BarBera GLaUCO MaTTOSO FaçaM SUaS

Transcrição

BarBera GLaUCO MaTTOSO FaçaM SUaS
saraiva
HANNA
Barbera
O estúdio da
alegria
Façam
suas
apostas:
Revelações de 2010
apontam quem vai
brilhar no cenário
musical de 2011
GLAUCO
MATTOSO
O poeta aos 60
Hilda
HILST
e o espírito da
Casa do Sol
ADRIANA
CALCANHOTTO
contaminada pelo micróbio do samba
MAR/ABR 2011 • Ano 2 • Nº 3 • Distribuição Gratuita
editorial
Realizar cada edição da Revista SaraivaConteúdo é algo que nos toma
cerca de dois meses. Entre escolher as pautas, apurá-las, criar os textos,
o visual, negociar anunciantes e entrar em gráfica vai se moldando uma
fatia de tempo, que de certo modo fica associada ao que é pensado para
a revista naquele período.
Neste verão, entre calor e tempestades, passando
pelo intervalo do carnaval que demorou a chegar,
tivemos o privilégio de conhecer em primeira mão
o novo (e belo) álbum de Adriana Calcanhotto,
O micróbio do samba. Ela nos recebeu em sua
casa, no Rio de Janeiro, para uma conversa, ao cair
da tarde, e contou sobre o brotar deste disco, a
febre do samba tomando conta das canções e o
processo de criação com os músicos em estúdio.
Mergulhamos no universo de Hilda Hilst para entender o fascínio exercido pela Casa do Sol – o emblemático sítio onde a escritora criou grande parte
de sua obra e viveu com escritores, amigos e pensadores – que agora motiva a criação do Instituto
Hilda Hilst e um movimento para a sua preservação.
Conversamos com o poeta Glauco Mattoso sobre os
lançamentos e relançamentos de sua obra para celebrar os seus 60 anos. Privado da visão desde 1995,
Glauco já escreveu mais de 4 mil sonetos, seu “maior
vício, que serve de válvula para desabafar a revolta
contra a cegueira”.
Avistamos uma nova onda literária a caminho:
histórias futuristas associadas aos anseios da
vaidade parecem ser a nova pedida para os adolescentes. Pelo menos este fenômeno tem sido
observado em vários países e prepara-se para
desembarcar por aqui.
Revisitamos a história e os bastidores que levaram à
criação da Hanna Barbera – fruto do encontro fortuito de William Hanna e Joseph Barbera que passaram
a trabalhar lado a lado na MGM, em 1937 –, o principal estúdio de animação para a televisão no século
passado, que nos legou Tom e Jerry, Os Flintstones,
Os Jetsons e Scooby-Doo, entre dezenas de outros
personagens e desenhos animados.
Centramos o foco também no cinema documentário
realizado no Brasil nos últimos anos, cuja produção
e interesse por parte do público vem crescendo, e
onde o Festival É Tudo Verdade – que chega a sua
16ª edição no Rio e em São Paulo a partir do dia 31
de março – tem um papel fundamental.
E em meio à esta diversidade de assuntos, vimos
os dias ficarem mais frescos, e uma nova estação
se aproximar, abrindo outros ciclos e novidades que
devem dar o que falar nas próximas edições. O gosto pela palavra é um vício. Mal se coloca um ponto
final, já se quer recomeçar. Boa leitura!
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SARAIVACONTEÚDO MARÇO / ABRIL 2011
MAR/ABR. 2O11
06
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Revelações de 2010 apontam quem
vai brilhar no cenário musical de 2011
Instituto
Hilda Hilst
reacende
o espírito
da Casa
do Sol
24
Adriana
Calcanhotto
e seus sambas por acaso
22 Literatura futurista
A nova febre no mercado
editorial para jovens
32 O cinema documentário
entre a realidade e a
imaginação
44 Guia de Compras
46 Um trecho de o remorso
de baltazar serapião, de
valter hugo mãe
38
Glauco
Mattoso
O poeta
“pornosiano
e barrockista”
chega aos 60
18
Joseph Barbera
e William Hanna
criaram o principal
estúdio de animação
para a televisão no
século passado
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literatura | especial
Hilda Hilst, José Luís Mora
Fuentes e Gisela Amaral,
entre 1976 e 1977
Uma Casa
deslumbrante
O Instituto Hilda Hilst reacende o espírito da Casa do Sol,
o emblemático sítio onde a escritora criou grande parte
de sua obra e onde viveu com escritores, amigos e pensadores
a partir dos anos 1970 até a sua morte em 04 de fevereiro de 2004
Por Claudia Barbosa
Fotos Fundo Hilda Hilst / Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulalio
(CEDAE), Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas
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SARAIVACONTEÚDO MARÇO / ABRIL 2011
Hilda Hilst vive na Casa do Sol - sítio a 10 km da cidade de
Campinas, estado de São Paulo. Lá está ela embaixo da frondosa figueira centenária, rodeada de cachorros, a trocar impressões metafísicas com seu amigo Caio Fernando Abreu.
No dia da morte de Caio, em 25 de fevereiro de 1996, Hilda
sabia que ele viria despedir-se dela. E foi o que aconteceu.
Ela revela em entrevista que deu ao Cadernos de Literatura
Brasileira do Instituto Moreira Salles (IMS), em 1999: “Ele veio
com um cachecol que tinha uma fita vermelha. A gente tinha
combinado: o vermelho ia significar que estava tudo bem.
Eu abracei o Caio, muito, e disse: ‘Nossa, como você está
bonito! Está jovem!’. Mas ninguém acredita”. São encontros
que não morrem. Mágicos, eternos. Morte e vida se fundem
na excepcional obra de Hilda Hilst.
O surgimento da escritora Hilda Hilst e da Casa do Sol
Nascida em Jaú (SP), bacharel em direito, filha de Apolônio
de Almeida Prado Hilst e Bedecilda Vaz Cardoso, Hilda surge
de uma relação de amor, como ela própria diz na referida entrevista: “Meu pai e minha mãe tiveram uma paixão daquelas
de perder mesmo o senso.” E este lugar de suspensão deste grande amor parece permanecer na busca de Hilda Hilst.
Amor distante, reverente, não completamente vivido, mas
amor contado por sua mãe e sentido profundamente por ela
própria desde pequena. Seus pais se separaram quando Hilda
ainda era muito nova. Amor engolido, interrompido. E Hilda
acrescenta: “Desde o início minha mãe tinha problemas com
a família dele; naquela época um Almeida Prado só se casava
com um Almeida Prado. Eles acabaram se separando quando
eu era bem pequena. Apesar da separação, minha mãe falava
dele sem parar, do amor que tinha por ele”.
Morando com a mãe, veio a rever seu pai somente aos 16
anos. Adolescente repleta de expectativas, “empoçada” de
admiração pelo poeta, escritor, e pai. Já esquizofrênico à
época, Apolônio chega a confundir Hilda com a mãe, e acaba por lhe pedir “só três noites de amor”. Apesar do constrangimento deste encontro quando jovem, Hilda Hilst sempre disse ter conseguido separar a vida dele como louco, da
vida que conheceu através da mãe. Hilda dizia ter feito sua
obra para o pai: “Quase todo meu trabalho está ligado a ele
porque eu quis. Eu pude fazer toda minha obra através dele.
Meu pai ficou louco, a obra dele acabou. E eu tentei fazer
uma obra muito boa para que ele pudesse ter orgulho de
mim. Então eu me esforcei muito. Meu pai foi a razão de eu
ter me tornado escritora”.
O pai de Hilda escrevia em jornais de Jaú entre os anos 1920
e 1930. Nestes textos é possível perceber de que escrita Hilda
falava, e que herança singular e revolucionária ela absorveu.
Como neste trecho de Apolônio Hilst: “O casamento é uma
A escritora no pátio da Casa do Sol, em dezembro de 1969
imoralidade. Faz do que temos de mais sagrado, o amor, uma
coisa legal, isto é, pública e indecente...”.
Quando estava na faculdade de direito, Hilda conhece a também escritora Lygia Fagundes Telles. A partir deste encontro
tornaram-se amigas por toda a vida. A solidez desta amizade
pode ser percebida no texto escrito por Hilda para o Cadernos do IMS de 1998, dedicado a Lygia e sua obra: “Quero demais morrer segurando a mão da Lygia, porque sei que ela vai
entender tudo nessa hora H. Ela vai dizer: ‘Hilda fica calma e
tal que é assim mesmo’”.
Na época que conheceu Lygia, Hilda Hilst tinha não mais que
18 anos e já escrevia de tal forma a dar os primeiros sinais da
obra que nascia: “Somos iguais à morte, ignorados e puros e
bem depois o cansaço brotando nas asas seremos pássaros
brancos, à procura de Deus”. Como nos revela a entrevista
concedida ao IMS, tais escritos levaram ao comentário promissor da escritora Cecília Meireles à jovem Hilda Hilst: “Quem
disse isso precisa dizer mais”.
Em 1963, Hilda conhece o escultor Dante Casarini, que viria a
se tornar seu primeiro marido. Era período de festas, beleza e
extroversão, todavia Hilda parecia guardar um dilema interior.
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literatura | especial
Estava à beira de uma importante escolha. Escrever significaria
abrir mão desta vida, do mundo que se expõe, optando por
um mundo que pulsava em si. Desvelar o incerto. Foram possivelmente as influências do escritor grego Nikos Kazantzakis,
de quem Hilda gostava sobretudo de Carta a Greco (Editora
Ulisseia, Lisboa, 1961), que lhe deram as primeiras luzes para o
que viria: “Toda a minha vida é um grito e toda a minha obra a
interpretação desse grito”. Era preciso isolar-se para aprofundar a escrita, e fazer de sua obra o grito de sua alma.
Hilda convida Dante a viver em um sítio que era de sua mãe.
Ele aceita e os dois começam a construção da casa, que seria
a futura Casa do Sol. Dante e Hilda têm muitas afinidades,
dentre elas o amor pelos cães. Aqui começa então a história
da Casa do Sol. A partir daí, e da mesma forma que Hilda fez
sua escolha, e também Dante, foram muitos os que escolheram por lá passar ou viver: Lygia Fagundes Telles, Ana Lúcia
Vasconcelos, José Mora Fuentes, Olga Bilenky, Milton Bernardes, Maria Luíza Mendes Furia, Edson Duarte, Caio Fernando
Abreu, Léo Gilson Ribeiro, José Castello, Bruno Tolentino, Yuri
Vieira, Daniel Bilenky Fuentes entre outros.
Um comentário do jovem escritor Yuri Vieira ilustra bem o
impacto destes encontros na Casa do Sol: “Hilda Hilst me ensinou que a vocação literária, o chamado da Literatura, se dá
tal qual o convite a participar do Reino dos Céus: dirige-se à
criança eterna que existe dentro de você. A faceta adulta de
um escritor sempre duvida de seus talentos, mas sua criança
interna jamais deixa de acreditar! Porque, afinal de contas, é
ela quem de fato cria. Havia dias em que eu e Hilda ficávamos
a conversar como se ambos tivéssemos dez anos de idade.”
A Casa do Sol em busca da imortalidade
Na edição do Cadernos do IMS de 1999 dedicado à Hilda Hilst,
há o texto da amiga Lygia em sua homenagem, intitulado “Da
amizade”. No parágrafo final, Lygia relembra os planos, os
sonhos de formarem uma “espécie de comunidade” com os
amigos reunidos, “bordando almofadas”, “lareira acesa”, “num
clima como nos clássicos museus”. Talvez pudéssemos nos
transportar para a Casa do Sol utilizando esta imagem terna
de Lygia, mas imaginando este belo quadro em movimento
permanente. Novos personagens, cores, temas, descobertas
em fluxo constante.
O escritor José Mora Fuentes, que viria a ser um dos herdeiros
da Casa do Sol, viveu 30 anos lá. Muito jovem conheceu Hilda
e, encantado com sua obra, recebeu dela grande influência.
Tinham trocas fecundas para o trabalho literário de ambos.
Mora Fuentes faleceu em 2009 e, hoje, seu filho Daniel Fuentes preside o Instituto Hilda Hilst – Centro de Estudos Casa
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SARAIVACONTEÚDO MARÇO / ABRIL 2011
Hilda aos 12 anos, com os cães Pitti e Fine
do Sol (www.hildahilst.com.br/instituto.php), criado pelo pai.
Questionado sobre a afinidade dos dois, Daniel enfatiza: “meu
pai e Hilda eram irmãos de alma, como diziam. Tiveram uma
relação amorosa em um período, mas o que ficou foi mesmo
a alma. Foi a relação de amizade mais bonita que eu já vi;
inclusive de troca intelectual”.
Depois da morte de Hilda, em 2004, evidenciaram-se vários
problemas financeiros e fundiários na Casa do Sol. Com o falecimento de Mora Fuentes, Daniel e sua mãe, Olga Bilenky, estão à frente do projeto de reerguer a Casa do Sol, tornando-a
um patrimônio cultural vivo. Olga, artista plástica, amiga de Hilda Hilst, viveu na Casa do Sol por 20 anos e hoje está engajada,
junto com o filho, nas atividades em prol do Instituto.
Nestes últimos anos, grandes avanços ocorreram. Além da
renegociação das dívidas, o início do processo de tombamento da Casa do Sol foi um marco importante. Não por
acaso, aconteceu em 21 de abril de 2010 – data em que
Hilda faria 80 anos.
Daniel nos conta que foi gerado na Casa do Sol e que, embora morando em São Paulo, suas férias de verão eram sempre lá. Tem lembranças encantadoras destes tempos: “Eu era
criança, fui crescendo em meio àquele convívio. A memória
mais antiga que tenho é do lançamento do Amavisse (Massao
Ohno, 1989). Lembro muito das crônicas. Esta é a memória
mais fantástica que tenho. Eu já era mais velho. Hilda escrevia
periodicamente para um jornal. E antes de enviar para o jornal
ela lia para nós em voz alta, no café da manhã, na Casa do Sol.
As crônicas são ótimas, engraçadas. Hoje estão publicadas
em Cascos e carícias – Crônicas reunidas, 1992-1995 (Nankin,
1998, 1. ed.; Globo, 2007, 2. ed.)”.
Nestes últimos dois anos, segundo Daniel, as conquistas em
relação ao Instituto foram inúmeras, mas muito voltadas a sanear problemas legais e financeiros: “Nos relacionamos mais
com a secretaria de finanças do que com a de cultura”. Uma
vez tendo sido encaminhada esta etapa, já parece ser possível vislumbrar o futuro. Daniel tem por objetivo resgatar o
espírito da Casa do Sol, ou seja, mantê-la como o “porto seguro” do artista: “É um patrimônio cultural por tudo que lá
aconteceu. Esta escolha que Hilda fez foi a mesma que todos
que lá moraram fizeram, meu pai, Caio e muitos outros. A
Casa era o fôlego, o porto seguro.”
Dentre as ideias para o Instituto, além da necessária reforma
da Casa, Daniel salienta três principais iniciativas que gostaria
de estimular: o teatro, a residência de bolsistas e a biblioteca.
“Há um eco forte da obra de Hilda com o teatro. Seria ótimo
ter um espaço para grupos amadores que queiram desen-
volver novas linguagens. E ainda: ter de fato uma residência
para bolsistas; e aprimorar a biblioteca da Hilda que já existe
lá. Hilda escrevia muito nos livros, os personagens e histórias
dela surgem nestes escritos.”
Este projeto do Instituto vem mobilizando amigos e intelectuais. Lygia Fagundes Telles esteve bem ativa nas iniciativas para
o tombamento, e tem se mostrado disposta a auxiliar na concretização do projeto. Neste sentido, o depoimento do crítico
literário José Castello resume bem a preocupação e desejo de
muitos. Ele nos diz que, embora não tão próximo do projeto, é
“um fervoroso admirador dos que lutam pela preservação do
sítio de Hilda. É uma casa mágica, ali se guarda não sua história, mas seu espírito. Na figueira imensa que existe no quintal.
Nos cachorros, dezenas. No grande pátio interno, ao estilo espanhol. Nos livros. Na cozinha, em que passamos longas tardes
conversando, ela tomando seu uísque e eu tomando meu café.
Sim, é uma casa que deve ser preservada e cultuada, que faz
parte da história da literatura brasileira”.
O curioso é que a própria Hilda Hilst já tinha planos bastante
ambiciosos para aquele local. Ela revelou suas expectativas
muitas vezes em entrevistas; por exemplo, ao IMS: “Tenho tanta vontade de fazer aqui uma fundação, a Fundação Apolônio
de Almeida Prado Hilst, que cuidaria de estudos psíquicos e
da imortalidade”. Em outro ponto da entrevista, ela detalha:
“Aí viriam escritores interessados nessas coisas [vida após a
A obra de Hilda
Em um poema da coletânea Do desejo (Pontes, 1992, 1. ed.; Globo, 2004, 2. ed.),
Hilda parece transmitir a gênese da sua escrita:
“Empoçada de instantes, cresce a noite
Descosendo as falas. Um poema entre-muros
Quer nascer, de carne jubilosa
E longo corpo escuro. Pergunto-me
Se a perfeição não seria o não dizer
E deixar aquietadas as palavras
Nos noturnos desvãos
Um poema pulsante
Ainda que imperfeito quer nascer.
Estendo sobre a mesa o grande corpo
Envolto na sua bruma. Expiro amor e ar
Sobre as suas ventas. Nasce intensa
E luzente a minha cria
No azulecer da tinta e à luz do dia”
A brincadeira do desvelar do imperfeito como perfeição absoluta. O próprio poema é o herói capaz de ousar o “nãodizer”. Hilda deixa claro que é preciso que haja um ritual, uma
morte, uma transcendência, um sopro capaz de o fazer nascer, ser poema, se poemizar. Há ao mesmo tempo ternura,
pensamento pulsante e crueza nestes versos. Sobre este poema, o crítico literário José Castello acrescenta que este “nãodizer” de que nos fala Hilda é “o ideal do escritor. Dizer tão
bem, dizer tudo, esgotar, e chegar ao silêncio. Hilda apreciava
o silêncio de seu sítio, as tarde quietas, os ventos, o barulho
dos bichos – tudo o que é anterior à palavra. Escritores como
ela conhecem bem o quanto a palavra guarda de artificial e
também de insuficiente. Escrever provoca sempre grande
frustração – e Hilda vivia essa frustração de forma dramática”.
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literatura | especial
No jardim da Casa do Sol, com quatro de seus cães, entre 1972 e 1973
morte], fariam estudos, conferências. Eu deixaria esta casa,
alguns terrenos e tal para sustentar esta fundação”. Sobre
este desejo declarado por Hilda em vida, Daniel Fuentes nos
diz que acredita “que tudo que ela falou sobre transformar
o Instituto em uma Fundação acabe por se materializar neste projeto que estamos pensando”. Mas alerta: “Um Instituto
deste porte custa caro. Precisa ter fôlego para manter. O que
quero é fazer algo viável, fazer com que a coisa se realize. Não
precisa ganhar dinheiro. Acredito que hoje no Brasil temos
condições de conseguir isto, viabilizando parcerias; tornandose o porto seguro para o artista que precisa disto”.
Deslumbrante
Hilda Hilst utilizava esta palavra nos mais diversos contextos.
Por isso hoje, por entre amigos que compartilharam a Casa
do Sol, é muito comum ouvir o “deslumbrante” de Hilda, em
tom de cúmplice brincadeira, uma forma de sentir a sua presença e trazê-la de volta ao grupo.
“Deslumbrante” parece ser uma palavra generosa, ou mesmo
sagrada para Hilda Hilst, no sentido de acolher do obsceno ao
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sublime. A Casa do Sol, a física quântica, sua própria obra, a
fenomenologia, muitos amigos e livros – tudo que a movia era
deslumbrante. Na entrevista ao Cadernos do IMS, Hilda talvez explique a origem do termo: “Aí minha mãe engravidou.
Quando ele [o pai] soube que era uma menina, falou daquele
jeito. Uma palavra que me impressionou demais: azar. Aí eu
quis mostrar que eu era deslumbrante”.
Castello, ao ser indagado sobre o que seria o deslumbrante
de Hilda, se arrisca a traduzir: “Creio que expressa o imenso
assombro que Hilda tinha diante das coisas. Seu espanto com
as coisas do mundo e com as pessoas. Seu atordoamento.
A palavra fala de sua sensibilidade radical, do modo como
as coisas e os eventos não só a tocavam, mas a devastavam.
Hilda pagou um alto preço por essa sensibilidade especial.
Afogou parte desse espanto no álcool. Soube transformá-lo
em amor intenso, pelas criaturas mais simples – por exemplo,
seus lendários cachorros, cegos, pernetas, doentes, velhos,
que ela apanhava das ruas, para salvar. Todo escritor deseja,
um pouco, salvar o mundo. Salvar o homem das misérias de
existir. Todo escritor se apega a deslumbramentos. Hilda foi
um exemplo extremo disso”.
O escracho às avessas
O caderno rosa de Lori Lamby (Massao Ohno, 1989, 1. ed.; Globo, 2005, 2. ed.):
“Querido tio Lalau: o senhor foi o único que falou uma
coisa bonita do meu caderno rosa. Que agora eu não
lembro mais mas na hora que o senhor falou eu gostei.
Sabe, tio, queria muito que o senhor guardasse um segredo comigo. Eu ainda estou na casa do tio Toninho e
da tia Gilka e papi e mami estão lá onde o senhor sabe,
na casa grande de repouso. Eles estão demorando para
repousar, não é, tio? Mas olha, tio, o segredo é que eu
estou escrevendo agora histórias para crianças como eu
e só quero mostrar para o senhor pra ver se essas também o senhor quer botar na máquina. Eu acho que elas
são lindas. São histórias infantis, sabe, tio. Se o senhor
gostar eu posso fazer um caderno inteiro delas. [Lori]”
Em determinado momento, Hilda diz ter “finalmente”
escrito para o público, para ser lida. O assombro foi geral, como nos conta a jornalista e amiga de Hilda, Ana
Lúcia Vasconcelos, em entrevista concedida a Amanda
Bigonha Salomão, em 2009: “Quando [Hilda] escreveu
O caderno rosa de Lori Lamby nós ficamos escandaliza-
dos. Eu estava lá quando ela leu um trecho de O caderno
rosa – eu, o Leo Gilson [Ribeiro], o [Décio de] Almeida Prado e outros amigos. E ficamos mudos, quando
ela terminou. Ficamos pasmos, sem palavras. Eu fiquei
abaladíssima, achei que seria o fim dela como escritora genial, mas não foi. E o Leo rompeu amizade com
ela; depois retomou, lógico. Enfim, foi uma catástrofe
relativa, porque ao contrário do que pensávamos foi a
partir destes textos que ela começou a ser mais conhecida. E daí que escreveu outros dois: Contos d’escárnio/
Textos grotescos (Siciliano, 1990, 1. ed.; Globo, 2002, 2.
ed.) e Cartas de um sedutor (Paulicéia, 1991, 1. ed.; Globo,
2002, 2. ed.). Lendo mais distanciada, achei a trilogia
genial como tudo dela, porque afinal eram eróticos, mas
cheios de cultura, com aquela mesma linguagem inovadora e comecei a rir muito lendo os livros. Aliás, gargalho lendo os livros da Hilda, mesmo os outros, porque
como ela mesma dizia, colocava uma dose de humor em
tudo para ‘a corda não ficar muito esticada e dar um
tempo para o leitor respirar’”.
música
Façam suas
APOSTAS
Artistas que despontaram em 2010 dão
seus palpites de quem deve ser destaque
na cena musical brasileira neste ano
Por vicente condorelli
Humor ácido
Antes de entrar em estúdio para gravar seu disco de estreia, Tulipa Ruiz não imaginava o turbilhão que passaria
por sua vida. Desde o lançamento de Efêmera no ano passado, a jovem cantora recebeu elogios entusiasmados de
críticos e fãs. A edição brasileira da revista Rolling Stone
elegeu Efêmera como o melhor disco nacional de 2010. E
a canção título do álbum recebeu o prêmio de música do
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SARAIVACONTEÚDO MARÇO / ABRIL 2011
Tulipa
Ruiz
DivulgaÇÃo
Em 2010 eles estiveram nas paradas musicais de todo o país.
Vindos de diferentes vertentes da música brasileira, Thiago
Pethit, Tulipa Ruiz, Móveis Coloniais de Acaju, Luan Santana,
Restart, Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz, Karina Buhr, Vitor Garbelotto e Paula Fernandes deram o que falar no último
ano. Mesmo quem não é ligado em música, em algum momento de 2010 ouviu um desses nomes. Alguns foram campeões de vendas e angariaram fãs por todo o Brasil, outros
tiveram seus trabalhos incensados pela crítica especializada.
Em comum entre eles, reconhecimento, prêmios, sucesso e
uma grande expectativa para o futuro. Ao serem questionados sobre quem seriam os seus sucessores como as novas
revelações musicais de 2011, surgiram respostas que dizem
muito da personalidade de cada um. E além de conhecer
mais intimamente os destaques do cenário musical do ano
passado, ganhamos de brinde um panorama musical com as
possíveis revelações da música em 2011. Guarde bem os nomes a seguir, em pouco tempo você vai ouvir falar deles.
Rafael e os
Monumentais
Thiago
Pethit
Darren Keith
Leandro Ribeiro
ka
ano da mesma publicação. Com uma voz ao mesmo tempo
doce e pulsante, Tulipa escreve e interpreta suas canções
com autoridade de gente grande.
“Eu fiquei muito surpresa com a recepção do álbum. Depois do lançamento do disco tudo mudou. A internet tem
uma participação muito grande no retorno do meu trabalho. Mas foi muito bom ver que o disco ainda tem peso”, diz
a cantora. Tulipa acredita que 2011 será o ano do paulistano
Rafael Castro, de 24 anos. O cantor e compositor tem nove
discos lançados diretamente na internet e disponíveis para
download gratuito [www.myspace.com/Sabesp]. Em fase
de mixagem do seu décimo álbum, Rafael se apresenta
atualmente com a banda Os Monumentais. Suas canções
trazem o humor ácido do bom rock sem firulas. “O Rafael
é um virtuoso. Ele fez nove discos quase sozinho, tocando
todos os instrumentos. Também gosto da maneira que ele
disponibiliza sua música na internet. Acho que ele vai estourar esse ano”, afirma Tulipa.
Cabaré fashion
Thiago Pethit é um cantor do mundo. As canções do seu
disco de estreia Berlim, Texas são cantadas em inglês, francês e português. Com artigos elogiosos em publicações estrangeiras como o diário inglês The Guardian, Thiago criou
um cabaré musical misturando Berlim e Texas e aconteceu.
Suas letras melancólicas e confessionais ajudaram o cantor/ator a ganhar prêmios como o Aposta VMB, da MTV, e
elogios de nomes como Caetano Veloso.
“Ano passado foi um divisor de águas. Eu sinto que muita
coisa mudou com o disco e eu também tive um crescimento”, garante Thiago. O cantor aposta que 2011 será o ano da
cantora ka. A ex-modelo, que rodou o mundo com o trio francês Nouvelle Vague, prepara o lançamento do primeiro disco
solo. Dona de uma beleza estonteante, ka bebe na mesma
fonte de Pethit. “A Karina fez muito sucesso fora do Brasil
com o Nouvelle Vague. Ela faz um som novo, canta em outras
línguas e compõe muito bem”, explica o cantor.
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música
Fenômeno teen
Goste ou não da música do Restart, é impossível negar que
2010 foi o ano dos garotos. Pe Lanza, Koba, Pelu e Thomas ultrapassaram a esfera da música e se transformaram no maior
fenômeno teen brasileiro dos últimos anos. A agenda de shows está lotada, os discos vendem como água, as fãs se multiplicam e até uma biografia dos garotos, escrita pela jornalista
Fátima Gigliotti, já será lançada em abril pelo selo Benvirá,
da Editora Saraiva, com tiragem inicial de 40 mil exemplares. “O ano passado mudou nossas vidas. Em seis meses tudo
aconteceu. Éramos apenas uma banda de amigos do colégio
e quando vimos estávamos ganhando prêmios e fazendo
shows pelo Brasil”, diz Pelu, guitarrista do Restart, que já vendeu mais de 50 mil cópias do seu primeiro CD.
A aposta de Karina para 2011 segue a mesma trilha da artista
baiana criada em Pernambuco. Anelis Assumpção tem genes
musicais. Filha do lendário Itamar Assumpção, Anelis parece estar cercada das pessoas certas. Quem já viu a artista
ao lado de Céu e Thalma de Freitas interpretando a canção
“Bubuia” sabe do talento dessa cantora, compositora e percussionista. Sua voz grave e uma atitude descompromissada
valorizam o trabalho dessa paulista que lança seu primeiro
disco solo neste ano. “As composições da Anelis têm a cara
dela. Adoro o jeito dela de cantar. Sua voz também tem muita
personalidade”, resume Karina.
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SARAIVACONTEÚDO MARÇO / ABRIL 2011
Restart
DIVulgação
Malemolência
Karina Buhr já tinha conhecido o afago da crítica com sua
banda Comadre Fulozinha. No entanto, o lançamento do primeiro disco solo, Eu menti pra você, levou o trabalho da cantora para outra esfera. Eleita a artista revelação de 2010 pela
Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), Karina brilhou ao misturar música regional com batidas eletrônicas. Seu
azeitado álbum solo tem a participação de nomes de peso
como Marcelo Jeneci, Fernando Catatau e Edgar Scandurra.
A caprichada produção é outro ponto alto do disco.
Diogo Ciarlarielo
Anelis
Assumpção
Kiko Ferrite
Karina
Buhr
O Restart aposta que, em 2011, outra banda teen chegará
ao estrelato. Trata-se do CW7, composto por três irmãos
(Pipo, Leo e Paulo) e uma prima (Mia), da família Witchoff.
E o sucesso do CW7 parece já ter começado. O videoclipe da música “Será você” soma quase meio milhão de
acessos no YouTube. O som do CW7 lembra muito o pop
feito pelo Restart. Ainda no primeiro semestre deste ano,
o grupo lança seu novo CD, com produção de Guto Campos. “Eles são uma banda diferente, com o vocal feminino.
O CW7 está chamando a atenção das pessoas. A banda
deles passa pelas mesmas coisas que vivemos no ano passado”, afirma Pelu.
Vitor
Garbelotto
DIVulgação
DIVulgação
Meretrio
Gabriel Wickbold
CW7
Talento erudito
O violonista Vitor Garbelotto estreou em disco com um trabalho arriscado. Garbelotto decidiu gravar a obra integral de
violão de Radamés Gnattali (1906–1988). O arranjador, compositor e pianista foi uma das figuras mais emblemáticas da
música brasileira. Radamés, que sempre passeou entre o erudito e o popular, era parceiro de nomes como Pixinguinha e
Tom Jobim. O risco provou ser válido. O disco de Garbelotto,
Radamés Gnattali: integral para o violão solo, foi sucesso de
crítica e gerou prêmios como o de artista revelação da música erudita de 2010 da Associação Paulista de Críticos de
Arte (APCA). “Eu me dediquei sete anos para realizar esse
disco. Ano passado foi super produtivo. Muitas pessoas ficam
surpresas quando veem um cara novo fazendo esse trabalho.
A música do Radamés é diferente de tudo que eu já tinha
ouvido, por isso decidi fazê-lo”, explica.
E a aposta de Garbelotto para 2011 também vem do cenário instrumental. O violonista acredita que o grupo Meretrio
– formado em 2003 pelos músicos Emiliano Sampaio, Gustavo Boni e Luiz Andre “Gigante” – encontrará o seu nicho de
mercado. O Meretrio lança seu quarto disco neste ano. Um
aperitivo do que está por vir é dado durante os shows do grupo, que apresenta um repertório dividido entre composições
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originais e releituras de standards da música instrumental. “O
Meretrio faz um trabalho sério e conta com grandes músicos.
O Emiliano, na minha opinião, é um dos melhores guitarristas
brasileiros”, finaliza Garbelotto.
Lucas Azevedo
música
Letieres
Leite
Independência
O Móveis Coloniais de Acaju sempre se orgulhou de ser independente. Uma das bandas mais interessantes a surgirem no
cenário indie da música brasileira, o Móveis caiu nas graças da
crítica com o segundo disco C_mpl_te, lançado em 2009. A
popularidade veio com canções de fácil assimilação. No início
deste ano, o grupo lançou o primeiro DVD, gravado ao vivo
no Auditório Ibirapuera, em São Paulo. No registro, a apresentação elétrica da banda que venceu o prêmio Experimente de
2010, do canal Multishow. Para Esdras Nogueira, saxofonista
do grupo, o momento musical do Brasil é estimulante: “Está
sempre surgindo algo legal”.
DIVulgação
Leonardo Wen
Móveis
Coloniais
de Acaju
16
Gaby
Amarantos
SARAIVACONTEÚDO MARÇO / ABRIL 2011
Grupo Cascadura
DIVulgação
O músico acredita que 2011 será o ano do fortalecimento do
trabalho de artistas como Gaby Amarantos e a banda Nevilton. A cantora paranaense que fez o tecnomelody, o eletrônico do Pará, conhecido em todo o Brasil, garimpa as músicas
para o disco de estreia que será lançado ainda em 2011. O
repertório promete misturar guitarrada, carimbó e, claro, tecnobrega. Já a banda Nevilton, do Paraná, teve o ano de 2010
marcado por elogios ao EP Pressuposto. O frescor do grupo
formado por Nevilton de Alencar, Thiago Lobão e Eder Chapolla despertou o interesse da crítica especializada.
Com músicas que não deixam ninguém parado, em refrões
simples e certeiros, o trio gera uma grande expectativa sobre
o primeiro disco.
A força do Recôncavo baiano
O ano de 2010 foi marcado por prêmios para Letieres Leite e
a Orkestra Rumpilezz. No Teatro Municipal do Rio de Janeiro,
durante o 21º Prêmio da Música Brasileira, os 20 músicos da orquestra subiram duas vezes ao palco para receberem os prêmios de Revelação do Ano e Melhor Grupo Instrumental. “Foi
um ano que marcou nossas vidas. Ganhamos espaço no cenário
da música de uma forma espontânea e positiva”, garante Letieres. Formada pelo arranjador e maestro Letieres Leite, a Orkestra Rumpilezz tem inspiração na cultura do centro de Salvador,
no candomblé e em agremiações percussivas como o Ilê Ayê e
o Olodum. A orquestra se prepara para gravar um DVD e ainda
excursionar por 20 cidades brasileiras em 2011.
E quanto às apostas musicais do grupo, Letieres Leite deixa o
seu recado: “O Brasil é pulsante ao falarmos de música. É pos-
sível destacar um movimento entre os compositores da Bahia
que é bastante profundo. São músicos que estão comprometidos com a cultura afro-baiana”, diz o maestro. Entre os nomes que participam deste movimento, Letieres destaca o grupo
Cascadura e a cantora Márcia Castro.
Paula
Fernandes
Emoções
Quando Paula Fernandes subiu ao palco montado na praia de
Copacabana, no final de 2010, para participar da gravação do
especial de fim de ano de Roberto Carlos, a sensação era de
dever cumprido. Em um vestido azul que realçava suas belas
formas, Paula chamou a atenção do país inteiro. “Ela é linda
e maravilhosa em tudo que faz”, disse Roberto. O reconhecimento da mídia apareceu em um momento oportuno para a
cantora, que está na batalha pelo seu espaço há mais de 18
anos. O CD e DVD Paula Fernandes ao vivo, lançado no início
de 2011, lidera diversas listas dos mais vendidos e prova que
o sertanejo pop romântico veio para ficar. “O ano passado
foi de plantio e semeadura. Ainda tenho muito o que fazer
e aprender, mas acredito que vivo um momento de colheita
pelos anos de trabalho”, explica Paula.
Guto Costa
Para a cantora, o ano de 2011 será de afirmação de um nome
que brilhou nos últimos dois anos na música brasileira: Maria Gadú. “Ela é uma excelente cantora e violonista. A Maria
Gadú tem tudo para continuar fazendo sucesso por muito
tempo”, finaliza.
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Luan
Santana
Meteoro Sertanejo
Com apenas 19 anos, Luan Santana recebe hoje um dos maiores cachês da música brasileira. Quem quiser ter um show do
astro sertanejo terá que desembolsar em média R$ 500 mil.
Ao longo do ano passado, Luan fez mais de 250 shows por 26
cidades brasileiras. “Lançamos o DVD no final de 2009, mas
foi em 2010 que o Brasil começou a conhecer minha música
através de programas de TV e dos shows que apresentamos
pelos quatro cantos do país”, explica o jovem cantor, que
lança o segundo DVD, com participações de Ivete Sangalo e
Zezé Di Camargo e Luciano, em abril deste ano.
Luan não vê novas revelações musicais surgindo na música
sertaneja em 2011. “Eu acho que o segmento sertanejo não
contará com nenhuma novidade neste ano. O mercado dá sinal que os artistas que fizeram sucesso em 2010 continuarão
em 2011 com novos trabalhos. Mas espero que em 2012 apareçam novos nomes para a música sertaneja”, diz o cantor.
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animação
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B
b
Joseph Barbera criou, junto com William Hanna, aquele
que foi o principal estúdio de animação para a televisão
do século passado, e por décadas vem garantindo alegria
e bom humor a crianças de todas as idades
Por Bruno Dorigatti
É quase impossível alguém ter crescido no mundo ocidental depois dos anos 1960 sem ter contato com a criação de
William Hanna e Joseph Barbera. Os dois foram responsáveis
por todo um universo lúdico, que habita a memória dos adultos que conviveram com a televisão. Basta mencionarmos os
nomes de Tom e Jerry, Os Flintstones, Zé Colmeia, Os Jetsons,
Scooby-Doo e Manda-Chuva. Ou ainda Dom Pixote, Pepe Legal, Homem Pássaro, Formiga Atômica, Jonny Quest e Zé Buscapé. A lista não para por aí, mas estes bastariam para ativar
a memória afetiva de quem conviveu com os personagens,
acompanhou suas aventuras e ainda se lembra de algum jargão ou trilha sonora dos desenhos.
Tudo isso só foi possível devido ao encontro um tanto casual
dos protagonistas desta história, William Hanna e Joseph Barbera — que completaria 100 anos em 24 de março —, fundadores da companhia que leva seus sobrenomes. William Hanna,
cujo centenário foi comemorado no ano passado, começou
aos 20 anos como editor e letrista em um estúdio independente. Depois de ter trabalhado como contador, Joseph Barbera
entrou para os Estúdios Van Beuren aos 21 anos. Ambos iriam
se encontrar na Califórnia, quando passaram a trabalhar um
ao lado do outro na Metro-Goldwyn-Mayer (MGM), em 1937.
Foi no estúdio que criaram, junto com Fred Quimby, o primeiro desenho animado de uma longa e prolífica parceria. Tom e
Jerry subverteu a ordem vigente dos filmes de animação ao
arriscar o riso através de uma violência imaginada e possível
somente na fantasia. Em 1945, Jerry chegou a dividir a tela do
cinema com ninguém menos que Gene Kelly dançando “The
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SARAIVACONTEÚDO MARÇO / ABRIL 2011
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ba-d o o
Joseph Barbera e William Hanna.
Comparável a eles, só Walt Disney
worry song”. A dupla que protagoniza a clássica perseguição
entre gato e rato ganhou sete Oscars de melhor curta de animação, entre 1943 e 1952.
Mas a parceria deslancha mesmo quando a MGM resolve fechar seu departamento de animação em 1957, e os dois se
unem para criar o Hanna-Barbera (HB). “No início do mercado
de animação, o único cliente eram as companhias cinematográficas, que tinham até estúdios próprios para a criação de
desenhos animados. Mas a chegada da televisão criou uma série de novas oportunidades e o Hanna-Barbera foi o primeiro
grande estúdio a produzir material exclusivo para a TV. Nesse
sentido, a empresa foi fundamental em um momento de transição na história dos desenhos animados de uma mídia para
outra”, afirma André Morelli, autor dos livros Super-Heróis nos
desenhos animados (Europa, 2010) e Super-Heróis no cinema
e nos longas-metragens da TV (Europa, 2009) e redator da
revista Mundo dos Super-Heróis.
diferente: para criar uma série de TV, eles teriam que produzir
muitos episódios em pouco tempo e com um orçamento muito menor do que eles estavam acostumados nos tempos da
MGM”, continua Morelli.
A estreia se deu no mesmo ano de criação da HB, em dezembro, no canal NBC, com The Ruff and Reddy Show, conhecidos aqui como Jambo (o gato) e Ruivão (o cachorro). Ainda
no final da década, criaram Pepe Legal, Olho Vivo e Faro Fino,
Dom Pixote e Mister Magoo. “O traço era mais estilizado, as
cores eram chapadas, havia muita repetição de cenas para
economizar no trabalho dos animadores e cada episódio tinha cerca de quatro minutos. Era uma forma de driblar as
limitações, e tornou viável a produção de desenhos animados
para a TV”, acrescenta. Até então, os desenhos animados eram produzidos para o cinema, já que a televisão, surgida no início dos anos 1950, ainda
não havia tomado conta dos lares norte-americanos. Os filmes
animados tinham custos elevados, que nem sempre eram cobertos com a bilheteria. Ao criarem desenhos mais curtos e
menos dispendiosos, com cenários mais simples e menos detalhados, a dupla conseguiu equacionar o que parecia impossível.
Passaram a fazer duas horas e meia de animação por semana,
enquanto anteriormente se levava um ano para chegar a 40
minutos. “O problema é que era um mercado completamente
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animação
Mas a conquista definitiva do público aconteceria na década seguinte. Nos anos 1960, Os Flintstones e seu peculiar e arquetípico retrato da tradicional família suburbana
norte-americana – com a diferença de ser ambientada na
Idade da Pedra – conseguiu emplacar no horário nobre. Foi
o primeiro desenho com personagens humanos, em episódios de meia hora, e a partir daí, tudo mudou no que
diz respeito aos desenhos animados na televisão. Naquela
década surgiram Zé Colmeia e Scooby-Doo, Os Jetsons e
A Formiga Atômica, A Tartaruga Touché e o Coelho Ricochete, Bob Pai e Bob Filho, Corrida Maluca e Jonny Quest,
Space Ghost e Os Herculoides, Space Ghost e Wally Gator.
Seja humanizando animais ou criando super-heróis, a Hanna Barbera construiu uma incrível, e até então impensável,
linha de produção de personagens e situações muito mais
próximas da nossa realidade do que os desenhos de Walt
Disney, o único estúdio com produção comparável. E apesar de não ter criado um ícone à altura de Mickey Mouse,
provavelmente atingiu um público equivalente.
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SARAIVACONTEÚDO MARÇO / ABRIL 2011
Tentar desvendar os mecanismos que colocaram estes desenhos na memória afetiva de todas as gerações que cresceram
acompanhando-os é sempre difícil, mas Morelli arrisca alguns:
“Carisma era um dos principais ingredientes na fórmula da
HB. Willliam Hanna era um animador nato, com grande senso
de ritmo e construção de histórias. Já Joseph Barbera tinha
um traço preciso e era um grande criador de gags, pequenas
situações de humor físico ou verbal. Juntos, os dois criaram
personagens que se tornaram eternos graças a suas frases
de efeito e movimentos característicos, que sempre se repetiam diversas vezes no mesmo episódio”. Outra característica
importante do estúdio, segundo Morelli, é a simplicidade na
ideia básica das histórias: “um gato que persegue um rato, um
urso que adora cestas de piquenique, uma família pré-histórica. Temas simples, que qualquer pessoa pode identificar, de
adultos a crianças bem pequenas. Isso tornou a temática dos
desenhos universal”.
Joseph Barbera imaginava que não fosse se dedicar a vida
inteira à animação. “Eu nunca me cansei de Tom e Jerry, mas eu tive um sonho de fazer mais com minha vida do que
desenhos animados”, chegou a afirmar. Mas se orgulhava do
seu trabalho, considerava-o uma forma de alívio. “A animação
é um alívio para o que está acontecendo no mundo. Você se
levanta de manhã e, ao ligar o rádio, ouve que uma ponte caiu em Albany, explodiu uma bomba aqui e há uma inundação na Costa Leste. Então você liga a TV e vê tudo isso, ao
vivo. Onde está o alívio? É isso que fazemos: proporcionamos
alívio em forma de fantasia. É importante fazer as pessoas
esquecerem o que realmente está acontecendo”, sentenciou
Barbera em uma das mais conhecidas opiniões sobre o seu
próprio trabalho.
Como já dito, a importância da Hanna-Barbera só pode ser
comparada a do estúdio criado por Walt Disney. O que seria do panorama da animação se eles tivessem chegado a
trabalhar juntos? “No início de sua carreira Joseph Barbera
mandou uma carta para Walt Disney, com alguns desenhos
do Mickey. Walt respondeu à carta e disse que gostaria
de marcar um encontro de negócios com Barbera, o que
nunca aconteceu. Se a Disney tivesse contratado Joseph,
é possível que ele nunca tivesse conhecido William Hanna
e a história da animação seria completamente diferente”,
completa Morelli.
foi adaptado para o cinema, o que já havia acontecido com Os
Flintstones (em 1994 e 2007) e Scooby-Doo (em 2002), com
personagens em carne e osso. Já a adaptação de Os Smurfs,
outro desenho surgido nos estúdios Hanna-Barbera nos anos
1980, estreia em agosto em versão digital, quando os pequenos e azulados vão parar em Nova York. Há também livros,
como Art of Hanna-Barbera (1989), de Ted Sennett em parceria com a dupla, Hanna-Barbera Cartoons (2005), de Michael
Mallory, The Hanna-Barbera Treasury (2007), de Jerry Beck, e
o recém-lançado William Hanna and Joseph Barbera, de Jeff
Lenburg; nenhum deles ainda publicados no Brasil.
Nos anos 1990, o estúdio HB foi comprado pelo conglomerado
de comunicação de Ted Turner, criador da CNN, e que inclui
outros canais, como TNT e Cartoon Network. Mais tarde, este
último foi adquirido pela gigante Time-Warner, e hoje alguns
dos mais famosos desenhos criados pela Hanna-Barbera são
exibidos no Cartoon Network. Além disso, é possível deliciar-se
com as aventuras de Os Flintstones, Scooby-Doo, Os Jetsons,
Jonny Quest, Corrida Maluca e Manda-Chuva nos DVDs que a
Warner lançou nos últimos anos. Recentemente, Zé Colmeia
“Acredito que o grande legado deles para qualquer artista seja
a forma criativa que o estúdio encontrou para superar todo
tipo de limitação. Acima da técnica ou de grandes orçamentos,
o segredo estava nas suas ideias e no bom humor. Uma parte
do público de hoje pode acreditar em um primeiro momento
que as animações clássicas são ingênuas e de um visual pouco
chamativo. Mas duvido que essas mesmas pessoas consigam
assistir a um episódio do Manda-Chuva sem dar pelo menos
uma boa gargalhada”, finaliza Morelli.
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literatura
Literatura futurista
mais uma febre no mercado
editorial PARA OS JOVENS
Feios, a série de Scott Westerfeld, e Destino, de Ally Condie,
são os novos fenômenos que devem aquecer o mercado brasileiro
Por Renata Megale
O mercado editorial brasileiro já começa a viver nova tendência para os adolescentes, ou YA – young adults (jovens adultos, em tradução literal), como são chamados nos Estados
Unidos. Depois da febre dos vampiros, que dominou a lista
de mais vendidos por vários meses, vislumbra-se a chegada
de uma onda de lançamentos sobre cidades futuristas, onde
quase tudo é possível.
Até aí, não há muita novidade. Os leitores juvenis já devoraram livros ambientados em um mundo fantástico, como Harry
Potter, sucesso mundial de venda e responsável por deixar
sua autora J.K. Rowling a mulher mais rica da Inglaterra, ou O
Senhor dos Anéis, onde lutas entre o bem e o mal, com magias e feitiços, arrebataram os leitores. Mas nesta nova safra
de lançamentos adiciona-se a este ambiente fantástico dilemas e soluções associados à vaidade humana. As histórias
passam a trazer cirurgias em busca da perfeição ou mesmo
sociedades em que tudo pode ser controlado através de pílulas. É o caso da série Feios (Record), de Scott Westerfeld, e
Destino (Objetiva), de Ally Condie.
Esta nova temática fantástico-futurista dos livros reflete certo
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SARAIVACONTEÚDO MARÇO / ABRIL 2011
cotidiano vivido pelos jovens no mundo atual. “Os personagens
destes romances passam por dilemas que o próprio leitor se
identifica, como a perda de privacidade e a luta com o espelho
em busca da perfeição física”, comenta a psicóloga Renata Carolo Nepomuceno.
A série Feios, de Scott Westerfeld, por exemplo, tem suas raízes na beleza estética, uma referência ao culto do mundo das
celebridades, à busca pelo corpo perfeito e de um modelo ideal inatingível. A série já foi traduzida para mais de 25 línguas e
é considerada um fenômeno de vendas, alcançando o topo da
lista dos mais vendidos em muitos países, dando a dimensão
de que talvez estas questões sejam realmente relevantes preocupações no universo dos adolescentes dos dias de hoje.
Feios é protagonizada por Tally Youngblood que, antes de
completar 16 anos, fica extremamente ansiosa por se tornar
perfeita. No mundo de Tally, a chegada a esta idade significa
passar por uma operação que a transformará de “feia” em um
ser incrivelmente belo e perfeito, o que lhe dará passe livre
para uma vida de glamour, festas e diversão, onde seu único
trabalho é aproveitar muito.
Scott Westerfeld, é formado em filosofia no Texas e tem mais
de 15 livros publicados. Já ganhou diversos prêmios, como o
Victorian Premier e Aurealis, além de ter recebido o título de
Melhor Livro para Jovens Adultos pelos livros Vampiros em
Nova York (Record, 2008) e Feios (Record, 2010). Ambos entraram na lista de mais vendidos do New York Times desde
quando foram lançados. Aqui no Brasil, o selo Galera Record
lançou os dois primeiros volumes, Feios e Perfeitos. O próximo,
Especiais, está previsto para o primeiro semestre de 2011 e o
último, Extras, ainda não tem previsão de lançamento.
Em entrevista por e-mail à revista SaraivaConteúdo, Westerfeld
afirmou que a vontade e a ideia para a série vieram através de
uma conversa com a sua cunhada, que trabalha com efeitos visuais para o cinema. “Ela estava me contando sobre os efeitos
especiais de embelezamento das atrizes nestes filmes e como
elas se tornavam praticamente perfeitas nas telas através destes
recursos. Isso aguçou uma curiosidade muito forte em mim: até
onde a tecnologia vai chegar para nos tornarmos seres perfeitos
e atender as demanda do mercado?”, questiona o escritor.
“O que eu gosto na ficção científica é que os temas podem
ser simples e superficiais. As mensagens são meros desdobramentos. Por exemplo, os rusties (nossa civilização) destruíram
o mundo. Em Feios, as pessoas não têm tempo para filosofar
sobre isso, elas têm que simplesmente consertar o estrago.
Elas também não têm tempo para pensar no significado da
beleza e porque ela é tão importante. Elas estão muito ocupadas fugindo de pessoas que querem arrancar seus rostos e
lhes dar outros melhores”, conta Westerfeld, que acredita ser
esta a única série que vai escrever.
Ser adolescente é algo muito intenso e Westerfeld tenta imaginar como isso se dá em um futuro distópico. “Os dias bons
na adolescência são mais excitantes do que qualquer outro
que você viverá na vida adulta, e os dias ruins são o fim do
mundo.” O autor acredita que os adolescentes leem de modo
tão intenso quanto vivem: conversam com seus amigos na
linguagem dos livros, gritam alto quando algo dá errado.
“Então e-mails de fãs adolescentes são igualmente intensos.
Eles não hesitam em me dizer onde errei ou onde acertei.
Muitas vezes são bastante encorajadores, mas sempre honestos. Acredito que todos os jovens se identifiquem com estas
questões pontuais do meu livro. Historicamente, grande parte
da ficção é fantástica – mitos, contos de fadas etc. A tendência do chamado ‘realismo’ é a grande novidade, e ela ainda
não provou ser algo que irá durar para sempre. Acredito que
os adolescentes estejam mais próximos ao modo primordial
de se contar uma história, onde alguém é levado a um lugar
diferente daquele onde vive”, acrescenta.
Além de Feios, um dos grandes lançamentos aguardados
para abril deste ano é o livro da norte-americana Ally Condie,
Destino (Objetiva). Primeiro volume de uma trilogia homônima, o livro foi lançado em novembro de 2010 nos Estados
Unidos. O segundo volume, Crossed (Encontro), está programado para novembro deste ano e o último volume, ainda sem
nome, para dezembro de 2012.
A autora, que abandonou a carreira de professora de inglês
do ensino médio para se tornar mãe, começou a escrever por
hobby. Antes de Destino, publicou outros cinco romances para
jovens. Segundo ela, o universo do livro foi inspirado em uma
série de pequenas experiências ao longo de sua vida. “Coisas
aparentemente simples, mas que me marcaram de forma profunda, como uma conversa com meu marido sobre o futuro e
o meu baile de formatura. Acho que o meu livro é diferente das
obras do mesmo gênero exatamente por estar centrado em
questões mais introspectivas”, afirma Condie.
Poucas semanas após a publicação nos Estados Unidos, o livro
já figurava na lista de mais vendidos do New York Times, e três
meses depois os direitos do primeiro livro da série já haviam
sido vendidos para mais de 30 países. Na história criada pela autora, o futuro parece muito tranquilo. Os indivíduos têm acesso à
educação, emprego e todo o bem-estar que um governo pode
proporcionar – as ruas são extremamente limpas e organizadas
e os meios de transporte são modernos. Mas é esse mesmo governo, a quem todos chamam agora de Sociedade, que decide
onde se deve morar, o que comer, onde trabalhar, como se divertir, com quem se casar e quando se deve morrer.
A protagonista Cassia tem absoluta confiança nas escolhas
que a Sociedade lhe reserva. Como a maioria das meninas, aos
17 anos, ela já está pronta para conhecer seu Par. Quando surge
numa tela o rosto de seu amigo mais querido, Xander – bonito,
inteligente, atencioso, íntimo dela há tantos anos –, tudo parece bom demais para ser verdade. Mas depois logo outro nome
surge como um possível futuro para ela e, a partir deste impasse, o livro cria um clima de angústia e expectativa em função
da culpa que a adolescente sente por estar se desviando do
que a Sociedade espera.
O ciclo das duas obras vai percorrer também o circuito cinematográfico, como virou praxe para os livros que se destacam neste segmento editorial. Destino já está com os direitos
vendidos e será produzido pela Disney em associação com a
Offspring Entertainment, após uma acirrada disputa com a Paramount Pictures. De acordo com Westerfeld, a adaptação de
Feios ainda está sendo negociada. “Essa ainda é uma possibilidade e há financiadores e roteiristas envolvidos. Mas ainda
não há diretores ou atores, então nada irá acontecer em breve.”
Para se tornar algo ainda mais verossímil com a série, o autor
acredita que o ideal seria fazer com atores pouco conhecidos,
“porque todos sabemos lá no fundo que as grandes estrelas de
cinema são lindas, mesmo quando fingem ser feias”, conclui.
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SARAIVACONTEÚDO MARÇO / ABRIL 2011
Adriana
Calcanhotto
e seus sambas por acaso
Por MARCIO DEBELLIAN FOTO TOMÁS RANGEL
“Batuque é um privilégio / Ninguém aprende samba no colégio”, dizem os versos
de Noel Rosa na canção “Feitio de oração”, feita em parceria com Vadico. Parece
até que o Poeta da Vila se inspirou em Lupicínio Rodrigues, que foi expulso do
colégio São Sebastião depois de apenas uma semana de escola porque batucava
sambas em sala de aula. Orgulhoso, ele disse: “veja, que desde pequeno trazia
no sangue o micróbio do samba, esse micróbio que cresceu comigo e não quer
me abandonar, quanto mais velho eu fico mais ele se apega a mim”.
Adriana Calcanhotto assina embaixo, e o seu “micróbio”, que já se mostrava evidente desde o disco de estreia, com o passar do tempo rejeitou qualquer complexo de coadjuvância e impôs o seu lugar: “Foi uma febre, eu sentava para compor
e só saía samba, não sei o que aconteceu, mas saía tudo pro caminho do samba”,
conta a compositora.
O resultado desta contaminação irremediável está em seu mais novo trabalho, O
micróbio do samba (Sony), que chega às lojas no dia 21 de março, no Brasil e em
Portugal. Gravado no Rio de Janeiro pelo trio formado pela própria Adriana (voz,
violão, piano, guitarra, caixa de fósforos, cuíca e bandeja de chá), Alberto Continentino (contrabaixo) e Domenico Lancellotti (bateria e percussão), com “auxílio
luxuoso” de Davi Moraes (viola morna, violão e cavaquinho) em três faixas, o disco
passa longe de um disco de samba tradicional.
“Esse disco não quer isso. O samba é uma influência muito forte, é o motor propulsor do disco e não a meta. Eu não quero fazer e entender de samba. Eu quero
continuar sendo uma impostora de música, como sou.”
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capa | Adriana Calcanhotto
Esse seu disco foi surgindo meio por acaso? Já era uma
ideia, você tinha vontade de fazer um disco com repertório de sambas?
Adriana Calcanhotto Nunca tive ideia de fazer um disco de
samba, nunca achei que fosse fazer um disco de samba, e
na verdade não fiz um disco de samba. Eu tinha uns sambas – durante uma fase, fui fazer canções e tudo que saía
era samba. A Thaís Gulin me pediu uma canção, eu estava
bem no meio dessa safra e disse isso pra ela: “Só sai samba,
não sei o que aconteceu, não sei porque, mas sai tudo pro
caminho do samba”. E foram aparecendo. Tinham os dois
sambas que já tinham sido gravados: o “Beijo sem”, pela Teresa Cristina, e o “Vai saber” pela Marisa Monte. E eu não
sei, foi uma febre. Eu e o Leo, meu empresário, costumamos
dizer que esse disco brotou. Ele não vem de um desejo, ele
não vem de um sonho antigo, uma ideia, um “ah, um dia eu
vou fazer isso”. Ele aconteceu assim: a gente foi pro estúdio
gravar uma outra coisa – uma música para uma novela, uma
canção que fiz por encomenda – eu, Domenico Lancelotti e
o Alberto Continentino, e daquilo, da gente estar ali naquele
estúdio, veio a vontade de registrar alguns sambas. Mas com
a empolgação do Domenico e do Alberto, e a fluidez com
que a coisa aconteceu, começou a ficar mais forte a ideia de
ser um disco. Já que a gente ia registrar os sons, em vez de
ele ficar só organizadinho na prateleira da editora, as pessoas poderiam ouvir. E foi indo assim. Depois que a gente
combinou, “então vamos fazer o disco”. Aí eu acho que fiz
mais uns três ou quatro sambas, porque estava na inércia, já
tinha onde registrar e queria tocar com os meninos.
o Alberto está olhando para a minha mão. Quando a gente
foi gravar os outros, de maneira diferente, separar o som
do violão e isso tudo, ele não via a minha mão. Aí o Daniel
[Carvalho, produtor do disco] inventou lá um sistema com
o meu laptop, puxou uma camerazinha, uns cabos, não sei
o que mais e então ele gravou me olhando tocar na sala de
cima, no vídeo [risos].
O processo, por exemplo, com o Alberto Continentino,
que o Domenico descreve no encarte do disco, de você estar tocando violão, e ele olhando para sua mão para fazer
os acordes no contrabaixo. Tinha esse quê de improviso
de jazz, nesse sentido?
Totalmente, totalmente jazz nesse sentido. Porque a gente tocou junto, muito junto, e um olhando para o outro. E
o Alberto, na verdade, foi chamado para ir para o estúdio
tipo “vai ter uma gravação com a Adriana dia tal, tal hora,
você pode? Então vai lá e leva o baixo acústico”. Então ele
achou que estava indo gravar uma faixa e chegou e gravou
um disco, praticamente. A gente tocando de primeira as bases saíram muito coesas, e a gente terminava junto, como se
sempre tivéssemos tocado aquilo. Mas isso é muito porque
E quando você pensa no seu repertório, para o show,
por exemplo, o que você acha que dialoga mais com
esse trabalho?
Olha, estou pensando sobre o show ainda. Imagino que tenha a mesma fluidez e a facilidade que teve a gravação. A
Marisa Monte me disse uma coisa, quando falei “olha, aqueles
sambas vão virar um disco”. Ela disse assim: “Você vai ver,
samba é um negócio que você senta, grava e tudo flui”, e
ela tem toda razão. Não tem muitas coisas dos arranjos híbridos, de coisas que eu já fiz, de timbres eletrônicos misturados com acústicos, que dão um pouco de trabalho na
gravação, e depois na transposição para o palco. E essas
coisas com o samba, você senta e toca, e é verdade, Marisa
tem razão. Uma das primeiras coisas que pensei para o reper-
E nas letras eu ouço umas coisas que eu gosto, que são
ecos de sambas antigos. Embora sejam absolutamente
contemporâneos, tem um diálogo com coisas que Aracy
de Almeida poderia ter cantado, um vocabulário do samba. Coisas que me fazem pensar “poxa, isso aqui me lembra um samba do Noel”...
Eu acho que assim, parecido com os outros trabalhos que
fiz, esse tem uma conversa com o imaginário, com os sambas antigos, com as coisas que me formaram, tem muito. Eu
enxergo totalmente as minhas influências, onde é que está o
Lupicínio [Rodrigues], o Ismael [Silva], onde é que estão as
conversinhas e tal. Porque o samba, e essa coisa que o Lupicínio fala do micróbio do samba, né... Pode-se ter o micróbio,
não necessariamente você é do mundo do samba, pretende
ser sambista. Eu não tenho a menor pretensão, esse disco
não quer isso. Na verdade, acho que quanto mais você tira,
quanto mais uma canção minha fica no osso, mais o samba
vai ficar explícito. O samba como influência. O samba é uma
influência muito forte, é o motor propulsor do disco e não
a meta. Eu não quero fazer e entender de samba. Eu quero
continuar sendo uma impostora de música, como eu sou.
A Marisa Monte me disse uma coisa, quando eu falei “olha, aqueles
sambas vão virar um disco”, ela disse assim: “você vai ver, samba é um
negócio que você senta, grava e tudo flui”, e ela tem toda razão.
26
SARAIVACONTEÚDO MARÇO / ABRIL 2011
Por que não vai tocar violão?
Gravei os violões do disco, menos uma faixa, e assim que acabaram as gravações toquei cuíca, caixa de fósforo, brinquei
com esses timbres do samba, e aí tive uma lesão no punho
direito, provavelmente por excesso de uso, porque eu estava
fazendo um projeto de desenho também, e não estou podendo tocar. Então, num primeiro momento me senti totalmente
de castigo. Sou completamente destra, não faço nada com a
mão esquerda, fiquei um tempo sem poder escrever, mexer
no laptop, tocar violão, sem desenhar. Encarei como um castigo, mas depois encarei como uma grande oportunidade. Na
verdade, eu tenho tocado piano, que é uma coisa que não dói
o punho. Tenho feito canções sem instrumento, que é uma
coisa que alarga o espectro melódico. Enfim, está interessante assim, engraçado. Com isso, tem umas novidades no jeito
que eu posso selecionar o repertório para o show. Posso escolher sambas complicadíssimos, coisas atonais, o Paulinho
da Viola mais encrencado, porque é o Davi Moraes quem vai
tocar [risos]... Acho que isso vai ajudar a construir um roteiro
que é pensado só do ponto de vista da intérprete e não da
limitação da instrumentista, entendeu? O Domenico quer que
eu me comporte no show como crooner, vou ter que estudar,
aprender. É um desafio, acho que vai ser engraçado [risos].
Já escolheu a música de trabalho do disco?
“Tá na minha hora”, porque acho que tem a ver com o disco
todo. Se você não ouve o disco todo, só ouve essa, ali tem
uma síntese, tem a clave da Mangueira, aquela caixa, aquilo
tudo dentro da levada da Mangueira. Isso tudo é uma síntese, porque o universo da Mangueira para mim é muito importante, para além dos sambas feitos pelos compositores
da Mangueira. Tem a coisa das cores, tem a coisa do Hélio
Oiticica. A Mangueira é muito importante para mim, sempre
foi. E acho tão bonito aquele canto de pastora que o Domenico faz ali, acho comovente aquele “laiá laiá”...
Você soltou esta música no seu site no dia 13 de fevereiro,
como forma de comemorar a data em que você chegou ao
Rio de Janeiro em 1989. Quando você veio para o Rio, já
sabia que ia gravar o Enguiço, seu primeiro disco?
GILDA MiDANI
tório foi o Domenico abrir o show fazendo “Te convidei pro
samba” [de Pedro Sá, Maurício Pacheco e Domenico Lancelotti], um samba que adoro, pra mim é um clássico, apesar
de ser novinho, contemporâneo. Acho que vai ter um Noel,
um Lupicínio, as principais influências de O micróbio... Mas
tudo é possível. Eu não esperava, não sabia, que no show não
ia poder tocar. Então isso também, essa condição de crooner,
que nunca tive, nunca vivi, me dá muita liberdade em relação
a repertório. Se eu não vou tocar violão, posso escolher as
canções de outra maneira. Vai ser divertido pensar no show.
Adriana Calcanhotto com os músicos que participaram da gravação
do disco: Alberto Continentino, Domenico Lancellotti e Davi Moraes
Nããão... Quando a Maria Lúcia Dahl foi fazer uma peça em
Porto Alegre, caiu na mão dela uma fita minha de show,
onde eu cantava “Caminhoneiro” (Roberto Carlos / Erasmo
Carlos), e ela achou aquilo incrível, quis me conhecer e disse
“olha, não conheço nada, não sou de música, minha turma
não é de música no Rio, mas eu adoraria te ajudar, sem compromisso”. E essa ajuda dela, totalmente sem compromisso, como ela tem amigos incríveis, fez as pessoas ficarem
curiosas. Enfim, aquilo virou um negócio, as pessoas começaram a ir para o Mistura Fina, que era onde o show estava,
começaram a prorrogar aquela temporada. E as pessoas de
gravadora então começaram a aparecer. Eu não esperava
aquilo, naquele momento só estava vivendo para fazer shows, pensando em palco. Gravação era uma coisa tão distante. Mas aquilo apareceu e intuí que não era uma coisa de
se dizer “não, obrigada, passo aí mais tarde”, entende? Daí
assinei. Quando vim para o Rio não tinha noção de nada. Na
www.SARAIVACONTEUDO.com.br
27
capa | Adriana Calcanhotto
“Quanto mais você tira, quanto mais uma canção minha fica no osso,
mais o samba vai ficar explícito. O samba é uma influência muito forte,
é o motor propulsor do disco e não a meta.”
época, estava indo muito para São Paulo. Frequentemente,
todo show que eu estreasse em Porto Alegre, levava para
São Paulo também. Fiquei ali, fiz alguns amigos, fiz contato
com o Caio [Fernando Abreu], alguns amigos atores do sul
que estavam lá, outros amigos paulistas, Rubens Caribé me
hospedou na casa dele...
Como era a sua relação com o Caio?
Minha relação com o Caio era difícil. O Caio era como... Era
um escritor, que conheci primeiro pelos livros, então para
mim já estava naquela categoria “o escritor”. Não achava
que podia chegar perto, conhecer, nem nada assim. E depois
que o conheci, a gente tinha uma relação afetiva muito íntima, quando estávamos juntos. Era uma coisa muito calma
entre nós dois. Mas ele fez muitas coisas por mim que não
dizia, não contava, eu não sabia. Coisas que fico sabendo
hoje, que ele ligou para alguém no jornal e falou, mandou ir
ao show, deu uma foto para alguém publicar numa coluna e
não sei o quê. Ele fez coisas incríveis assim, que me surpreendem até hoje.
O seu segundo disco, Senhas, já é um disco mais pensado,
menos de susto?
A diferença do primeiro para o segundo foi o desejo. O primeiro eu não tinha desejo de fazer. Quer dizer, fiz porque apareceram as condições para fazer e, afinal de contas, fui para
um estúdio, profissional, onde gravava todo mundo, com um
produtor que gravava todo mundo, músicos incríveis, arranjos
do Dori Caymmi, tudo certo. Mas não sabia muito bem, não
tinha pensado as coisas em termos de disco. E o que é que
a gente fez? Transferimos o meu repertório, de show, para o
disco. Aí é que a Maria Lúcia Dahl põe a questão, na época:
“O disco não transmite o que você estava fazendo no palco”.
Porque essas versões tinham muita ironia, e é praticamente
impossível imprimir ironia num disco. Ainda mais armado do
jeito que ele [Enguiço] foi armado, um negócio que não ficou
nem lá nem cá. O Senhas eu tive vontade de fazer, tive vontade de mostrar minhas canções. “Mentiras”, “Negros”, “Graffitis”, tudo isso foi uma coisa que fiquei no meu apartamento,
sentada com o meu violão, compondo para o disco, mas ele
teve um início um pouco confuso. Quando fui no Jô Soares,
dei uma entrevista, e falei que tinha cantado numa churrascaria em Porto Alegre, chamada Moenda. E foi verdade, eu
cantei duas noites. Agora sei que, no Rio de Janeiro e em São
Paulo, “churrascaria” é um termo que remete a uma coisa que
28
SARAIVACONTEÚDO MARÇO / ABRIL 2011
não é a mesma coisa que no Rio Grande do Sul. Então no
momento em que eu disse “churrascaria”, virei a “cantora das
churrascarias”. Não entendia bem o que as pessoas estavam
esperando de mim, era a expectativa errada de um negócio
apressado. Ou eu era a nova Elis Regina, que não era, ou era a
“cantora de churrascaria”, que também não era. Eu estava por
aí fazendo apresentações em lugares alternativos, no Espaço
Off, no Madame Satã [extintas casas de shows no Rio]... A coisa tinha ficado tão confusa que ninguém quis produzir o meu
segundo disco. Ninguém quis se meter com uma pessoa que
ninguém estava entendendo quem era. As pessoas ficaram
meio ameaçadas. Não encontrei parceiros para produzir o
disco. O que foi ótimo, porque aí tive que botar a mão na
massa, fiz as canções e chamei pessoas que me ajudaram a
inventar o disco. Eles diziam, Sacha [Amback], Marcelo Costa, Ricardo Rente... O Péricles Cavalcanti foi a última pessoa
a quem eu disse “produz o meu disco?” E ele falou: “Para
quê? Produz você. Você, melhor do que ninguém, vai saber
o que quer”. Eu me achava incapaz e os músicos também
diziam “faz, faz o negócio para ser bem feito”. E aí foi assim,
o Senhas foi assim.
Em Marítimo, gosto de você ter gravado com Caymmi,
ter Hermeto Pascoal no disco. Vejo essa coisa do sonho,
de você chegar e dizer “poxa, quero encontrar com essas
pessoas e tê-las no meu disco”. Fiquei pensando sobre
isso em relação a O micróbio do samba, de não ter convidados, você assinar quase todas as canções sozinha, gravar com um trio. É um estágio de quase autossuficiência,
de algo mais contido, uma turma menor?
Nunca pensei sobre isso assim. Como O micróbio... é um negócio que nasceu e vem do meu violão, do meu jeito, da minha batida do violão... Nem sei muito como explicar... Acho
que poderia fazer um disco mais tarde com pessoas que
gostaria muito de ver trabalhando. Porque isso é incrível,
você fica perto, e vê a maneira das pessoas trabalharem.
Dentro do estúdio, você ver o Caymmi gravando voz, o Gil
tocando violão no Maré, foi incrível aquilo. É muito rico. Com
O micróbio, eu não sei o que aconteceu. A primeira participação, o primeiro convidado foi o Rodrigo Amarante, e
foi meio assim “o Rodrigo está aí no Rio, vamos aproveitar”
para ele fazer uma música que eu queria que ele fizesse.
Mas quando ele chegou, fiquei com um pouco de ciúmes do
disco. Porque até ali, só tínhamos nós três, o disco era nosso.
Aí ele entrou... Eu adorei o que ele fez, mas foi uma sessão
GILDA MiDANI
tensa, foi meio “por que esse cara tá botando essa guitarra
no meu disco?” [risos]. Eu falei com o Daniel: “Quem chamou
esse cara?”, ele disse: “Foi você!” [risos].
também era para isso, para interferir e não para enfeitar –, foi
interessante isso. Até ele se colocar, achar o instrumento, foi
uma sessão difícil.
O disco passa mesmo essa coesão entre vocês três ali, uma
coisa de grupo...
Domenico e Alberto estavam comigo na banda Partimpim.
Davi também. Mas Domenico e Alberto já estavam na banda
Maré. Então no jeito de me relacionar com eles musicalmente,
cada vez a gente fala menos. Se eles chegarem aqui agora,
a gente senta e toca, ninguém vai falar. Isso é uma coisa tão
bacana e acho que não é toda hora que isso se dá. Porque o
Domenico, Alberto e Davi são compositores também. Então
isso ficou durante um momento ali, que a gente teve aquilo só
nosso, tão bacana, sem ter conversado muito. Ficamos muito
donos daquilo ali. Achando também tudo tão essencial, um
violão, baixo, e uma coisa que o Domenico gravou nesse disco, um surdo que ele deita no chão. Ele fez uma pecinha que
prende no chão, e usa aquilo como bumbo, mas é um surdo. E
uma caixa Hollywood, que ele ganhou na Itália, estava perseguindo há um tempo. Esse é o set dele. É samba sem prato...
Enfim, ele armou o set dele, o Alberto escolheu lá aquelas
levadas, aquele jeito de encarar a minha batida, os meus sambas. Aí o primeiro que entrou foi o Rodrigo [Amarante], o que
foi bom, ele ficou experimentando guitarras. Ele viu que não
foi também chegar nessa coisa tão coesa e interferir – que
Quando você olha para a sua discografia, salta um disco
preferido? Você tem isso, de falar, de todos os meus discos, gosto mais desse?
Não, não sei. Eu não saberia escolher um disco da Maria Bethânia, por que saberia escolher um meu? Acho que meus
discos são tão diferentes entre si e a cada momento em que
foram feitos queriam coisas tão diferentes que é difícil escolher. Talvez assim, pensando numa condição que jamais vai se
repetir, é a A fábrica do poema. De ter aquele tipo de pessoa,
com aquele mesmo desprendimento, aquela liberdade em relação a gravadoras. Não estava nem prestando atenção no
que eu estava fazendo. E as loucuras que a gente fez naquele
estúdio, para produzir os sons, alguns não são nem reconhecíveis dentro do disco. Mas em vez de você pegar um sample
de uma caixinha de arroz fazendo não sei o quê, você vai lá no
banheiro do estúdio, microfona, passa cabo, a gente fez muita
coisa assim. Enfim, um disco que tem convidados também.
Eu acho que não saberia fazer aquele disco de novo.
Você não se ouve?
Não. Eu não me ouço. Difícil, Marcio. Difícil. Olha, vejo muitas
entrevistas em que as pessoas dizem “eu não ouço meus
discos”. Esses dias, fiz um show e o motorista tinha comprado o meu disco, para botar no carro, para eu ouvir indo para
o show. Entendo que aquilo é carinho, é o máximo, mas não
dá para ir para o seu show ouvindo o disco. Não dá! [risos].
Você viu na internet várias pessoas falando que o nome do
seu disco poderia ser uma referência ao Micróbio do frevo
(2005), do Silvério Pessoa? Não tem nada a ver, né?
Não tem nada a ver! Eu, por ignorância, também, só li sobre
Micróbio do frevo por causa d’ O micróbio do samba e fui
ouvir a música, vi que o Gil cantou com o Silvério. Mas não,
sabe que O micróbio do samba, estava lendo sobre Lupicínio
e aí ele diz essa coisa, que está no encarte do disco: ele foi
expulso do Colégio São Sebastião e o motivo foi que ficava
batucando na classe os sambas, umas músicas que ninguém
entendia. Isso é o que ele diz e fala com orgulho dizendo:
“Está vendo? Desde pequenininho eu trazia o micróbio do
samba, que quanto mais velho eu fico, menos quer me abandonar”. Eu li isso e transportei para o encarte do meu disco,
que é assim que me sinto, picada, contaminada, infectada,
mas ainda assim uma impostora, pelo amor de Deus, uma
impostora. Deixa a menina sambar!
Assista à entrevista com Adriana Calcanhotto
no site www.saraivaconteudo.com.br
www.SARAIVACONTEUDO.com.br
29
Shuffle: Um passeio pelos discos de Adriana Calcanhotto
Enguiço, 1990: Disco de estreia,
traz a versão de “Caminhoneiro”
(Roberto Carlos e Erasmo
Carlos), que chamou a atenção
de Maria Lucia Dahl e abriu o
caminho para a sua ida para o
Rio de Janeiro. A contaminação
pelo micróbio do samba já dá
sinais em “Disseram que eu voltei
americanizada” (Vicente Paiva e
Luiz Peixoto) e “Orgulho de um
sambista” (Gilson de Souza).
Senhas, 1992: Alem de “Mentiras”,
que projetou Adriana ao grande
público, traz “Esquadros”, uma
de suas canções mais bonitas.
Ouça também “O nome da
cidade”, escrita por Caetano
Veloso inspirado em Macabéa,
personagem de A hora da estrela,
de Clarice Lispector.
A fábrica do poema, 1995: Preste
atenção na canção que abre o
disco, “Por que você faz cinema”,
um texto do cineasta Joaquim
Pedro de Andrade em resposta
a uma pergunta feita pelo jornal
francês Libération, musicado
por Adriana. É o disco que traz
“Metade”, “Cariocas” e “Inverno”,
a bela parceria entre Calcanhotto
e Antonio Cicero.
Marítimo, 1998: Com participações
de Dorival Caymmi e Hermeto
Pascoal, o álbum traz também
homenagem a dois outros mestres:
“Parangolé Pamplona”, inspirada
em Hélio Oiticica, e “Vamos comer
Caetano”, escrita por Adriana
em 1996 depois de vê-lo na
primeira página dos jornais,
pelado, devorado pelas “Bacantes”
da encenação de José Celso
Martinez Corrêa.
30
SARAIVACONTEÚDO MARÇO / ABRIL 2011
Público, 2000: Primeiro registro
ao vivo, traz sucessos da carreira,
a gravação de “E o mundo não
se acabou”, de Assis Valente,
além de um poema do português
Mário de Sá-Carneiro musicado
por Adriana, que narra de
maneira deliciosa a forma como
conheceu o poeta.
Cantada, 2002: “Eu nunca mais
ouvi, talvez seja o que menos
conheça dos meus discos. A
gente gravou Cantada no estúdio
de casa. Ele é tão misturado
com a vida naquele momento”,
conta Adriana. Além de sucessos
como “Justo agora” e “Pelos
ares” (em parceria com Antonio
Cicero), vale procurar conhecer
a “manipulação das identidades
oscilantes entre ‘Sou seu’ e ‘Sou
sua’” [palavras de Antonio Cicero
e Waly Salomão], ambas de
autoria de Péricles Cavalcanti.
Maré, 2008: Além de jogar luz
à canção “Mulher sem razão”
(Dé Palmeira, Cazuza e Bebel
Gilberto), o disco traz “Sargaço
mar”, de Dorival Caymmi, gravado
ao vivo, o violão de Gilberto Gil
e a voz de Adriana Calcanhotto,
e guarda pérolas como “Um dia
desses”, poema de Torquato Neto
musicado por Kassin.
Adriana Partimpim foi procurada, mas preferiu
ficar brincando a falar com esta reportagem.
Os Sambas de Adriana
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
12.
eu vivo a sorrir
aquele plano para me esquecer
pode se remoer
mais perfumado
beijo sem
já reparô?
vai saber?
vem ver
tão chic
deixa, gueixa
você disse não lembrar
tá na minha hora
Todas as composições de Adriana Calcanhotto,
exceto “vem ver” de Dadi e Adriana Calcanhotto
Ela morreu em 1951, mas suas células continuam vivas.
Henrietta Lacks, você ainda
vai ouvir faLar desta muLHer.
Em 18 de março nas livrarias.
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cinema
O escritor congolês Lwei,
no filme O céu sobre os
ombros, grande vencedor do
Festival de Brasília de 2010.
DIVULGAçÃO
O cinema
documentário
entre a
Por Bruno Dorigatti
A importância e o espaço para o cinema documental vêm
crescendo nos últimos anos, um número maior de produções
alcança mais salas de cinema, além de outros meios, como a internet. Mas talvez a principal “novidade” esteja na forma como
estas histórias estão sendo narradas e contadas. Um diálogo
crescente com a ficção, sobretudo na forma narrativa, uma
busca por embaralhar, caminhar entre a linha tênue que separa
a realidade da imaginação, o vivido e documentado do imaginado e ficcionalizado. E novidade aí em cima vai entre aspas,
pois, ao observarmos o começo do cinema documental, veremos que ele nasce procurando representar a realidade, e não
registrá-la. O conceito de não intervenção na realidade que se
registra surgiria anos depois e mostrar-se-ia igualmente frágil
32
SARAIVACONTEÚDO MARÇO 2011
e passível de crítica, já que ao ligar uma câmera, posicioná-la,
ainda que não instigando a quem se filma como agir, já se está
interferindo no que se procura documentar. Conversa antiga
também. Mas a produção documental recente tem sugerido
que os documentários vêm, cada vez mais, optando por sair
do clássico formato de entrevistas e imagens de arquivo, arriscando-se em caminhos próprios ao tempo em que vivemos. Exemplos recentes deste cinema são filmes premiados no ano
passado. Terra deu, terra come, de Rodrigo Siqueira, acompanha seu Pedro e um cortejo fúnebre – onde a comunidade
quilombola de Minas Gerais entoa vissungos (cânticos negros).
No filme, Pedro é creditado como codiretor, dada a interfe-
realidade
e a imaginação
rência que tem no filme, onde é impossível distinguir entre o
que é encenado e o que seria o registro das cerimônias de
despedida do mais velho membro do quilombo, João Batista,
falecido aos 120 anos. Segundo Eduardo Escorel, o documentário de Siqueira “é o registro de uma descoberta, não de algo
conhecido de antemão. Para poder apreciar esse processo, o
espectador precisa ter disposição para reviver, concentradas
em 89 minutos, dúvidas, hesitações, e ambiguidades do longo
caminho percorrido na realização dessa obra notável”. O filme
ganhou em 2010 os prêmios de melhor longa no Festival É
Tudo Verdade e no Amazônia Doc.2 – Festival Pan-Amazônico
de Cinema (onde Siqueira também foi escolhido melhor diretor), além do International Young Talent Competition, no Dok
Leipzig, Alemanha. tem permitido o barateamento dos custos. “Produzir documentários tornou-se mais ágil e barato do que nunca com as
novas tecnologias de captação e edição de som e imagem.
O crescimento na produção foi imediato”, afirma Amir Labaki, diretor do É Tudo Verdade, principal festival dedicado às
obras de não ficção no país e que chega à sua 16a edição em
2011. Mas há outros: “Sob a perspectiva do público, creio que o
documentário assumiu o papel de uma pausa iluminista frente
à inflação informativa e audiovisual a que estamos submetidos. Ao mesmo tempo, a produção passou a lançar mão de
recursos de sedução do espectador historicamente mais vinculadas ao cinema ficcional, visando a consolidar um mercado
para a não ficção também nas salas de cinema, para além do
mais tradicional nicho da TV”, continua Labaki.
Já O céu sobre os ombros foi o grande vencedor do Festival
de Brasília em dezembro passado, quando levou os prêmios
de melhor filme, melhor direção, melhor montagem (Ricardo Pretti), melhor roteiro (Manuela Dias e Sérgio Borges) e o
prêmio especial do júri. O longa de Sérgio Borges apresenta a
história de três personagens de Belo Horizonte – o transexual
Everlyn, o operador de telemarketing e hare krisha Murari e o
escritor congolês Lwei –, onde não fica definido o que seria
interpretação ou apenas o registro de suas vidas. Outra estreia
programada para abril e que vai por este caminho é Amor?,
de João Jardim. O codiretor de Janela da alma (2001) e Lixo
extraordinário (2010) aborda o delicado tema das relações
amorosas que envolvem algum tipo de violência, onde atores
interpretam o depoimento daqueles que passaram por situações extremamente delicadas. Em 2010, estrearam nas telonas em circuito comercial 45 documentários, dos quais 32 produções nacionais. O público total foi de 503 mil espectadores, o que dá uma média de pouco
mais de 11 mil por filme, e chega a 0,40% do total de público.
Se contabilizarmos apenas os 32 filmes nacionais – 42,67% do
total de estreias –, elas levaram aos cinemas 238.771 ou 0,99%
do total do público que foi assistir a uma produção nacional,
com média de 7.462 espectadores por filme. Números ainda
muito baixos, dada a qualidade e o vigor da produção. O grande destaque ficou com Uma noite em 67, dirigido por Renato
Terra e Ricardo Calil, que reconta como foi o festival da canção
naquele ano, e levou aos cinemas 82.258 espectadores. Em
segundo lugar, veio Soberano – Seis vezes São Paulo, de Carlos
Nader, sobre o time paulista, com público de 35.212. Inúmeros fatores vêm contribuindo para o crescente interesse e uma maior realização de documentários, e talvez o mais
pragmático e de fácil detecção seja a revolução digital, que
A surpresa, porém, ficou com Viajo porque preciso, volto porque te amo, dirigido por Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, em
terceiro, com 26.623 espectadores. O roadmovie documenta o
sertão do Nordeste, onde acompanhamos um geólogo entre
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DIVULGAçÃO
Tomás Rangel
cinema
idas e vindas, sempre a narrar em off a sua vida, ler as cartas
que escreve para o amor deixado para trás e entrevistar os moradores das localidades por onde passa, questionando o ideal
de vida destas pessoas simples. Como nos recentes títulos acima citados, o filme da dupla embaralha o que é documentado
e o que é encenado, residindo aí a força do que vemos na tela.
E se a relevância dos números é pequena, o que realmente
importa aqui é essa opção narrativa deixar de ser exceção experimental de poucos para ser incorporada cada vez mais, seja
por novos ou nem tão novos diretores assim. Eduardo Coutinho, por exemplo, aclamado diretor de Cabra marcado para
morrer (1984) e Edifício Master (2002), optou por embaralhar
os limites da encenação e do registro em seus dois filmes mais
recentes, Jogo de cena (2007) e Moscou (2009).
A linha tênue
Assunto antigo, a proximidade entre o cinema de ficção e o
documentário, entre realidade e imaginação, surge junto com
o nascimento do próprio cinema, mas de uns tempos para cá
este diálogo ampliou-se. “Creio que houve uma espécie de fadiga frente à ficção metarreferente pós-moderna, aquela de filmes que revisitam essencialmente o imaginário cinematográfico clássico”, afirma Labaki. Segundo ele, a estratégia crescente
tem sido um diálogo maior entre as linguagens. Pelo lado da
produção não ficcional, este diálogo tem marcado a história
do gênero, desde o fundador Nanook, o esquimó (1922), de
Robert Flaherty ao revolucionário Eu, um negro (1958), de
Jean Rouch, nos recorda Labaki. Em Nanook, acompanhamos
um ano na vida de um esquimó e sua família, as dificuldades
diárias para sobreviver às baixas temperaturas, sem falar na
pesca e na caça em condições adversas. É considerado um
dos primeiros registros documentais produzidos para o cinema, com uma ressalva: ele foi todo encenado por Nanook, sua
família e os demais participantes da película. Naquele momento, quando o cinema ainda era uma linguagem em formação,
34
SARAIVACONTEÚDO MARÇO / ABRIL 2011
não havia essa clara separação que se buscaria incessantemente em poucos anos, entre a realidade e o seu registro. Já
em Eu, um negro (1958), Rouch, um dos fundadores do cinema
vérité (ou cinema direto) procura subverter o simples registro
etnográfico, quando, além de filmar os imigrantes nigerianos
interpretando personagens criados por eles mesmos, os convida para autofabular a partir do que foi filmado. O resultado
caminha na fronteira entre ficção e realidade, confundindo-os.
Se muitos identificam esse diálogo (ou a recusa a ele) no nascimento do cinema, para o premiado diretor Sérgio Borges o
assunto é muito mais antigo do que o cinema. “Ele existe pela
autorreflexividade do ser humano. Quando nós pensamos,
projetamos nossos desejos e sonhos, criamos com nós mesmos uma ficção de como queremos existir no espaço-tempo
que chamamos de realidade. E é o roteiro dessa ficção criada que estrutura, que materializa a realidade da forma que a
percebemos. Realidade e imaginação são conceitos separados
para tentar explicar a existência, mas no fundo uma se retroalimenta da outra, estão em um mesmo sistema.”
Segundo Borges, no que diz respeito ao cinema, ficção e documentário sempre se misturaram, e é isso o que complexifica um filme, a tensão entre a vida e a representação da vida.
“Mesmo o mais ‘genuíno’ filme do gênero de ficção é a documentação dos corpos dos atores, dos espaços do mundo, dos
pensamentos do autor. Assim como qualquer documentário é
o recorte visual e sonoro de uma realidade, um olhar subjetivo,
e portanto uma representação da vida”, acrescenta.
Em O céu sobre os ombros, o diretor trabalha com “esse borrão entre criação e realidade”, como ele mesmo definiu seu
trabalho, onde atores não profissionais representam a própria
vida. “Cada vez mais nos reconhecemos com a representação
de nós mesmos. Cada vez mais vemos a imagem do nosso
DIVULGAçÃO
Sérgio Borges, Walter Carvalho e Amir
Labaki. Nomes que pensam e fazem
o documentário no século 21
próprio corpo. E mesmo sem a mediação de uma câmera, participamos de uma grande encenação. Adotei esse olhar, essa
forma de percepção pelo simples fato de que, quanto mais
próximos estamos do que chamamos de realidade, mais complexa será a expressividade da representação da realidade. O
cinema é a linguagem artística em que mais temos a sensação
de que estamos vivendo a vida, e não observando a representação da vida.”
Conhecido pelo seu trabalho como cineasta, documentarista
e diretor de videoclipes de bandas, o francês Vincent Moon é
responsável por boa parte do acervo da série em vídeo “Concerts à Emporter”, do site francês La Blogotheque. Esta série
consagrou-se pela forma particular de filmar a música, e se
concentrou em registrar bandas em início de carreira, o que
chamou a atenção de nomes como R.E.M. e Arcade Fire. “Meu
cinema favorito não é aquele que questiona quais informações
você quer dar ao espectador, mas sim o que não quer dar. [O
diretor iraniano Abbas] Kiarostami costumava dizer sobre seus
filmes: ‘Eu faço apenas metade do filme, a outra metade é feita
pelo espectador’. É uma relação bonita. O que tento explorar
é uma linguagem de cinema bem específica, que não se consegue explicar completamente com palavras. O único jeito de
responder seria usando o mesmo meio”, afirma Moon.
As dificuldades ao encarar tal desafio são as mesmas inerentes
à criação de expressividade com o uso de uma linguagem artística. “Mas quando lidamos com personagens que vão continuar a existir na realidade, temos que estar seguros de que eles
estão realmente de acordo em sustentar aquilo que o filme
revela”, diz Sérgio Borges. Para ele, O céu sobre os ombros é
um filme “muito íntimo, em que os personagens abrem a porta
do banheiro para a câmera entrar, e isso só é possível porque
essa abertura é algo natural para eles. Por mais que a história
do filme seja apenas um recorte de suas vidas, não vejo pes-
soas no filme, mas sim personagens que dizem algo a mais
do que as idiossincrasias pessoais”. Estaria então o cinema caminhando para um total desaparecimento daquilo que separa a realidade da ficção?
Segundo Labaki, não há nada a temer: “Não creio. O diálogo persiste e é fertilizador desde a aurora do cinema.” Já
Borges responde com outra indagação: “Quem sabe a forma como percebemos a realidade está caminhando para
o desaparecimento dessas fronteiras? Mas não me parece
que o cinema vai complexificar tanto a relação entre ficção
e realidade em sua forma narrativa hegemônica em curto prazo. A diluição entre esses gêneros tende a deixar a
obra mais aberta, mas a criação dos filmes que nós vemos
na TV e nas salas do shopping tem interesses comerciais
associados. E uma narrativa primária é mais eficaz para
uma estratégia de consumo de larga escala, ao menos no
modelo industrial que ainda vivemos”.
A imagem dessacralizada
Para Walter Carvalho, um dos principais fotógrafos do cinema brasileiro contemporâneo, “o que faz as fronteiras
se diluírem, se entrelaçarem e se aproximarem umas das
outras sem quase que você perceba a diferença do que
é ficção e do que é documentário é o processo criativo
de gerações, equipamentos e tecnologias novas, e de um
volume de trabalho que se faz hoje no mundo inteiro com
“O problema todo é saber manter a
sinceridade, a verdade para com o
espectador, nunca esconder o fato
de que estamos diante de um filme”,
acreditava Jean Rouch
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cinema
a imagem, a ponto inclusive de torná-la banal”. Além de banalizada, ela está dessacralizada e desacreditada, afirma o fotógrafo de filmes como Terra estrangeira (1995), Central do Brasil
(1998), Notícias de uma guerra particular (1999), Lavoura arcaica (2001), Madade Satã (2001), Carandiru (2003) e diretor de
Budapeste (2009).
“Dessacralizada porque ela está em qualquer lugar. Você não
precisa mais comprar um ingresso em busca de emoção, entrar em um cinema e passar pelo rito de apagar a luz, abrir as
cortinas e começar o ritual de sombras projetadas na parede
e você acreditando que aquilo ali é verdade, sai emocionado
dali de dentro. O cinema é um truque, nasceu de uma curiosidade científica. E é esse truque que fascina a todas as plateias
do mundo, independente da história. E o que dessacralizou é
exatamente o excesso dela, na internet, nas televisões, na rua,
nos monitores, em toda forma de comunicação visual remota.
Tudo isso é inegável, confluente e importante para que modifique a linguagem, e que essas fronteiras cada vez mais se
diluam, ao ponto que, quando você utiliza da linguagem ficcional dentro do documentário, não consegue mais saber o
que é aquilo.” Outro sintoma desta obsessão crescente pelo real seria os reality shows, que paradoxalmente não deixam de ser encenações. Não estaríamos limitando o espaço e o tempo para a
imaginação? “Discordo da premissa de que o real sufoque a
imaginação. A rica história do documentário, no que diz respeito à experimentação formal, indica justamente o contrário”,
aponta Labaki. No entendimento de Borges, a imaginação não estaria ameaçada pela obsessão do real, apenas estaríamos mudando a
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SARAIVACONTEÚDO MARÇO / ABRIL 2011
forma de entender o que é real e o que é imaginação. “É a qualidade da utilização da linguagem, é a capacidade de invenção,
que pode fomentar ou não a imaginação, entendida enquanto
maravilha de desdobrar a criação.” Assim, os reality shows seriam a forma da indústria da imagem lucrar com a potência
dramática da fricção entre vida e ficção. Segundo ele, o melhor
seria pensarmos isto “como reflexo do entendimento de que o
que firmamos subjetivamente como realidade é apenas fruto
de nossa imaginação. E que a realidade ‘objetiva’ é um grande
improviso de um incessante desdobrar de cenas”.
Neste jogo de espelhos, talvez o melhor seja ficar com Jean
Rouch, para quem o importante é a honestidade com que se
apresenta o filme, independente do gênero. “O problema todo
é saber manter a sinceridade, a verdade para com o espectador, nunca esconder o fato de que estamos diante de um
filme... Uma vez que estabelecido esse pacto de sinceridade
entre filme, atores e espectador, quando ninguém está enganando ninguém, o que interessa para mim é a introdução
do imaginário, do irreal. Usar o filme para contar aquilo que
apenas pode ser contado em forma de filme.” Talvez seja essa
a mais difícil tarefa do cinema realizado no século 21, contar
aquilo que somente um filme poderia fazê-lo, sem emular o
teatro, a TV ou qualquer outra forma de representação. E que,
para muitos, ainda está por nascer.
Assista às entrevistas com Walter Carvalho e Vincent Moon
no site www.saraivaconteudo.com.br
É Tudo Verdade, 16 anos
Um dos principais responsáveis pelo crescente interesse
que o documentário vem despertando por aqui é o festival É Tudo Verdade, que neste ano chega à sua 16ª edição e
acontece entre 31 de março e 10 de abril no Rio de Janeiro e
em São Paulo. A homenageada em 2011 é a documentarista
russa Marina Goldovskaya, que completa 70 anos em julho.
Diretora de clássicos da era da glasnost como O regime Solovki (1987), Goldovskaya estreará no festival O gosto amargo
da liberdade (2011), que aborda sua longa amizade com a
jornalista russa Anna Politkovskaya, assassinada em Moscou
em 2006. Na competição nacional de longas e médias-metragens, sete obras inéditas, entre elas, Assim é, se lhe parece,
de Carla Gallo, um perfil do artista plástico Nelson Leirner;
Carne, osso, de Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros, um
mergulho no mundo dos frigoríficos brasileiros; Dois tempos,
de Dorrit Harazim e Arthur Fontes, a visão da nova classe
média brasileira, através do perfil de uma família moradora
na Vila Brasilândia paulistana, dez anos depois; e Tancredo,
a travessia, de Silvio Tendler, sobre a trajetória do político. A
Retrospectiva Brasileira deste ano, “Poesia É Verdade”, conta
com 15 documentários focados na vida e obra de grandes
poetas brasileiros, como Ana Cristina Cesar, João Cabral de
Mello Neto, Vinicius de Moraes, Ferreira Gullar, Carlos Drummond de Andrade e Waly Salomão.
Criado em 1996, o festival surgiu para garantir uma vitrine
anual no país para a nata da produção brasileira e internacional. “Quando criei o festival, estava convencido de que uma
janela nobre, regular e específica para o documentário nas
salas de cinema encontraria um público interessado e, diante
da pluralidade desta produção, ajudaria a romper o estigma
de mercado. Todo mundo quer ver bons filmes, independentemente do gênero.” Naquele momento, tínhamos em torno
de três estreias por ano; em 2010, tivemos 45 documentários
estreando em circuito comercial, com público total de 503
mil espectadores. O que dá uma média de pouco mais de 11
mil por filme, e chega a apenas 0,40% do total de público.
Comparado com o cinema comercial clássico, pode ser ínfimo, porém, no que diz respeito ao documentário indica um
crescente interesse.
tário, facilitando o acesso à riquíssima história do cinema não
ficcional, sobretudo o brasileiro.
Na TV aberta, por exemplo, apenas as TVs públicas exibem
documentários com regularidade. A TV Brasil mantém em
sua grade horários exclusivos para o formato, como o Doc
TV, Nova África, Tal como somos e A TV que se faz no mundo. E a TV Cultura ampliou o espaço para documentários no
final de 2010, exibindo ao menos uma produção por dia, com
curadoria de Labaki. “O espaço para documentários na TV
aberta se comprimiu no Brasil durante o regime militar, não
se recuperando com a volta à democracia.” Labaki aponta
“um certo conservadorismo das emissoras, apostando na
fórmula teleficção/jornalismo/esportes/auditório”, que manteve a produção documental distante da telinha. Agora, com
a revalorização do gênero, teríamos uma oportunidade para
aproximar os docs do público não tão familiarizado com eles.
Além disso, a coprodução com autores independentes como
uma política efetiva, algo já arraigado na Europa e nos Estados Unidos, seria fundamental para aumentar o pequeno
espaço que o documentário ocupa na TV.
Abaixo, na ordem, Seu Pedro em cena em Terra deu, terra come, de Rodrigo
Siqueira, grande vencedor do festival em 2010; e a jornalista russa Anna
Politkovskaya, assassinada em 2006. Retrospectiva internacional do É Tudo
Verdade 2011 celebra a obra de Marina Goldovskaya, que estreia no festival
O gosto amargo da liberdade (2011), sobre sua amizade com a jornalista
DIVULGAçÃO
“O festival ajudou a concentrar as atenções de público, imprensa e mercado, comprovando a vitalidade do documentário”, continua Labaki, para quem ainda há muito a fazer.
Segundo ele, é preciso aumentar os mecanismos de apoio
à produção, distribuição e exibição dos documentários nas
salas de cinema; fomentar a parceria com a televisão; ampliar
o número de publicações sobre o cinema documentário; estimular programas de formação de público para o documen-
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perfil
GLAUCO MATTOSO
“POETA DA CRUELDADE”
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SARAIVACONTEÚDO MARÇO / ABRIL 2011
O anti-herói cego, “pornosiano, barrockista,
deshumanista, anarchomasochista, pós-maldito”,
como gosta de se rotular, completa 60 anos com
lançamentos e relançamentos por diferentes editoras
Por Ramon Mello FOTO Claudio Cammarota
Autor de uma “poesia viril”, o poeta paulistano Glauco Mattoso
completa 60 anos no dia 29 de junho deste ano, produzindo
literatura intensamente. Para quem desconhece sua história,
seu nome é uma alusão direta ao poeta satírico Gregório de
Matos (1633–1695), o Boca do Inferno, além de trocadilho
com a doença congênita – o glaucoma – que lhe privou
progressivamente da visão. Pedro José Ferreira da Silva é o
seu nome de batismo.
Mestre do pastiche literário, já perverteu mais de quatro mil
sonetos, série iniciada em 1999, superando o poeta italiano
Giuseppe Belli (1791-1863), recordista no gênero, que teria
composto 2.279 sonetos em uma obra produzida entre 1830
e 1839. Desde a cegueira total em 1995 – trajetória que lembra
a do escritor argentino Jorge Luis Borges –, Mattoso escolheu
o soneto como modo de organizar seus escritos. A forma fixa
de poema (14 versos compostos por dois quartetos e dois
tercetos) auxilia o poeta cego a escrever mentalmente os
poemas, sem abandonar a transgressão dos temas.
Autor do romance autobiográfico Manual do podólatra
amador: aventuras e leituras de um tarado por pés (All Books/
Casa do Psicólogo), Glauco Mattoso cultiva a fama de escritor
maldito com suas preferências excêntricas. Ele é obcecado
por pés masculinos, fetiche retratado tanto na prosa quanto
na poesia. O pé e a cegueira são temas centrais de muitos de
seus livros. Através da perversão sexual, o autor denuncia as
perversidades sociopolíticas. Sua temática, que funciona como
alicerce do próprio soneto, abusa da pornografia e escatologia,
assim como os versos do poeta fescenino do século 17, cuja
referência é explícita.
Mattoso cursou biblioteconomia na Escola de Sociologia e
Política de São Paulo e letras vernáculas na USP, sem concluir.
Além dos sonetos, já escreveu dezenas de contos, dois
romances, centenas de crônicas, vários ensaios, um dicionário
de palavrões, um tratado de versificação, publicou dezenas de
volumes de poesia e editou um fanzine durante quatro anos.
“Mas o soneto é meu maior vício, e só como vício posso definir
esse gênero que me serve de válvula para desabafar a revolta
contra a cegueira. Parafraseando o Zé Dirceu, eu não posso,
não quero e não devo deixar de sonetar...”, ironiza.
Prestes a se tornar sexagenário, o poeta relembra que
o interesse pelos sonetos é anterior a cegueira: “Eu já
admirava os clássicos pelo rigor com que eram compostos,
especialmente um tipo de poema tão difícil como o soneto.
Mas, enquanto ainda enxergava, minhas influências eram
mais iconoclastas (modernismo, concretismo, tropicalismo
e marginalismo), por isso raramente sonetei naquela
fase. Quando fiquei cego, percebi que minha capacidade
mnemônica era magicamente imensa. Passei, entre a insônia
e o pesadelo, a compor freneticamente, salvando na memória
os versos que, graças à rima e à métrica, mantinham-se
intactos até que eu os digitasse no computador falante.
Atribuo tal capacidade, também, a alguma ‘assistência
espiritual’, já que me considero um bruxo...”, relata Glauco
Mattoso, que trabalha diariamente com um programa de
leitura de voz no computador (desenvolvido pela UFRJ),
sem perder as subversões que pratica na sua escrita desde
a época da poesia marginal nos anos 1970.
Celebração
Em comemoração ao 60º aniversário do “poeta da
crueldade”, diversos lançamentos estão programados. A
editora Annablume lançará uma caixa com 10 livros, sete
já editados e três inéditos: O poeta da crueldade, O poeta
pornosiano e Poemídia e sonetrilha. A Annablume detém os
direitos de publicação da série de poesias Mattosiana pelo
selo literário Demônio Negro e a obra Contos hediondos
(2009). É também responsável pela obra ensaística de
Mattoso, da qual publicaram, na Coleção Língua, Literatura e
Discurso, o Tratado de versificação (2010) – acordo onde o
poeta propõe “revisitar as trilhas da versificação e revalorizar
o conceito da ‘musa’ no aspecto ‘musical’ do poema”.
O selo Tordesilhas também adquiriu toda a prosa escrita do
autor, repleta de ironia e humor negro, longe de tudo que
se pode classificar como literatura bem comportada. Além
de publicar os romances A planta da donzela (Lamparina,
2005) e Manual do podólatra amador, a editora prepara uma
nova versão da coletânea Contos hediondos, incluindo textos
inéditos. A prosa mattosiana, irreverente como a poesia, é
muito bem elaborada, o que elimina a proximidade com a
simples pornografia.
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perfil
As referências de Glauco Mattoso passam de Camões a
Augusto de Campos, de Gregório de Matos a Luiz Delfino,
de Sade a Cego Aderaldo, de Olavo Bilac a Millôr Fernandes
Ao longo dos anos, o Conde Glauco Mattoso – como o nomeou o
poeta Roberto Piva (1937–2010) – passou a publicar em diversas
editoras, o que dificulta a concentração de sua obra em um
único selo. A produção poética inclui 35 títulos fora de catálogo
ou com contrato para vencer, sem contar os poemas publicados
na internet. O editor Luiz Fernando Emediato, da Geração
Editorial, que o conhece desde os anos 1970, o considera “um
grande escritor, polêmico e alternativo, implacável diante do
mercado, para o qual não faz nenhuma concessão”.
Rebel without a cause, vômito do mito / da nova nova nova
nova geração, / cuspo no prato e janto junto com palmito /
o baioque (o forrock, o rockixe), o rockão. / Receito a seita
de quem samba e roquenrola: / Babo, Bob, pop, pipoca,
cornflake; / take a cocktail de coco com cocacola, / de whisky
e estricnina make a milkshake. / Tem híbridos morfemas a
língua que falo, / meio nega-bacana, chiquita-maluca; / no
rolo embananado me embolo, me embalo, / soluço - hic e desligo - clic - a cuca. // Sou luxo, chulo e chic, caçula e
cacique. / I am a tupinik, eu falo em tupinik.
Fase Visual e Face Cega
As referências de Glauco Mattoso passam de Camões a
Augusto de Campos, de Gregório de Matos a Luiz Delfino, de
Sade a Cego Aderaldo, de Olavo Bilac a Millôr Fernandes. Não
é à toa que Caetano Veloso citou o poeta na música “Língua”,
do disco Velô, de 1984. O cantor baiano o conheceu através
do concretista Augusto de Campos, na época em que Glauco
assinava o Jornal Dobrabil (trocadilho com o Jornal do Brasil
e com o formato dobrável), um fanzine poético-panfletário
feito com uma datilografia minuciosa que imitava as famílias
tipográficas utilizadas pelos grandes jornais.
A musicalidade de seus versos pode ser conferida no CD
Melopéia (Rotten Records), nas vozes da MPB como Itamar
Assumpção, Humberto Gessinger, Inocentes, Billy Brothers,
Laranja Mecânica e Arnaldo Antunes. Trata-se de uma
antologia de seus sonetos misturada a diferentes ritmos:
samba-enredo, techno-samba, samba-canção, punk-rock e
bluejazz. O álbum, que tem a capa assinada por Lourenço
Mutarelli (uma paródia da capa do disco Tropicália, 1967)
está esgotado.
Mattoso também é conhecido pela sua intensa colaboração
na imprensa alternativa na década de 1980, como Tralha, Mil
Perigos, Som Três, Top Rock, Status, Around e Chiclete com
Banana – esta última criada em parceria com o cartunista Angeli,
publicada pela Circo Editora. Nos últimos anos, o poeta tem
escrito para o site de literatura Cronópios [www.cronopios.com.
br] e colaborado para revistas impressas, como a Caros Amigos.
Glauco Mattoso fabrica a própria lenda com a sua obra e
sua história: cego, gay, podólotra e masoquista. Sempre
que se escreve sobre o poeta, há uma tentativa de definilo: marginal, punk, pós-concreto, maldito... “Todos esses
rótulos estão corretos. Eu próprio me colei mais alguns:
pornosiano, barrockista, deshumanista, anarchomasochista,
entre outros. Mas, para melhor sintetizar todos eles,
pode me chamar de pós-maldito...”, explica o ícone do
“malditismo literário” no Brasil.
O crítico e ensaísta carioca Pedro Ulysses Campos já dividiu
a poesia de Glauco Mattoso em duas fases: “a primeira
seria a Fase Visual (1970–1980), enquanto o poeta praticava
um experimentalismo paródico de diversas tendências
contemporâneas; e a segunda a Fase Cega (1999 até hoje),
quando o autor, já privado da visão, abandona os processos
artesanais, tais como o concretismo datilográfico, e passa a
compor sonetos e glosas”.
“Spik (sic) Tupinik” (1977), um dos sonetos mais famosos
dá a dimensão da relevância da poesia de Glauco Mattoso:
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SARAIVACONTEÚDO MARÇO / ABRIL 2011
E agora, poeta, como é completar 60 anos?
“Acho que é como estar prestes a completar 18 quando a
gente é menor de idade, ou 100 quando a gente ainda tem
99. Parece que subimos um degrau e só podemos olhar
para frente, sob risco de tropeçarmos e cairmos. A partir
deste ano, posso ser chamado de ’edoso’ e tenho que me
vacinar contra a gripe. Minhas fantasias masturbatórias,
entretanto, prosseguem a todo vapor...”, revela o poeta
maldito que se tornou um clássico, um dos melhores
sonetistas do Brasil.
PROFANO PROPHETA [3390]
Esperma de palavra se deriva
em fertil mente e em lyra creativa.
Semantica ou syntaxe, só, não basta
nem são imprescindiveis metro e rima
si a escripta surprehende e a penna é vasta.
Conheço um tal poeta e nelle vejo
de olympicas metropoles o exgotto,
o gozo azul de impubere garoto,
o samba em harpa e o rock em realejo.
É magico e sublime o pederasta
que do maldicto mytho se approxima
e do castiço canone se afasta.
No orgasmo oral dos jovens está viva
a chamma que deixou Roberto Piva.
Jornal Dobrabil, um fanzine poético-panfletário feito
com datilografia minuciosa que imitava as famílias
tipográficas utilizadas pelos grandes jornais
SONETO DA CASA INVADIDA [1294]
Bandidos, cada vez mais attrevidos,
estão entrando em casas de familia!
O bando macta os donos, rouba, pilha,
saqueia, até em cadaveres cahidos!
Agora ja não fogem, nem ruidos
evitam que se escutem! A mobilia
carregam, ou alli mesmo a quadrilha
partilha joias, ternos e vestidos!
Num lar de classe media, tomam conta
do proprio immovel! No creado-mudo
da cama de casal, a extrema affronta:
Está o portaretracto alli, mas tudo
que a photo mostra, um rosto que amedronta,
é o delle, do assaltante bigodudo!
SONETO LINGUOPEDAL [35]
Massificada está toda massagem
holística que, como a acupuntura,
em pontos energéticos procura
curar com científica roupagem.
Em tudo vejo logo a sacanagem:
A planta do pé fiz numa gravura
e em vez da mão a língua, menos dura,
propus como sistema de lavagem.
Criei assim um vivo tipo novo:
o podofelador profissional.
Meu nome andou na má língua do povo.
Já cego estou, mas não me saio mal:
Frieiras mentalmente inda removo
do pé de quem me xinga de anormal.
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Faça mil
crianças feli
um pôster
Compre por R$17,90 o pôster da artista Sônia
hares de
zes. Compre
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100% do valor arrecadado, deduzidos c u s t o s e i m postos,
será destinado aos programas do UNICEF.
guia de compras
Uma seleção de títulos de artistas
que se aventuraram por outras áreas
LOBÃO coloca no papel
primeira etapa da sua vida
Foi ao lado do jornalista Claudio Tognolli que o músico Lobão decidiu escrever a
autobiografia. Motivado pela chegada aos 50 anos (hoje ele já contabiliza mais 3), contou
sua trajetória sem recriminação em publicação extensa, com 600 páginas. Abrange desde
a infância no Rio de Janeiro, o primeiro contato com a música e os sucessos em bandas
e carreira solo. Não faltam bastidores, polêmicas e música na vida de Lobão; seus fãs de
diversas gerações poderão ter contato com os períodos distintos vividos pelo músico.
Além de histórias, 50 anos a mil também traz entrevistas de Elza Soares, Ritchie e da
produtora Maria Juçá. Duas canções inéditas — “Das tripas, coração” e “Song for Sampa” —
e amplo material fotográfico completam o lançamento recente da editora Nova Fronteira.
Assista à entrevista com Lobão
no site www.saraivaconteudo.com.br
No caminho
da FICÇÃO
O ator Hugh Laurie e os músicos Pedro
Luís e Tony Bellotto partiram em busca da
criação na literatura. Laurie, que faz o famoso
médico ranzinza protagonista da série House
escreveu O vendedor de armas (Planeta).
Já Tony Bellotto lançou seu sétimo título,
No buraco (Companhia das Letras). Ainda nos
primeiros passos está o vocalista da banda
Pedro Luís e a Parede. Em Logo parecia que
assim sempre fora (Língua Geral), Pedro Luís
cria poesias em cima das canções do álbum
Olho de peixe, de Lenine e Marcos Suzano.
Eu, por Ricky
Martin
Assista à entrevista com Pedro Luís
no site www.saraivaconteudo.com.br
É PROIBIDO FUMAR
Enquanto Tony Bellotto foi para as letras, seu colega de
palco no Titãs, Paulo Miklos, iniciou uma carreira paralela
no cinema e na TV. A estreia completa uma década, foi
no filme O invasor, de Beto Brant, disponível em DVD
pela Europa Filmes. Depois, fez outros dois papéis, em
Boleiros 2 e Estômago. Há dois anos, encarou o posto
de protagonista ao lado de Gloria Pires. Ele vive Max, um
músico que se apresenta em churrascarias, em É proibido
fumar, de Anna Muylaert, lançado pela Playarte em DVD.
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SARAIVACONTEÚDO MARÇO / ABRIL 2011
Em Eu, que acaba de
sair pela Planeta, Ricky
Martin relata a sua
relação com a música
e o duro processo
pessoal até assumir
publicamente a sua
homossexualidade.
Cantoras
ATRIZES
Para interpretar personagens
em filmes que precisam ter
talento para o canto, é comum
produtores e diretores recorrerem
a profissionais dos palcos. Na
adaptação do musical Dreamgirls
para os cinemas não foi diferente:
Beyoncé e Jennifer Hudson foram
escaladas. Beyoncé já havia atuado
em outros longas, como A Pantera
Cor-de-Rosa e Austin Powers,
mas era a estreia de Jennifer, que
acabou levando o Oscar de atriz
coadjuvante. As duas pegaram
gosto pelo ofício e podem ser vistas,
respectivamente, nos recentes
lançamentos Obsessiva (DVD e
Blu-ray pela Sony Pictures) e A vida
secreta das abelhas (DVD pela Fox
Home). Para quem prefere conferir
somente o talento musical, as dicas
são o CD e DVD I am... World tour,
de Beyoncé, e o álbum de Jennifer
Hudson, homônimo, ambos da Sony
Music. Neste mês, Jennifer lança mais
um, I remember me, nos EUA.
Um desafio para NORAH JONES
A cantora Norah Jones estava com sua
carreira musical solidificada quando
decidiu aceitar um desafio e tanto. Ao
receber a ligação do diretor de cinema
chinês Wong Kar-wai, achou que o
convite seria para a criação da trilha
sonora de seu próximo filme. Mas ele
a queria na tela, como protagonista.
Norah concordou e o resultado você
pode conferir em Um beijo roubado,
disponível em DVD e Blu-ray (Europa
Filmes). Norah também está presente
na trilha. Em áudio, a dica é seu último
álbum, a coletânea Featuring (EMI).
SHE & HIM
A atriz Zooey Deschanel encantou o
público com o filme 500 dias com ela.
Lançado em 2009, o longa deu um novo
frescor para o já conhecido gênero da
comédia romântica e está disponível em
DVD e Blu-ray (Fox Home). E a atriz, em
2008, ao lado do produtor e guitarrista M.
Ward, estreou na música. Os dois álbuns
lançados pela dupla, intitulada She &
Him, estão disponíveis no Brasil: Volume
one e Volume two (Microservice). Quem
também fez o mesmo caminho foi Scarlett
Johansson que, ao lado de Pete Yorn, solta
a voz no CD Break up (Warner Music).
Repetindo o SUCESSO
Justin Timberlake se tornou um astro
da música, acumula vendas altas,
críticas positivas e muitos prêmios.
Mas há uma parcela dos fãs que
reclama que nos últimos anos ele tem
se direcionado muito à carreira de
ator. Seu mais recente trabalho acaba
de sair em DVD e Blu-ray, A rede
social (Sony Pictures), e também foi
aclamado pela crítica e criou uma
legião de fãs.
Difícil separar a carreira de ator e
músico de Seu Jorge. O sucesso veio
com a segunda, com canções como
“Carolina” e “Burguesinha”. Mas,
paralelamente, ele construiu também
uma sólida atuação no cinema.
Cidade de Deus e Casa de areia são
alguns exemplos. Agora, acaba de
sair em DVD e Blu-ray mais uma
atuação de Seu Jorge, desta vez em
Tropa de Elite 2 (Vinny Filmes).
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literatura
valter hugo mãe:
uma escrita
sem remorsos
valter hugo mãe, escritor angolano radicado em Portugal, acaba de publicar seu primeiro romance no Brasil: o
remorso de baltazar serapião (Editora 34). Com uma linguagem inventiva e peculiar, hugo mãe narra a tortuosa
existência dos sargas, “nascidos de pai e vaca”, através
das desventuras de seu primogênito, baltazar serapião,
[...] abríamos os olhos pirilampos à fraca luz da vela, porque
a sarga mugia noite inteira quando havia tempestade. davalhe frio e aflição de barulhos. era pesado que nos preocupássemos com a sua tristeza, se havia algo na sua voz que nos
referia, como se soubesse nosso nome, como se, por motivo
perverso algum, nos fosse melódico o seu timbre e nos fizesse sentido a medida da sua dor. por isso, custava deixá-la
sem retorno, sem aviso de que a má disposição das nuvens
era fúria de passagem. com vento a bater nos tapumes da
janela mal coberta, água a inundar esterco no chão, velha,
ela ficava à espera de que algo repusesse o dia e a libertasse para o campo, a fazer nada senão comer erva, vendo-nos
labor ininterrupto. [...] quando perguntavam pela mãe, pelo
pai, perguntavam pela vaca, magra, feia, tonta da cabeça,
sempre pronta a morrer sem morrer. e riam-se assim com o
nosso disparate de ter um animal tão tratado como família,
e não entendiam muito bem. não fazia mal, achávamos que
éramos muito lúcidos, e adorávamos a sarga, mesmo nas noites de tempestade quando se amedrontava e nos obrigava
a acordar. O aldegundes vinha dizer-nos que ela tinha água
nas patas e que em pressas se devia varrer dali inundação
que lhe dava medo, e ele não reparava que também se sujara nos pés e fedia, enquanto cheirávamos e agoniávamos de
tormento sem mais sono. o meu pai pagava ainda a ousadia
de se chamar afonso. afonso segundo um rei, mas sobretudo
em semelhança ao senhor da casa a que servíamos. uma ousadia disparatada, um sarga chamado afonso, um verdadeiro
familiar da vaca como se viesse de rei. quem não tinha do
que se honrar, que diabo honraria aludindo a tal nome, perguntavam as pessoas ocupadas com nossa vida. dom afonso,
o da casa, era-o por herança e vinha mesmo das famílias de
sua majestade, com um sangue bom que alastrava por toda
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SARAIVACONTEÚDO MARÇO / ABRIL 2011
tragicamente enamorado por ermesinda. O texto combina tempos, ritmos e oralidades arcaicos, primitivos, com
recorte narrativo contemporâneo. E se são minúsculas as
letras que iniciam os nomes do autor e seus personagens,
são grandiosas e avassaladoras as imagens que nos invadem. Leia um trecho do romance.
a sua linhagem. nobres senhores do país, terras a perder de
vista, vassalos poderosos, gente esperta das coisas do nosso
mundo e de todos os mundos vedados. por isso, esqueciamse quase sempre de que ele, o meu pai, se chamava afonso, e
só lhe chamavam sarga, o da sarga, como ele e ela, como um
casal. à minha mãe chegavam a dizer que fora à vaca que ele
fizera os filhos, e ela revoltava-se. era sempre ela quem barafustava furiosa até que o meu pai viesse e impusesse o juízo
e a calma. o meu pai entrava em casa muito tarde, quando
estávamos recolhidos à luz da fogueira, e era feito silêncio
para que aliviasse o cansaço e pedisse o que lhe aprouvesse.
normalmente, tínhamos refeição da noite, jantar quente com
vantagens sobre o desamparo da nossa condição social, e
escutávamos as impressões do dia, as instruções para o que
viria, e os votos de boa noite. por vezes, eu podia perguntar
coisas. em noites de maior paz, faria perguntas sobre as mulheres e as promessas do corpo delas feitas ao desalento do
nosso corpo de homens. e deixaríamos coisas ditas no ar, para
continuar interminavelmente. eram coisas que se suspendiam
sobre nós, como roupa a secar, e com que nos deparávamos
mais tarde, como se lhes batêssemos com a cabeça numa
distração qualquer, quando o trabalho era satisfeito e o tempo se permitia preciosamente ao convívio. o meu pai, o sarga, dizia-me que, se pudera pacificamente chamar-se afonso,
sentiria maior felicidade.[...]
valter hugo mãe nasceu em Saurimo, Angola, em 1971. É escritor,
editor, artista plástico, cantor e DJ. Como poeta, publicou 11 livros,
além da coletânea contabilidade, poesia 1996-2010, que inclui o inédito
o inimigo cá dentro. É autor de quatro romances, entre eles o remorso
de baltazar serapião, vencedor do Prêmio José Saramago (2007),
e a máquina de fazer espanhóis, que será publicado aqui pela
Cosac Naify e lançado na Flip, em julho de 2011.
www.saraivaconteudo.com.br
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