorais de tudo o que produziram para instrumentalizar sua disciplina. 30 ANEXO I MANUAL DE ATRIBUIÇOES, DEVERES E DIREITOS DOS BOLSISTAS ESCOLA TÉCNICA ABERTA DO BRASIL - PROGRAMA E-TEC BRASIL (Redação dada pela Resolução 18/2010/CD/FNDE/MEC) 2.5. São atribuições do professor-pesquisador: (Redação dada pela Resolução 18/2010/CD/FNDE/MEC) - planejar, desenvolver e avaliar novas metodologias de ensino adequadas aos cursos, podendo ainda atuar nas atividades de formação; - adequar e sugerir modificações na metodologia de ensino adotada, bem como conduzir análises e estudos sobre o desempenho dos cursos; - elaborar proposta de implantação dos cursos e sugerir ações necessárias de suporte tecnológico durante o processo de formação; - desenvolver, em colaboração com o coordenador de curso, sistema e metodologia de avaliação de alunos, mediante uso dos recursos previstos nos planos de curso; - desenvolver, em colaboração com a equipe da IPE, metodologia para a utilização nas novas tecnologias de informação e comunicação (NTIC) para a modalidade a distância; - desenvolver a pesquisa de acompanhamento das atividades de ensino desenvolvidas nos cursos na modalidade à distância; 3084 Já o professor conteudista (ou autor) é responsável pela elaboração do material que será usado como livro-texto da disciplina. Elabora o material em consonância com as diretrizes do projeto pedagógicos e dos professores responsáveis pelo design e estrutura pedagógica do curso. A organização do material poderá ser variável em virtude da Instituição, pode ser no formato de livro, fascículos, aulas, ou até mesmo um roteiro no formato de um estudo dirigido. Este professor poderá ser também professor pesquisador. O processo de elaboração costuma ser bastante árduo em função das especificidades exigidas no texto e as questões relacionadas com os prazos de entrega dos materiais. Além do processo de autoria, ainda cabe ao autor revisar o material depois de editado, conferir as imagens inseridas e aprovar o layout adotado. (CARVALHO, 2007). Essas atribuições estão descritas 18/2010/CD/FNDE/MEC), no item 2.6. 31 no Anexo 1 da Resolução Também em relação aos livros, fascículos, aulas, ou roteiro, o professor conteudista terá direitos autorais assegurados pela lei. Assim, se pode constatar que as inúmeras possibilidades que cada tecnologia oferece, bem como as mudanças ocorridas com a modernização dos métodos disponibilizados fazem com que os envolvidos busquem a adequação - participar de grupo de trabalho para o desenvolvimento de metodologia de materiais didáticos para a modalidade a distância; - aplicar pesquisa de acompanhamento das atividades de ensino desenvolvidas nos cursos na modalidade a distância - elaborar relatórios semestrais sobre as atividades de ensino na esfera de suas atribuições, para encaminhamento às secretarias do MEC; - realizar as atividades de docência nas capacitações dos coordenadores, professores e tutores; - realizar as atividades de docência das disciplinas curriculares do curso; - planejar, ministrar e avaliar as atividades de formação; - organizar os seminários e encontros com os tutores para acompanhamento e avaliação do curso; - participar dos encontros de coordenação; - articular-se com o coordenador de curso e com o coordenador de tutoria; - encaminhar ao coordenador de curso a frequência dos cursistas. 31 2.6. São atribuições do professor-pesquisador conteudista(Redação dada pela Resolução 18/2010/CD/FNDE/MEC) - exercer as atividades típicas de professor-pesquisador; - elaborar os conteúdos para os módulos do curso; - realizar a adequação dos conteúdos dos materiais didáticos para as mídias impressas e digitais; - realizar a revisão de linguagem do material didático desenvolvido para a modalidade a distância; - elaborar relatórios sobre a aplicação de metodologias de ensino para os cursos na modalidade a distância. 3085 legal e específica, necessária ao caso concreto e permanente atualização tanto de licença de uso de obras dos autores externos quanto dos materiais gerados pelos cursos. (VIEIRA, RODRIGUES E BARCIA, 2003). 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Como resultados da pesquisa temos que os direitos de autor não são lesados, sendo assegurados a titularidade dos professores pesquisadores e autores podendo os mesmos constituírem forma de consagração da função social da propriedade, quando aplicados ao ensino a distância (EaD), a fim de contemplar o processo ensino-aprendizagem, como forma de consagração do direto à educação, explicitamente estabelecido na Constituição Federal de 1988, não constituindo violação à proteção jurídica concedida legalmente, assegurando o meio de sustento daqueles que produzem obras intelectuais, bem como protegendo e possibilitando o desenvolvimento desta inovadora e presente modalidade de ensino. Em uma sociedade da informação, torna-se imperioso e necessário a promoção do equilíbrio entre os direitos dos autores e daqueles que necessitam das obras, neste caso, os estudantes do ensino a distância, objetivando o aprimoramento da democracia de acesso ao conhecimento. Torna-se evidente que as leis de direitos autorais poderão ser flexibilizadas, até mesmo em consideração ao princípio da função social da propriedade, uma vez que esta estaria sendo consagrada, não negando a proteção das produções em diferentes tipos de tecnologias, mas sim assegurando o interesse público, especialmente em relação ao acesso à educação. REFERÊNCIAS ABRÃO, E. Y. , Direitos de Autor e Direitos Conexos, Editora do Brasil S/A, SP 2002 ARETIO, L. La educación a distancia: de la teoría a la práctica. Barcelona, Espanha, Editorial Ariel, 2001. 3086 ASCENSÃO, J. de O. Direito Autoral. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. BARBOSA, D. B. A Propriedade Intelectual no Século XXI - Estudos de Direito, 1ª ed, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. ______________________. Uma introdução à propriedade intelectual, 2ª ed., Rio de Janeiro: Editora Lumem Juris, 2003. BRANCO, S. A lei autoral brasileira como elemento de restrição à eficácia do direito humano à educação. Sur, Rev. int. direitos human. [online]. 2007, vol.4, n.6, pp. 120-141. ISSN 1806-64. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 06 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.html>. Acesso em: 01 de março de 2015. BRASIL. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 20 de fevereiro de 1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9610.html>. Acesso em: 01 de março de 2015. CABRAL, P. Revolução tecnológica e direito autoral. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1998. ———. A nova lei dos direitos autorais (comentários). 2. ed. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1999. CARVALHO, A. B. Os Múltiplos Papéis do Professor em Educação a Distância: Uma Abordagem Centrada na Aprendizagem. In: 18° Encontro de Pesquisa Educacional do Norte e Nordeste – EPENN. Maceió, 2007. DA SILVA, J. A. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. GANDELMAN, H. De Gutemberg à internet: direitos autorais na era digital. Rio de Janeiro: Record, 1997. MARTINS FILHO, P. Direitos autorais na Internet. Ci. Inf. [online]. 1998, vol.27, n.2, pp. nd-nd. ISSN 0100-1965. PARDAL, C. Educação sem distância. Correio da Bahia - Caderno Informática. Agosto, 2000. Disponível em: http://crismeyer.blogspot.com.br/2008/04/educaosem-distancia-celso-pardal.html. Acesso em 01.04.2015. 3087 SARLET, I. W. A eficácia dos direitos fundamentais. 10ª ed, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. VIEIRA, E. M. F.; RODRIGUES, R. S.; BARCIA, R. Educação a distância e direitos autorais. RAP, Rio de Janeiro, v. 6, n. 37, pp.1245-1255, Nov/Dez 2003. 3088 CAOS, DIVÓRCIO E GUARDA: DESCONSTRUINDO PRECONCEPÇÕES. Bruno Martins da Costa Silva32 RESUMO: O estudo do direito em relação às estruturas familiares é marcado por distorções erigidas por preconcepções esvaziadas de autoridade originária, e erroneamente sustentadas por uma pretensa linearidade que não se verifica quando observado o processo histórico de sua construção. Assim, usando como chave de leitura as perspectivas da teoria do caos e do pós-estruturalismo, e adotando um discurso de desconstrução, intenta-se afastar tais preconcepções, usando como tabuleiro duas temáticas dentro do campo tratado: o divórcio e a guarda. PALAVRAS-CHAVE: direito de Família; teoria do caos; incerteza. ABSTRACT: The academic efforts over the law in relation to family structures is marked by distortions inherent to some “original authority” empty preconceptions, erroneously sustained by a pretense linearity that doesn’t confirm itself when one observe its historical construction. Then, by using chaos theory and poststructuralism as analysis’ keys, and adopting a discourse of deconstruction, the intent of this paper is to confront those preconceptions, using as scenario inside the family law, two specific themes: divorce and custody. KEY WORDS: Family Law; Chaos Theory; Incertitude. 1 INTRODUÇÃO Em tramitação no Congresso Nacional, o Estatuto das Famílias traz consigo uma nova tentativa de delimitar as relações interpessoais de cunho afetivo que contenham condutas cooperativas fraternas, ou seja: a família. Não se trata de ação audaciosa e ambiciosa, mas sim temerária e pretensiosa. Pretensiosa por que intenta compreender e regular um instituto anterior ao Estado, e de uma complexidade e pluralidade grandes demais para serem Mestrando em Direitos Fundamentais, PUCRS. Especializando em Direito de Família, PUCRS. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional. Integrante do Grupo de Estudos em Teoria Queer do Centro Brasileiro de Pesquisas em Democracia da PUCRS. 32 3089 comportadas em um mecanismo positivado.33 Temerária por que ao positivar determinados modelos como aqueles “reconhecidos”, cria-se, por lógica oposta, espaço para a arbitrária exclusão de outros modelos sob o estigma de “não reconhecidos”. Tais modelos predeterminados nada mais são do que preconcepções tidas como históricas, indiscutíveis e vinculantes, e o presente artigo intenta justamente desconstruir tais certezas, através das perspectivas da teoria do caos e do pósestruturalismo. 2 CASTELOS DE AREIA A aurora da idade moderna trouxe consigo três tendências que ainda hoje reverberam no direito e na sociedade: a. o poder nas mãos da sociedade civil; b. a proteção do indivíduo e a igualdade formal; c. o positivismo jurídico. A primeira é um avanço talvez atemporal, não emendado até agora, e em razão dela hoje não se pensa mais em sociedade ocidental sem representatividade e debate público, e nisso vale lembrar que em geral toda a construção aqui feita é de uma perspectiva ocidental em relação ao próprio universo cultural ocidental. A segunda foi fundamental para a inclusão da imensa maioria da população, até então excluída, no exercício da cidadania e dos atos legais. Entretanto, foi insuficiente para abranger a todos, razão pela qual o conceito de igualdade foi sendo trabalhado e discutido no âmbito de sua promoção, visando a inclusão do maior número de pessoas possível no status de cidadão detentor de voz e capacidade. A terceira tendência é a mais problemática, pois diferentemente da segunda, ele não se emenda com facilidade, tornando-se um obstáculo para o avanço social, e inclusive para a promoção da igualdade. Neste ponto se faz importante aclarar que o positivismo aqui mencionado é mais um normativismo 33 LEITE, Eduardo de Oliveira. Tratado de Direito de Família: Origem e Evolução do Casamento. Curitiba: Juruá, 1991, p. 04. 3090 que não opera de forma equilibrada entre norma secundária e primária, entre princípios e lei, entre constituição e codificação. Através dessa perspectiva se pode dizer que o problema não é o positivismo em si, mas uma técnica legislativa pobre, uma distorção errônea do positivismo que resulta numa ditadura do legislativo, numa concepção, em tese, já superada de o legislativo não estar vinculado às prévias determinações constitucionais. Em suma, trata-se aqui do positivismo do século XIX, que ainda é infelizmente o positivismo percebido e aplicado. A isso, soma-se a ideia do direito como um conjunto de previsões operacional e perfeito, o qual tem raízes profundas nas formas de pensamento e organização que estavam estabelecidas quando do iluminismo,34 e delas criou-se uma técnica jurídica que se instalou como um bolor profundo nos livros jurídicos e nas paredes das faculdades de direito. O enciclopedismo, movimento filosófico entrelaçado com o iluminismo, intentava catalogar todo o conhecimento humano em 28 volumes. Suas virtudes são incontáveis, entretanto, para o presente artigo importa o seu grande defeito: a ideia de completude, de ser possível dominar a complexidade do universo que nos cerca, catalogando-a em um sistema finito de apontamentos e correlações. Trata-se de um ideal de controle sobre o universo que nos cerca. Mais do que uma crença na finitude do universo, é uma crença na capacidade humana de compreendê-lo e sistematizá-lo - não por acaso um reducionismo. Entre a montagem da Enciclopédia e a Revolução Francesa, passaram-se três décadas, logo, não é surpresa constatar o animus em pró da codificação que adveio com a revolução, seus estatutos, e por fim, o Code. Apesar dos inegáveis méritos e frutos do movimento enciclopedista, a ideia de completude acabou afastada pela história, que lhe desnudou um caráter pouco eficaz e frágil perante os fenômenos sociais e os avanços tecnológicos, tal qual 34 FACHIN, Luis Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar 2000, p. 55: “Historicamente, quando um sistema de Direito Civil se erige, cria um conjunto de categorias congruentes com aquele momento histórico e tende a colocá-las para valerem perpetuamente.” 3091 castelos de areia na beira do mar, cujo arquiteto visa ingenuamente antecipar e conter o avançar caótico, imprevisível e implacável das ondas. 2.1 O Estado Encampando a Família A França é o principal cenário da aurora da modernidade. Berço do iluminismo e do enciclopedismo, o país, juntamente com os Estados Unidos, erigiu um novo modelo de Estado que atenderia demandas de uma imensa massa de excluídos, entre eles, pessoas que já detinham o capital, mas não tinham voz, tampouco certos direitos. Ainda que a formação dos Estados Unidos e da República Francesa seja um marco na teoria política, tais experiências foram desbravadoras, ou seja: realizadas com pouca referência. Havia registros históricos de democracia, representatividade, cidadania e respeito aos direitos individuais e à propriedade, entretanto, todos estes conceitos, seja na idade média ou na antiguidade clássica, eram bastante distantes dos significados que passavam a ter no final do século XVIII. A elaboração de conceitos e mecanismos partindo de uma espécie de marco zero tornou possível avançar rapidamente, mas ao custo de uma série de imperfeições postas em prática. A sociedade civil, a nova detentora do poder, era uma novidade. Na idade média ela quase inexistiu, em razão da servidão e da concentração da propriedade. Na idade antiga ela se desenha com muito mais clareza, mas ainda assim com largas diferenças, pois os cidadãos eram poucos, mesmo na fase final do Império Romano, dado o número de escravos, clientes, agregados, incapazes e relativamente incapazes. O debate público do período era quase sempre um debate aristocrático, pois a voz na sociedade competia aos homens livres, quase sempre apenas homens e quase sempre muito poucos. Isso por que na antiguidade clássica não havia um conceito muito amplo de indivíduo, assim como na idade média. A autonomia de poucos também não denotava a individualidade, pois em geral os detentores da autonomia a exerciam 3092 em nome de muitos, não apenas familiares, mas pessoas em geral submetidas em razão de lei ou costume. Com a revolução, cada francês adulto passava a ter sua própria autonomia, e decorrente dela a capacidade de ser titular de direitos, de contratar e de ser proprietário. Ainda que seja um inegável avanço, restringia-se a homens que fossem naturais do país, e tais capacidades em geral eram possibilidades, não garantias. Mulheres, crianças e escravos faziam parte de um universo de exclusão, fosse ela relativa ou completa. Para distribuir poder a sociedade civil primeiro o tomou da nobreza e do clero, entretanto, tomou demais, entrando em um campo de regras de conduta virtuosa que tinha sentido no âmbito da relação Igreja-fiel, não no âmbito da relação Estado-cidadão. O exemplo mais forte da encampação da família pelo Estado se deu na questão do divórcio. No ancien régime os católicos não podiam se divorciar, mas ao tomar para o Estado a regulação e o registro do casamento, a recém-formada república estabeleceu o divórcio como quase uma liberalidade, possível mediante uma série de hipóteses, algumas facilmente configuradas. 2.2 A Legislação Encaixotando a Vida O divórcio era o símbolo da potência e independência do Estado diante da religião, entretanto, sua aplicação no mundo real dependia de uma assimilação social que não se deu. Ao estabelecer a possibilidade de divórcio unilateral em razão de ausência ou abandono, ainda em 1792, a nova máquina estatal francesa foi incapaz de medir a onda de insatisfação não apenas da Igreja Católica, mas de segmentos inteiros da sociedade, como por exemplo, dos soldados franceses em campanhas no exterior, pois numa época de difícil comunicação, ficavam sem saber se ainda tinham casa e esposa lhe aguardando na França. Assim, quando da promulgação do Code em 1803, a palavra divórcio constava nele, mas divorciar-se era quase impossível. Na prática, em um primeiro momento os católicos foram igualados aos protestantes e judeus, e passaram a 3093 poder se divorciar, para então, uma década depois, ninguém mais conseguir se divorciar, nem mesmo aqueles cujas religiões permitiam.35 O divórcio unilateral, tão facilitado quando da revolução, passava a ser permitido somente em três hipóteses: violência, infidelidade e infâmia criminosa. A violência, prevista no artigo 231, precisava ser extrema, pois o marido que matasse a mulher em razão de forte emoção sequer respondia pelo ato na França da época. A infâmia criminosa, prevista no artigo 232, também precisava ser contundente, pois não bastava a mera condenação judicial. Em relação à infidelidade como causa, ao homem bastava provar, conforme o artigo 229, mas à mulher, na forma do artigo 230, somente seria oponível quando a concubina fosse levada a morar com ela na residência do casal, ou seja: não se tratava de dar consequência à infidelidade masculina, mas sim de coibir a bigamia por parte do varão. O divórcio mútuo, apesar de estar estipulado pelo artigo 233, era mera ficção. Vinte outros artigos trabalhavam no sentido de restringi-lo ao máximo. Havia uma série de requisitos cronológicos como: idade mínima para homem e mulher - respectivamente 25 e 21 anos; idade máxima para a mulher - 45 anos; tempo mínimo de casamento - 02 anos; e tempo máximo - 20 anos. Não bastando tais empecilhos, o maior obstáculo era o consentimento por parte de todos os ascendentes vivos do casal. Em geral, algum dos ascendentes teria opinião contrária e impediria o divórcio. No caso dos católicos, era quase uma certeza que alguém não iria autorizar o divórcio, pois tal ato equivalia a afiançar o pecado. A ausência de ascendentes vivos era uma solução para tal problema, mas os limites cronológicos também diminuíam a efetividade de tal fenômeno. O Code foi revolucionário e libertador no contexto de sua época, e por isso tornou-se um referencial dentro do direito, especialmente do direito continental ou civil law. Sua influencia marcou as legislações seguintes, em especial as codificações. 35 ROUDINESCO, Elisabeth. A Família em Desordem. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p152. 3094 Assim, ele acarretou uma constante expectativa de completude em relação a codificações e sistemas jurídicos, e tal completude alimentava uma expectativa de perpetuidade dos dispositivos legais postos, como se fosse possível erigir uma previsão completa dos comportamentos sociais, uma solução definitiva. No Brasil, o código civil de 1916, doravante Código Beviláqua, ainda que carregado de grandes avanços, traz consigo a estrutura e os conceitos de um código, entre eles a tentativa de catalogar a vida, de antecipar cada fenômeno e lhe apontar as diferentes regras jurídicas de regulação e harmonização. Isso fica aclarado na delimitação da família, cujos contornos podem ser definidos com o cruzamento dos artigos 194 e 229 do mesmo. 2.3 A Educação Perpetuando o Erro O positivismo e a ideia de codificar o direito se sustentavam na expectativa de segurança e previsibilidade, e da fácil compreensão da Lei. Não por acaso, tais conceitos tomaram força na academia, e criaram uma dogmática forte, a qual perdura até os dias de hoje, mesmo com a crescente resistência a tais mecanismos em razão da sua comprovada limitação. Desse marco teórico que surge, por exemplo, “a tradicional e questionável divisão entre Direito Público e Direito Privado, muito cara entre nós”, mas absolutamente reducionista, mais dificultando a compreensão do direito do que a facilitando, aclarando ser nada além de uma mera externalidade do adestramento dogmático do ensino.36 Mesmo autores que apontavam tais limitações, propunham mecanismos insuficientes para sobrepujar os obstáculos acarretados pelo positivismo, tal qual Miguel Reale e seu culturalismo, que trabalha com a construção de regras abertas já na etapa de especificação, na prática apenas retirando do código as absurdas enumerações fechadas. Ainda que se trate de uma abertura interpretativa, ela afeta somente a etapa final de enquadramento, abrindo a possibilidade de inclusão de casos que FACHIN, 2000, p. 11-2. 36 3095 não foram previamente previstos ao modelo, ou seja: ainda se está preso ao modelo, afinal, só se precisa de janela quando se há parede. A academia no direito mostrava dificuldade de repensar instrumentos deficientes em nome de um respeito inadequado àquilo que seria tradição, mas em verdade era inflexibilidade. O direito de família foi revolucionado antes da segunda guerra na União Soviética e nos países escandinavos, chegando ao resto da Europa somente no final da década de 1960. Importa salientar que os avanços aqui mencionados são de amplo espectro, em especial no que tange à igualdade entre os sexos, não meramente do divórcio. No Brasil, entretanto, apesar de toda a construção legislativa e do debate internacional prévio, pouco se produzia nesse sentido, e o marco trazido pelo divórcio em 1979 é muito mais o reconhecimento de uma situação fática já posta por uma sociedade onde as uniões informais e as separações fáticas cresciam, do que uma nova determinação emanada do debate público. A igualdade entre homem e mulher, ainda que formal, viria apenas com a Constituição de 1988. Esse receio de ir adiante acabava confundindo a prudência, exigida para se evitar um laboratório social, com um conservadorismo, o qual somente age no sentido do reconhecimento da realidade já posta, muitas vezes recepcionando-a tardia e erradamente, tal qual ocorreu com a equiparação da união estável ao casamento, a qual foi realizada com tamanhas deformações, que resultou em inequidades sucessórias entre os institutos mesmo quando estes são regidos por um mesmo regime de bens. No caso, justamente a regra geral: o regime da comunhão parcial de bens. Tal diferença entre os institutos acarretaria posteriormente em outro problema, pois quando se decidiu estender às uniões entre pessoas do mesmo sexo somente a possibilidade de união estável, a inequidade entre esta e o casamento acarretou em no inequidade, gerando uma quebra de isonomia em relação aos homossexuais, os quais não poderiam optar entre um instituto e outro, equivocadamente não equiparados. 3 A REALIDADE EM ONDAS 3096 A percepção da literatura jurídica e dos tribunais desde o Code vem caminhando em direção contrária ao positivismo, ou flexibilizando-o, ou afastando-o. O positivismo perece pela sua própria natureza, pois ao tentar ter a história e a tradição como fontes, ele o faz as percebendo como algo linear, algo controlado, algo geometricamente adequado. Na mesma linha, desnuda-se a dificuldade de adaptação de um sistema fechado a uma sociedade cujas mudanças se dão em intervalos de tempo cada vez menores, impulsionada pela velocidade de trânsito de informações e por um multiculturalismo fragmentado. Na busca por novas ferramentas de percepção do direito e dos elementos externos que o tocam, limitam e impulsionam, a Teoria do Caos surge como opção rica, facilmente adaptável, resistente ao enquadramento especificista e acessível à compreensão dos fenômenos jurídico-sociais, bem como à desconstrução de preconcepções que deveriam amparar o Direito, mas em verdade o limitam. 3.1 Paternidade, Guarda e Filiação O artigo 56 do texto original do Code estabelecia que o nascimento da criança precederia um momento declaratório de reconhecimento pelo pai, ou seja: o nascimento não acarretava em presunção de reconhecimento, um procedimento que remete a uma tradição Romano-Germânica. A ideia central do reconhecimento ainda data do período greco-romano da antiguidade clássica, onde abandono e infanticídio eram práticas correntes. 37 Cabia ao pai aceitar a criança, ou rejeitá-la, somente no império, no século II, que o imperador Marco Aurélio proibiu o infanticídio e criou um constrangimento social em relação à rejeição das crianças. Curiosamente, povos vizinhos - os germanos, os egípcios e os hebreus tinham o costume de manter todos os seus filhos. À época de Marco Aurélio os germanos eram considerados primitivos, e os hebreus inferiores culturalmente, TURKENICZ, Abraham. Organizações Familiares: contextualização histórica da família ocidental - 1 ed. 2ª impressão. Curitiba: Juruá, 2012, p91. 37 3097 logo, há grande possibilidade de ter sido por influência da cultura egípcia que se deu tal mudança de comportamento, o que romperia com a tradicional, e ingênua, ideia de linearidade entre a antiguidade clássica e o ocidente contemporâneo. Acreditar na influência germânica tende a ser um erro, pois o ocidente medieval era em grande parte o resultado da fusão da cultura greco-romana com a germânica, e nele a declaração pelo pai segue sendo a regra, ainda que já sem a figura constante do infanticídio e do abandono, tendo em seus lugares a figura do bastardo, do filho fático, mas cujos direitos advindos da filiação são precários, em geral dependentes do arbítrio do pai. No Código Beviláqua, pouco muda. Nota-se presente o conceito da presunção dos filhos havidos durante o casamento, ou seja: a declaração só existirá no caso da intenção negativa, de afastar a filiação, então na forma de uma contestação. Em relação aos filhos havidos fora de uma união legítima, restringiu-se o poder do pai, que antes da modernidade podia, em geral, equipará-los aos legítimos. Tais filhos somente poderiam ser legitimados quando o ato irregular pudesse ser sanado. Os filhos adulterinos ou incestuosos, jamais poderiam ser legitimados conforme o artigo 358 do texto original do Código Bevilácqua. Tal regra retirava do pai o poder, estabelecendo um modelo familiar ainda mais rígido. O pai medieval escolhia a sua prole detentora de direitos. O pai moderno tinha sua prole predeterminada, inclusive com exclusões preestabelecidas. Saiu-se da arbitrariedade paterna para a arbitrariedade estatal. O Estado determina quem são os filhos e o faz no sentido de estabelecer a família legal, em franca ofensa à autonomia dos indivíduos, e penalizando a criança havida em situação inadequada, a qual não concorreu para os resultados que lhe são impostos. O mesmo processo se dará na guarda. Em um primeiro momento a tradição da concentração do pátrio poder iria conceder ao homem a preferência nos direitos de custódia e coabitação. Depois, até para acompanhar a realidade fática, a guarda, já não custódia, passa a ser dominada pelas mulheres. O que parecia ser um avanço era uma nova arbitrariedade. 3098 Antes o homem tinha a custódia por ser a sua palavra a definitiva, a do exercício do pátrio poder, para então a mulher passar a ter a guarda em razão de uma expectativa de performance. Nasce a figura da mãe predeterminada, predestinada a ser a guardiã dos filhos. Trata-se de uma construção muito recente, e ainda pouco aplicada, observar o benefício dos filhos sem cair numa preconcepção de gênero em guarda. 3.2 Casamento, Separação e Divórcio Michel Foucault estabelece o século XVII como marco histórico para seu debate sobre controle comportamental contido na obra “História da Sexualidade”. De acordo com Foucault, é ali que ocorreu uma mudança brusca na sociedade, uma necessidade, e um exercício, de controle do sexo e da sexualidade, de controle de um amplo âmbito privado. De controle de uma linguagem, até então privada.38 Não há coincidência ou aleatoriedade no ponto de partida estabelecido por ele, pois o século em questão tem como atratores a inquisição, a contrarreforma e o Concílio de Trento. Observando tal cenário, deixa de ser surpreendente que as leis de família igualitárias e progressistas da França revolucionária de 1792, tenham tido dificuldade de manter-se, razão pela qual o casamento do Code era, em certos aspectos, mais conservador do que o regime anteriormente estabelecido. Ainda que a sociedade civil tenha chamado para si a regulação do casamento - algo então relativamente recente para a própria Igreja -, ela o fez na extensão da Igreja, adentrando uma linguagem privada, não mais pública, e a estendendo para outros grupos antes não afetados. Trata-se de problema de linguagem, de técnica legislativa, que seguiu ocorrendo, como no Código Beviláqua, onde sem uma razão concreta fundada em história ou sociedade, se impôs um conjunto de normas comportamentais com 38 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 1: a vontade de saber, 2 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz & Terra, 2015, p15. 3099 conteúdo “programático” em relação a comportamentos de núcleo absolutamente privado. Posteriormente, o aparente avanço do sistema em direção ao desquite e ao divórcio tem um caráter muito maior de reconhecimento de uma realidade posta, do que de uma construção de uma realidade ideal. Ali não se tratava mais de inclusão, mas de um reconhecimento de situação posta, pois as famílias desfeitas e recompostas já perfaziam números que impediam uma leitura de exclusão que não caísse no dilema do Alienista. Mas esse tardar excessivo, e persistente, do legislativo brasileiro tem um alto custo social, pois não se observa o problema contido na demanda, mas sim o grupo que faz a demanda, voltando á questão da transição entre linguagem privada e linguagem pública. Ainda que resolver o problema atenda ao grupo, pode-se atender ao grupo sem resolver o problema, e nisso surge uma realimentação do erro, uma colcha de retalhos de respostas insuficientes colocadas no lugar de uma solução. Essa dificuldade, conforme visto antes, reverberou tanto na construção da união estável, quanto no reconhecimento dela, e não do casamento, às uniões entre pessoas do mesmo sexo, configurando-se num efeito borboleta, onde o primeiro desajuste, dado por uma fixação de modelo onde deveria haver reconhecimento de fato privado posto, irá gerar infindáveis desajustes a cada necessidade de acolher um caso que seja diferente dos anteriores. 3.3 Caos A natureza não é um conjunto de formas regulares: linhas e planos; círculos e esferas; triângulos e cones. A natureza é complexa, possuindo um emaranhado de fragmentos, reentrâncias e depressões entrelaçadas. A geometria euclidiana não é errada, longe disso, pois ela é instrumental às ciências mais diversas. Trata-se aqui de apontar que ela é limitada, sendo um modelo de abstração insuficiente para o entendimento da complexidade, pois Clouds are not spheres. […] Mountains are not cones. Lightning does not travel in a straight line. The new geometry mirrors a 3100 universe that is rough, not rounded, scabrous, not smooth. It is a geometry of the pitted, pocked, and broken up, the twisted, tangled, and intertwined. […] The pits and tangles are more than blemishes distorting the classic shapes of Euclidian geometry. 39 They are often the keys to the essence of a thing. Tal qual a afirmação de Gleick, a limitação de uma linguagem matemática linear como ferramenta de leitura de sistemas/cenários complexos acarretou na busca por uma linguagem mais ampla, que pudesse abranger todas as nuances de um desenho caótico. A Teoria do Caos não apenas faz isso, como apresenta dentro dessa aparente aleatoriedade, uma possibilidade de demonstração de padrões, pois se trata de complexidade, não de desordem. O Caos não se presta ao papel de fórmula de previsões específicas, mas pode sim apresentar tendências e confirmar repetições, padrões do sistema.40 A chave é, admitindo a complexidade do sistema, estudar cenários interligados amplos, deixando o específico de lado. Não importa à Teoria do Caos a mera linha entre o divórcio estabelecido após a revolução francesa e o divórcio contido no Code por uma perspectiva de direito civil, ou seja: específica. Em realidade, importa observar os mecanismos que acarretaram uma legislação tão moderna e distante do ancien régime, e logo após em outra que regrediu certos institutos a um ponto até mesmo anterior ao ancien régime. A Teoria do Caos dificilmente poderia prever as duas ocorrências, mas facilmente as demonstraria, pois sai das fronteiras dos processos legislativos e da lógica jurídica, para então situar-se em um plano mais amplo, observando os diversos atratores existentes à época dos fenômenos, de ordem histórica, social, política e econômica, que explicam não apenas a revolução, mas a razão dos revolucionários tentarem em um primeiro momento estabelecer uma grande liberdade individual e igualdade entre homem e mulher, para num segundo momento recuarem. Ao perceber a onda normativa como sujeita a atratores, a Teoria do Caos abre as portas para trabalhar com diferentes métodos, pois é uma linguagem que 39 40 GLEICK, James. Chaos: Making a New Science. Nova Iorque: Open Road, 2011, p. 94. PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: Tempo, Caos e as Leis da Natureza. São Paulo: Editora da Universidade Paulista, 1996, p. 148. 3101 permite o transdisciplinar. Ela pode observar uma curva de tolerância nos padrões estabelecidos para certos grupos e assim apontar a sua natural busca pela construção de uma otimização pelo uso de uma metodologia ordinalista, e assim apontando uma explicação para a revolução. Pode também observar que determinados grupos demandariam modificações nas recém-implementadas leis de família pós-revolução, e que atendê-los era fundamental para a harmonização sócio-estrutural da França, usando assim, outra metodologia. Ou seja: a linguagem é o Caos, mas os dados informados podem ser obtidos por diferentes métodos, principalmente por que não há, em princípio, uma preocupação com a exatidão de leitura dos fenômenos, mas apenas de se perceber o desenho amplo, a tendência. A exatidão iria requerer a análise de infindáveis elementos, agentes e movimentos. Querer a exatidão é cair em uma linguagem mais simples, que pode funcionar em abstrações isoladas, de ambiente ideal/neutro, mas jamais em sistemas complexos. O problema do positivismo, em especial do positivismo “clássico”, o qual na prática nunca foi superado em todo pelas suas inúmeras releituras e tentativas de superação ou afastamento, é que ele nunca deu resposta, e dá cada vez menos, pois menores são os intervalos de alteração social, deformando as previsões postas. Libertar-se dessa armadilha cartesiana não é cair na insegurança, mas sim obter segurança, construir a segurança de cada caso ser observado nas suas particularidades, ainda que em coerência com a linguagem geral, sem cair num vazio de sistema, mas admitindo um sistema aberto, adaptável, pois O Direito guarda fractalidade. Possui uma plástica apta a moldarse ao caso concreto, até o limite da sua resistência axiológica, de sua torção. Isso refuta as simplificações da teoria tradicional, visíveis em toda a ciência moderna. Variando a lide, poderá variar o sentido da norma incidente, pois varia todo o sistema em sua dinâmica de unidade axiológica, garantidora de coerência material, evitando entropia. A preocupação da ciência jurídica moderna era com a coerência em parâmetro meramente formal. Influência de Kant. Descendência direta da metafísica. Há de superar-se. O sistema é sensível às condições iniciais e ao meio. Isso se reflete no todo e nas partes. Nada é linear. Talvez, em situações determinadas, apenas se esforce para ter linearidade. 41 Não obstante, persegue coerência e unidade material. 41 ARONNE, Ricardo. Direito Civil-Constitucional e Teoria do Caos: Estudos Preliminares. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p34. 3102 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS O Caos não se presta ao estudo compartimentado, isolado, mas sim ao estudo amplo, que visa estabelecer o grau de variabilidade e os padrões de comportamento dentro de um sistema. Ao observar a evolução em espiral do direito em relação às famílias, em especial dos institutos abordados, se verifica que a sua evolução - no sentido de caminhada - não é linear, e como tal, ela apresenta constantes recuos a entendimentos, em tese, já superados. Isso se dá, talvez, por determinados conceitos históricos serem apresentados como marcos teóricos vinculantes, por sua suposta força cultural e validação pelo tempo, entretanto, uma análise crítica mais profunda mostra o quanto os conceitos são deformados pelo tempo, seja na sua concretização fática, ou na sua mera expressão teórica. Tudo muda: as palavras, os fatos e os interpretes. Percebe-se então que o argumento histórico facilmente pode se tornar um discurso de sedução, um mecanismo de convencimento sem a profundidade alegada. O mesmo se dará ao buscar-se guarida na opinião pública, na vontade da maioria, como se não fosse claro aos estudiosos do direito que a vontade da maioria não é lei quando fundada em imediatismo e em malefício de uma minoria, um entendimento fortemente presente na literatura política, moral e jurídica erguida desde o tempo de Rousseau, até os atuais ecos da obra de Rawls. Assim sendo, ainda que a decisão de retroceder na legislação sobre a família seja possível e possa ocorrer na forma legal devida, ela será fatalmente fundada em imprecisões histórico-sociais as quais são apresentadas como verdades universalizadas. Caso aconteça, tal mudança não tende a perdurar, por três razões: a. incorrer no impedimento da efetivação dos direitos humanos em relação a 3103 indeterminadas pessoas e grupos; b. incorrer no impedimento da efetivação de direitos fundamentais elementares ao nosso sistema em relação a indeterminadas pessoas e grupos; e c. gerar a exclusão de uma grande parcela da população a condições de equidade no acesso a determinados direitos e serviços. Trata-se de jogar um indeterminado grupo social, que vai bem além daquele que claramente é o alvo de tal tentativa de regulação de comportamento, numa condição abaixo do tolerável, e tal qual a história ensina num claro padrão de comportamento do sistema “sociedade ocidental”, o atrito gerado por tal manobra resulta ou na necessária exclusão física do grupo atingido - um holocausto ou uma expatriação em massa - ou no atendimento de suas demandas – por meio democrático, ou em último caso por meio de uma revolução, tal qual se deu nos episódios russo e francês. Em um reducionismo grosseiro, mas sedutor: a sociedade deve decidir se pretende excluir tudo aquilo que for diferente, ou trabalhar no amadurecimento da tolerância. Para trabalhar com tolerância, é preciso adotar uma linguagem que comporte a alteridade, que abra espaço para o novo. Uma linguagem adaptável ao hoje impensável. Uma linguagem do caos. REFERÊNCIAS ARONNE, R. Direito Civil-Constitucional e Teoria do Caos: Estudos Preliminares. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. FACHIN, L. E. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar 2000. FOUCAULT, M. História da Sexualidade 1: a vontade de saber, 2 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz & Terra, 2015. GLEICK, J. Chaos: Making a New Science. Nova Iorque: Open Road, 2011. LEITE, E. de O. Tratado de Direito de Família: Origem e Evolução do Casamento. Curitiba: Juruá, 1991. PRIGOGINE, I. O fim das certezas: Tempo, Caos e as Leis da Natureza. São Paulo: Editora da Universidade Paulista, 1996. ROUDINESCO, E. A Família em Desordem. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. 3104 TURKENICZ, A. Organizações Familiares: contextualização histórica da família ocidental - 1 ed. 2ª impressão. Curitiba: Juruá, 2012.