economia e sociedade

Transcrição

economia e sociedade
ECONOMIA E SOCIEDADE
COLECÇÃO COORDENADA POR
J O Ã O DA SILVA BATISTA
OUTROS TÍTULOS
ALFRED CHANDLER, JR. E HERMAN DAEMS (ORGS.)
HIERARQUIAS DE GESTÃO — PERSPECTIVAS COMPARATIVAS
SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA MODERNA EMPRESA INDUSTRIAL
JOSEPH SCHUMPETER
ENSAIOS — EMPRESÁRIOS, INOVAÇÃO, CICLOS DE NEGÓCIOS
E EVOLUÇÃO DO CAPITALISMO
GEOFFREY HODGSON
ECONOMIA E INSTITUIÇÕES
MANIFESTO POR UMA ECONOMIA
INSTITUCIONALISTA MODERNA
TRADUÇÃO
ANA BARRADAS
REVISÃO TÉCNICA
JOSÉ CASTRO CALDAS
CELTA EDITORA
OEIRAS / 1994
Biblioteca de Ciências Sociais Aplicadas-Economia
Livraria Canuto Ltda
Economia e instituições
Termo.
R$ 117.16
263/2009
Registro
09/06/2009
485946
LICITAÇÃO
TÍTULO ORIGINAL
ECONOMICS AND INSTITUTIONS — A MANIFESTO FOR
A MODERN INSTITUTIONAL ECONOMICS
© GEOFFREY M. HODGSON 1988
GEOFFREY M. HODGSON
ECONOMIA E INSTITUIÇÕES — MANIFESTO POR UMA ECONOMIA
INSTITUCIONALISTA MODERNA
PRIMEIRA EDIÇÃO PORTUGUESA
1994
TRADUÇÃO
ANABARRADAS
REVISÃO TÉCNICA
JOSÉ CASTRO CALDAS
REVISÃO DE TEXTO
G. AYALA MONTEIRO
ISBN
972-8027-25-7
ISBN DA EDIÇÃO ORIGINAL
0-7456-0276-2, POLITY PRESS, CAMBRIDGE
DEPÓSITO LEGAL
75490/94
COMPOSIÇÃO
CELTA EDITORA
CAPA
CELTA EDITORA
FOTOLITOS
ARDEGRAF
TORRES VEDRAS
IMPRESSÃO E ACABAMENTOS
ROLO & FILHOS
MAFRA
RESERVADOS TODOS OS DIREITOS PARA PORTUGAL,
DE ACORDO COM A LEGISLAÇÃO EM VIGOR, POR
CELTA EDITORA LDA
APARTADO 151, 2780 OEIRAS
Na composição deste livro foram utilizados um microcomputador SCHNEIDER e uma
impressora NEC, distribuídos em Portugal por IES.
PLANO DA OBRA
PARTEI
PRELÚDIO
1 Introdução e plano geral
2 Sobre metodologia e pressupostos
3
27
PARTE II
UM ADEUS AO "HOMEM ECONÓMICO"
3
4
5
6
Por detrás do individualismo metodológico
A hipótese de maximização
O conceito racionalista de acção
Acção e instituições
53
73
99
119
PARTE III
>
7
8
9
10
11
ELEMENTOS DE UMA ECONOMIA INSTITUCIONALISTA
Contratos e direitos de propriedade
Os mercados como instituições
Empresas e mercados
As expectativas e os limites de Keynes
Orientação e implicações quanto a políticas
149
173
195
217
241
ÍNDICE
Prefácio
Agradecimentos
xi
xix
PARTE I
PRELÚDIO
1
INTRODUÇÃO E PLANO GERAL
3
1.1
4
1.2
1.3
1.4
2
A trajectória do desenvolvimento crítico
O actual enquadramento teórico
4
Problemas de informação
5
Algumas observações
7
Subjectivismo e institucionalismo
7
Processo e sistema
8
Determinismo, intencionalidade e escolha
10
Uma visão sistémica
12
A endogeneidade das preferências e da tecnologia
12
Breve exploração da perspectiva sistémica
17
A economia e a perspectiva sistémica
19
Âmbito e plano geral
21
O destino da economia institucionalista
21
Plano geral desta obra
24
SOBRE METODOLOGIA E PRESSUPOSTOS
27
2.1
A defesa metodológica da teoria neoclássica
28
A metodologia de Friedman
29
2.2
A metodologia na prática
30
Os críticos de Friedman
31
A interpretação instrumentalista
33
Empirismo e não só
35
Uma crítica do positivismo e do empirismo
35
O falsificacionismo de Sir Karl Popper
37
vi
ÍNDICE
2.3
2.4
vii
Uma crítica à metodologia de Popper
39
O destino da metodologia
41
A predição e outras obsessões
41
Os limites da metodologia prescritiva
42
A margem de avaliação restante
43
A importância residual da evidência
46
Apêndice: Friedman e a hipótese de maximização
47
PARTE II
UM ADEUS AO "HOMEM ECONÓMICO"
3
POR DETRÁS DO INDIVIDUALISMO METODOLÓGICO
53
3.1
55
3.2
4
Debatendo o individualismo metodológico
55
Acção humana animada por propósitos
56
Causalidade e propósito
59
Explicações psicológicas do propósito
60
Crítica e implicações
62
Espontaneidade e explicação absentista
62
O problema do retorno infinito
63
Todos e partes
66
Notas conclusivas
70
A HIPÓTESE DE MAXIMIZAÇÃO
73
4.1
A utilidade da crítica da hipótese de maximização
74
A preferência revelada e o que está para lá dela
74
4.2
5
O que é o individualismo metodológico?
O argumento "evolucionista"
76
Outras críticas teóricas à maximização
78
Críticas empíricas à maximização
83
Avaliação das críticas
86
Problemas com o enquadramento meios-fins
93
Fins e meios
93
Fins adaptativos
94
O CONCEITO RACIONALISTA DE ACÇÃO
5.1
5.2
Críticas iniciais
99
102
Primeiras críticas
102
Razão e discurso
103
Uma possível resposta racionalista
104
A cognição e a hierarquia da mente
107
viii
ECONOMIA E INSTITUIÇÕES
5.3
6
Processos inconscientes
107
Teoria cognitiva
108
Níveis múltiplos de consciência
110
Informação a menos e informação a mais
112
Observações finais
115
O dilema racionalista
115
Conclusão
116
ACÇÃO E INSTITUIÇÕES
119
6.1
O impacte da teoria cognitiva
120
Cognição, cultura e sociedade
120
6.2
6.3
Teoria cognitiva e subjectivismo
123
O significado das instituições
125
Acção e instituições
125
Hábitos
126
Rotinização e instituições
131
Rotinas, instituições e informação
133
Ortodoxia e instituições
135
Teoria dos jogos e instituições
136
Ordem espontânea
139
Algumas conclusões
140
O potencial da instabilidade cumulativa
140
O carácter evolucionista da economia institucionalista
142
PARTE III
ELEMENTOS DE UMA ECONOMIA INSTITUCIONALISTA
7 d CONTRATOS E DIREITOS DE PROPRIEDADE
7.1
7.2
7.3
Os conceitos de troca e propriedade
149
150
Definição de troca
150
Troca e instituições
151
Concepções individualistas de propriedade e lei
153
A forma como Williamson trata a troca
156
Crítica do cálculo utilitarista
158
Durkheim e a impossibilidade do contrato puro
159
Alguns casos especiais de contrato impuro
162
A centralidade do contrato impuro
164
Observações gerais a respeito da confiança
167
O princípio da impureza e o destino do capitalismo
168
Impureza e pensamento cartesiano
169
ÍNDICE
Impurezas contratuais: Schumpeter e Marx
5 8 OS MERCADOS COMO INSTITUIÇÕES
8.1
8.2
8.3
8.4
Definindo o meriíado
9.2
171
173
173
A definição evasiva
173
Mercados e instituições
174
Tipos de instituições de mercado
177
Mercados e troca
177
Algumas consequências teóricas imediatas
178
Porque existem os mercados?
180
Custos de transacção
180
Sobre os limites do crescimento do mercado
182
Mercados, preços e normas
183
O estabelecimento de normas
184
A tradição clássica
187
Impossibilidade da concorrência perfeita
188
A função das convenções
189
A análise dos mercados a partir da teoria dos jogos
191
9 EMPRESAS E MERCADOS
9.1
ix
Perspectivas neoclássicas sobre a empresa
195
196
Alchian e Demsetz: a empresa enquanto mercado
196
Porque existem empresas?
199
Custos de transacção e falta de informação
201
Notas com vista a uma perspectiva alternativa
203
Incerteza e custos de transacção
203
A incerteza, as instituições e a empresa
205
A eficiência relativa da empresa
208
Inovação e custos de transacção
211
Eficiência, tecnologia e poder
212
10 AS EXPECTATIVAS E OS LIMITES DE KEYNES
10.1 As expectativas na General Theory
217
218
Expectativas de longo prazo
218
As conclusões de Keynes quanto a políticas
220
10.2 Algumas limitações da teoria
221
O agente expectante
222
Firmas e financeiros
223
A concepção racionalista de acção em Keynes
226
Acção do governo
228
10.3 As alternativas da escola austríaca e das expectativas racionais
230
ECONOMIA E INSTITUIÇÕES
X
A endogeneidade das expectativas
230
A hipótese das expectativas racionais
231
A teoria austríaca das expectativas
236
10.4 Lições para a economia pós-keynesiana
239
A interpretação imperfeccionista
239
Conclusão
240
11 ORIENTAÇÃO E IMPLICAÇÕES QUANTO A POLÍTICAS
241
11.1 Necessidades e bem-estar
242
Uma via para a servidão?
242
Necessidades e análise económica
244
Teorias das necessidades
246
11.2 Sistemas, impureza e dominânciA
251
Os sistemas económicos enquanto pluralidades diversificadas
253
Os princípios da impureza e da dominância
255
A cibernética e o princípio da impureza
256
Ilustrações do princípio da impureza
257
A expansão do princípio da impureza
260
11.3 Linhas orientadoras para a organização económica
A empresa enquanto sistema
261
261
Condições para a inovação
266
Intervenção institucional
268
Notas
Bibliografia
273
303
FIGURAS
1.1 O âmbito e as fronteiras da teoria económica ortodoxa
1.2 O domínio projectado da teoria económica institucionalista
3.1 O retorno infinito dos termos explanatórios
13
15
64
CAPÍTULO 6
ACÇÃO E INSTITUIÇÕES
Em qualquer sociedade, o padrão das vidas das pessoas e as suas condições de vida
assumem as formas que assumem, não tanto porque alguém toma uma série de
decisões a esse respeito, mas, em grande parte, porque se aceitam como adquiridos
certos mecanismos, princípios, pressuposto — chame-se-lhes o que se quiser ... há u m
poder inerente em mecanismos e pressupostos sociais anónimos — nas "instituições
sociais" — e não apenas nos indivíduos ou grupos ... O poder reside mais na rotina
sem incidentes do que no exercício consciente e activo da vontade.
John Westergaar e Henrietta Resler ( 1 9 7 6 , 1 4 2 - 6 )
Na sua principal obra The Economic Approach to Human Behaviour, Gary Becker
afirma que muitos cientistas sociais escondem a sua incompreensão da teoria
neoclássica por trás de um argumento alternativo. Consiste ele em dar a
entender que os seres humanos, em vez de serem consistentemente racionais,
exibem "ignorância e irracionalidade", sendo o comportamento supostamente
explicado pelo "costume e pela tradição, pela conformidade de algum modo
induzida pelas normais sociais, ou pelo ego e pelo id". Trata-se de "matéria
tentadora", segundo Becker, para obter "explicações ad hoc e inúteis sobre o
comportamento" (1976, p. 13). Assim se evitam todas estas explicações não
neoclássicas do comportamento humano.
No entanto, não se percebe por que razão as explicações neoclássicas baseadas na maximização da utilidade e nas preferências estáveis são imunes às
mesmas acusações. As preferências permanentemente estáveis concebidas imanentemente por Becker são de certo modo ad hoc e de facto continua a ser
questionável a vantagem e o valor operacional da análise da utilidade.
Há pelo menos muito boas razões para se provar o fruto que Becker gostaria
de proibir. Neste capítulo, cairemos nessa tentação e esboçaremos brevemente
alguns elementos de uma explicação não neoclássica da acção, dando ênfase
aos elementos de ignorância, irracionalidade, costume e tradição que ele rejeita.
Afirmaremos que, longe de se tratar de uma abordagem ad hoc, esta é mais
119
120
UM ADEUS AO "HOMEM ECONÓMICO"
plausível e frutuosa do que a teoria neoclássica e merecedora de atenção,
recursos intelectuais e desenvolvimento.
Por exemplo, um dos aspectos significativos da teoria cognitiva na psicologia, na sociologia e na antropologia é que estabelece um elo de ligação entre os
conceitos e enquadramento da cognição e as normas culturais e o meio ambiente. Demonstraremos adiante que esta literatura estabelece que a cognição dos
dados sensoriais se faz normalmente de uma forma que reflecte o regulamento
cultural e institucional. Por consequência, se nos quisermos debruçar em particular sobre a aprendizagem e a aquisição do conhecimento, temos de examinar o enquadramento das instituições e da cultura na formação de conceitos.
Além disso, não só a informação é percepcionada através de um enquadramento cognitivo afectado pela cultura e pelas instituições, como as próprias
instituições desempenham um importante papel como linhas de orientação
informativa, essenciais para a acção num ambiente económico complexo que
só em parte é conhecido e compreendido. Uma série de economistas teóricos,
cujo trabalho passaremos em revista, salientou este ponto nos últimos anos.
Além do mais, uma das implicações da perspectiva hierárquica da racionalidade e da consciência que se explanou no capítulo anterior é que podem ser
incluídas na análise as importantes noções de rotinização e hábito na vida social
e económica. Nem a teoria neoclássica nem a austríaca tratam estas questões
de maneira satisfatória e, portanto, são incapazes de apreciar a função do hábito
e da rotina enquanto factores que permitem que o indivíduo aprenda e execute
acções complexas num mundo incerto e complicado.
A principal preocupação deste capítulo é examinar a importância das instituições e da rotina na vida económica. A primeira secção prossegue a discussão
da teoria cognitiva e relaciona-a com as funções cognitivas dos padrões culturais e das normas rotinizados. Na segunda secção, o objectivo é, ao mesmo
tempo, estabelecer o significado do comportamento rotinizado e das instituições, e criticar algumas abordagens neoclássicas e austríacas a estes fenómenos.
O capítulo conclui com uma discussão de alguns dos aspectos essenciais da
economia institucional que se relacionam com a discussão precedente.
6.1
O IMPACTE DA TEORIA COGNITIVA
Cognição, cultura e sociedade O significado da teoria cognitiva para a discussão
presente foi assinalado no capítulo anterior, demonstrando-se que o pensamento não está todo ao mesmo nível de racionalidade ou deliberação. Além disso,
a teoria cognitiva relaciona-se com o tema deste livro num sentido ainda mais
importante. Introduz uma dimensão social, cultural e institucional que surge
em destaque na literatura da teoria cognitiva e é difícil de evitar. Uma das
consequências é que a perspectiva neoclássica do agente continuamente calculador e racional se torna ainda mais difícil de defender.
ACÇÃO E INSTITUIÇÕES
121
Ao vivermos e agirmos neste mundo, estamos continuamente a receber uma
grande quantidade de dados sensoriais. Aatribuição de significado a esta massa
aparentemente caótica de dados exige o recurso a conceitos, símbolos, regras e
sinais adquiridos. A percepção é um acto de categorização e, em geral, as
categorias são aprendidas. O processo de categorização, segundo Jerome Bruner,
é a categorização de u m objecto ou acontecimento sensorial em termos de indícios mais
ou menos abundantes ou fiáveis. A representação consiste em saber como utilizar os
indícios com referência a um sistema de categorias. Também depende da criação de
categorias-em-relação que se adaptem à natureza do mundo em que a pessoa tem de
viver ... A representação perceptual adequada implica a aprendizagem de categorias
apropriadas, a aprendizagem de indícios úteis para a colocação correcta de objectos
nesses sistemas de categorias e a aprendizagem sobre quais os objectos que provavelmente se apresentarão no meio ambiente (Bruner, 1973, p. 12).
Embora os teóricos de psicologia cognitiva divirjam na sua interpretação dos
fenómenos cognitivos1 e no significado que atribuem à dimensão social na
aquisição de conceitos, esta raramente é excluída. Em geral, todos concordam
em que muito do nosso aparelho conceptual se adquire por interacção social
com os outros. Por exemplo, há uma aceitação generalizada de que a nossa
educação e socialização nos primeiros anos nos ajuda a desenvolver o nosso
equipamento perceptual inato e a formar uma base conceptual para compreendermos e agirmos num mundo complexo e mutável. De facto, o trabalho de
Bruner, acima citado, representa uma das teorias mais subjectivas da percepção,
em contraste com outras, corho as de Ulric Neisser (1976), que dá ainda maior
importância à função dos esquemas perceptuais antecipatórios através dos
quais se está sempre a processar nova informação.
Pelo menos no caso do adulto socializado, a maior parte dos conceitos e
enquadramentos perceptuais é expressa em termos de uma linguagem (social)
e estes relacionam-se com o mundo social. Por esta razão, a cognição tem uma
especificidade cultural. O enquadramento conceptual adquirido reflecte a nossa cultura e as normas e regras sociais que herdámos. Como afirma Barbara
Lloyd: "Indivíduos que se desenvolvam em culturas diferentes podem perfeitamente aprender regras diferentes para o processamento da informação proveniente do mundo que os rodeia" (Lloyd, 1972, p. 16). Assim como o nosso
conhecimento do mundo não se forma directamente a partir dos dados sensoriais logo que chega ao cérebro, só através da aquisição de um complexo
enquadramento conceptual culturalmente específico é que os dados sensoriais
podem ser compreendidos. A realidade, fora das nossas cabeças, pode existir
independentemente da cognição que temos dela. Mas a "realidade" que "vemos" e "compreendemos" é em parte construída socialmente.2
122
UM ADEUS AO "HOMEM ECONÓMICO"
Não podemos discutir aqui, e não é necessário que o façamos, as diferenças
tipológicas da teoria cognitiva e cultural. Contudo, há um consenso alargado
sobre alguns aspectos fundamentais: os factos não falam por si; e a aquisição
de conhecimento sobre o mundo não é um acto apenas individual mas social.
Esta passagem é típica:
Cada um de nós gosta de pensar em si mesmo como racional e autónomo. As nossas
ideias parecem ser especialmente nossas. E-nos difícil perceber que só uma pequena
parte da nossa informação provém da nossa experiência directa com o ambiente físico
e que muito mais nos chega indirectamente, das outras pessoas ... As crenças, atitudes
e valores a priori de uma pessoa constituem um enquadramento de referência — uma
espécie de mapa cognitivo para interpretação da realidade que precede e controla a
troca de informação e a influência ... Visto que os indivíduos diferem consideravelmente nas suas experiências de comunicação, é de esperar que os seus mapas da
realidade social também variem muito (McLeod e Chaffee, 1972, pp. 50-1).
Apesar do interesse cada vez maior dos economistas em questões relacionadas
com a informação, o conhecimento e a incerteza, a ortodoxia não foi minimamente permeada pela diferença entre dados sensoriais e conhecimento. A
excepção da escola austríaca, raramente se conclui que a apresentação ou
acessibilidade da informação não significa que esta será percepcionada de
forma igual e uniforme. Em geral, parte-se do princípio de que todos os agentes
aprendem de modo semelhante. A questão da cognição é excluída por omissão
ou de propósito.
No entanto, e por estranho que pareça, as divergências cognitivas entre os
economistas têm-se avolumado ao nível das políticas. Desde o fim da década
de 60, quebrou-se o consenso do pós-guerra que dominava a teoria e a política
económica. A polarização e a controvérsia aumentaram ao ponto de estar
extremamente reduzido o terreno conceptual comum na avaliação da linha a
seguir. Já lá vai o tempo em que quase todos os economistas estavam de acordo
acerca dos critérios de avaliação das políticas. Agora pode acontecer que um
grupo de economistas se veja perante os mesmos dados respeitantes ao desempenho de uma economia e discordem em absoluto sobre se esses factos indicam
ou não um estado saudável. E um erro vulgar atribuir essas divergências de
avaliação à simples falta de informação ou conhecimento técnico do "verdadeiro" funcionamento da economia. Mas, em questões tão complexas como um
sistema económico, temos todas as razões para trazer para primeiro plano as
divergências cognitivas. As discordâncias em torno da avaliação das políticas
resultam em parte de divergências quanto ao enquadramento conceptual e
quanto aos sistemas de valores com ele relacionado, e nada indica que um
afluxo de nova informação as reduza com o tempo.
ACÇÃO E INSTITUIÇÕES
123
Teoria cognitiva e subjectivismo Um dos poucos economistas que reconhecem a
distinção entre dados sensoriais e conhecimento é Friedrich Hayek. Diz ele que
os factos estão sujeitos aos conceitos ou teorias e que os agentes, em certo
sentido, "criam" a realidade em que actuam (Hayek, 1952a). Por esta e por
outras razões, há uma forte componente antiempirista na teoria austríaca,
expressa por Israel Kirzner quando afirma ter "sérias reservas acerca da validade geral e importância de muitos dps trabalhos empíricos hoje produzidos por
economistas" (Kirzner, 1976b, p. 40).
Contudo, só relativa e parcialmente é que os economistas austríacos se
acomodam à teoria cognitiva. Ela é usada com efeitos positivos e convincentes
para demolir o empirismo e a ênfase excessiva nos testes econométricos. Mas
a ideia de agentes "criadores" da realidade também é utilizada com o objectivo
de reforçar o subjectivismo do paradigma austríaco. Como diz Hayek, numa
observação muito citada: "Todos os avanços importantes na teoria económica
nos últimos cem anos foram mais um passo em frente na aplicação consistente
do subjectivismo" (1952a, p. 31).
Em alguns aspectos, todos os agentes humanos são únicos nas suas capacidades cognitivas e no corpo de conceitos que adquiriram. Por consequência, a
teoria cognitiva demonstra que o conhecimento humano tem elementos subjectivos. Mas se uma parte da matéria da cognição é subjectiva, significa isso que
todo o processo de cognição também é subjectivo? Como observou sagazmente
um comentador de Hayek: "Se a ciência social é subjectiva porque a sua matéria
o é, pelo mesmo argumento a ornitologia teria de ser considerada uma ciência
com a aparência do pássaro e a arqueologia uma ciência arcaica (Rudner, 1954,
p. 165). Como demonstra Stephan Boehm (1982), esta ambiguidade que rodeia
a própria noção de subjectivismo tem consequências danosas para a teoria
austríaca no seu todo.
E de enfatizar que a teoria cognitiva não leva à exclusão da dimensão social
rnas ao seu reforço. Não podemos esperar criar sozinhos um enquadramento
conceptual capaz de tratar grandes quantidades de informação. Temos de
depender das interacções com os outros para desenvolvermos as nossas aptidões cognitivas, para formar juízos sobre o mundo e para adquirirmos linhas
de orientação para a acção. Além disso, para a cognição dependemos de uma
linguagem e de uma estrutura linguística que é socialmente constituída. Estes
pontos básicos são incontroversos, simplistas até, pelo menos para a psicologia
social. Por consequência, não há fronteiras claras entre as subdisciplinas da
psicologia cognitiva e social. Na realidade, as áreas de estudo sobrepõem-se e
formam uma outra subdisciplina, a da psicologia social cognitiva. Em desafio
ao extremo subjectivismo dos austríacos, acentua-se a dimensão social da teoria
cognitiva.
Vejam-se as experiências da psicologia social que revelam a influência dos
outros na formação dos nossos juízos e actos. Por exemplo, Solomon Asch
(1952, cap. 16) demonstrou que um indivíduo isolado altera muitas vezes o seu
124
UM ADEUS AO "HOMEM ECONÓMICO"
juízo explícito quando confrontado com uma maioria unânime mas errada.
Pediu-se a um grupo de pessoas que dissesse qual de três linhas de comprimentos claramente diferentes era igual a uma linha-padrão. Sem que o sujeito da
experiência em causa o soubesse, tinha-se combinado previamente com os
outros sujeitos que, em certos casos, dariam todas a mesma resposta errada.
Verificou-se que o sujeito em causa fazia juízos errados, de forma a conformar-se com a maioria, em pelo menos um em cada três casos, apesar de ser
perfeitamente óbvia para o observador a diferença de comprimento das duas
linhas.
Ainda mais surpreendentes são as experiências de Stanley Milgram sobre
obediência e autoridade. Preparou-se uma experiência em que um "cientista"
(envergando convenientemente uma bata branca) pedia a uma pessoa da
assistência que administrasse choques eléctricos a um indivíduo. Milgram
verificou que uma maioria de adultos vulgares e sensatos seria capaz de
administrar a uma outra pessoa choques eléctricos que eram aparentemente
dolorosos, perigosos e até fatais, se recebesse ordens nesse sentido de uma
pessoa em aparente posição de autoridade. Na realidade, os choques não eram
verdadeiros e a pessoa que os recebia era um actor treinado, que gritava de dor
e chegou a fingir-se inconsciente ou morto. Esta experiência incrível indica até
que ponto as pessoas alteram o seu comportamento de acordo com o contexto
institucional. "Há uma propensão para as pessoas aceitarem definições de acção
indicadas pela autoridade legítima. Isto é, embora seja a pessoa a realizar a acção,
ela permite que seja a autoridade a definir o seu significado" (Milgram, 1974,
p. 145).
Esta ideia liga-se ao conceito de legitimação que foi usado com algum
destaque por Max Weber (1947). Este conceito defende, em convergência com
Milgram, que há uma tendência generalizada para os actores sociais acreditarem na autoridade daquilo que se considera a ordem legítima (e aceitarem-na).
A aceitação da autoridade legítima dos "cientistas" nas experiências de Milgram
pode ser vista como resultando do seu estatuto social, do apreço público e do
grande valor que a cultura moderna confere à "ciência". Uma outra fonte
importante de legitimação, como o próprio Weber acentuou, é o sistema legal.
As pessoas tendem a ter um especial "respeito pela lei" e a. essência deste
fenómeno não pode ser captada por um simples enquadramento neoclássico
de escolha racional para minimização dos custos.
Existe hoje uma grande quantidade de experiências na psicologia social que
sugere, mas nem sempre de uma maneira tão impressionante como nas de
Milgram, influências sociais e de grupo no comportamento e na cognição. Estas
influências são ainda mais reconhecidas quando nos aproximamos ou transpomos as fronteiras da sociologia e da antropologia. Uma ilustração importante
é a que se encontra nas obras antropológicas sobre a aquisição de aptidões
linguísticas e a aprendizagem de sinais e significados. Como afirma Mary
ACÇÃO E INSTITUIÇÕES
125
Douglas: "A linguagem é um fenómeno social e ... as decisões sociais marcam
as fronteiras entre diferentes domínios de significados" (1973, p. 13).
Um dos poucos economistas que tomam este ponto em consideração é Ian
Steedman (1980). Num trabalho inserido numa revista relativamente obscura,
que os ortodoxos têm conveniência em ignorar, ele refere o "carácter intrinsecamente não autónomo" das preferências e das crenças. Desde que nascemos,
começamos a adquirir uma linguagem social e a partilhar de uma ordem
simbólica. O conhecimento individual exprime-se numa linguagem social e é
transmitido através de um conjunto de filtros cognitivos adquiridos socialmente. Apreendemos grande parte do mundo através da linguagem e dos símbolos
que não têm significado num sentido individual. Os nossos fins e propósitos
expressos, quaisquer que sejam as suas qualidades individuais, são formulados
com linguagem que, na sua essência, não é individual mas social.3
6.2
O SIGNIFICADO DAS INSTITUIÇÕES
Acção e instituições Um ponto que se salienta neste livro é que as perspectivas
mais significativas sobre a racionalidade e a acção fora da teoria económica
ortodoxa são incompatíveis com as noções insatisfatórias que hoje prevalecem
em economia. Isto é verdade para a sociologia, assim como para a psicologia e
a antropologia. Há umas décadas, Talcott Parsons (1940) fez um apelo para que
os economistas abandonassem a sua perspectiva estreita e simplista da motivação e racionalidade humanas e que dedicassem atenção ao "trabalho que se
processa noutras áreas do estudo do comportamento humano". Este apelo
merece ser repetido e discutido brevemente aqui.
A partida, Parsons salienta que a actividade económica se realiza dentro de
um enquadramento institucional. As instituições não são apenas estruturas
organizacionais: "São padrões normativos que definem aquilo que as pessoam
pensam ser, numa dada sociedade, as modalidades apropriadas, legítimas ou
esperadas de acção ou de relacionamento social" (p. 190). Embora se desvie para
um questionável funcionalismo numa passagem posterior, mencionando "os
requisitos dos padrões institucionais", Parsons entra em considerações que
seriam aceites por muitos teóricos sociais. "Os padrões institucionais dependem", diz ele, "do apoio que lhes dão os sentimentos morais dos membros da
sociedade" (p. 192). Sobre a origem destes "sentimentos morais", escreve:
Tudo indica que os sentimentos morais mais profundos são inculcados desde a
primeira infância e intimamente embutidos na estrutura da própria personalidade.
Nos sentidos mais profundos, estão para lá do âmbito da decisão e controlo conscientes, excepto talvez em certas situações críticas, e mesmo quando conscientemente
repudiados ainda continuam a exercer a sua influência ... O facto de as actividades
económicas se realizarem concretamente num quadro de padrões institucionais impli-
126
UM ADEUS AO "HOMEM ECONÓMICO"
ca que, por norma, esses elementos de motivação desinteressados desempenhem um
papel na determinação do seu curso (p. 193).
Ao discutir a ideia de comportamento orientado para o interesse individual,
Parsons é veemente na demonstração de que também este tem facetas sociais
e institucionais: "Pode verificar-se que uma componente muito substancial do
interesse próprio do indivíduo está directamente dependente do benefício que
tenha das atitudes favoráveis de outras pessoas com quem entra em contacto".
No entanto, para Parsons, "o ponto mais importante" é que o conteúdo ou
objectivos do interesse próprio são eles mesmos formados socialmente: "Porque
é precisamente em torno das instituições sociais que, em grande medida, se
organiza o conteúdo do interesse próprio." E a organização das diversas potencialidades da acção humana num sistema coerente que constitui "uma das
funções mais importantes das instituições" (p. 197).
Os apelos de Parsons e de outros sociólogos com perspectivas muito diferentes têm sido ignorados. Os economistas mantêm a sua perspectiva simplista e
insustentável da racionalidade humana. Uma das consequências da discussão
neste capítulo é que não se podem tomar como bons nem os meios nem os fins
da racionalidade "subjectiva". Mesmo ao nível da tomada de decisões totalmente deliberativa, as instituições e a cultura social fazem-se sentir não meramente
como restrições, mas também na moldagem da formação de preferências e ao
possibilitarem a aquisição do conhecimento com base no qual as escolhas são
feitas.
Contudo, é necessário examinar aspectos menos deliberativos de pensamento e acção para descobrirmos toda a complexidade e significado da interacção
entre as instituições e a acção na sociedade e na economia. Iniciamos esta
discussão analisando as funções e formação desse importante tipo de acções
conhecido como hábitos.
Hábitos Dado que é impossível a deliberação racional totalmente consciente
sobre todos os aspectos do comportamento, por causa da quantidade de informação e da competência computacional que isso implica, os agentes humanos
adquiriram mecanismos para subtrair certas acções em curso da avaliação
racional contínua. São comummente conhecidos como hábitos e o seu alto grau
de relevância para o nosso tema foi salientado por Thorstein Veblen em muitos
dos seus trabalhos. De facto, segundo Veblen, as próprias instituições são
compostas de "hábitos estabelecidos de pensamento comuns à generalidade
dos homens" (Veblen, 1919, p. 239).
O significado dos hábitos também foi reconhecido por outros economistas,
como Frank Knight. Este pensava que as forças que concorrem para moldar a
sociedade humana "pertencem a uma categoria intermédia, entre o instinto e a
inteligência. São uma questão de costume, tradição ou de instituições. Estas leis
são transmitidas dentro da sociedade e adquiridas pelo indivíduo através de
ACÇÃO E INSTITUIÇÕES
127
uma imitação relativamente pouco esforçada e até inconsciente, e a conformidade com elas por parte de qualquer indivíduo maduro, em qualquer momento, é uma questão de 'hábito'" (Knight, 1947, p. 224).
George Katona, uma das principais figuras na subdisciplina tão desprezada
da economia psicológica, tem defendido que os hábitos desempenham um
papel fundamental nesse comportamento económico. Isso aplica-se ao estudo
de actividades das empresas, e não apenas ao consumidor. Na perspectiva de
Katona: "Há provas abundantes de que o comportamento rotineiro é muito
frequente na actividade empresarial" (1951, p. 230). E ainda: "Para compreender
a actividade empresarial, há que estudar os actos habituais e de rotina e o seu
abandono através de decisões genuínas. Devido à frequente ocorrência do
comportamento habitual, a actividade empresarial não pode ser encarada como
um processo de constante adaptação às condições de mudança" (p. 52).
Em contrapartida, nem na teoria neoclássica nem na austríaca há uma
suficiente consideração dos hábitos. Os austríacos, por exemplo, consideram
toda a acção, habitual ou não, como animada por propósitos. O economista
neoclássico defende a opinião de que os hábitos podem ser representados como
uma versão da função de preferência-padrão. Os hábitos são assim analisados
como acções "racionais" que se repetem porque o "custo" que implica mudá-los
é considerado demasiado alto; ou são vistos como a repetição de qualquer
opção racional anterior; ou então como resultado de um processo darwiniano
de "selecção natural" que faz com que todos os actos repetidos tendam a ser
optimais e, portanto, "racionais", simplesmente porque o agente que os repete
sobreviveu.
Contudo, todas estas tentativas neoclássicas de enquadramento dos hábitos
contradizem a compreensão do mundo quotidiano e do senso comum. Em
geral, as pessoas não se apercebem conscientemente nem calculam o custo de
abandonar um hábito. Assim como não adquirem sempre hábitos a partir de
uma opção consciente e racional. Além disso, a ideia de todos os hábitos
persistentes serem "optimais" contradiz a noção dos "maus hábitos" que quase
todos temos e que gostaríamos de perder. Portanto, a primeira objecção a
levantar à forma como os neoclássicos tratam os hábitos é que não fazem
corresponder a sua análise ao significado corrente do termo.
Um segundo ponto decorre da discussão do capítulo anterior. Uma das
funções dos hábitos é lidar com a complexidade da vida diária; proporcionam-nos um meio de conservarmos um padrão de comportamento sem nos envolvermos em cálculos racionais globais implicando grandes quantidades de
informação complexa. Os processos da acção passam a organizar-se de forma
hierárquica, facilitando o controlo em diferentes níveis e ritmos, e com graus
diferentes de reacções à informação que recebemos.
Dado que os hábitos são actos repetidos, a perspectiva neoclássica dominante implica, em vez disso, que os agentes actuem não só com base num cálculo
total e global de todos os custos e benefícios envolvidos (ou "como se" assim
128
UM ADEUS AO "HOMEM ECONÓMICO"
fosse), mas também que se verifique um cálculo complexo sempre que se recebe
nova informação. Por outras palavras, afirma-se que a perpetração de hábitos
envolve um controlo e um cálculo contínuo globais, de uma extensão impossível, dada a quantidade e complexidade da informação em causa.
Uma outra abordagem neoclássica, mais sofisticada mas pouco utilizada, é
considerar os actos habituais como governados por uma função secundária de
preferências. Esta, por sua vez, é governada por uma função de preferências de
ordem superior, primária, à qual se ajustam gradualmente as preferências
habituais, ao longo do tempo (Thaler e Shefrin, 1981; Winston, 1980). Esta ideia
dos dois níveis anula o pressuposto de que os hábitos exigem um controlo
global contínuo para se tornarem consistentes com as preferências gerais, mas
ainda implica um grau acentuado e implausível de cálculo racional. As escolhas
de nível inferior a respeito dos actos habituais ainda são consideradas como
resultantes de um cálculo cabal de vantagens e custos. No entanto, é da própria
natureza dos hábitos nem sempre serem consistentes com uma escolha racional
e totalmente consciente. Em contrapartida, todas as tentativas neoclássicas de
modelização dos hábitos acabam por os tratar como sendo consistentes, em
última análise, com uma função de preferência dominante.
Para defendermos uma noção mais adequada do que são os hábitos, temos
de ter em conta níveis de acção que não estão sujeitos a uma deliberação total
e consciente e que não conduzem necessariamente a um resultado consistente.
De facto, para todas as actividades humanas são altamente relevantes os níveis
de pensamento parcialmente deliberativos. Na maior parte dos casos, a acção
provém de fontes simultaneamente deliberativas e não deliberativas. Abaixo
do nível de deliberação total está aquilo a que Michael Oakeshott (1962) chama
o "conhecimento prático" e Anthony Giddens (1984) a "consciência prática".
Essa actividade mental ajuda as pessoas a "andar para a frente", a agirem sem
conferir às suas opções uma expressão discursiva directa. Michael Polanyi
(1967) desenvolveu todo um sistema teórico para explicar a relevância do "saber
tácito" na acção humana e a aquisição e desenvolvimento de hábitos e capacidades técnicas.4
Significativamente, Oakeshott (1962, p. 11) afirma que o racionalismo corresponde à negação da existência do conhecimento prático. Da mesma maneira,
também nós defendemos aqui que os pressupostos da teoria neoclássica e, em
grande parte, da teoria austríaca, correspondem à negação da existência ou da
relevância teórica dos hábitos na análise da acção humana.
De facto, uma vez que o conceito de hábito sugere que algumas acções
decorrem de uma deliberação total e consciente, enquanto outras não, isto tem
de implicar uma certa forma de divisão hierárquica de níveis de consciência na
mente. Por razões que já mencionámos, é de esperar que os positivistas e
liberais clássicos se manifestem hostis a esta ideia. O positivismo não encontra
fundamento empírico para a própria ideia de consciência, enquanto os liberais
clássicos não aceitam a ideia de um indivíduo não totalmente animado por
ACÇÃO E INSTITUIÇÕES
129
propósitos na sua acção. Na teoria económica neoclássica, que é o ponto em
que o positivismo e o liberalismo clássico se encontram, constatamos uma
hostilidade redobrada e uma rejeição categórica do conceito de hábito, tal como
é entendido na vida diária.
Adquirimos hábitos de várias maneiras. Às vezes, pela imitação dos outros,
mas isto nem sempre resulta de uma escolha total e consciente, já que todas as
espécies animais nascem com uma certa capacidade para a imitação. O desenvolvimento das aptidões intelectuais e práticas das crianças baseia-se em
grande medida na imitação, faculdade essa que nós conservamos ao longo da
vida, muitas vezes sem pensarmos conscientemente que o fazemos.
Noutros casos, os hábitos podem resultar de uma escolha assumida e consciente. Portanto, depois de decidirmos conscientemente comprar um automóvel, o resultado provável é o seu uso habitual, normalmente sem grande
deliberação ou comparação com os custos marginais dos meios alternativos de
transporte. De início podemos usar o automóvel porque o consideramos mais
confortável e optar por ele nessa base, mas, posteriormente, essas deliberações
racionais não estão presentes. "Habituamo-nos" simplesmente a usar este meio,
em vez de outro qualquer, mesmo que, à partida, a deliberação consciente fosse
decisiva.
Qualquer que seja a sua origem, os actos repetidos tendem a fixar-se como
hábitos e acabam por ser excluídos da esfera da deliberação racional da mente.
Isto não deve ser considerado como uma espécie de defeito mental. Como já
afirmámos antes, os hábitos, como algumas outras formas de pensamento não
deliberativo, podem ter uma importante função positiva. De facto, a capacidade
de formação de hábitos é indispensável para a aquisição de todos os tipos de
aptidões práticas e intelectuais. A princípio, enquanto aprendemos uma técnica, temos de nos concentrar em todos os pormenores do que estamos a fazer.
Exige-nos muito tempo e esforço aprendermos uma língua nova ou aprendermos a tocar um instrumen to musical, ou escrever à máquina, ou familiarizarmo-nos com uma nova disciplina académica. No entanto, acabam por vir à tona
hábitos intelectuais e práticos e é nesse preciso momento que consideramos que
passámos a dominar a técn ica. Quando se aplicam regras analíticas e práticas
sem um raciocínio ou deliberação totais e conscientes, pode dizer-se que se
dominou a técnica.
Contudo, Arthur Koestler chama a atenção para o seguinte: "Esta tendência
para a mecanização progressiva das aptidões tem dois aspectos" (Koestler, 1967,
p. 131). Do ponto de vista positivo, os hábitos mecânicos ajudam-nos a lidar
com a complexidade e com a sobrecarga, excluindo da deliberação consciente
certos aspectos da acção. Assim, quando guiamos depressa e no meio de
trânsito intenso, não temos de nos concentrar nas mudanças ou nos movimentos do volante. Fazemo-lo automaticamente, deixando que o pensamento consciente se concentre nos potenciais perigos, observando o comportamento dos
outros veículos ou o estado da via.
130
UM ADEUS AO "HOMEM ECONÓMICO"
Do ponto de vista negativo, os hábitos mecânicos podem privar certas acções
importantes do devido exercício da deliberação e da capacidade criativa. E
provável que esta limitação seja mais grave quando estão em jogo actividades
mais complexas, de mais alto nível. Ser capaz de pressionar a tecla correcta da
máquina de escrever, como que por puro reflexo, é extremamente útil; "mas um
estilo rígido, composto de clichés e sequências de prefabricadas frases, embora
tenha a vantagem de permitir aos funcionários públicos tratar um grande
volume de correspondência, tem com certeza um reverso desagradável" (Koestler, 1967, p. 132).
Ao nível do raciocínio e do discurso científico, há perigos ainda maiores no
desenvolvimento de hábitos de pensamento rígidos. O uso habitual de conceitos e modos de pensar particulares pode obscurecer os pressupostos e axiomas
ocultos que se empregam. Podemos parecer "persuadidos" pela evidência ou
pela argumentação, sem uma deliberação adequada sobre todos os aspectos do
problema. Os investigadores científicos podem empregar habitualmente categorizações ou técnicas, sem porem em causa a legitimidade dessa prática. Não
é preciso ir mais longe, basta ver o caso da nossa disciplina. Verifica-se uma
grande propensão para o uso de conceitos como "oferta", "procura", "utilidade",
"equilíbrio", concorrência", "capital", "mercado" e "racionalidade", sem que se
ponha em causa o seu significado ou a legitimidade da sua aplicação num dado
contexto. Se porventura os economistas precisassem de se convencer da existência de hábitos intelectuais, o uso inquestionado desses estereótipos conceptuais bastar-lhes-ia como prova.
E evidentemente possível, com os habituais padrões neoclássicos, conceptualizar a acção em termos diferentes. Nada prova que um dado acto seja
regulado por processos de pensamento inconscientes ou conscientes. Portanto,
não se pode provar a existência de hábitos inconscientes. Mas, repetindo,
também não podemos provar a realidade da relação fundamental de causa e
efeito. Argumenta-se neste ponto que o que é razoável, dada a evidência do
comportamento humano e a nossa compreensão da forma como o nosso cérebro
funciona, é assumirmos que os hábitos são reais.
Embora o raciocínio indutivo não possa provar a existência de hábitos, isto
não significa que a evidência empírica não tenha influência no assunto. Podem
ser invocados muitos dados em apoio à ideia da importância dos hábitos na
vida económica. Em relação ao comportamento do consumidor, John Maynard
Keynes escreveu, na General Theory, que "o nível de vida habitual de um homem
depende essencialmente do seu rendimento" (Keynes, 1971b, p. 97). Desde essa
altura, muitos estudos têm corroborado de certo modo esta afirmação.
Por exemplo, um inquérito a consumidores feito por George Katone e Eva
Mueller (1954) mostrou que a maior parte das famílias não fazia a maioria das
suas compras após cuidadosa ponderação, deliberação ou planificação e, em
geral, não fazem preceder as suas compras de uma pesquisa intensa de informações ao consumidor ou de visitas a várias lojas. Nas excepções contava-se
ACÇÃO E INSTITUIÇÕES
131
um pequeno número de artigos, normalmente de preço muito mais elevado que
a média, e compras especiais como as prendas. Robert Ferber (1955) descobriu
que uma proporção substancial das compras de bens duradouros era feita sem
planificação prévia, e Joseph Newman e Richard Staelin (1972) obtiveram o
mesmo resultado, num estudo sobre a compra de automóveis e de equipamento
doméstico. Estes estudos levaram Richar Olshansky e Donald Granbois (1979)
a concluir que uma proporção substancial de compras não envolve a tomada
de decisão na verdadeira acepção.
A teoria de James Duesenberry (1949) sobre a função do consumo, hoje
desprezada, partia do princípio de que um nível estabelecido de rendimentos,
a acrescentar às normas culturais do consumidor, ajudaria a definir um estilo
de vida, um padrão e nível de despesas, e de que estes elementos seriam menos
afectados por flutuações de curto prazo no rendimento. O consumidor de
Duesenberry actua adaptativa mas também habitualmente, e não se aproxima
minimamente do calculador maximizador do mundo neoclássico. O próprio
Duesenberry forneceu significativo apoio estatístico a esta teoria.
O famoso estudo econométrico sobre a procura agregada dos consumidores
nos Estados Unidos, da autoria de Hendricks Houthakker e Lester Taylor
(1966), mostra que a maior parte da despesa dos consumidores está sujeita à
inércia, isto é, depende principalmente do consumo anterior. A relativa estabilidade do comportamento do consumidor tem sido invocada como argumento
a favor de preferências estáveis, num molde neoclássico, mas essa evidência
também poderia ser interpretada num enquadramento teórico que reconheça
devidamente o hábito como uma característica essencial do comportamento do
consumidor.
A hipótese das expectativas racionais propõe que os agentes utilizam plenamente a informação disponível e ajustam rapidamente as suas acções, à medida
que recebem nova informação. Pelo contrário, os testemunhos recolhidos não
parecem dar apoio a esta hipótese (Lovell, 1986; Pesaran, 1987) e, inversamente,
tem-se argumentado que elas parecem sugerir que "as pessoas de facto aplicam
simples regras de expectativa had-oc" (Shiller, 1878, p. 40). Uma outra interpretação destes testemunhos é que eles se explicam pelo comportamento habitual
e que a aparente inércia na formação das expectativas é sinal da incapacidade
de os agentes, por força do hábito, avaliarem ou actuarem de acordo com toda
a informação que têm à disposição.
Há também testemunhos que indiciam que, dentro da empresa, são significativas outras práticas habituais. Mesmo no caso de alterações frequentes de
preços e quantidades, há estudos que parecem dar consistência à ideia de que
esses ajustamentos são muitas vezes consequência de procedimentos e práticas
rotinizados dentro da organização.5
Rotinização e instituições Como vimos, a teoria neoclássica implica que o comportamento económico seja essencialmente não habitual e não rotinizado,
132
UM ADEUS AO "HOMEM ECONÓMICO"
envolvendo cálculo racional e ajustamentos marginais no sentido de um óptimo. Em contrapartida, a perspectiva que aqui defendemos é que o estudo dos
hábitos é importante para a economia porque se relaciona com uma quantidade
importante de comportamentos rotinizados na economia em geral. Este ponto
não se aplica apenas ao comportamento do consumidor, em que a influência
do costume e da rotina pode ser mais facilmente aceite. Mesmo no mundo
dinâmico e competitivo das compras e vendas, das expansões e recessões, em
que os preços de alguns produtos podem mudar diariamente, é difícil sobrestimar a proeminência e o peso da rotina social.
Por exemplo, toda a actividade económica se realiza no enquadramento da
legislação tradicional, que é percepcionada não através de um conhecimento
detalhado dos textos legais, mas pela observação casual da sua aplicação, por
meio da qual os agentes conseguem avaliar a viabilidade dos contratos e as
possíveis consequências legais de uma série de actos. A própria actividade
empresarial é limitada por costumes e regras informais, que têm de ser adquiridos por todos os participantes, porque a conformidade da acção com essas
regras condiciona muitas vezes a aceitação na comunidade dos negócios e serve
como sinal de confiança. Estes costumes e regras podem variar de país para
país e, por vezes, têm de ser aprendidas pelo homem de negócios estrangeiro
que procure proceder a exportações para uma região que não lhe é familiar.
Numa base mais imediata, os membros de uma comunidade empresarial
existem e actuam dentro de uma rede de contactos e estes são muitas vezes
limitados por regras ou acordos rotinizados de natureza formal ou informal. E
geralmente aceite que muitos, se não todos, os mercados de trabalho são
construídos com base numa série de regras rígidas de contrato e de comportamento, muitas delas reforçadas pela tradição e pela cultura social prevelacente.
Mas não é universalmente reconhecido que essas normas e regras possam ter
funções importantes ou até necessárias nas relações laborais e no mercado de
trabalho. Da mesma forma, também as regras e os acordos rotinizados nas
comunidades empresariais de gestores, agentes financeiros, accionistas e outras
podem ter uma importância positiva para o funcionamento do sistema.
O significado dos hábitos dentro do local de trabalho também não deve ser
ignorado. Todo o trabalho, seja ele designado "qualificado" ou "não qualificado", envolve um certo grau de conhecimento prático ou biow-kuw, que é ao
mesmo tempo adquirWo ^ratinizado
do tempo. Na realidade, pode
conjecturar-se que grande parte da capacidade industrial de um país consiste
num conjunto de hábitos relevantes, adquiridos ao longo de muito tempo,
dispersos por uma vasta força de trabalho, que pode ser empregada, e profundamente embuídos nas suas práticas. Deve-se a Thorstein Veblen o ter chamado
a nossa atenção para este facto, assim como se lhe deve uma teoria da evolução
económica baseada nos hábitos e expectativas conflituais da força de trabalho
e da comunidade empresarial.6
ACÇÃO E INSTITUIÇÕES
133
Ressurgiram ideias idênticas na obra impressionante de Richard Nelson e
Sidney Winter (1982).7 O seu trabalho centra-se na empresa e esta é encarada
como tendo um comportamento rotinizado e feito de hábitos, sendo essa uma
característica importante, embora não universal. Preocupados em demonstrar
como se adquirem complexas aptidões tecnológicas e como estas vão sendo
transmitidas dentro da economia, argumentam os autores que os hábitos e
rotinas actuam como repositórios de conhecimento e aptidões. Na sua opinião,
as rotinas são a "memória organizativa" da empresa (p. 99). Consequentemente,
Nelson e Winter não defendem apenas que os hábitos e rotinas estão difundidos
dentro da organização, mas também que têm características funcionais, como
é proposto na sua teoria da mudança económica.
Até agora temos tratado da questão das origens e existência de hábitos e do
comportamento rotinizado. Torna-se claro que o passo seguinte é considerar o
seu significado funcional para a acção humana no seu conjunto.8
Rotinas, instituições e informação As rotinas não são simplesmente acções que
se congelaram, além disso, viabilizam e condicionam a acção futura. Já foi
mencionada uma característica do seu papel viabilizador; os hábitos e rotinas
podem ter um papel positivo, na medida em que é impossível uma deliberação
total e consciente sobre todos os aspectos do comportamento, dada a quantidade e complexidade da informação envolvida. Assim, para o agente individual,
os hábitos e rotinas têm um significado funcional no sentido em que reduzem
a quantidade de deliberação implicada nas complexidades do comportamento
quotidiano. Contudo, esta é apenas uma faceta das funções gerais cognitivas e
informativas das instituições e rotinas sociais.
Uma importante função viabilizadora das rotinas institucionalizadas tem a
ver com a informação que proporcionam a outros agentes. Este ponto é bastante
significativo e será desenvolvido mais adiante neste livro. Este aspecto do
comportamento rotinizado tem sido objecto de pouca atenção por parte dos
economistas e, no entanto, é possível que seja fundamental para a análise de
todas as instituições sociais e económicas, entre as quais e em particular os
mercados.
Há uma forma óbvia através da qual a maior parte das instituições proporciona informação. Todas as organizações sociais reúnem e processam diariamente uma certa quantidade de informação que se pode obter dentro ou fora
da instituição. No entantc;, a função das instituições relativa à informação é
muito mais vasta e profuínda do que isto. Não é apenas o uso directo da
informação recolhida por agentes que fazem parte da instituição. Através da
sua própria existência, e do carácter estabelecido e visível de muito do comportamento a elas associado, as instituições criam de facto e, em certo sentido,
emitem informação adicional.
O comportamento estabilizado e rotinizado estabelece e reproduz um conjunto de regras e normas "fixadas pelo hábito, pela convenção, pela aceitação
134
UM ADEUS AO "HOMEM ECONÓMICO"
ou conformidade social tácita ou legalmente apoiada" (Kornai, 1982, p. 79).
Estas não são necessariamente invioláveis, mas a questão é que ajudam os
agentes a avaliar as acções potenciais dos outros. Este ponto tem uma importância considerável, mas só na periferia da corrente teórica dominante é que
conseguimos encontrar alguma discussão séria sobre o papel positivo de coordenação das rotinas e normas. Já Frank Knight e Thornton Merriam (1948,
p. 60), numa reflexão antiga e pouco citada a este respeito, afirmavam:
Um indivíduo só pode escolher ou planear inteligentemente num grupo de qualquer
dimensão
todos os outros actuarem "de forma previsível" ou se ele próprio previr
correctamente. Isto significa, prima fade,
que os outros não escolhem racionalmente,
mas seguem mecanicamente um padrão estabelecido e conhecido, ou então que o
primeiro agente tem poder coercivo, pela força ou pelo embuste. (...) Sem um certo
procedimento de coordenação, qualquer actividade real por parte de um indivíduo,
qualquer afastamento de rotinas passadas, tem de frustrar as expectativas e perturbar
os planos de outros que contem com ele para agir de uma forma prevista a partir do
seu comportamento anterior.
O papel informativo das rotinas e instituições não teve grande destaque na
economia desde o momento que estas linhas foram escritas. No entanto, tem
havido, nos últimos anos, algumas afirmações e análises notáveis e dispersas,
de dimensões variáveis, sobre o tema.9
O aspecto crítico é que as rotinas e as instituições formais, ao estabelecerem
padrões mais ou menos fixos, ou fronteiras, ou regulamentos, ou restrições à
acção humana, na realidade fornecem informação a outros agentes. Essas
inflexibilidades ou restrições indicam, de facto, ao indivíduo o que outros
agentes poderiam fazer, e o indivíduo pode então actuar em conformidade. Em
contrapartida, se essas inflexibilidades ou "imperfeições" não existissem, o
comportamento dos outros podia modificar-se com toda a perturbação do
sistema económico, e esses ajustamentos frequentes de comportamento podiam ser entendidos como aleatórios ou caóticos.
Por outras palavras, as instituições e rotinas, não actuando como simples
inflexibilidades e constrangimentos, desempenham um papel viabilizador,
fornecendo informação mais ou menos fiável sobre acções prováveis de outros.
Assim, os hábitos e rotinas adquiridos por certos indivíduos viabilizam a
tomada de decisão consciente de outros. Uma consequência desta função das
instituições é que, num mundo altamente complexo, e apesar da incerteza,
complexidade e sobrecarga de informação, é possível um comportamento
regular e previsível.
Também podemos constatar como os hábitos e rotinas conseguem, de facto,
moldar de modo decisivo a acção. Mesmo que partamos do princípio de que
os gostos e preferências são dados adquiridos e não se modificam, a função
informativa das instituições e rotinas conduzirá a certos padrões de acção,
ACÇÃO E INSTITUIÇÕES
135
influenciados pela informação que as instituições proporcionam. Com base no
pressuposto segundo o qual os agentes são "maximizadores racionais", Andrew
Schotter (1981, 1985) demonstra que as instituições e as restrições desempenham esse papel funcional. Assim, por exemplo, há regras e momentos fixos
para a abertura e fecho de mercados, de coordenação de compradores e vendedores, assim como existem sinais de trânsitos e regras rodoviárias para coordenar as acções dos condutores nos cruzamentos.
Se partirmos do pressuposto menos rígido segundo o qual os gostos e
preferências individuais são maleáveis e se alteram ou adaptam, os objectivos
e comportamento dos agentes podem ser moldados ou reforçados. A existência
de regras e instituições pode favorecer certas propensões comportamentais, da
mesma forma que os sentimentos nacionalistas podem ser galvanizados por
cerimónias e actos simbólicos. Alternativamente, é possível ocorrerem preferências contra-adaptativas que dêem origem a um comportamento rebelde, em
que os indivíduos reagem às normas e às tradições de forma negativa. Mesmo
neste caso, as rotinas e instituições afectam o comportamento e a cognição
humanos. Portanto, quer positiva quer negativamente, as instituições e rotinas
afectarão provavelmente as preferências e o comportamento. Não há nada de
sinistro nisto: as conclusões não são necessariamente determinísticas. O que se
afirma é a ideia de que o comportamento rotinizado não é neutro nos seus
efeitos sobre as preferências e acção humanas.
Há que salientar que a informação criada e distribuída pelas instituições
sociais tem um carácter social e não puramente subjectivo. É estabelecida pelo
comportamento rotinizado de um grupo de indivíduos, que se torna tanto mais
significativo quanto mais disseminado, estável e estabelecido for. O seu fundamento é a instituição social, mesmo que a informação fornecida possa ser
entendida de forma diferente de individuo para indivíduo. Por conseguinte, ao
reconhecermos a função informativa das instituições, estamos a afastar-nos de
uma perspectiva puramente subjectiva.
Esta argumentação geral sobre as instituições foi aplicada por certos autores
a uma série de novas abordagens da função dos factores de rigidez e das
"imperfeições" no sistema de mercado. Estas abordagens são radicalmente
diferentes das teorias neoclássica ou austríaca no sentido em que as instituições
não são vistas apenas como restrições sobre o comportamento "livre". Além
disso, as conclusões sobre políticas diferem em muito das opiniões correntes
sobre restrição e regulação de mercados, que tiveram origem num grupo
influente de economistas ortodoxos, entre os quais alguns da escola austríaca.
A aplicação desta perspectiva às instituições no caso particular do mercado é
abordada no capítulo 8.
Ortodoxia e instituições
É importante salientar o que nos separa aqui de muita
da teoria ortodoxa na forma como esta trata o comportamento rotinizado e as
instituições. O primeiro não é explicado e as últimas são consideradas como
136
UM ADEUS AO "HOMEM ECONÓMICO"
restrições tácitas ou predefenidas, sob as quais o indivíduo racional e calculador
actua. No geral, com a excepção de alguns desenvolvimentos recentes e notáveis, faz-se sobre estes factores uma avaliação negativa; como limites ou restrições a um comportamento que de outra forma seria livre. Podem encarar-se
algumas instituições como essenciais à vida social, mas normalmente estas são
vistas como excepções pontuais. Em contrapartida, defendemos aqui que é
inconcebível um espaço muito grande entre instituições. Mesmo que a acção
seja livre, é filtrada pelo hábito e pela rotina, e permeada pela cultura e estrutura
do sistema. As instituições são a substância, mais do que simplesmente as
fronteiras, da vida social.
Um dos problemas que se põem quanto a esta perspectiva puramente
negativa das instituições como restrições, como dão a entender economistas
como William Lazonick (1981) e Lawrence Boland (1979b), é que põe de lado o
problema de explicar a evoluções das próprias instituições, e não integra o
comportamento dos que agem de modo a modificar as instituições e a alterar
as restrições não as tomando como adquiridas. Como demonstra Scott Moss
(1981,1984), podem ser retiradas conclusões surpreendentes e pouco convencionais, que questionam particularmente a aplicabilidade geral da ideia de um
equilíbrio de longo prazo, de um modelo em que os agentes não tomem as
restrições como dados adquiridos e em que parte do seu comportamento
"racional" pode consistir em tentar mudá-las, de forma a alcançarem os fins a
que se propõem. Além disso, o trabalho de Janos Kornai (p. e. 1982) estabelece
uma distinção útil entre restrições "duras", que são difíceis de alterar, e as que
são "leves".
Na teoria ortodoxa, as restrições são vistas de maneira puramente negativa
e como efeito do passado, mas no presente o indivíduo é positivamente "livre"
dentro dos limites por elas estabelecidos. Por conseguinte, o paradigma ortodoxo não percepciona o efeito de um comportamento corrente "livre" como um
reprodutor de rotinas, que podem tornar-se restrições no futuro, e não consegue
ver a rotina institucionalizada como um viabilizador positivo da acção "livre"
no presente.
Teoria dos jogos e instituições
No entanto, há desenvolvimentos recentes que
de certo modo atenuam estas críticas. Estes desenvolvimentos preservam a
ideia de escolha racional, para eximirem a função das instituições e normas,
utilizando em particular instrumentos da teoria dos jogos. Assim, Edna Ulmman-Margalit (1977) analisa a emergência de normas sociais, Andrew Schotter
(1981) considera as instituições sociais em geral e os mercados em particular e
Robert Sugden (1986) desenvolve este tipo de teoria aplicando-a à análise dos
direitos e ao bem-estar. Estas análises têm um valor definitivamente positivo,
em particular como antídoto para muitos dos outros tratamentos dados pela
corrente teórica às instituições sociais.
ACÇÃO E INSTITUIÇÕES
137
Contudo, persiste nelas uma divergência com o tipo de perspectiva que este
livro adopta. Vale a pena salientar dois aspectos. Primeiro, o uso da teoria dos
jogos sugere que o indivíduo desenvolve uma estratégia conhecendo antecipadamente os pagamentos que resultam de diversas eventualidades. Mas, na
realidade, os resultados podem não ser conhecidos e é bem provável que o
número de possibilidades "estratégicas" seja tão vasto que não possam ser
consideradas todas as estratégias e não seja possível a computação analítica dos
pagamentos respectivos. A teoria dos jogos não tem em conta o grau de
complexidade e ignorância no mundo real.
Em segundo lugar, é típico de todas estas abordagens tomarem o indivíduo
e os seus objectivos e interesses como exógenos ou dados. Por vezes, isto
implica um reconhecimento explícito de uma atitude individualista metodológica. Os factores que influenciam a formação dos propósitos e objectivos
individuais não são tidos em conta. Não se considera em particular a função
dos hábitos, rotinas e instituições na moldagem da substância e do contexto do
comportamento animado por propósitos.
Evidentemente, nenhum exemplo real pode demonstrar conclusivamente
que as preferências e objectivos individuais são moldados pelo ambiente. Pode
presumir-se que os sujeitos das experiências de Milgram actuam como se
calculassem que a melhor estratégia é responder à autoridade com deferência.
Em geral, na sociedade castiga-se o desrespeito injustificado pela autoridade;
então esta não será simplesmente uma reacção racional e calculada?
Mas, pelo contrário, o verdadeiro impacte das experiências de Milgram,
como de muitas outras experiências da psicologia social, é que produzem
comportamentos tão diferentes do que seria de esperar de indivíduos medianos, com ameaças e castigos relativamente suaves, que dão a ideia de que o
indivíduo é realmente modificado pelo contexto da sua acção.
Considere-se, como segundo exemplo, a situação que enfrenta o soldado em
combate. Deve atacar com os companheiros, arriscando a vida, ou desertar,
correndo o risco de ser capturado e castigado? E muito possível apresentaremse as opções em termos de teoria dos jogos e considerar os pagamentos das
várias eventualidades. Ullman-Margalit (1977) considera um exemplo deste
tipo no seu livro. O que esta análise da matriz dos pagamentos parece pôr de
lado são factores como o treino e a liderança na formação das próprias percepções e preferências do soldado e a rotinização cega de muitas acções antes e
durante a batalha. O processo de treino destina-se a subliminar muitas acções
e reacções numa situação de combate: condicionar o soldado para que se
transformem em hábitos. Além do mais, é difícil ter em conta a função da
liderança carismática na guerra sem aceitar que ela pode realmente moldar e
desenvolver a motivação individual (Keegan, 1976). A experiência da disciplina
militar e da própria guerra modifica de facto a pessoa, tornando-a capaz de
intenções e acções que nunca antes considerara.
138
UM ADEUS AO "HOMEM ECONÓMICO"
Em terceiro lugar, estas questões são claramente importantes se considerarmos o estatuto e remuneração inferiores que se reservam às mulheres (ou a
outros grupos desfavorecidos) na sociedade. O argumento que aqui apresentamos não é apenas o de que as mulheres estão face a um conjunto de oportunidades mais limitado, mas que os seus objectivos e escolhas são na realidade
moldados pela cultura e pela rotina, de tal forma que muitas delas podem optar
por permanecer nos mesmos postos e ocupações ainda que disponham de
alternativas e incentivos. Uma teoria que se limite a tomar como dados as
motivações e preferências dos indivíduos não tomará este aspecto em consideração. As mulheres não são apenas as vítimas, consentidas ou não, das circunstâncias: são actores moldados por essas mesmas circunstâncias.
Em quarto lugar, um exemplo importante na discussão da emergência de
normas comportamentais é a razão pela qual (quase todas) as pessoas conduzem pela esquerda na Grã-Bretanha e pela direita na maior parte dos outros
países (Langlois, 1986c; Sugden, 1986). E evidente que a emergência e reprodução desta norma pode ser explicada em termos dos óbvios perigos e desvantagens de guiar do lado "errado" da estrada. Da mesma forma, há razões
semelhantes para a aceitação de convenções de prioridade do trânsito nos
cruzamentos (Schotter, 1981). Embora a explicação destes fenómenos com base
na teoria dos jogos tenha um interesse superficial, não se conseguem explicar
tão facilmente outros exemplos intimamente relacionados com este, pelo que
eles põem em causa a explicação utilitária ou da teoria dos jogos.
Veja-se, por exemplo, a aprovação da lei que tornou obrigatório o uso de
cintos de segurança na Grã-Bretanha, em 1983. Estudos da época mostram que
uma grande parte dos condutores não usava cintos de segurança antes de a lei
entrar em vigor, mas depois esse número reduziu-se a uma pequena minoria.
O que aconteceu para provocar esta mudança de comportamento?
Evidentemente, esta mudança de comportamento pode ser explicada referindo as multas resultantes da infracção à lei, a desutilidade de se ser alvo da
desaprovação de outros e assim por diante. Também há a questão da importante campanha de informação sobre os benefícios do cinto do ponto de vista da
segurança, que podem ter atraído a atenção dos condutores para o benefício do
uso desses cintos e para os "custos" de não o fazer.
Mas serão estas explicações inteiramente convincentes? No fim de contas, a
possibilidade de se ser detectado sem cinto de segurança pela polícia é relativamente pequena. Além disso, a campanha de informação estava já em curso
antes de 1983 e, portanto, os seus efeitos independentes não parecem ter sido
tão grandes como o da entrada em vigor da lei.
A explicação mais convincente é que a própria lei tem uma poderosa influência legitimizadora sobre os condutores. Por conseguinte, os seus objectivos e
preferências mudaram, de facto, a favor de uma conduta mais segura. A
autoridade da lei não teve só o efeito de alterar o comportamento pela introdução de multas ou pela percepção dos custos e benefícios. Além disso, mudou
ACÇÃO E INSTITUIÇÕES
139
os próprios indivíduos e os seus objectivos. A prática do uso de cintos de
segurança incorporou-se nos hábitos e é racionalizada pela convicção generalizada de que contribuem para reduzir as lesões e as causas de morte.
Ordem espontânea Esta linha de debate é relevante para o conceito de "ordem
espontânea" de Friedrich Hayek. Há muitos aspectos interessantes e instrutivos
na sua argumentação de que as normas e convenções podem surgir, por assim
dizer, espontaneamente, através da interacção dos indivíduos. Note-se, contudo, que é unidireccional quanto ao seu alcance.Umaordem é definida essencialmente como um estado de coisas em que as pessoas podern"criar expectativas^
correctas", dada a existência de um determinado padrão ou regularidade na vida
social (Hayek, 1982, vol. 1, p. 36). Assim, quando Hayek diz que "uma ordem
espontânea resulta da adaptação dos elementos individuais às circunstâncias"
(p. 41) quer significar que o comportamento se pode adaptar, dadas a informação e as restrições presentes. A adaptação no comportamento resulta, em
primeiro lugar, de uma mudança na informação ou percepção, e não de uma
mudança nas preferências ou constituição do indivíduo.10
A obra recente de Hayek marca uma evolução em relação a muito do
pensamento ortodoxo no sentido em que as jnormas e.as convenções,não
surgem misteriosamente do exterior; ele tenta explicá-las de forma sofisticada
como as consequências imprevistas de acções individuais acumuladas. Mas,
caracteristicamente, ainda vê os objectivos e preferências individuais como
exógenos ao sistema. Assim, Hayek não reconhece que as normas e convenções
podem, de facto, provocar a adaptação do carácter e propósitos do indivíduo.
A ordem não afecta simplesmente as expectativas, afecta os próprios indivíduos.
Da mesma maneira, Sugden (1986, p. vii) afirma que "se os indivíduos
prosseguirem os seus interesses num estado de anarquia, a ordem ... pode
surgir espontaneamente". Contudo, não se considera que os interesses "próprios" do indivíduo podem também ser moldados e estruturados num processo
social e que a própria ordem pode ter algo a ver com o que os indivíduos
consideram ser esses interesses.
Nomeadamente, portanto, como diz Anthony Giddens (1982b, p. 8), os
sujeitos humanos e as instituições sociais são ambos "constituídos nas práticas
recorrentes e através delas". Assim, apesar dos seus louváveis apelos a favor de
uma concepção evolucionista da emergência das instituições sociais, Hayek,
Sugden e outros não tomam em consideração a evolução dos próprios propósitos e preferências. Os indivíduos são considerados como se nascessem com
uma personalidade fixa, não se constituem através de processos sociais. Portanto, a análise tem de proceder desses indivíduos dados, para o exame de
ordem espontânea que pode emergir; não considera o tipo de indivíduo que
pode emergir de uma ordem social de certo tipo e que pode contribuir, também
ele, para a evolução da ordem social no futuro.
140
UM ADEUS AO "HOMEM ECONÓMICO"
Uma vez tomadas como endógenas as preferências e propósitos do indivíduo, a ideia da "ordem espontânea" pode assumir diferentes formas. É possível
um processo de causalidade cumulativa ou circular. Pode existir um ciclo
"virtuoso", em que o comportamento civilizado é ao mesmo tempo construído
por normas sociais coercivas e contribui para elas, mas o ciclo também pode
ser "vicioso", no sentido em que uma falta de solidariedade e confiança é
passível de acelerar uma propensão dos indivíduos para reduzirem a sua
tolerância ou altruísmo, fazendo assim progredir o processo de decadência
social.
O facto de uma ordem poder parecer espontânea, e resultante de indivíduos
que prosseguem os seus fins, não dá só por si santidade ou prioridade moral a
qualquer outra ordem que possa surgir. O facto de uma dada ordem ter
emergido e se ter reproduzido ao longo do tempo indica que está a formar e a
moldar objectivos e intenções individuais, da mesma forma que é um reflexo
destes. Mais do que no sentido limitado da formação de expectativas, a ordem
ajuda a formar o indivíduo, assim como os actos do indivíduo ajudam a formar
a ordem.
Uma perspectiva completamente evolucionista tomaria em consideração
quer a emergência, quer o efeito do enquadramento cultural e institucional
sobre os propósitos e acções do indivíduo. Neste sentido mais rico, podemos
apreciar o significado do passado na estruturação do presente. O presente é a
história: fazemo-la e ao mesmo tempo somos feitos por ela.11
6.3
ALGUMAS CONCLUSÕES
O potencial da instabilidade cumulativa Embora se rejeite aqui o agente continuamente calculador e marginalmente ajustador da teoria neoclássica, salientando-se antes a inércia e o hábito, não devemos esquecer que os próprios
hábitos podem mudar. E, embora suportemos a carga do passado sob a forma
das instituições que moldam e dominam as nossas vidas, economistas institucionalistas, como Veblen, nunca deixaram de prestar atenção aos processos
pelos quais as instituições e os hábitos podem evoluir: "A situação actual molda
as instituições de amanhã através de um processo selectivo e coercivo, actuando
sobre a visão habitual das coisas dos homens e deste modo alterando ou
reforçando um ponto de vista ou uma atitude mental transportada do passado"
(Veblen, 1899, p. 190).
Além disso, ao salientar-se a importância e o carácter funcional dos hábitos
e da rotina, não convém perder de vista que as escolhas conscientes e a acção
orientada por propósitos também estão aqui envolvidas. Portanto, o "processo
selectivo e coercivo" não está confinado a um sulco imutável. As instituições
mudam, e até a mudança gradual pode acabar por exercer uma tal pressão sobre
um sistema que dá origem a surtos de conflito ou crise, que por sua vez
ACÇÃO E INSTITUIÇÕES
141
conduzem a uma mudança nas acções e nas atitudes. Portanto, há sempre a
possibilidade da ruptura da regularidade: "Haverá situação de crise ou rupturas estruturais, quando as convenções ou práticas sociais vigentes sofrem
rupturas" (Lawson, 1985, p. 921). Em qualquer sistema social há uma interacção
entre comportamento rotinizado e as decisões variáveis e voláteis de outros
agentes.
Deve pôr-se em destaque a interacção entre a acção habitual e deliberativa e
a consequente tensão entre estabilidade institucional e rupturas estruturais. A
adopção de uma perspectiva institucionalista sobre a formação e desenvolvimento da conduta não implica adesão ao determinismo. E possível salientar o
peso da rotina e do hábito na formação do comportamento e a importância de
certos elementos de deliberação estratégica e os seus possíveis efeitos disruptivos sobre a estabilidade. Esta tensão entre regularidade e crise é demonstrada
na seguinte citação de Veblen:
A conduta do indivíduo não só é limitada e dirigida pelas suas relações habituais com
os seus companheiros de grupo, como essas relações, por serem de carácter institucional, variam à medida que varia o contexto institucional. As necessidades e desejos, os
fins e objectivos, as formas e os meios, a amplitude e tendência da conduta do indivíduo
são funções de uma variável institucional cujo carácter é altamente complexo e
completamente instável (Veblen, 1909, p. 245).
Com estes ingredientes, é possível considerar processos em que, durante longos
períodos, os hábitos dominantes de pensamento e acção são cumulativamente
reforçados. Mas estes mesmos processos podem conduzir a mudanças repentinas e rápidas. A própria ossificação da sociedade pode levar à destruição da
infra-estrutura económica a partir de uma concorrência mais vigorosa vinda
do exterior, ou é possível dar-se uma reacção interna que conduza a uma nova
ordem modernizada. Inversamente, um sistema altamente dinâmico pode
sofrer de falta de continuidade, aptidão, ou perspectiva, e chegar a um impasse
porque no seu ritmo alucinante privou os seus membros de valores ou objectivos duradouros.
Na opinião de Veblen, o sistema económico não é um "mecanismo que se
auto-equilibra", mas um "processo que se desenrola cumulativamente". As
instituições económicas são complexos de hábitos, papéis e comportamento
convencionais. Contudo, dado o impacte das mudanças tecnológicas e sociais
na moderna sociedade industrial e as novas concepções contraditórias e tradições abandonadas por cada inovação na gestão e na técnica, o carácter cumulativo do desenvolvimento económico pode significar crises ocasionais, mais
do que transformação ou avanços contínuos e graduais.
Apesar da distância geográfica e intelectual da obra de Keynes em relação
aos institucionalistas americanos, encontra-se uma impressionante justaposição de regularidades comiportamentais, relacionadas com convenções domi-
142
UM ADEUS AO "HOMEM ECONÓMICO"
nantes e possível instabilidade cumulativa, num capítulo decisivo da General
Theory de Keynes (Keynes, 1971b, cap. 12). A posição deste autor, contudo, é
diferente em vários aspectos e será analisada no capítulo 10.
A conclusão é que a perspectiva institucional aqui adoptada implica uma
ruptura radical com o tipo de teorização baseada no conceito de equilíbrio que
tem penetrado a ortodoxia há mais de um século. As ideias de equilíbrio geral
ou parcial e as descrições teóricas de mecanismos equilibrantes dominam a
teoria neoclássica. No entanto, todos os antigos grandes heréticos do pensamento económico, entre os quais Karl Marx, Thorstein Veblen e John Maynard
Keynes, tentaram ampliar o alcance da economia, fazendo-a abandonar a
obsessão exclusiva com a teorização do equilíbrio. O cepticismo a respeito do
valor da teoria do equilíbrio é uma característica positiva dos trabalhos da
escola austríaca, de George Shackle, dos comportamentalistas e dos pós-keynesianos. A tensão entre estabilidade e ruptura num enquadramento institucionalista em evolução também sugere um abandono do equilíbrio mecânico em
termos semelhantes.
O carácter evolucionista da economia institucionalista Ao passarem a dar menos
importância à estática comparativa e a outras formas de teorização do equilíbrio, a que tipo de paradigma alternativo poderão os economistas apelar?
Como têm indicado os institucionalistas americanos e outros autores recentes,
como Nicholas Georgescu-Roegen (1971, 1978) e Richard Nelson e Sidney
Winter (1982), é provável que um paradigma alternativo frutuoso adopte uma
perspectiva evolucionista, em vez de optar pela do equilíbrio mecânico.
No entanto, pode parecer que a teoria neoclássica se baseia numa persistente
analogia biológica e darwiniana, na análise da sua concorrência ou até da
racionalidade individual. Por exemplo, desde o artigo clássico (1959) de Armen
Alchian, o pressuposto de que as empresas maximizam os lucros tem servido
de base à ideia de que essas empresas são "as mais aptas", com mais probabilidade de sobreviverem e de se tornarem típicas, à medida que desaparecem as empresas menos aptas.12
Contudo, como Sidney Winter (1964) tão profusamente argumenta, o apelo
às noções darwinianas de evolução não tem resultado, porque não são especificados os mecanismos envolvidos na sustentação e procriação desse comportamento maximizante. Até agora, nenhum adepto da teoria neoclássica
explicou satisfatoriamente como uma empresa, tendo conseguido maximizar,
continua a fazê-lo no futuro. Os gestores da empresas podem saber que um
determinado comportamento é óptimo em certo sentido, e insistirem nele por
essa razão; mas a adopção de um comportamento maximizante como objectivo,
e não como resultado de uma evolução e "selecção natural" anteriores, é
inconsistente com qualquer apresentação darwiniana. Da mesma maneira, a
teoria neoclássica não explica, em termos darwinianos, como é que as características de uma empresa "apta" são transmitidas a outras novas empresas que
ACÇÃO E INSTITUIÇÕES
143
lhe sucedam. Por conseguinte, a invocação neoclássica de Darwin não colhe
porque, mesmo se for adoptado um comportamento maximizador, não se
apresenta nenhuma razão darwiniana para ele ser generalizado a toda a economia no seu todo.
Uma grande diferença entre o modelo darwiniano de evolução e o mundo
económico e social é que, no primeiro, o ambiente não é visto como estando
sujeito a grandes e rápidas mudanças. O processo de "selecção natural" funciona lentamente, durante longos períodos de tempo, e, para as espécies se
consolidarem, é geralmente necessário um ambiente estável, de forma a que a$
características distintivas demonstrem a sua superioridade em termos de concorrência. Pequenas variações no ambiente poderão garantir a prosperidade de
espécies mais adaptáveis, mas uma grande mudança, como o possível meteorito que terá alterado repentinamente o clima da Terra e varrido os tão bem
sucedidos dinossauros pode deitar inteiramente a perder o processo de "selecção natural".
Em contrapartida, o ambiente que o consumidor, a firma ou a economia
nacional enfrentam muda rapidamente e por vezes de repente, à medida que
os preços flutuam, os mercados de valores florescem e sofrem "crashes", os
governos mudam, as guerras rebentam e os desastres naturais se sucedem. Fica
assim excluído um suave processo darwiniano de "selecção natural" gradual
dos consumidores mais aptos e mais racionais e das empresas e economias
nacionais mais eficientes. Como os dinossauros, a sobrevivência de uma pessoa
maximizante ou de uma empresa produtiva depende em grande medida da
sorte.
Como já vimos, no caso da empresa faltará teoria neoclássica da "selecção
natural" um mecanismo viável que transmita as características das empresas
sobreviventes de uma geração para a outra. No mundo natural, e segundo
muitos biólogos, esse mecanismo é o gene. Este contém a informação hereditária que é passada de cada organismo para os seus sucessores. O argumento
neodarwiniano é que genes particulares contribuem para certas características
e comportamentos que favorecem a sobrevivência. Os organismos "aptos"
equipados com esses genes poderão então, com mais probabilidade, passá-los
à progenia. Os genes contêm a informação para a formação e programação do
organismo, de forma que, num ambiente estável, os genes que favorecem a
sobrevivência terão tendência para adquirir maior proeminência nas gerações
seguintes. Ao longo do tempo, mutações aleatórias e combinações mendelianas
de genes parentais conduzem à diversificação das espécies e ao possível desenvolvimento de formas de vida mais sofisticadas. Pelo contrário, na teoria
neoclássica, não há nenhum mecanismo explícito e equivalente que passe uma
informação análoga de uma empresa para outra.
Contudo, assim que transpomos as fronteiras da economia ortodoxa e incorporamos alguns dos aspectos do debate anterior sobre instituições sociais,
encontramos mecanismos que desempenham um papel evolucionista seme-
144
UM ADEUS AO "HOMEM ECONÓMICO"
lhante ao do gene no mundo natural. Esses mecanismos são estruturas organizacionais, hábitos e rotinas. Embora estas sejam maleáveis e não sofram mutações da mesma forma que as que lhes são análogas na biologia, as estruturas e
rotinas têm uma qualidade estável e inerte a tendem a manter-se, e assim
"transmitem" as suas características importantes ao longo do tempo.
Além disso, os hábitos e rotinas podem permitir a sobrevivência e transmissão de padrões de comportamento de uma instituição para outra. Como exemplo importante, as competências adquiridas por um trabalhador numa
determinada empresa inculcam-se parcialmente nos seus hábitos, e estes permanecem, se a pessoa muda de empregador ou se forem "ensinados", explicitamente ou por imitação, a um seu colega. Assim, os hábitos dos empregados,
quer dentro de uma empresa, quer numa dada cultura social, agem como
veículos de informação, "conhecimento impossível de ensinar" e competências.
Note-se que não estamos a falar aqui de evolução como forma biológica de
transmitir características de indivíduo para indivíduo. Embora, evidentemente, os indivíduos estejam intimamente envolvidos, a transmissão não é biológica mas de instituição para instituição e, dessa forma, para indiyíduos.
A ideia de que as rotinas dentro da empresa actuam como "genes" na
transmissão de competências e informação é adoptada por Nelson e Winter
(1982, pp. 134-6) e constitui elemento crucial do seu modelo teórico da empresa
moderna. Contudo, não exploram o seu significado mais lato para a teoria
económica. Na perspectiva de uma economia evolucionista, as rotinas são
cruciais na economia e na sociedade não só por transmitirem competências de
gestão e de trabalho.dentro da empresa.
Por exemplo, os padrões de consumo dos indivíduos na família são mantidos
através de um conjunto de rotinas estabelecidas. Estas podem ser afectadas pela
cultura social e pelas características dos indivíduos em causa. São transmitidas
por imitação, pela tendência para a submissão e pelas crianças criadas dentro
da família, ao adquirirem alguns dos hábitos e rotinas mais duradouros.
Também é possível detectar a influência generalizada do comportamento rotinizado em todas as instituições sociais estabelecidas, incluindo o sistema
educativo, a comunidade científica, a função pública, os sindicatos e todos as
formas de governo local e nacional. Da mesma maneira, as rotinas actuam como
"genes" dentro de todas estas instituições.
No entanto, como elipticamente Nelson e Winter sugerem, há uma outra
razão pela qual as rotinas não actuam como genes no sentido estritamente
biológico. Os genes contêm informação codificada que é preservada no ADN e
que não se altera significativamente no decorrer da vida reprodutiva de um
organismo individual. Na biologia, como já fizemos notar, a mudança evolucionista dá-se através de mutações aleatórias e combinações mendelianas de
diferentes conjuntos de genes parentais. Em contraste, no mundo social, os
hábitos e rotinas que o indivíduo adquire podem mudar ao longo do tempo.
Além disso, as novas características podem muitas vezes ser facilmente trans-
ACÇÃO E INSTITUIÇÕES
145
mitidas, da mesma forma que os aspectos mais antigos do comportamento
habitual. Assim, ao contrário da biologia darwiniana, é possível a herança de
características adquiridas.
Portanto, a verdadeira analogia da evolução social e económica com a ciência
da biologia não é a obra de Charles Darwin mas a noção mais antiga de Jean
Baptiste Lamarck. Dizia ele que as mutações se dão porque um organismo
transmite adaptações recém-adquiridas de comportamento aos seus descendentes, por hereditariedade. A teoria lamarckiana deixou de ser adoptada em
biologia porque não chega a explicar ou a provar a existência de um mecanismo
através do qual as características adquiridas podem ser transmitidas à descendência. No entanto, em contrapartida, no mundo social essas características
adquiridas podem ser herdadas. Assim, em certos sentidos, a teoria lamarckiana aplica-se à evolução social e económica. Por ironia, só abandonando a teoria
neoclássica é possível conferir um lugar adequado, na economia, a uma analogia evolucionista aceitável.
Ao contrário da biologia darwianiana ortodoxa, a evolução económica nem
sempre é gradualista e são possíveis "mutações" rápidas à medida que transformações rápidas da cultura social, económica e tecnológica conduzem a
rápidas aquisições de competências e novas rotinas. Foi desta maneira, por
exemplo, que muitos países menos desenvolvidos adoptaram, e às vezes até
aplicaram com mais proveito, a tecnologia moderna. Além disso, é possível que
certas formas de comportamento de rotina sejam abandonadas, quando fica
abalada a confiança na sua eficácia ou valor, em razão de mudanças nas
condições ou expectativas económicas. A evolução económica não se processa
em termos darwinianos clássicos, em que as mudanças lentas se dão ao longo
de gerações e a forma típica ou "de equilíbrio" de um organismo muda gradualmente ao longo do tempo. Em vez disso, como já se disse, pode processar-se
numa sucessão de períodos de estabilidade e crise, de equilíbrio aparente e de
instabilidade cumulativa.
E evidente que esta perspectiva evolucionista implica uma ruptura com o
dualismo convencional já analisado, em que os agentes do presente são positivos e livres e as rotinas e constrangimentos simplesmente uma restrição negativa sobre a sua liberdade. Em contraste, as rotinas desempenham um papel
positivo, e também negativo, no sentido em que transmitem competências e
outra informação comportamental de um agente ou instituição para o seguinte.
Além disso, e para repetir, a acção no presente tem a função potencial de
estabelecer ou reforçar a rotina futura: assim, aquilo que é aparentemente "livre"
pode actuar como uma rigidez ou restrição no futuro, e o que é aparentemente
ossificado e inflexível pode proporcionar importante informação comportamental no presente. Uma das características da acção humana é a consequência
esperada de um acto orientado por um propósito. Mas também, através da
correia de transmissão da rotina e da interacção com os outros num mundo que
é inerentemente incerto, há| importantes consequências inesperadas.13