O anticomunismo e os órgãos de informação da ditadura

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O anticomunismo e os órgãos de informação da ditadura
contemporanea Historia y problemas del siglo XX | Año 3, Volumen 3, 2012, ISSN: 1688-7638
Dossier | 133
O anticomunismo e os órgãos de informação
da ditadura nas universidades brasileiras
Rodrigo Patto Sá Motta1
Resumen
Abstract
A proposta do artigo é investigar a influência da tradição anticomunista no golpe
de 1964 e nas políticas adotadas pelo regime
militar brasileiro. Na introdução se apresentam as bases de tal tradição, que remontam aos
anos de 1930, e o modo como ela foi apropriada nos anos 1960. A parte principal do texto é
dedicada a analisar a atuação dos órgãos de informação criados pela ditadura, sobretudo no
que tange às tentativas de controle dos espaços
universitários. Nesta análise, confere-se ênfase
à influência dos valores anticomunistas sobre
as ações dos aparatos de informação atuantes
nas Universidades, em sua luta para derrotar
a esquerda.
The article aims at researching brazilian
anticommunist tradition influence in the 1964
coup and also in the policies adopted by the
military regime. In the first part the basis of
such tradition that began in the 1930’s are
explained and furthermore it is analysed the
ways of it’s appropriation in the sixties. The
main part of the text is dedicated to analyse the
actions of the information agencies created by
the dictatorship in it`s attempt to control the
universities. The text emphasizes the influence
of anticommunist ideas in such actions, in the
context of the information apparatus struggles
against the left wing enemies.
Palavras chave: Ditadura, anticomunismo,
agências de informação
1
Key words: Dictatorship, anticommunism,
information agencies
Departamento de História, Universidade Federal de Minas Gerais (ufmg), Grupo de Pesquisa História
Política-Culturas Políticas na História (http://www.fafich.ufmg.br/hcpcph/).
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Quando o tema do anticomunismo vem à tona no debate político ou acadêmico, é comum
associa-lo à eclosão da Guerra Fria e à influência da política externa norte-americana. Nessa
vertente, os eua são vistos como responsáveis pela introdução da questão anticomunista e por
manipularem os latino-americanos para obter seu apoio nas disputas da Guerra Fria.2 De fato,
a entrada dos Estados Unidos no cenário mundial como potência hegemônica trouxe impactos
importantes na percepção do “perigo comunista” e reforçou a matriz liberal do anticomunismo.
Entretanto, antes da Guerra Fria já havia grupos militantes da luta contra o comunismo atuando
em vários países, entre eles o Brasil. O objetivo deste artigo é mostrar que o anticomunismo, uma
das principais motivações dos militares golpistas que derrubaram o governo de João Goulart em
1964, se inspirou em uma tradição que remontava à década de 1930.
Outro propósito é analisar a importância dos valores anticomunistas nas ações do aparato
repressivo e de informações construído pelos militares no sistema universitário. O anticomunismo forneceu aos agentes de repressão uma razão de ser e um sentido de missão, ao apontar o
alvo principal que deveriam mirar. Assim, eles atuaram na tentativa de impedir a contratação de
professores marxistas, bloquear a circulação de textos e ideias socialistas e também evitar os contatos culturais com países do bloco soviético. Mas o trabalho desses agentes encontrava desafios
e limites na própria complexidade do regime militar brasileiro, que tinha formato modernizador-autoritário. De um lado, os líderes do regime desejavam combater a esquerda, porém, de outro,
queriam modernizar as instituições acadêmicas e universitárias que receberam mais investimentos financeiros, verbas para pesquisa e pós-graduação e tiveram suas instalações ampliadas para
comportar o aumento no número de estudantes, que foram multiplicados em dez vezes durantes
os vintes anos do poder militar (de 140.000 para 1.400.000 universitários entre 1964 e 1984).
Assim, os agentes repressivos tinham que controlar instituições universitárias que passavam por
crescimento frenético, com a entrada de massas de novos estudantes, muitos deles receptivos a
ideias radicais. Por vezes, as administrações universitárias contrataram professores com valores de
esquerda, implicando desafios aos projetos de “saneamento ideológico”. Outra dificuldade para os
combatentes anticomunistas foi a estratégia dúbia do governo militar diante dos países socialistas,
como se verá a seguir.
Anticomunismo não significa apenas um conjunto de opiniões divergentes em relação a um
projeto político, mas um movimento, uma causa que mobilizou aderentes fervorosos, crentes
que a salvação do país (e do mundo) dependia da repressão ao comunismo. Não se pode dizer
que o anticomunismo seja uma doutrina, pois ele contém matrizes ideológicas diferentes, principalmente no caso do Brasil (catolicismo, nacionalismo e liberalismo), mas as representações
nele inspiradas originaram uma tradição peculiar. Esses valores já circulavam no final do século
xix, quando foram utilizados contra líderes pioneiros da revolução social, mas se tornaram mais
fortes após a Revolução de 1917, que resultou na associação indelével de comunismo com o
bolchevismo, tornados sinônimos a partir daí. O experimento dos soviets foi representado como
a concretização dos ideais socialistas, o que permitia caracterizar o comunismo como uma utopia realizável. Como no mesmo ano de 1917 ocorreram greves importantes no Rio de Janeiro
2
“Criou-se uma ameaça tanto para os Estados Unidos quanto para a América Latina originária de um movimento político «desviante» - «a ameaça comunista». Esta, por sua vez, justificou a ajuda externa especializada
em segurança nacional para combatê-la. Em outras palavras, os Estados Unidos criaram os argumentos para
justificar a existência desse perigo específico e, a seguir, mostraram-se dispostos, mediante pagamento, a
proteger os países ameaçados através da ajuda policial e também militar”. Cf. Huggins, Martha K. Polícia e
política. Relações Estados Unidos/América Latina (São Paulo: Cortez, 1998), 232.
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e em São Paulo, a sensação de “perigo vermelho” iminente em terras brasileiras tornou-se mais
verossímil.
Não obstante, somente nos anos 1930 a presença do comunismo no cenário público tornou-se
mais visível, quando o pequeno Partido Comunista criado em 1922 passou a ocupar espaço mais
significativo, com a adesão de intelectuais, militares (entre eles o mítico Luiz Carlos Prestes) e o
aumento no recrutamento de trabalhadores. Em 1935 os comunistas, que compunham a alma da
Aliança Nacional Libertadora, entidade organizada no formato das frentes populares, lideraram
uma tentativa de insurreição armada, rapidamente destruída pelas forças da ordem. Tratou-se de
levante essencialmente militar que envolveu quartéis em Natal (Rio Grande do Norte), Recife
(Pernambuco) e Rio de Janeiro (então a capital federal), mas o plano dos revolucionários era armar
brigadas populares que serviriam como forças auxiliares. A insurreição de 1935, que nas versões
oficiais foi batizada pejorativamente de Intentona Comunista (intento louco, assassino) provocou
importantes desdobramentos políticos. O presidente Getúlio Vargas, então enfraquecido e sob
muitas críticas, aproveitou-se do evento para fortalecer seu poder e editar medidas excepcionais,
como a decretação do Estado de Guerra e algumas emendas à Constituição. Formou-se uma
“União Sagrada” reunindo grupos conservadores e liberais em torno de Vargas, em nome da defesa da ordem e do combate ao comunismo.
O novo contexto político, que abriu caminho para o golpe autoritário de novembro de 1937,
quando Vargas tornou-se ditador, começou a ser desenhado sob a fumaça dos combates de 1935.
O impacto da chamada Intentona Comunista foi enorme, notadamente entre as lideranças católicas e os militares. Afinal, não era rebelião comum, mas tentativa dos comunistas de tomarem
o poder que, caso bem sucedida, poderia ter provocado grandes transformações na organização
social brasileira. A comoção tornou-se maior quando a imprensa divulgou que estrangeiros ligados à Internacional Comunista participaram da frustrada tentativa revolucionária, o que serviu de
confirmação ao argumento de se tratar de ameaça à integridade da pátria.
Os eventos de novembro de 1935 foram marcantes na construção da tradição anticomunista,
na medida em que foram apropriados para consolidar as representações do comunismo como fenômeno negativo. O episódio foi mitificado e originou a formação de verdadeira legenda negra em
torno da Intentona Comunista, reproduzida ao longo dos anos. O levante foi representado como
exemplo de manifestação das características maléficas atribuídas aos revolucionários que, segundo as versões anticomunistas, teriam cometido vários crimes ignóbeis durante os quatro dias da
revolta (estupros, assassinatos a sangue frio, roubo), considerados uma decorrência necessária dos
ensinamentos da “ideologia malsã”.
As representações anticomunistas tiveram recepção particularmente forte entre os militares,
graças a argumentos peculiares desenvolvidos nas representações sobre 1935. Argumentou-se
que o levante foi uma traição às Forças Armadas, já que os líderes da insurreição eram oficiais do
Exército e voltaram suas armas contra companheiros de farda. Além disso, foi construída a versão
que os oficiais comunistas mataram colegas enquanto eles dormiam indefesos em suas camas,
uma evidência da sua vilania e covardia, tema que seria repetido pelas décadas seguintes. Por fim,
os discursos anticomunistas sobre 1935 denunciaram os oficiais rebeldes por traição ao Brasil, ao
acusarem-nos de agir em favor de potência estrangeira (a urss) e contrariamente ao voto sagrado militar de defender a pátria. Para enfatizar a maldade atribuída aos comunistas, investiu-se
na construção de heróis militares que lutaram e morreram nos combates, aos quais se dedicou
um monumento inaugurado em 1940. O dia 27 de novembro entrou para o calendário cívico
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do Estado, mas principalmente das Forças Armadas, comemorado como episódio de vitória da
pátria contra a ameaça comunista.
Portanto, o episódio de 1935 serviu como confirmação da existência do “perigo vermelho” no
Brasil e prestou-se à construção de narrativa mítica ao representar os males associados ao comunismo.3 Quando os ventos da Guerra Fria começaram a soprar por esses lados, a partir do final
dos anos 1940, eles já encontraram tradição anticomunista enraizada, que se fortaleceu e renovou
sob a influência do confronto bipolar. A cultura da Guerra Fria trouxe temas novos, como a
liderança dos eua na luta anticomunista (embora muitos líderes da direita fascista e católica desconfiassem dos norte-americanos), e fortaleceu a crença nos valores liberais como barreira contra
a esquerda. Porém, as bases da tradição anticomunista tinham sido lançadas antes.
Pode-se dizer que no Brasil houve 3 grandes “ondas” anticomunistas: em 1935-37, em 194648 e em 1961-64. O primeiro contexto já foi mencionado e culminou no “Estado Novo” de
Getúlio Vargas, regime ditatorial que se inspirou em elementos fascistas, mas manteve características heterogêneas que, a propósito, permitiram a reciclagem de Vargas posteriormente como
líder popular. A segunda “onda” ocorreu durante a redemocratização posterior à Segunda Guerra,
quando o Partido Comunista foi legalizado e tornou-se força política importante nos centros
urbanos, com votação expressiva e influência preponderante no movimento sindical e nos meios
intelectuais. Os grupos de direita reagiram atemorizados e engendraram forte campanha anticomunista, que tornou o pcb ilegal e levou à cassação dos mandatos parlamentares eleitos pelo
partido (em 1947 e 1948). A repressão ao pcb acalmou um pouco os temores da direita, mas
vários grupos anticomunistas continuaram ativos nos anos 1950, inclusive porque percebiam a
ameaça como combate mundial em que o Brasil era apenas uma das frentes de batalha.
No início dos anos 1960, a nova conjuntura política atiçou mais uma vez a polarização esquerda-direita, que desta vez culminaria em golpe militar. Assim como em outros países, notadamente
da América Latina, o Brasil viu surgir uma geração radical influenciada pela Revolução Cubana
e as lutas terceiro-mundistas, e também pela percepção dos problemas sociais internos, como
demandas por reformas agrária e educacional. A influência da esquerda aumentou no período o
que beneficiou o Partido Comunista, mas, também deu origem a novas organizações socialistas,
como o grupo cristão Ação Popular (ap) e o grupo marxista Política Operária (polop). Nesse
quadro, um evento aparentemente fortuito contribuiu muito para o incremento do poder dos
grupos de esquerda. Com a renúncia de Jânio Quadros e a ascensão do Vice-Presidente João
Goulart ao governo em setembro de 1961, a esquerda brasileira teve sua primeira oportunidade
para influenciar os rumos do país.
Embora fosse um rico estancieiro gaúcho, Goulart era político trabalhista sensível aos argumentos de esquerda, principalmente às demandas dos líderes sindicais. Durante seu governo
as esquerdas tornaram-se mais ativas no cenário público, com aumento de greves, ocupações de
terras e mobilizações estudantis, o que levou muitos a imaginar-se às portas da revolução social.
No campo da direita, previsivelmente, também foi forte a sensação que a esquerda estava no
poder, o que provocou nova onda de mobilizações contra o comunismo. Em parte, o recurso
à tradição anticomunista era estratégia oportunista para facilitar o proselitismo da campanha
contra Goulart, mas a questão não pode ser resumida à manipulação, pois os comunistas eram
3
Motta, Rodrigo Patto Sá, Em guarda contra o perigo vermelho. O anticomunismo no Brasil: 1917-1964 (São
Paulo: Perspectiva-fapesp, 2002). Sobre a insurreição de 1935 cf. Vianna, Marly de Almeida Gomes,
Revolucionários de 35: sonho e realidade (São Paulo: Companhia das Letras, 1992).
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percebidos de fato como os líderes mais influentes à esquerda. Outras questões contribuíram
para o golpe, como a crise econômica, que se manifestou na inflação descontrolada e na redução
das taxas de crescimento, e também as denúncias de corrupção envolvendo aliados do governo.
Entretanto, a crença na “ameaça comunista” foi o tema mais importante na mobilização golpista,
a exemplo das “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” que levaram milhares de pessoas
às ruas com cartazes e slogans anticomunistas, eventos significativos para demonstrar o apoio de
parte da sociedade à derrubada do governo.4
O regime militar e as agências de informação nas universidades
O anticomunismo foi particularmente importante para levar à ação em 1964 os grandes protagonistas do evento, os militares. Embora o apoio civil tenha sido fundamental, eles foram os
agentes centrais do golpe, com o argumento que era seu dever preservar a pátria do perigo, tal
como teriam feito em 1935. Outros conceitos foram mobilizados pelos militares no contexto do
golpe, mas eles tinham como ponto comum a “ameaça vermelha”. Assim, por exemplo, quando
eles falavam em defender a Segurança Nacional ou enfrentar a Guerra Revolucionária a principal ameaça respondia pelo nome de comunismo. Significativas para o sucesso da mobilização
golpista, as representações contra-revolucionárias foram também inspiradoras para algumas das
políticas adotadas pela ditadura. Isso se aplica não apenas ao terreno da segurança e dos expurgos,
mas também ao plano cultural e educacional, que os agentes do regime militar imaginavam particularmente suscetível às ações comunistas. Essa foi a principal motivação para criar a Educação
Moral e Cívica, um conjunto de disciplinas escolares implantadas em todos os níveis de ensino,
inclusive nas Universidades, a partir de 1969. Por razões semelhantes foi estabelecido o Projeto
Rondon, em 1967, que levava estudantes universitários dos centros urbanos para atuarem em projetos de extensão em áreas longínquas e fronteiriças, no Norte e no Centro-oeste. Nos dois casos,
a intenção era inculcar valores patrióticos entre os jovens e afastá-los da influência da esquerda.
No campo das iniciativas repressivas, o novo regime construiu grande aparato de segurança e
informações. Órgãos tradicionais de polícia política que eram vinculados aos governos estaduais
(os Departamentos de Ordem Política e Social) desde os anos 1920 foram ampliados; a Polícia
Federal foi reorganizada, tornando-se pela primeira vez capaz de ações nacionais; e várias agências militares foram criadas, como o Serviço Nacional de Informações, o Centro de Informações
do Exército, o Centro de Informações da Aeronáutica (a Marinha já tinha o seu) e o sistema
doi-codi (Destacamento de Operações Internas e Centro de Operações de Defesa Interna).
Além disso, em 1967 foram criadas Divisões de Segurança e Informações (dsi) nos Ministérios
civis, com base em estruturas pré-existentes.5 A partir de 1970, a dsi do Ministério da Educação
e Cultura começou a organizar Assessorias de Segurança e Informações (asi) nas Universidades
federais (e algumas estaduais), que na época eram aproximadamente 30. Esse sistema de informações, que chegou a compor uma rede enorme, com milhares de agentes, tinha o papel de vigiar
os inimigos e adversários do regime militar, particularmente a esquerda e os comunistas. Vamos
4
5
Presot, Aline, “Celebrando a «Revolução»: as Marchas da Família com Deus pela Liberdade e o Golpe de
1964”, in Denise Rollemberg y Samantha Quadrat (Organizadoras) A construção social dos regimes autoritários Legitimidade, consenso e consentimento no século xx. Brasil e América Latina (Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010), 71-96.
Para a criação das dsi cf. Carlos Fico, Como eles agiam. Os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia
política (Rio de Janeiro: Record, 2001).
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nos ater, neste artigo, à atuação das agências de informação no campo universitário, que passou
por notável expansão durante a ditadura.
A documentação produzida por tais agências6, previsivelmente, revela a motivação anticomunista de muitas atividades dos órgãos de informação, quase uma obsessão. Enxergavam comunistas
por toda parte e qualquer movimento de contestação era atribuído aos desígnios do “Movimento
Comunista Internacional”, expressão que originou uma das siglas tão ao gosto da comunidade de
informações, mci. Mesmo com os expurgos de 1964 e 1969, quando ocorreu a maior parte das
demissões e aposentadorias de servidores públicos, entre eles os docentes, o ânimo vigilante dos
membros da comunidade de informações não arrefeceu.
Essa insistência na “tecla” do anticomunismo pode gerar estranhamento, pois, além da repressão ter sido forte o suficiente para desbaratar os grupos revolucionários, nos anos 1970 os Partidos
Comunistas estavam em declínio, superados por novos grupos e lideranças de esquerda. Pode-se
dizer que, nesse momento, como em épocas anteriores, vigorou estratégia de industrialização do
anticomunismo, ou seja, de mobilização oportunista do medo ao “perigo vermelho”. Entretanto,
a motivação oportunista não é suficiente como explicação, pois em muitas ações e discursos os
agentes da repressão mostravam-se convictos, e alguns até hoje permanecem ativos em sua luta.
Para compreender esse quadro deve se levar em conta que o anticomunismo forneceu um ethos
combatente aos integrantes das agências de repressão e informação, uma razão de ser que justificava sua existência e missão. Sobretudo, ele fornecia a imagem do inimigo a vigiar e reprimir.
Por outro lado, se é verdade que as organizações comunistas tradicionais estavam em declínio,
notadamente o pcb que, nessa época, de maneira irônica, começou a ser chamado “partidão”,
o mesmo não se pode dizer das ideias socialistas. Um arguto observador contemporâneo do
ambiente cultural e acadêmico afirmou, em 1970, que a influência da esquerda era grande e havia aumentado depois de 1964, apesar da vitória da direita.7 A hipótese levantada por Roberto
Schwarz estava correta no que toca aos jovens universitários. Os partidos comunistas tradicionais
estavam em crise, mas isso não significava perda de influência dos valores socialistas, ao contrário,
parte importante da juventude intelectualizada sentia-se atraída por eles, notadamente conceitos marxistas, ainda que os apropriassem de maneira difusa. Por isso, observando a situação de
acordo com a perspectiva dos militares, eles tinham alguma razão na sua ansiedade em relação
à influência da esquerda nas Universidades, mesmo no contexto da repressão, não obstante sua
compreensão de que tudo derivava das ações do mci fosse equivocada e, por vezes, ridícula.
Armado desse ânimo combatente, o aparato de segurança e informações manteve pressão sobre
os Reitores para expurgar os subversivos,8 inundou as asi universitárias com análises sobre supostos planos do movimento comunista e, sobretudo, com propaganda de natureza anticomunista.
6
7
8
Desde o início dos anos 1990 o Estado brasileiro vem abrindo à consulta pública os documentos dos órgãos de informação e repressão, com políticas de acesso por vezes erráticas. Os acervos mais significativos
encontram-se no Arquivo Nacional e em alguns Arquivos estaduais, entre eles São Paulo, Rio de Janeiro e
Minas Gerais. Para este trabalho foram usados também acervos das ASI universitárias que se encontram na
Universidade Federal de Minas Gerais e na Universidade de Brasília.
Roberto Schwarz, “Cultura e política, 1964-1969”, in O Pai de Família e outros estudos (São Paulo: Companhia
das Letras, [1978] 2008), 71.
Às vezes até ser filho de comunista era proibido. Em 15/02/78, a dsi/mec comunicou à Universidade de
Brasília (unb) que um aluno da Universidade Federal do Paraná, “filho do comunista Oto Bracarense Costa”,
havia pedido transferência para aquela Universidade. Em resposta, a asi/unb comunicou que a transferência
foi indeferida pela Universidade. sb 10.1.1–07. Arquivo asi/unb, cedoc/unb.
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De acordo com os textos produzidos pela “comunidade de informações” era preciso manter-se
alerta, pois os comunistas seguiam ameaçando a civilização cristã e o país. Em meio a esse copioso
material, constituído por brochuras, panfletos, livros e cartazes foram selecionados alguns exemplos, notadamente textos que têm a singularidade de abordar a “infiltração” comunista nos meios
estudantis pelo prisma dos militares.
O primeiro caso é um texto do Coronel Rubens Resstel publicado originalmente no jornal O
Estado de São Paulo e enviado às asi para divulgação nas Universidades, como estratégia de contrapropaganda. Sob o título “A infiltração comunista nos meios educacionais”, o texto de Resstel
denuncia as estratégias dos subversivos para “corromper” a juventude. Corrupção é termo adequado para entender o ponto de vista do Coronel, pois ele afirma que os comunistas lançavam mão
de meios imorais como drogas e mulheres sedutoras para atrair jovens ingênuos para seu lado.
De acordo com Resstel, os comunistas teriam mudado o eixo de suas ações do operariado para
os meios estudantis, por entender que nesse segmento o proselitismo revolucionário encontraria
terreno mais favorável. Além disso, eles procurariam concentrar seus recursos preferencialmente
nas Faculdades de Filosofia, devido ao potencial disseminador dessas instituições, responsáveis
por formar os futuros professores.9
O segundo texto é particularmente interessante porque seu autor era influente dirigente universitário: Zeferino Vaz. Ele integrava o grupo de intelectuais que apoiou o golpe de 1964 e,
nessa condição, foi nomeado Reitor da UnB e depois da Universidade de Campinas (Unicamp),
instituição que ele ajudou a fundar em 1966 e que dirigiu por muitos anos. O próprio Vaz, como
dirigente máximo da Unicamp enviou o texto aos colegas Reitores, em janeiro de 1971.10 A dsi/
mec gostou tanto da colaboração que distribuiu nova versão para os dirigentes universitários em
julho de 1972, além de solicitar ao Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (crub) que
Vaz fosse convidado a expor suas reflexões na reunião seguinte do órgão.11
Intitulado “Contribuição ao conhecimento da Guerra Revolucionária”, o texto de Zeferino
Vaz utiliza linguagem pretensamente científica para análise inusitada. Pode-se dizer tudo do
trabalho, menos que falte originalidade a sua abordagem do tradicional trote dos estudantes, a
“calourada”.12 Ele diz, entre outras coisas, que os comunistas usavam técnicas pavlovianas para
condicionar os estudantes, e isso “explica a facilidade e a rapidez com que se mobilizam milhares de estudantes para passeatas de protesto”. De acordo com Vaz, os dirigentes da Guerra
Revolucionária se utilizavam do trote para recrutar novos militantes, além de arrecadar dinheiro
para financiar a guerrilha. Eis a conclusão do “estudo”: “Verifica-se, pois, que o trote não é momento na vida universitária; transformou-se em um processo, calculadamente desenvolvido, com
fins definidos, dentro do esquema global da ação subversiva”.
Outro exemplo: em outubro de 1972, a dsi/mec enviou para as asi universitárias um texto
intitulado Movimento Comunista Internacional. Tratava-se de documento analítico para uso
interno dos agentes de informação, classificado na categoria “secreto”, e seu propósito era informar sobre as ações do inimigo. Baseado, supostamente, em investigação de debates realizados
9
Caixa 15, maço 14. Arquivo aesi/ufmg. (Artigo publicado em O Estado de São Paulo, 19/11/70).
10 Caixa 16, maço s/n, 20/01/1971. Arquivo aesi/ufmg.
11 Caixa 18, maço 13, 13/07/72. Arquivo aesi/ufmg.
12 A calourada é tradicional entre estudantes universitários brasileiros e consiste em uma espécie de ritual de
iniciação para os novos universitários, que são submetidos a brincadeiras (raspagem de cabelo, pintura do
corpo) ou obrigados a se submeter a situações ridículas (andar com cartazes pendurados ao pescoço).
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em Congresso do Partido Comunista da União Soviética, o texto aponta as estratégias dos revolucionários na América Latina, que tiveram vitória importante com a ascensão de Allende no
Chile. No caso do Brasil, que seria uma das prioridades do mci, o texto denunciava a estratégia
soviética de atrapalhar o sucesso dos governos originados do movimento de 31 de março de 1964.
Curiosamente, apesar de apontar perigos e estimular o medo, a conclusão é otimista ao dizer que
os comunistas estavam muito divididos no Brasil (linhas russa, comunista e cubana), e que as
ações repressivas e o sucesso econômico do governo militar vinham minando suas possibilidades
de sucesso. Nota-se aspecto paradoxal, quase contraditório: afirmavam a unidade das ações comunistas, daí insistirem na sigla mci, porém, ao mesmo tempo, percebiam as divisões entre os grupos
de esquerda, cada um deles se imaginando capaz de liderar a revolução. Entretanto, na ótica dos
órgãos de informação, as divergências entre as diferentes facções comunistas eram superficiais e
conjunturais, relacionadas às diversas estratégias de chegada ao poder. No fundo, acreditavam, todos os grupos comunistas acalentavam o mesmo projeto, inspirado no modelo soviético de 1917,
e convergiriam no caso da vitória de algum deles.13
No mesmo ano de 1972, os órgãos de informação começaram a divulgar que o mci estava
orientando o Movimento Comunista Brasileiro (outra sigla, o mcb) a reorganizar o movimento
estudantil, desorganizado desde 1969. Como os órgãos de informação monitoravam os Diretórios
estudantis permitidos pelas leis do regime militar, e estava proibida a volta de entidades banidas,
como a União Nacional dos Estudantes, a nova estratégia seria burlar a vigilância usando encontros estudantis das diferentes áreas de saber para fazer subversão e distribuir publicações ilegais.
Os agentes de informação das Universidades deveriam estar atentos, sobretudo, porque fazia
parte da estratégia do mci usar meios moralmente condenáveis que “subjugam e condicionam os
jovens”. Os comunistas disseminariam o uso de entorpecentes, a licenciosidade moral e o desprezo pelos valores tradicionais e pela História, tudo para destruir as estruturas morais da ordem
social e conseguir levar os jovens à subversão. Contra esse inimigo “insidioso”, cujas ações tinham
escala global, a dsi/mec recomendava: “somos compelidos a aplicar um tratamento total”.14
Devido à percepção do comunismo como ameaça internacional, uma das obsessões era monitorar a influência dos países do bloco socialista nas universidades. Desde 1964, o novo regime
vinha reduzindo os laços com os países socialistas que haviam sido estabelecidos no governo de
João Goulart. Nos anos anteriores à intervenção militar foram criados órgãos culturais bilaterais, como o Instituto Cultural Brasil-urss (icbus), e firmados acordos para envio de estudantes
brasileiros à União Soviética. Entretanto, para desagrado dos militares radicais e seus aliados, os
governos saídos do movimento de 1964 preferiram não romper totalmente os laços diplomáticos e culturais com a urss. O primeiro governo militar, chefiado pelo General Castelo Branco
rompeu relações diplomáticas com Cuba, entrou em choque com a China ao prender e julgar
os membros de missão comercial que estava no Brasil no momento do golpe15 e enviou tropas
para participar da intervenção norte-americana na República Dominicana. Porém, a orientação
diplomática frente aos países socialistas combinou convicção anticomunista e pragmatismo, em
13Cf. sb 5.2.1-16. Arquivo asi/unb, cedoc/unb.
14Cf. sb 8.3.2-15. Arquivo asi/unb, cedoc/unb. É interessante notar que alguns grupos de esquerda realmente
utilizaram encontros de área para se reorganizar, mas a leitura de que o mci inspirava tais ações é puro exagero.
15 O argumento é que Cuba vinha interferindo nos assuntos internos do Brasil e outros países latino-americanos, notadamente a Venezuela, ao fomentar a ação de grupos armados. Sobre a crise relacionada à prisão da
missão chinesa cf. Rodrigo Patto Sá Motta, “O perigo é vermelho e vem de fora: o Brasil e a urss”, Locus, 13
(2007); Juiz de Fora, ufjf (2007), 227-247.
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arranjo complexo e por vezes tenso. Atitudes baseadas apenas no anticomunismo marcaram as
relações com Cuba e a China, mas, no que toca à Europa oriental e à urss os compromissos ideológicos foram atenuados por interesses comerciais e diplomáticos.
Em 1965, o Brasil exportou cerca de 90 milhões de dólares para a Europa oriental, com um
superávit de aproximadamente 20% desse valor. Os países socialistas estavam longe de constituir-se nos maiores parceiros comerciais do Brasil, mas também não era montante a ser desprezado.
Por isso a decisão de Castelo Branco de enviar o Ministro Roberto Campos a Moscou, em
setembro de 1965,16 demonstração que seu governo desejava manter laços econômicos normais
com a área de influência soviética. A influência da União Soviética em certas regiões do mundo,
notadamente entre os países “não alinhados”, era tão ou mais importante que os mercados da
Europa oriental. Manter relações corretas com os soviéticos era estratégico em vista da inserção
internacional do Brasil e o contrário, ou seja, o rompimento com a urss poderia trazer dificuldades diplomáticas e comerciais com alguns países do terceiro mundo.
Daí uma situação curiosa, e desagradável para os setores mais intransigentes da direita: as
atividades culturais dos soviéticos eram monitoradas e desaconselhadas, mas não inteiramente
proibidas. Mostras de cultura (cinema, literatura etc.) dos países socialistas continuaram a ocorrer esporadicamente, assim como permaneceram funcionando algumas entidades bilaterais de
natureza cultural. Embora sempre vigiados pelo Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty)
e os órgãos de informação, estudantes brasileiros continuaram seguindo para países do bloco socialista. Segundo estimativas do Itamaraty, em 1966 havia cerca de 200 brasileiros estudando em
países socialistas, 80 deles na urss, e outros seguiriam o mesmo caminho nos anos seguintes.17
Posteriormente, parte deles começou a voltar ao Brasil, trazendo diplomas soviéticos e dos outros
países, tornando-se fonte de dor de cabeça para os órgãos de informação.
As agências de repressão percebiam as razões pragmáticas que fundamentavam a ambiguidade em relação à urss e a atitude de low profile da diplomacia brasileira em direção ao leste,
embora alguns mais imaginativos enxergassem aí também o dedo da “infiltração comunista”.
Ainda assim, pressionaram o governo para, pelo menos, restringir os contatos na área cultural. Passo importante nessa direção foi dado em 1970, por meio de estudo da Secretaria Geral
do Conselho de Segurança Nacional (csn) que, encaminhado ao Presidente Emílio G. Médici
tornou-se política oficial do governo. Em março de 1970, a exposição de motivos No8 foi enviada
ao Presidente da República, assinada pelo General João Batista Figueiredo, Secretário-Geral do
csn e Chefe do Gabinete Militar.
Provocada por notícias da imprensa sobre a partida de estudantes brasileiros para a urss, a
Secretaria Geral do csn resolveu estudar o assunto, com ajuda do sni e do Itamaraty. Incomodava
o fato de tantos estudantes estarem se dirigindo para o bloco socialista quando o entendimento
oficial, inclusive no Itamaraty, era que o aumento de laços culturais com tais países não interessava
ao Brasil. Além do envio de estudantes por meio do icbus, que poderiam voltar como agentes do
“comunismo internacional” preocupava também o fato de algumas universidades estarem fazendo
16 Naturalmente, a decisão de enviar missão oficial à urss sofreu oposição da “linha-dura”. Cf. Roberto Campos,
A lanterna na popa: memórias 2 (Rio de Janeiro: Topbooks, 1994), 765-773.
17 Dados retirados de relatório da Embaixada dos eua no Brasil. RG 59, caixa 1944, pasta 4. National Archives
and Records Administration, College Park, md. Em relatório elaborado em 1970, com auxílio da Embaixada
brasileira em Moscou, o sni estimou em 100 o total de estudantes brasileiros na urss. Caixa 21/A, Fundo
csn, an-coreg (Arquivo Nacional, Coordenação Regional de Brasília).
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convênios por iniciativa própria, na ausência de proibição oficial. Um desses casos foi mencionado na exposição de motivos do csn: a coppe/ufrj havia contratado professores da Universidade
de Moscou e pretendia ampliar o convênio para trazer mais cientistas russos. Preocupado, o
Secretário-Geral do csn propôs medidas para evitar que os governos comunistas utilizassem
“acordos e manifestações culturais como instrumentos de exportação e penetração ideológica”.
Ele sugeriu proibir o funcionamento de entidades como o icbus, mesmo que fossem de natureza
privada; impedir, ou pelo menos reduzir a ida de brasileiros para estudarem na urss e países do
bloco; proibir convênios entre universidades e escolas brasileiras com similares do exterior, sem
prévia autorização do mec. Em decorrência da última medida, o General Figueiredo recomendou
que se proibisse a coppe/ufrj de renovar o acordo com a Universidade de Moscou, após o término dos contratos em vigor com os professores russos.18
A exposição de motivos do csn tornou-se política oficial ou oficiosa do governo e algumas
das medidas sugeridas por Figueiredo foram implantadas. No caso da coppe, o acordo que mantinha quatro professores soviéticos nos seus quadros expirou em 1971 e não foi renovado, apesar
dos esforços do líder da instituição, professor Alberto Coimbra, para convencer as autoridades
da inexistência de riscos políticos e das vantagens acadêmicas, pois se tratava de pesquisadores
de primeira linha. Ele apelou ao Secretário-Geral do Ministério da Educação, um Coronel do
Exército, mas foi informado que a determinação contrária vinha de instâncias superiores e nada
poderia ser feito.19
Outro efeito imediato da iniciativa do csn: no início de 1971, as Universidades foram avisadas
pela dsi/mec, por ordem do Ministro da Educação, e em caráter secreto, que estava proibido o
funcionamento de “entidades que objetivam o estreitamento de laços culturais com países de regime socialista totalitário”. O texto reproduzia praticamente na íntegra a linguagem da Secretaria
Geral do csn, avisando ainda que estava proibido o “aliciamento” de estudantes brasileiros para
estudarem na urss. No mesmo documento, outra determinação teria maiores efeitos práticos nas
Universidades. Os acordos com instituições estrangeiras só seriam permitidos mediante consulta
prévia ao Ministério da Educação.20 O objetivo era dificultar os contatos com a área socialista, porém, os termos foram genéricos para evitar problemas diplomáticos, como a acusação de práticas
discriminatórias contra países com quem o Brasil mantinha relações normais. Seja por concordarem com a medida ou por desejarem evitar problemas, as autoridades universitárias obedeceram.
Alguns Reitores avisaram os Diretores de Faculdades e Institutos sobre as novas determinações,
advertindo que deveriam dificultar contatos acadêmicos com países socialistas e a urss, por ordens superiores.21
Por causa dos melindres diplomáticos também não houve medidas explícitas de proibição
do icbus, que era entidade privada sem vínculos oficiais com a urss, e tampouco se proibiu o
envio de estudantes brasileiros para países socialistas. O número pode ter diminuído por causa
das pressões dos órgãos de informação, mas o fluxo não foi interrompido. Em compensação, as
agências repressivas aumentaram a pressão sobre toda atividade considerada suscetível de facilitar
18 Caixas 74/B e 21/A, Fundo csn, an-coreg a coppe/ufrj (Coordenação dos Programas de Pós-Graduação
de Engenharia, Universidade Federal do Rio de Janeiro) foi criada em 1964 como centro de pesquisa e pósgraduação na área de engenharia e tecnologia.
19 Giulio Massarani et al, Alberto Coimbra e a coppe. (Brasília: Editora Paralelo 15, 2002), 33.
20Cf. sb 1.1.1-02. Arquivo asi/unb, cedoc/unb.
21 Cf. Caixa 21, maço 11. Arquivo aesi/ufmg.
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o aumento da influência dos países comunistas. Por exemplo, monitoraram publicações doadas
às universidades por países socialistas, em busca de livros suspeitos, e solicitaram que pedidos de
professores para afastamento no exterior, sobretudo quando o destino era a urss fossem encaminhados com bastante antecedência, para dar tempo às agências de informação para investigarem.22
Os órgãos de informação se empenharam bastante para vigiar os estudantes egressos da
Universidade Para a Amizade dos Povos Patrice Lumumba (uappl), destino da maioria dos que
se dirigiram à urss em busca de oportunidade de estudos. Essa Universidade, cujo nome homenageava o líder congolês assassinado em 1961, foi concebida para atender jovens do mundo
subdesenvolvido. Como a suposição era que se tratava de pessoas com menor nível de escolaridade, os estudos oferecidos na uappl não eram de primeira linha, e ela não gozava do mesmo
prestígio de outras Universidades soviéticas, embora faltem elementos para saber se era pior ou
melhor que as instituições brasileiras da época. De qualquer modo, era oportunidade interessante
para jovens pobres, pois o curso era gratuito e eles recebiam ajuda para viver na urss, 80 rublos
mensais, além de auxílio para compra de roupas de inverno. No Brasil, o processo seletivo era
organizado pelo icbus, que aplicava os testes e escolhia os vencedores. A revista Veja publicou
matéria em dezembro de 1969 sobre a próxima seleção para a uappl, provavelmente a reportagem que motivou o estudo do csn citado há pouco.23 De acordo com a revista, 115 candidatos
se apresentaram para as 50 vagas existentes, e as informações sobre alojamentos, bolsas e outras
facilidades (1 ano de bolsa extra para aprender o idioma russo), bem como sobre a possibilidade
de revalidar o diploma no retorno ao Brasil, irritaram os militares por soarem como propaganda
favorável.
A Universidade Patrice Lumumba também oferecia cursos de pós-graduação em várias áreas,
com condições e auxílios semelhantes. Em 1972, a asi/ufsm (Universidade Federal de Santa
Maria) enviou ao sni um convite remetido pelo icbus, com informações sobre a seleção para pós-graduação. Os candidatos deveriam ter até 35 anos e, além dos documentos de praxe (diploma
etc.) precisavam enviar ensaio contendo a proposta de pesquisa, ou cópias de trabalhos publicados. As inscrições poderiam ser feitas em uma das três sedes do icbus (Rio de Janeiro, São Paulo
e Porto Alegre).24
Visando obter dados sobre os diplomados pela uappl espalhados pelo Brasil, em novembro
de 1972 a Agência Central do sni difundiu documento entre os vários órgãos de informação. O
texto advertia que a Universidade soviética era controlada pela kgb e, durante seus cursos alegava
o sni, os alunos seriam submetidos à pregação marxista-leninista.25 Como alguns ex-alunos já
haviam retornado e lecionavam em instituições brasileiras, colocando em risco a “segurança nacional”, a ac/sni solicitava levantamento dos nomes de todos os egressos, principalmente aqueles
cujos diplomas haviam sido revalidados no Brasil. O sni ainda não sabia como funcionava o
sistema de revalidação de diplomas estrangeiros e pedia aos membros da “comunidade de informações” mais dados sobre o assunto.
A partir daí, diversas agências de segurança começaram a rastrear pessoas e diplomas. Foram
localizadas situações de norte a sul do país, mas os resultados das gestões dos órgãos de informação
22 sb 3.3.1-01. Arquivo asi/unb, cedoc/unb e caixa 18, maço 22, Arquivo aesi/ufmg
23 Veja 69 (31/12/69), 29. O jornal O Globo publicou nota semelhante em 7/01/1970.
24 ace 10805/85, Fundo sni, ani-coreg.
25 ace 3675/83, Fundo sni, ani-coreg.
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variaram, pois nem sempre conseguiram impedir que os egressos da uappl trabalhassem. Em
Goiás foi identificado casal suspeito trabalhando para a Prefeitura de Anápolis. Wilson tinha sido
militante comunista antes de 1964 e, pouco depois, foi para a uappl fazer graduação e mestrado.
Lá se casou com a colombiana Laura e, após sete anos na urss, ele voltou com a companheira e
um filho para sua terra natal, onde ambos foram contratados pelo poder municipal. Após o casal
ter sido “descoberto” pelos órgãos de informação, em 1972, ambos foram demitidos.26 Outro
casal com história semelhante foi localizado em Minas Gerais, só que nesse caso a esposa era
russa e ambos obtiveram diplomas em Física na urss. Em 1974, João Lenine conseguiu emprego
em uma subsidiária da empresa estatal usiminas e sua companheira russa tentou o mesmo, sem
sucesso.27
Entre 1972 e 1975, as agências de informação rastrearam diplomas soviéticos revalidados
por várias Universidades brasileiras, como Universidade de São Paulo, Universidade Federal do
Rio Grande do Sul e Universidade Federal de Minas Gerais, em áreas como Química, Física,
Engenharia, Geologia e até Medicina. Além disso, a colônia de estudantes brasileiros na urss
foi vigiada, com ajuda da dsi do Ministério das Relações Exteriores e da Embaixada Brasileira
em Moscou, inclusive por meio de violação de correspondência. Uma carta dirigida ao irmão por
estudante gaúcho que vivia em Moscou foi interceptada no início de 1971, e o conteúdo não agradou aos agentes de informação. Entusiasmado, ele elogiou a qualidade do ensino (“inigualável
em qualquer parte do mundo”) e a sociedade soviética, prometendo fazer esforços para que mais
brasileiros fossem estudar lá.28 Em 1978, outra ação contra os universitários brasileiros na urss:
um grupo de seis ex-estudantes da uappl desejava voltar ao Brasil, mas encontrava dificuldade
para obter passaporte junto à Embaixada. Eles ameaçaram denunciar o caso à imprensa e acionar a Justiça caso seus passaportes fossem negados e, por isso, a dsi do Ministério das Relações
Exteriores montou pequeno dossiê sobre o grupo. O sni, que era a agência central do sistema de
informações instruiu que eles fossem interrogados e vigiados quando de sua chegada ao Brasil.29
Até 1975, as Universidades brasileiras credenciadas tinham autonomia para revalidar diplomas estrangeiros, por delegação do Conselho Federal de Educação. No entanto, graças à pressão
dos órgãos de informação e segurança, preocupados em desestimular o estudo na urss, essas normas foram alteradas. O primeiro sinal foi um Aviso Circular Reservado (No122, de 26/02/1975)
do Ministério da Educação às Universidades, determinando que processos de revalidação de
diplomas obtidos em países sem acordo cultural com o Brasil fossem enviados primeiro ao
Ministério.30 Os processos ficaram suspensos por alguns meses e a Secretaria Geral do csn voltou
à carga, para reforçar a política iniciada em 1970. O csn, por essa época (1975) secretariado pelo
General Hugo Abreu montou Grupo de Trabalho para reestudar a questão das relações culturais
com o bloco socialista, com o objetivo de desestimular a ida de estudantes e bloquear os diplomas.
De acordo com texto assinado por Abreu:
26 ace 115626/77, Fundo sni, an-coreg.
27 Não há como ter certeza se o contrato dela foi barrado por razões políticas, pois, anos depois, quando os
órgãos de informação conseguiram controlar a revalidação de diplomas soviéticos, o sni liberou a revalidação
do diploma da mulher, de nome Nina. ace 2903/82, Fundo sni, an-coreg.
28 ace 11453/85, Fundo sni, an-coreg.
29Pastas op 1172 e op 1403. Fundo deops, Delegacia de Ordem Política, Arquivo do Estado de São Paulo.
30 sb 7.2.1-34. Arquivo asi/unb, cedoc/unb e ace 4171/80, Fundo sni, an-coreg.
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Acontece que já ficou evidenciada a inconveniência da regulamentação vigente que permite,
sem nenhuma dificuldade, o reconhecimento e o registro, com vista ao exercício profissional, de diplomas obtidos em países comunistas, particularmente na Universidade PATRICE LUMUMBA,
em Moscou, onde, além do baixo nível de ensino há uma intensa doutrinação ideológica a que são
submetidos os estudantes e que chega a atingir a preparação de guerrilheiros.
Os diplomados nessa situação regressam ao Brasil e, uma vez reconhecidos os seus títulos, comumente de nível “pós-graduação” ou “doutorado”, passam a lecionar em universidades brasileiras
onde, apesar de sua fraca formação profissional, atuam como eficientes agentes do comunismo.31
A menção a treinamento guerrilheiro deve ser imputada a arroubo retórico do General Abreu,
pois seria improvável sua existência quando se sabe que a política soviética não favorecia ações
armadas, pelo menos no Brasil. De qualquer forma, o aparato de segurança conseguiu o desejado,
ao menos em parte. A situação era delicada porque setores do governo não desejavam melindrar
os soviéticos ou dar-lhes motivos para reclamações em foros internacionais. Por isso, foi aprovada
uma linha de ação que, ainda nas palavras do General Abreu em outro estudo sobre o mesmo
assunto, permitia atender “os interesses imediatos do relacionamento bilateral comercial e financeiro e as cautelas de Segurança Nacional, assegurar flexibilidade e satisfazer às peculiaridades das
relações políticas”.32 A flexibilidade mencionada se refletiu nas decisões de não fechar os icbus,
mas criar mecanismos legais para controlá-los, e determinar que as Universidades perdessem
autonomia para revalidar diplomas dos países socialistas, mas, sem expressá-lo claramente.
Embora isso não tenha sido mencionado nos documentos do csn e dos órgãos de informação é factível supor que a “flexibilidade” tinha por objetivo, também, evitar problemas com os
elementos liberais no Conselho Federal de Educação (cfe) e nas Universidades. Por isso, o texto
submetido como resolução ao cfe, e aprovado em dezembro de 1975 (resolução Nº43/75 do cfe)
não mencionava os países socialistas, apenas a preocupação com as centenas de diplomas obtidos
por brasileiros no exterior, sem verificação da qualidade das instituições frequentadas. A preocupação de preservar a qualidade dos profissionais com títulos superiores em atuação no país foi
a justificativa apresentada para aprovação da nova resolução, que determinou que a decisão final
nos processos de revalidação caberia ao Ministério da Educação (mec). Entretanto, as razões de
ordem política não ficaram ausentes do texto, talvez para deixar claro, e assim evitar reclamações,
que, em alguns casos, motivos de “segurança nacional” determinariam as decisões. O texto aprovado pelo cfe dizia: “a universidade, antes de iniciar a instrução do processo, encaminhará os autos
ao Departamento de Assuntos Universitários (do mec), que examinará o pedido, tendo em vista
as necessidades do País e a segurança nacional, e proferirá a decisão”.33
A partir daí, os órgãos de informação puderam bloquear processos de revalidação de diplomas. Encontramos documentação sobre um caso, envolvendo agrônomo formado na uappl que
submeteu seu diploma à Universidade Federal Rural de Pernambuco, em 1977. O Ministério da
Educação respondeu que o pedido não poderia ter andamento, nos termos do artigo 8 da resolução 43/75 do cfe, o mesmo que se referia “às necessidades do País e a segurança nacional”.34
Quanto aos profissionais que já haviam conseguido legalizar seus diplomas no Brasil, sua vida
31 Exposição de Motivos No88 (29/11/75). Caixa 74/B, Fundo csn, an-coreg.
32 Exposição de Motivos No99 (26/12/75). Caixa 74/B, Fundo csn, an-coreg.
33Revista Documenta 181 (1975), 187-189.
34 ace 2034/81, Fundo sni, an-coreg.
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continuou sob vigilância estrita, às vezes com prejuízos marcantes. Por exemplo, em 1977 um
uruguaio de nacionalidade brasileira e formado em Matemática pela uappl tentou ser contratado como professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mas, foi barrado, graças à
recomendação negativa da asi/ufrgs.35 Na Universidade Federal da Bahia (ufba), o professor
de Física Paulo Miranda, contratado em 1972, foi demitido em 1977 devido à resolução sobre
os diplomas. Ele estudara na uappl entre 1964 e 1970 e, embora alegasse ter diploma revalidado
pela usp, não apresentou comprovação quando os órgãos superiores da ufba, pressionados pelo
aparato de repressão, fizeram essa exigência. De nada adiantou a solidariedade do Diretor do
Instituto e os protestos de estudantes e colegas, seu contrato foi rescindido.36
No entanto, houve casos em que os “alvos” escaparam de perseguições, apesar do passado
comprometedor aos olhos das agências de repressão. A mesma asi/ufrgs que vetou a contratação
do professor de Matemática uruguaio, elaborou informação tranquilizadora sobre uma professora
de Física da Universidade com diploma obtido na mesma uappl. Inquirida por órgãos interessados no passado político da professora, que tinha registros como comunista no início dos anos
1960, a asi/ufrgs respondeu que o conceito dela era bom na Universidade, onde nunca havia se
envolvido em atividades políticas. Mesma situação aconteceu no Rio de Janeiro, envolvendo professora de Letras que voltara da uappl em 1966 e fora contratada pela ufrj em 1970. Segundo a
Agência Central do sni, o próprio Presidente da República estava interessado no caso, embora as
razões não tenham sido explicadas. Podemos imaginar a reação do agente de informação na outra
ponta do sistema, que deve ter ficado em dúvida se o interesse do Presidente era no sentido de
maior severidade ou o contrário. Seja como for, em sua resposta a asi/dr-3 registrou que a professora não tinha atividades políticas conhecidas e tanto o Reitor como o Diretor da Faculdade
tinham bom conceito dela.37
Considerações finais
As convicções anticomunistas foram elemento significativo para a construção de laços de
identidade entre os grupos favoráveis ao golpe de 1964, em especial os militares, a quem forneceram um sentido de missão. E também inspiraram algumas ações da ditadura, tanto na esfera
repressiva quanto no terreno educativo e cultural. No entanto, análise mais atenta do impacto das
políticas anticomunistas nos meios acadêmicos e intelectuais revela que tiveram efeitos limitados. Nem todos os docentes com perfil esquerdista foram afastados das instituições de ensino,
e as agências de repressão não conseguiram impedir que alguns jovens professores com ideias
socialistas fossem contratados. Tampouco os militares da direita radical conseguiram bloquear
totalmente os contatos culturais com os países socialistas, assim como não foram capazes de impedir a circulação de ideias e textos de esquerda, inclusive o marxismo, cuja influência aumentou
35 ace 3084/81, Fundo sni, an-coreg.
36 O caso gerou reportagem em Veja 474 (5/10/1977), 64, que mencionou a asi como a responsável pela
demissão. Cf. também Clemente, José Eduardo Ferraz. Ciência e política durante o regime militar: o caso
da comunidade brasileira de físicos. (Salvador; ufba, 2005), 216-224. Dissertação de Mestrado, Instituto de
Física, ufba.
37 O caso da ufrgs está em ace 10663/85 e o da ufrj em ace 5218/77, Fundo sni, an-coreg. asi/dr-3 era a
agência de informações vinculada à Delegacia do mec no Estado do Rio de Janeiro.
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ao longo da ditadura. Na visão angustiada da extrema direita, a “limpeza” do inimigo ideológico
ficara incompleta.
38
Essa percepção comum entre os “duros” foi aguçada com o início do processo de distensão política no governo do General Ernesto Geisel, a partir de 1974. O quarto presidente militar adotou
a estratégia de “liberalizar” e reduzir a escala repressiva, com vistas a institucionalizar o regime
autoritário e atenuar os choques com as forças de oposição. Essa política desagradou à direita
radical dominante nos aparatos repressivos, que temia o recrudescimento das ações da esquerda
tanto quanto desejava evitar a perda de seu poder e prestígio no aparelho do Estado. A resposta
de tais grupos à “distensão” foi aumentar as ações repressivas e, de fato, ocorreram muitas mortes
e desaparecimentos entre 1974 e 1976, principalmente de líderes dos dois Partidos Comunistas
mais influentes.39 O ânimo anticomunista tornou-se o ponto de união para os militares radicais
insatisfeitos com a postura moderada defendida por Geisel, que ficaram enraivecidos quando o
presidente adotou posições diplomáticas pragmáticas também em relação à China e aos jovens
governos marxistas que surgiram ao fim do império português na África. Entre 1974 e 1975, o
governo brasileiro reconheceu o governo de Angola, estabeleceu laços diplomáticos com a China
popular e votou a favor de resolução da onu condenando o sionismo, para agrado dos países
árabes. Para os mais radicais da direita, tais ações eram indício que a “infiltração comunista” atingira o próprio núcleo do poder militar, e suas acusações dirigiam-se principalmente ao General
reformado Golbery do Couto e Silva, conselheiro político de Geisel.
Os choques entre o grupo de Geisel e a direita militar levaram ao fortalecimento da liderança
do Ministro do Exército, General Sylvio Frota, que se tornou virtual candidato do grupo à sucessão presidencial. Frota passou a representar a opinião mais à direita no Estado e na sociedade,
indignada contra a distensão e a nova orientação diplomática. Também irritava aos “frotistas” a
tolerância dos segmentos do Estado que permitiam a contratação de pessoas com passado de
esquerda. Em 1977, Frota fez divulgar lista com nomes de 97 “comunistas” que ocupavam cargos
públicos no Brasil. Entre eles havia alguns efetivamente comunistas, mas muitos já haviam abandonado qualquer militância esquerdista.40 Vendo ameaçada sua estratégia política e querendo a
todo custo evitar a ascensão de Frota à presidência, Geisel montou uma operação militar para
demitir o Ministro da Guerra, episódio que gerou o risco de choque armado entre as facções militares. Esta derrota da extrema direita militar, em 1977, destruiu as chances do grupo de chegar
ao poder, e contribuiu para lançar em descrédito o discurso anticomunista, associado à imagem de
fanatismo e oportunismo. Incapaz de almejar sonhos mais audaciosos, a extrema direita recolheu-se às suas posições na estrutura repressiva, mas continuou em luta contra o inimigo comunista.
No governo seguinte, o último do ciclo militar, o presidente João Figueiredo deu continuidade
à política de Geisel e anunciou a “abertura”. Os pilares da abertura de Figueiredo, que assumiu
o poder em 1979, consistiram na anistia aos presos políticos – também uma autoanistia para
38 Essa análise está sendo mais bem desenvolvida em livro ainda inédito, intitulado O Regime Militar nas
Universidades: cultura política e modernização autoritária.
39 O Partido Comunista Brasileiro (pcb) e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), sendo o último o resultado
de uma cisão no início dos anos 1960. Aproximadamente três dezenas de membros do Comitê Central dos
dois partidos foram mortos entre 1974 e 1976, e mais alguns militantes de base.
40 A tal lista trouxe prejuízo para algumas pessoas, como o professor Hélio Pontes, que deixou de ser nomeado
Reitor da ufmg por causa da repercussão do episódio. A lista de Frota pode ser encontrada em O Estado de
São Paulo (24/11/1977), 22. Para conhecer a opinião da direita radical sobre Geisel uma fonte interessante são
as memórias do General Frota. Sylvio Frota, Ideais traídos (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006).
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os assassinos e torturadores a serviço da ditadura –, no retorno dos exilados e na revogação da
principal lei de exceção, o Ato Institucional 5. Cada vez mais isolada, a extrema direita militar
respondeu com ações terroristas contra alvos “comunistas”: bancas de revista que vendiam publicações de esquerda, parlamentares de esquerda e shows organizados por artistas de esquerda.41
Ações desesperadas, reveladoras que as políticas anticomunistas já não encontravam o mesmo
apoio do Estado autoritário, cujos principais líderes não consideravam mais tão grave o perigo
vermelho, embora continuassem repudiando-o.
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1992.
Recibido 17/04/12 – Aceptado 06/08/12
41 Esses atentados à bomba mataram uma pessoa e deixaram vários feridos. Em abril de 1981, no Rio de Janeiro,
militares à paisana tentaram colocar bombas em um centro de convenções (Riocentro) onde iria ocorrer show
com a presença de artistas de oposição. Por falha técnica dos terroristas uma das bombas explodiu em seu
carro, matando um Sargento do Exército e ferindo um Capitão. A repercussão do caso levou ao fim das ações
terroristas de direita, embora os responsáveis não tenham sido punidos pelo Estado.
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