- Colégio Imaculada Conceição

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Colégio Imaculada Conceição
Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio
Prof. Syllas – Sociologia
Curitiba, Maio de 2011
Geração Roubada
Edivaldo Vieira da Silva – Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP
“A infância conhece a infelicidade pelos homens. Na solidão a criança pode acalmar seus sofrimentos. Ali ela se sente filha do cosmos, quando o mundo humano lhe deixa a paz. E é
assim que nas suas solidões, desde que se torna dona de seus devaneios, a criança conhece a ventura de sonhar, que será mais tarde a ventura dos poetas." Gaston Bachelard.
Geração Roubada (no original, Rabbit Proof Fence) é um filme australiano exibido recentemente
na 27ª Amostra BR de cinema em São Paulo. Trata-se da história de 03 crianças aborígines, roubadas
de sua família por um núcleo de colonização inglesa, na Austrália, que confina crianças para disciplinálas para trabalharem como empregadas domésticas em casas de famílias brancas.
As estratégias anatômicas de modelagem dos corpos da sociedade disciplinar, prática sutil de
reorganização de corpos, em sua individualidade para sua recolocação no espaço como corpos economicamente dóceis e politicamente servis são complementadas por uma aspiração biopolítica de genocídio eugênico-genético dos aborígines mediante o enbranquecimento da população nativa a partir da
quarta geração miscigenada. Se o poder é maciço, sufocante e onipresente em sua superfície estatal,
adulta e religiosa no espaço territorializado pelo colonizador, a anti-matéria desterritorializada das partículas e ondas de resistência surpreendem pela recusa de sujeição ao "Diabo Branco" das pequenas
máquinas de guerra.
Uma longa jornada é reservada a Molly Craig (Everlyn Sampi) , a protagonista de quatorze anos
que conduz sua irmã Daisy Burungu (Tianna Sansbury) e sua prima Gracie Fields (Laura Monaghan)
para a "casa", atravessando um espaço de quase dois mil quilômetros, cartografado por uma cerca de
proteção as plantações dos colonos contra a ação predadora de coelhos. A territorialização do espaço
pela Rabbit Proof Fence é acrescida pela captura dos saberes aborígines de reconhecimento da configuração harmoniosa do espaço liso da natureza e da desestabilização estética produzida pelas marcas
deixadas pelo homem. A.O. Neville (Kenneth Branagh) , representante do governo inglês como "protetor" da raça aborígine obstinado por seu projeto eugênico mobiliza um "rastreador" (David Gulpilil) nativo
para apresar as pequenas no espaço liso, antes de chegarem a sua casa. Uma guerra é deflagrada
entre "iguais" nos saberes e no destino trágico de uma raça submetida ao projeto soberano de conquista de território e biopolítico de sujeição de uma população.
A jornada é temerária, longa e exaustiva, porém, não é apreendida pelos olhos da menina como
fatalidade e provação purificadora da falta como nas alegorias cristãs pois, a Noroeste, no final da cerca
se encontra "sua casa". A noção de "ir para casa" não tem necessariamente uma referência geográfica
e espacial, Jigalong, sua comunidade também é um lugar territorializado por uma força policial que seleciona e recruta crianças para o assentamento disciplinar principal de Moore River, de onde fugiram. A
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casa é o campo de afetividade e de sensações materializado em sua mãe (Ningali Lawford) e avó
(Myarn Lawford) e como destino, o espaço desterritorializado e livre do deserto. O espaço inóspito para
o homem branco, o outback australiano, região desértica e semi-árida se apresenta como o "lar aconchegante" não alcançado pelas cercas e lugar de morada de seu pássaro-totem, guardião de sua vida e
liberdade. A criança é apreendida em sua dimensão nômade, que repudia os lugares de confinamento,
projetando-se para a infinitude do espaço ao "ar livre" de sua ave alada e da imensidão do espaço desértico há ser conquistado.
O filme dirigido por Phillipe Noyce é uma adaptação cinematográfica do livro Follow the Rabbitproof Fence, escrito por Doris Pilkington Garimara, filha de Molly Craig, que continua a história de sua
mãe em seu mais recente livroUnder the Wintamarra Tree. As duas obras traçam, em seu conjunto, a
história de quatro gerações de mulheres, da avó de Molly à Doris Pilkington, diante de uma política oficial de Estado, que projeta seus efeitos devastadores até nossos dias. O governo inglês e posteriormente o australiano, já configurado como Welfare State, implementaram a política de "proteção" aos povos
aborígines, forma mais sutil e prolongada de execução de uma estratégia de dizimação étnica e afirmação do eurocentrismo.
A aliança entre o Estado e missões religiosas – católicas e protestantes – discursivamente estava embasada na classificação da infância em três segmentos de acordo com a tonalidade da pele: fullblood, quarter-caste e half-caste.Full-blood eram os aborígines puros que não foram miscigenados com
a raça branca; quarter-caste, as crianças que representavam a quarta geração de uma relação interracial e half-caste, uma criança resultante da relação inter-racial na qual o pai fosse branco e a mãe
uma aborígine. A política de "proteção" visava separar as crianças quarter e half-caste de suas mães
afirmando juridicamente a primazia da figura paterna e de sua civilização, conduzindo-as à missões
religiosas ou de adoção para "reeduca-las" nos preceitos do cristianismo e prepara-las para comporem
uma força de trabalho doméstica, assistencialista em hospitais públicos e religiosos, ou como operárias
nas nascentes indústrias.
A. O. Neville não é representado no filme como o vilão clássico, Himmler, o paradigma do nazista ensandecido organizando campos de extermínio para realizar a "solução final" do "problema" judeu.
Neville realmente acreditava que sua missão era filantrópica e dirigia-se para a defesa do futuro, das
crianças roubadas das famílias e da Austrália "civilizada"[1]. Sua subjetividade – protegida pela convicção de uma missão civilizatória cristã – é representativa da mentalidade da nova governamentalidade
biopolítica de gestão da população. A vida a ser cuidada pelo Estado é aquela que se apresenta em sua
superfície com a pigmentação branca e sua supremacia não se afirma com o extermínio explícito de
outras raças, mas, no espírito do Welfare State, com um plano de assimilação a longo prazo[2], com a
ruptura dos laços afetivos que une a criança com o seu mundo original, supressão da língua, de suas
referências culturais e perspectiva de um metabolismo genético que não exclui a violência sexual. Oito
gerações de crianças aborígines[3] foram removidas de suas casas e levadas para assentamentos estatais dirigidos por organizações religiosas, da década de 30 – época contextualizada no filme – à década
de 70 do século passado:
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"Muitas crianças foram fisicamente e sexualmente abusadas em instituições do governo e da
igreja para onde eram levadas para serem ‘cuidadas’. Como resultado, o povo aborígine tem
uma expectativa de vida de vinte oito anos a menos que outros australianos. Nós sofremos
altos índices de doença mentais e altas taxas de mortalidade infantil. Embora o povo aborígine represente somente 2% do total de 19 milhões da população australiana, os maus tratos e a taxa de encarceramento são muito altos, chegando a atingir metade da população de
algumas comunidades". (Audrey Ngingali Kinnear, vice-presidente nacional do Comitê "Sorry
Day" e uma "Stolen Generation" inwww.hreoc.gov.au/movingforward/speech_healing.html)
A Odisséia de Molly em 1931, primeira fuga e desafio ao governo e seu regime de punição –
confinamento solitário dos recapturados – para retornar a sua casa, repete-se dez anos depois, mas,
em novas circunstâncias. Molly, já adulta, é mãe de duas meninas, Nugi Garimara (Doris Pilkington) de
quatro anos e de Anna com dez meses de vida. Para refazer sua jornada para casa é obrigada a fazer
uma escolha; deixando Doris com Gracie em Moore Rivers, leva consigo a recém-nascida, no entanto,
dois anos depois, o governo australiano também lhe arrebata Anna Garimara.
Doris é submetida a todo um processo de aculturação, formação religiosa cristã, caracterização
de seu povo como raça "suja" e propagadora de rituais demoníacos, adoção da língua inglesa e recusa
de reconhecimento comunicacional de sua língua nativa, enunciação discursiva exaustiva, para a produção do ressentimento, do seu abandono pela família e produção da "vergonha" à cor de sua pele.
Após 28 anos de separação, Doris reencontra Molly, com 86 anos, e decide reafirmar sua identidade
cultural, reaprendendo sua língua Mardudjara, vivendo em Jigalong e escrevendo a história de sua família. Anna, por sua vez, foi atingida com mais eficiência pela política de aculturação, recusando-se a restabelecer contato com o seu passado. Após a boa receptividade de seu livro e sua adaptação cinematográfica, Doris Pilkington, em seu nomadismo, caminha pelo mundo divulgando seus livros e a história
da stolen generationconstatando, ao mesmo tempo, a universalidade do eugenismo – na Noruega contra os ciganos, na Nova Zelândia sobre os Maoris, no Japão em relação ao povo Ainu – e da violência
contra a criança pelo mundo adulto assentado no poder de Estado, em Soweto na África do Sul, em
New Brunswick no Canadá, estreitando existências e saberes – ainda que marcados pela alteridade das
raças, culturas e pelas distâncias das terras e dos mares – que vivenciaram o mesmo poder de erradicação da vida.
A estratégia eugênica, de acordo com Michel Foucault, é a manifestação na sociedade disciplinar erigida no limiar do século XVIII de reatualização do poder soberano de fazer morrer, em consonância com o poder de fazer viverda biopolítica. Geração Roubadapossui o mérito de demonstrar, com um
roteiro simples, como o Estado atua cinicamente na oscilação entre dois campos de forças, indiferente a
uma leitura dialética de sua dinâmica, modelando-se estrategicamente ao campo em que se submerge.
O fluxo operacional do Estado-Nação como poder soberano-eugênico se realizou como um espetáculo
de Teatro Nô, com máscaras ora brutais, nazismos, ora de traços serenos e apaziguadores das consciências filistéias, como o filantropismo humanista. No entanto, onde há poder há contra-poder ou resistências como também um campo aberto ao imprevisível dos acontecimentos. A dominação neocolonial,
a territorialização dos espaços ao sul da Europa produziu, no período de tempo de algumas décadas, a
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desterritorialização das populações dos espaços dominados em um movimento de diáspora recorrente
de corpos em direção as terras do ex-colonizador.
A França continua sendo o modelo mais grandiloqüente para apreciação das múltiplas forças de
resistência e rebelião e de análise das novas estratégias do Estado-nação que se reorganiza para assegurar uma maior sobrevida como referência de organização política da sociedade. Marroquinos, argelinos e marehbianos dividem os espaços dosbanlieus – bairros pobres com uma grande concentração
de imigrantes – e do centro de Paris com uma nova leva populacional de imigrantes oriundos do Leste –
romenos, poloneses, russos e iugoslavos – novos nômades em fuga do esfacelamento do socialismo
autoritário e das novas guerras étnicas. O temor diante dessas novas ondas migratórias colocou o povo
francês crédulo do regime representativo entre a melancólica escolha de Le Pen e Jacques Chirac. A
esquerda ortodoxa – Partido Comunista Francês e Partido Socialista – além de conclamarem o voto à
Chirac, atuaram de forma resoluta para o esvaziamento da plataforma política de Le Pen, assumindo os
temas tradicionais do pensamento conservador, a segurança, combate a delinqüência e a nova pragmática vinda dos Estados Unidos, aTolerância Zero. No Parlamento, a esquerda contribuiu para a redação
do novo código penal francês e na aprovação do ante-projeto de Nicolas Sarkozy, Ministro do Interior de
Jacques Chirac. O novo código penal sofreu alterações de um verdadeiro "pacote" de novas emendas,
em 2002, que passou a ser denominada em seu conjunto de Lei de Segurança Quotidiana ou, simplesmente, Lei Sarkozy, inaugurando na França a chamada Era da Suspeita e da Vigilância Generalizada.
A Lei Sarkozy responde a pobreza com a punição dos pobres estabelecendo pesadas multas e
penas de encarceramento de mendigos, prostitutas, sem-tetos, imigrantes e jovens dos banlieus. Todo
cidadão francês é colocado sob suspeita e controle com a criação de sistemas de vídeo-vigilância inteligente, fichários genéticos "sem limitação de idade", acesso aos registros escolares e cartas de motoristas postos à disposição como banco de dados a toda força policial do país (Police Nationale e Gendarmerie), da União Européia e mesmo dos departamentos pessoais de empresas privadas.
Poderes de um regime de exceção foram postos nas mãos da polícia que pode vir a dar voz de prisão a
qualquer motorista que estacione seu carro em uma auto-estrada, a um ambulante que atrapalhe a passagem de transeuntes, a mendicidade considerada agressiva, a jovens em grupo na frente de suas residências, a adolescentes de mini-saias – caracterização de prostituição passiva – e por "ultraje"[4], isto
é, desacato a autoridade policial.
A violência policial contra a adolescência dos banlieus alimenta um ciclo vicioso com a elevação
dos índices estatísticos da "delinqüência de rua" e da "delinqüência do menor" provocando o medo generalizado da população e o fortalecimento da teoria do "criminoso-nato" dos "especialistas"
da tolerância zero, da origem do grande criminoso nos pequenos desvios de comportamento manifestados na juventude. A produção da subjetividade aterrorizada recebe seus inputs das ondas midiáticas
que proliferam os enunciados discursivos conservadores que como na década de vinte do século passado cartografou os jovens que contestavam a sociedade, os “apaches”, e na década de sessenta, os
“blousons noirs”:
"É o mesmo vocabulário e o mesmo olhar que vemos em curso a várias décadas, quando se
trata de inventar um discurso sobre o ‘indígena' – do qual ‘os jovens de banlieu' são em
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grande parte os descendentes. E é igualmente no passado colonial onde devemos ir se quisermos compreender a gênese dos dispositivos de exceção que se colocam ou se reforçam
nos banlieus." (Tévanian, www.Imsi.net/article.php3?d_article=77)
No entanto, não é somente do discurso conservador do "jovem incivilizado" e selvagem que a
mídia se alimenta. De acordo com Pierre Tévanian, um discurso sociológico supostamente progressista
vitimiza os adolescentes, apontando apropriadamente a precariedade, o desemprego, a brutalidade
policial, a falta de expectativa de futuro, a segregação dura dos bairros pobres e das famílias de imigrantes como forças de intensidades que provocam estados de revolta. A boa intenção das interpretações progressistas, todavia, edifica-se como uma nova frente de batalha do discurso securitário caracterizando os banlieus como "no man’s land", lugares onde "não há nada", esvaziando-os das potências de
criação e invenção de formas de solidariedade, de estratégias de resistências culturais e políticas. As
potências de invenção da vida interditada nos banlieus são caracterizadas por essa nova leva de sociólogos como "febre niilista", manifestação cega e irracional desprovida de sentido e de estratégias políticas organizadas, apontando invariavelmente as formas tradicionais de organização política vinculadas
ao "regime representativo", ao parlamento, ao partido político. Para Tévanian as explosões de revolta
nos vários banlieus parisienses após o assassinato do adolescente Youssef Khaif por um policial, em
setembro de 2001, impõe a necessidade de elaboração de novas perspectivas analíticas que escapem
do velho moralismo conservador e do racionalismo tacanho da "boa consciência" humanista:
"Por conseqüência, independentemente de todo julgamento moral ou de toda consideração
de estratégia política, forçoso é admitir que estas revoltas tem uma racionalidade e uma dimensão política, que elas constituem uma forma de resistência. As ‘explosões' de Vaulx-enVelin, Sartrouville, Mantes la joulie ou Dammarie-les-Lys após a morte violenta de um jovem
da periferia parecem bem menos imprevisíveis, irracionais e bem menos ilegítimas. Assim,
sobretudo, longe de testemunhar uma radicalização selvagem dos jovens dos banlieus, essas revoltas testemunham, ao contrário, a existência de um cuidado da vida do outro, uma
memória e uma incapacidade de se resignar face à injustiça, que é a marca mesma do humano." (Tévanian, www.Imsi.net/article.php3?d_article=77)
As expectativas de Tévanian de ver o carrossel do pensamento adquirindo uma velocidade fora
dos padrões dos dispositivos de controle, projetando para fora idéias enraizadas frustrou-se diante dos
maquinistas zelosos do "parque humano" francês. Nicolas Sarkozy e Luc Ferry[5], Ministro da Juventude, da Educação Nacional e da Pesquisa anunciaram, alguns meses depois, a criação de "Centros Fechados para Adolescentes".
O encarceramento de adolescentes na França remonta-se a Monarquia de Julho (1830-1848)
quando foi criada a casa de educação correcional Petite-Roquette para meninos e a casa correcional Bons Pasteurs para "jovens perdidas", inspiradas no modelo "democrático" americano de Toqueville
que associava educação religiosa – o isolamento e o silêncio dos mosteiros e conventos – durante o
dia, e o encarceramento das prisões ao cair da noite. O século XIX irá dar continuidade ao processo de
transição do modo de percepção da infância pobre do "inocente culpado" ao"criminoso-nato" em forma-
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ção, intensificando o regime disciplinar e de punição com a criação de Tribunais para adolescentes e
colônias penais onde o trabalho se transforma em um elemento da pena e do castigo.
No século passado criam-se as Instituições Públicas de Educação Vigiada (IPES) instaladas em
antigas colônias penitenciárias com a perspectiva de propiciar uma formação profissional e re-socializar
adolescentes indisciplinados mediante uma assistência educativa e projetos pedagógicos. Ao lado dos
IPES projeta-se sua face sombria com os internatos corretivos que acolhem os adolescentes considerados irrecuperáveis submetidos a um regime carcerário para "menores delinqüentes". Com o pós-guerra
e a recuperação econômica da Europa assiste-se a um aumento da taxa de natalidade – o baby-boom –
e a progressiva passagem das políticas estatais de prevenção à edificação de estruturas carcerárias
para armazenar a "doença da juventude", o movimento de contra-cultura "blousons noirs" inspirado
em Rebel Without a Cause e nas personagens interpretadas por James Dean, Sal Mineo e Natalie Wood.
A política de encarceramento da adolescência atravessará toda a década de sessenta com os
Centros Especiais de Observação da Educação Vigiada (Csoes) perpetuando-se na década de setenta
como Centros de Observação de Segurança (COS) dos quais o Centro de Juvisy, submetido a um estudo sobre a validade desse tipo de instituição, contribuiu indiretamente para o seu fechamento:
"De 735 jovens observados em Juvisy entre 1970 e 1976, 60% se encontravam na prisão,
dois anos após sua passagem. Para muitos, o centro não era mais que o prelúdio de uma
carreira delinqüente." (Bourquin, 2002: 3)
A reinstauração de centros de confinamento para jovens por Sarkozy e Ferry representa apenas
um momento de repetição da absurdidade da existência do Estado como epicentro de organização da
vida social, instituição que se faz mais desastrosa e irracional ainda quando se arroga a função de proteção da infância e da adolescência.
No entanto, não se trata apenas do Estado, mas, talvez, da necessidade de um saber ainda em
constituição sobre esses instantes da existência que, normativamente, são apreendidos com temor pelo
ser maturado pelo tempo e que como adulto situa seu corpo como lugar de produção e emanação de
poder.Desfeitas as buscas intermitentes pela origem das coisas, um dos momentos mais provocadores
da resistência contra a "nova" estratégia securitária do Estado francês foi a "carta aberta" escrita pelo
psicanalista Joseph Rouzel ao Ministro do Interior Nicolas Sarcozy, demandando-lhe que não lançasse
a infância na prisão. Citações que povoam as mídias e que encontram receptividade na opinião pública
como representações de uma análise científica da juventude contemporânea evidenciaram-se como
fluxo de enunciados discursivos que se repetem pelas vozes dos adultos, independente de tempo e
espaço, quando Rouzel explicita as fontes das frases que figuram em sua carta: Sócrates (470-399
a.C)[6], Hesíodo (720 a.C)[7] , escrita hieroglífica atribuída a um sacerdote egípcio (2.000 a.C)[8], texto
inscrito em um pote de argila encontrado nas ruínas da Babilônia (mais de 3.000 anos a.C)[9].
Uma das primeiras manifestações desse saber em formação ou contra-discurso sobre a infância
e adolescência se deu sob a pena de Walter Benjamin,em sua juventude, quando aborda o tema da
dimensão relacional dos três instantes da existência. Na Berlim da década de 10, o livro de Gustav Wyneken, Jugendkultur ("Cultura Juvenil") produz um estado de euforia no meio universitário levando a
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formação de diversos círculos estudantis que se reuniam noSprechsaal der Jugend (Fórum de Debates
da Juventude), dentre os quais o Jugendbewegung (Movimento da Juventude) que postulava uma reforma educacional radical na Alemanha apontando como aspiração máxima, a criação de uma cultura
autônoma da juventude. Benjamin, filiado ao Movimento da Juventude produziu uma série de ensaios
sobre religião, ética, educação moral sob a influência do pensamento nietzscheano – e de sua principal
obra Assim Falava Zaratustra – que se explicita na definição de seu alvo de crítica, o filisteu pedagogo
que concebe a educação como exercício para inculcar princípios morais e imperativos da cultura burguesa nos jovens. Sua crítica se dirige a noção deexperiência entendida como "máscara" do adulto e
"evangelho do filisteu" que seqüestra a potência de vida e de imaginação da infância e da adolescência
no saber seletivo que intenta afirmar a "vida séria" que se petrifica como rejeição de caminhos já vividos
e que devem ser evitados pelas novas gerações. A vontade de potência é rejeitada com condescendência como "devaneios pueris", "enlevação infantil", efêmera noite interrompida por uma aurora anunciadora de "anos de compromisso, pobreza de idéias e monotonia" (Benjamin, 1984: 23).
O pensamento de Benjamin não se manifesta, neste momento, como expressão de um pensamento dialético que contrapõe o "mundo da infância e da adolescência" a um "mundo adulto". Em "A
vida dos estudantes", Benjamin se dirige aos estudantes alemães empreendendo uma crítica radical ao
estilo de vida estudantil que era organizado como um pacto tácito com o filisteísmo, fixando este período de permanência na Universidade como "tempo de espera", em que se deve gozar a juventude, para
o ingresso posterior nas administrações públicas e nas profissões liberais. Benjamin se opunha a gravitação da adolescência alemã para a subjetividade adulta caracterizando-a não como a geração mais
jovem, mas como a geração em envelhecimento que tinha como referência os pais com "seus gestos
cansados e sua desesperança arrogante" (Benjamin, 1984: 24) e não "os que nasceram depois". Benjamin incita seus jovens contemporâneos a sustentarem uma relação com as novas gerações mantendo
a nostalgia de uma infância feliz e de uma adolescência digna como reserva de potência de criação e
renovação da vida.
Algumas décadas depois, Gaston Bachelard retoma o tema da infância como instante de felicidade primeira, a solidão da criança como estado fecundo da imaginação alimentada pelas sensações
afetadas no seu estar com o mundo natural. A infância não se caracteriza apenas como um instante da
existência ou como um recorte da vida que se mantém no passado, mas, subsiste na simultaneidade do
tempo da subjetividade como núcleo ou arquétipo de afetações felizes e imaginação criadora. O núcleo
da infância que permanece em nós é concatenado a imagem da água em uma paisagem bucólica, mas
também ao fogo e, no impulso nietzschiano de Bachelard, ao ar como potência de criação no devaneio:
"A vida aérea de Nietzsche não é uma fuga para longe da terra, é uma ofensiva contra o
céu; em termos que têm a pureza do imaginário e que estão desembaraçados de todas as
imagens de tradição, essa ofensiva reedita a epopéia miltoniana dos anjos revoltados. E
trata-se aqui de uma imaginação ofensiva pura, pois que é bem sucedida."(Bachelard,
2001: 155)
Bachelard volta-se para a "infância feliz", o que não significa que tenha ficado alheio a infância no mundo, ao contrário, a terranão lhe foge dos pés, mas potencializa a infância como virtual e pos-
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sibilidade de devir. Em A Poética do Devaneio, Bachelard sonhando em sonhar como o poeta Henri
Bosco fala-nos da infância interditada, possibilidades de vida não vividas, entre o real e o irreal, imaterial virtual como potência de desarticulação de uma história da infância dolorosamente vivida.
A Biopolítica foi a estratégia de gestão da vida nas sociedades disciplinares, mas, com um "corte
epistemológico" reduzindo-a a sua função econômica, neutralizando seu campo de energias e sensações que potencializavam o corpo para sua autonomia e fuga do controle da governamentalização do
Estado. No entanto, se no espaço do território do Estado-nação a biopolítica era implementada, reduzindo a margem de fricções de resistências, nas possessões neocoloniais recorria-se ao formato clássico do poder soberano, o eugenismo como poder de subtração da vida.
Geração Roubada de Doris Pilkington evidencia as estratégias mais sofisticadas de eugenismo
pois, não se trata mais da paixão furiosa da rainha de Alice no País das Maravilhas de Lewis Carrol ordenando o corte das cabeçasde seus súditos ao menor sinal de contrariedade no seu campo de Croqué, mas, de um poder soberano atravessado por um saber bio-político que tinha como alvo menos o
corpo dado e acabado do adulto de uma raça considerada inferior do que os corpos em formação e os
corpos ainda por vir.
Molly Craig é uma criança que potencializa seu campo de forças como uma adolescente, tal qual
aqueles que levantam suas barricadas nos banlieus franceses, instante necessário de rebeldia para ao
cruzar as cercas da cartografia do poder resgatar seu núcleo de infância com suas linhas de fuga de
alegria, prazer simples, de imaginação criadora e vontade de vida. Com seus 86 anos, Molly Craig mantém seu núcleo de infância quando reatualiza seu passado diante da alquimia do tempo propiciada pelo
cinema, assistindo com Doris na assustadiça – confrontada com a modernidade do projetor e da tela
branca – comunidade de Jigalong a première de Rabbit Proof Fence. O campo de forças de indignação
e rebeldia da adolescência não se desvaneceu, como temia Benjamin com a chegada da idade adulta,
pelo menos no caso de Molly, continua fluindo, campo de experimentação aberto à repetição em outros
corpos, refutando o ressentimento, mas, buscando o tempo roubado e desmontar o processo de aculturação das filhas, talvez, colocando em evidencia algo muito mais que isto, a diluição do poder global de
dominação por uma força local e extemporânea de resistência.
A ativação do núcleo de infância de Bachelard ou como quer Deleuze, o devir-criança, bem como, da potência de rebeldia da adolescência na subjetividade adulta não se constitui como discurso
ingênuo ou infantilizado diante das forças imponderáveis do capital e do Estado. Trata-se, nesses pensadores, de vontade de potência para desbloquearinfâncias interditadas e liberar gerações roubadas da
história equivocada de um enunciado discursivo sobre a infância e a adolescência, como pontua Rouzel, que circula a mais de cinco mil anos por estruturas de poder e pelo adulto que nega dialeticamente
a capacidade de ser feliz da criança e a potência de rebeldia de sua adolescência reproduzindo o "inteiramente igual", a disciplina e o controle de forças que lhe parecem incognoscíveis e irracionais.
Bibliografia
BACHELARD, Gaston. A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
____________. O Ar e os Sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o Brinquedo, a Educação. São Paulo: Summus, 1984.
BOURQUIN, Jacques. Le Fantôme des Maisons de Redressement. Paris: Le Monde Diplomatique, Juin 2002: p. 3.
FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
8
KINNEAR, Audrey Ngingali. Moving Forward – Achieving Reparations For the Stolen Generations (Speechs).www.hreoc.gov.au/movingforward/speech_healing.html
PILKINGTON, Doris. Interview: www.abc.net.au.
ROUZEL, Joseph. Lettre Ouverte au Ministre de L’Interieur. www.psychasoc.com
SCHOLEM, Gershom. Walter Benjamin: A História de uma Amizade. São Paulo: Perspectiva, 1989.
TÉVANIAN, Pierre. Le Mythe de L’Insécurité (Où: Comment on Construit des Classes Dangereuses.www.Imsi.net/article.php3?d_article=77
[1] Quando o filme foi lançado na Inglaterra, em novembro de 2002, seu filho John Neville caracterizou-o como
"uma distorção grosseira da realidade" e defendeu resolutamente a figura paterna: "Ele acreditava em assimilação
e tinha o maior respeito pelos full blood aborígines. Ele queria ajuda-los a se tornarem civilizados." Inwww.eniar.org/news/rabbit2.html
[2] "Se removermos as ‘half-castes’, os full bloods serão extintos em cinqüenta anos e a Austrália não terá um
Problema Aborígine." Neville, A. O. Discurso proferido em um encontro de representantes de Protetorados Aborígines em 1937, na cidade de Camberra in ." Inwww.eniar.org/news/rabbit2.html
[3] De acordo com o relatório Bringin Them Home: The ‘Stolen Children' Report, publicado em 1997 pela Australian Human Rights and Equal Opportunity Comission, mais de 25.000 crianças foram alvos da política oficial de
assimilação.In:www.eniar.org/news/restoringidentity.pdf .
[4] "Os tribunais vêem assim desfilar jovens que não cometeram nenhum delito antes da intervenção da polícia e
que
por
esta
intervenção
foram
levados
a
cometer
um
‘ultrage’." Tévanian, www.Imsi.net/article.php3?d_article=77
[5] Filósofo neo-kantiano que em 1985 escreveu, com Alain Renaut, "Pensamento 68", caracterizando pensadores
como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Nietzsche, Althusser e Derrida, entre outros, como expressões do irracionalismo moderno e contemporâneo.
[6] "Nossos jovens são maus discípulos, riem da autoridade e não têm nenhuma espécie de respeito pelos mais
velhos. Nossas crianças de hoje não se levantam quando uma pessoa idosa entra em um recinto, respondem aos
seus pais e tagarelam ao invés de trabalhar. Eles simplesmente são maus." In : Rouzel, www.psychasoc.com
[7] "Eu não tenho nenhuma esperança no futuro de nossa cidade, se a juventude de hoje tomar o comando amanhã, porque esta juventude é insuportável, sem comedimento, simplesmente terrível." Idem, ibidem.
[8] "Nosso mundo passa por um momento crítico. As crianças não escutam mais seus pais. O fim do mundo não
pode estar longe." Idem, ibidem.
[9] "Esta juventude está corrompida até o fundo da alma. Os jovens são maus e preguiçosos. Ela jamais será como a juventude de outrora. Eles jamais serão capazes de manter nossa cultura.": Idem, ibidem.
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