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7 Histórias de resistência contra o terror* Carla Luciana Souza da Silva** Resumo: Neste artigo, discutiremos o conhecimento produzido sobre a Ditadura no Oeste do Paraná e do Rio Grande Sul, a partir da Audiência Pública da Comissão Estadual da Verdade, realizada em Cascavel em março de 2014, e da Audiência de Três Passos, no Rio Grande do Sul, de junho de 2014. Tentamos inserir as audiências em um momento histórico relativo aos movimentos sociais da memória e às políticas públicas de memória. O resultado das audiências pode ser um importante material para conhecermos essa realidade, especialmente se agregarmos à análise as pesquisas acadêmicas que vêm sendo desenvolvidas, algumas delas em conjunto com os movimentos sociais da memória. A pesquisa busca apontar para a importância do estudo da Ditadura no interior do País. Palavras-chave: Ditadura. Resistências. Oeste do Paraná. 1 Terror de Estado fora do eixo A Ditadura brasileira tinha um vocabulário próprio, reinventando determinadas palavras, dando para elas o significado que lhe convinha. Da mesma forma que os golpistas se autointitulavam “revolucionários” em nome de uma “democracia”, eles também cunharam expressões próprias para designar (e criar) seus inimigos. Esses dizeres estavam presentes em boa parte da documentação da repressão, expressa em um onipresente carimbo: “A Revolução de 64 é definitiva e consolidará a Democracia no Brasil”. Era preciso para os ditadores reiterarem e convencerem, inclusive aos próprios agentes da repressão, que eles estavam agindo em torno dessas ideias. É por esta lógica que os resistentes que de alguma forma se opuseram à Ditadura foram rapidamente batizados de “terroristas” e subversivos. Mas o estudo aprofundado do funcionamento da Ditadura mostra, cada vez mais, o quanto o Estado brasileiro comandado pelos militares instaurou uma lógica de terror, constituindo o Terrorismo de Estado (PADRÓS, 2012). É com esse sentido que buscamos indagar as fontes que serão analisadas no tocante à repressão a movimentos de resistência, bem como a memória dos diretamente envolvidos pela repressão. * Este artigo faz parte do Projeto de pesquisa “Ditadura no Oeste do Paraná: história e memórias”, que tem o apoio do CNPq. ** Licenciada e bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com pós-doutorado pela Universidade Nova de Lisboa. Professora Associada do curso de História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste). (Email: [email protected]). Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos> ISSN 1808-043X – Versão eletrônica 8 Além disso, esse texto se insere na perspectiva da história da Ditadura “fora do eixo”, fora do centro Rio-São Paulo, pois é preciso compreender o impacto da Ditadura pelas regiões interioranas do país. Ao mesmo tempo, há uma forte aceitação no senso comum de que a Ditadura teria sido amplamente apoiada no interior do Brasil, o que as pesquisas recentes têm servido para desmentir. Não foi apenas na região do Araguaia que houve uma Ditadura atuante. O fato de que não tenha havido aprofundamento das guerrilhas rurais não pode servir para menosprezar o impacto da Ditadura em outros aspectos da repressão, especialmente aquelas relacionadas à chamada “modernização da agricultura”, que levou ao êxodo e a infindáveis conflitos pela terra. Todo o processo de modernização da Ditadura (grandes obras como Itaipu) deixaram atrás de si rastros de desapropriações, mortes, vidas destruídas, e isso também é Ditadura. É importante para nossa compreensão a visão de que a história que estamos tendo condições de escrever hoje está relacionada com os movimentos sociais da memória. Trata-se de um momento privilegiado o que vivemos, em que novas fontes vêm sendo descobertas ou mesmo produzidas. Neste artigo, proponho analisar fontes novas, produzidas recentemente em episódios centrados em Audiências Públicas, mas apontar para a necessidade de cotejá-los com outros documentos, sempre que possível. Por isso, também trataremos de documentos encontrados em delegacias do DOPS e por outros órgãos da repressão. Muitas vezes nesses arquivos encontramos também documentos de origem militante, como é o caso de várias cartas dos Grupos dos Onze apreendidas pela repressão. O DOPS guarda jornais, fotografias, etc., mas guarda também os relatos de interrogatórios muitas vezes feitos sob tortura, além de nos dar uma noção sobre como funcionava na prática o aparato repressivo. Assim, esse tipo de arquivo nos abre uma grande possibilidade de investigação. 2 A realização de audiências: Estado e Sociedade Civil Em 20 e 21 de março de 2014, ocorreu em Cascavel uma Audiência Pública da Comissão Estadual da Verdade do Paraná. O tema era as violações dos direitos humanos na região Oeste e proximidades durante o período da Ditadura. Vamos ater nossa análise aqui aos depoimentos realizados em torno dos movimentos de resistência à Ditadura, deixando de fora os indígenas atingidos. Essa escolha se deve apenas ao foco da pesquisa que estamos realizando. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos> ISSN 1808-043X – Versão eletrônica 9 A realização da audiência foi um processo conjunto de várias entidades. Formalmente, é realizada com o respaldo da Comissão Estadual escolhida pelo governo do Estado do Paraná. Nesse sentido, é um trabalho oficial: A Comissão Estadual da Verdade do Estado do Paraná foi criada pela Lei 17362 - 27 de Novembro de 2012, no âmbito da Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos – SEJU, que prestará apoio administrativo às ações e atividades, que não terão caráter jurisdicional ou persecutório.1 A atuação da CEV-PR neste caso foi a de dar as condições legais de realização de uma Audiência que tinha como objetivo ouvir pessoas que foram direta ou indiretamente envolvidas com violação de direitos humanos durante a Ditadura. A maioria das pessoas falou sobre seus próprios casos, mas alguns foram representados por familiares, o que não deixa de ser também um envolvimento direto. A Audiência não teria ocorrido sem a organização local. E esta tarefa foi levada adiante pelo Comitê Memória, Verdade e Justiça do Oeste do Paraná. É importante ressaltar essa questão para que possamos vislumbrar a forma como o processo se desenvolve, promovendo o que chamamos de “ampliação do Estado”, que se abre e chancela determinadas atividades. Os motivos de realizar essa ampliação são variados, mas em termos gramscianos podemos vislumbrar a falta de política pública de Estado para a questão da memória. A política é a criação de uma Comissão e a delegação de determinados restritos poderes a organizações da sociedade civil (MENDONÇA, 2014). Não vem junto com a delegação qualquer poder econômico, o que tem impactos evidentes no andamento do processo, na medida em que os custos dos deslocamentos e os convites a serem realizados são limitados pelas possibilidades dos diretamente envolvidos, assim como não há poder jurídico ou punitivo, na medida em que as audiências estão amarradas às legislações estaduais. A Audiência Pública de Três Passos foi também organizada em conjunto pelo Comitê Memória, Verdade e Justiça de Três Passos e pela CEV-RS, no campus da Universidade, o que nos traz o terceiro elemento organizativo: o papel das universidades nesse processo. Nos casos em questão, tanto a Universidade Estadual do Oeste do Paraná arcou com os custos da organização (deslocamento dos convidados, hospedagem, espaço físico, etc.) como a UNIJUÍ foi a organizadora local. Esse dado é importante para que visualizemos: o Estado promove a Comissão e chancela as 1 Cf. Departamento de Direitos Humanos e Cidadania. <http://www.dedihc.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=94>. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos> Disponível em: ISSN 1808-043X – Versão eletrônica 10 Audiências, mas quem a efetiva são organismos autônomos, parte da sociedade civil organizada. O que mais queremos chamar a atenção é que esses movimentos em torno da recuperação da memória histórica se constituem enquanto legítimos movimentos sociais em torno da memória e da história brasileira. Em cada lugar, cidade e estado, a relação da sociedade com o Estado será distinta e precisa ainda tornar-se objeto de estudo. 3 O trabalho prévio: localizar e convencer os depoentes No caso da organização da Audiência em Cascavel, havia uma dificuldade a mais, que era a distância de muitos dos possíveis depoentes. Por isso, foi necessário o deslocamento para realizar os contatos. Esta atividade prévia tem caráter complexo do ponto de vista da análise histórica. Aluizio Palmar, militante dos direitos humanos desde 1979, quando voltou ao Brasil, foi também militante durante toda a Ditadura, tendo participado de diversas organizações de resistência armada como a Dissidência Comunista do Rio de Janeiro, o primeiro MR8 e a VPR. Banido do Brasil em 1971, seguiu a vida clandestina no Chile e na Argentina. A trajetória de Palmar é fonte histórica, mas ele atua como intelectual orgânico desta causa, transformando-se em fundamental ponto de contato com aqueles que foram militantes e que até hoje não falaram sobre suas experiências. A viagem empreendida para a coleta de depoentes abrangeu um extenso caminho que Palmar percorreu junto com o historiador Valdir Sessi. O mapa do caminho percorrido é sintomático dos caminhos da resistência no Oeste do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Foram duas viagens de exploração. Na primeira delas, foram 850 km percorridos de Foz do Iguaçu a Andrezito (Argentina), chegando a Porto Soberbo para atravessar de balsa até chegar a Três Passos, no Rio Grande do Sul, onde visitaram cidades próximas como Coronel Bicaco. Na segunda incursão, foram 500 km até Santo Antônio do Sudoeste, passando por Barracão, Capanema e outras cidades. Esses contatos, realizados amistosamente com o intuito de propor os convites, foram essenciais para o convencimento dos depoentes e seus familiares. Posteriormente, um esquema de transporte foi acionado pela Universidade para que o deslocamento fosse feito nos dias da Audiência. A partir dessa prévia, dada por contatos e conhecimento anterior, a pesquisa se debruça sobre alguns Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos> ISSN 1808-043X – Versão eletrônica 11 movimentos, em especial, Operação Três Passos, Grupo dos Onze, VAR-Palmares, MR8 e Conexões Internacionais. Já no caso de Três Passos, a atividade coincidiu com a realização da 86ª Caravana da Anistia. Assim, a mobilização dos depoentes também tinha como objetivo julgamentos pela Comissão da Anistia, o que institucionalmente não tem relação com a Comissão da Verdade. Dito isso, passamos a explorar os principais movimentos de resistência que foram abordados nestas audiências, sem nos atermos a especificidades de Cascavel ou Três Passos, e sim dos movimentos que estão sendo narrados. O objetivo é dar um quadro geral do que se conhece sobre os impactos da Ditadura no Oeste do sul do Brasil a partir das audiências. 4 Três Passos, lugar de muitas ações Três Passos é uma cidade sul-rio-grandense que foi palco de alguns movimentos de resistência ao longo da história recente brasileira. Em primeiro lugar, lembremos da Guerrilha de Três Passos, a “guerrilha maluca”, conforme definiu a revista Manchete, e também a rádio local (SCHNEIDER, 2000, p. 28). O grupo de mais de vinte homens se rebelou a partir de Três Passos, saindo em movimento de rebelião que deveria marcar um ano do Golpe de 1964 em todo o país, a partir das ligações com o Movimento Nacionalista Revolucionário, vinculado a Leonel Brizola. Saíram sozinhos, tomaram a rádio, tentaram desapropriar o Banco do Brasil, se apropriaram de um caminhão e seguiram pelo Oeste de Santa Catarina, vindo a ser presos no Sudoeste do Paraná. Segundo noticiado na revista de circulação nacional, desde a queda do Presidente João Goulart, a Brigada Militar do Rio Grande do Sul passara a patrulhar a zona das Missões e do alto Uruguai, onde se temia que surgissem guerrilhas. Apesar disso, precisamente nessa zona começou o treinamento de homens que iriam participar de tais atividades subversivas. Uma escola rural em lugar de difícil acesso, chamada Isolada do Lajeado, no município de Campo Novo, e dirigida pelo professor Waldetar Dornelles, foi o ponto escolhido para instrução e o treinamento dos homens que participaram desse episódio. (OS ÚLTIMOS, 10/04/1965, p. 21). Valdetar foi também um dos depoentes nas Audiências Públicas. Ele tornou-se advogado e posteriormente passou a trabalhar como defensor de várias pessoas em seus processos de Anistia. Em Cascavel, ele relatou que “no dia 28 de março de 1965, então com 33 anos, devido a sua posição política e participação no movimento armado conhecido como ‘Grupo dos Onze’, foi preso em Aparecidinha do Oeste, no Paraná, Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos> ISSN 1808-043X – Versão eletrônica 12 onde, sob condução do general Aragão, foi ameaçado de morte”.2 Foi levado juntamente com outros do grupo para Foz do Iguaçu, onde ficou detido 51 dias, sofrendo “inúmeras torturas, coordenadas especialmente por Ademar Curvo e executadas por Rui Monteiro do Rego, Major Murtinho e mais um major paraquedista”. Declarou terem ficado três dias sem água e onze dias sem comida. De lá foram levados para Porto Alegre, onde passaram por novas seções de tortura, entre as quais solitária por cinco dias, na “mais completa escuridão”. De lá, foi levado para Ponta Grossa, com novas torturas e agressões, e de lá para Curitiba, completando quatro anos de prisão. Em Curitiba, foi submetido a ficar internado junto a deficientes mentais, por 11 meses incomunicável. Foi libertado em 1969, mas seguiu por 24 anos impedido de exercer a profissão de professor. Relata ter várias marcas no corpo oriundas das inúmeras seções de tortura sofridas. Em Três Passos, ele também depôs, concluindo sua fala com um poema composto no cárcere. Seu irmão, Abraão Dorneles, que também depôs nas duas cidades, foi taxativo em reafirmar o caráter da luta da qual participou: E a história, até hoje a gente sofre as consequências disso tudo, de gente que passa muitas vezes é perguntado, interrogado por amigos, vizinhos, se caso fosse hoje, se nós estaríamos no movimento novamente, sempre a gente tem a resposta, do espírito de luta, de ver um Brasil melhor, com a justiça, com os direitos humanos sendo entregues à população brasileira, isso nós almejamos, e vamos morrer lutando por isso.3 Sua narrativa é enfática ao contar as torturas, a fome, a sede a que foram submetidos. Relata que, especialmente no Batalhão de Fronteira, em Foz, foram duramente torturados, chegando a dizer que não sabem por que foram mantidos vivos. Ele relata que poucos dos participantes daquele evento seguem vivos. E na audiência em Cascavel esteve presente um deles, o Sr. Vergilio Santos, nascido em 09/08/1918.4 Ele fez sua declaração sobre as sevícias sofridas, reiterando sua posição de luta, dizendo que nunca fugiu dos embates e que nunca deixou os companheiros sozinhos. Preso, passou por várias prisões, em Porto Alegre e em Curitiba. Mostrou no depoimento sinais de tortura, como marcas na cabeça, onde foi agredido com coronhadas, e nos tornozelos, que fazem com que ele não consiga se locomover bem desde há muito tempo. Fez questão de ressaltar que sempre seguiu acreditando nos ideais nacionalistas, janguistas e brizolistas. O fato de ele ter se deslocado de Foz do Iguaçu até Cascavel foi uma 2 Waldetar Dornelles. Termo Declaratório. Audiência Pública de Cascavel. 20/03/2014. Abrão Dorneles. Entrevista a Valdir Sessi e Aluízio Palmar. Fev. 2014. 4 Vergilio Soares Lima. Termo Declaratório. Audiência Pública de Cascavel. 20/03/2014. 3 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos> ISSN 1808-043X – Versão eletrônica 13 amostra clara da importância que a fala sobre o ocorrido ainda exerce nos sujeitos que vivenciaram essa história. A região de Três Passos foi palco direto de um outro movimento de resistência, um Comando Territorial da VPR, Vanguarda Popular Revolucionária. Antonio Alberi Maffi foi um dos depoentes ouvidos nas visitas preparatórias. Militante brizolista, já no movimento estudantil, na “União Passo-Fundense de Estudantes, estava na vanguarda das manifestações. Com uma postura mais firme e combativa, de certo modo, determinava as ações do movimento universitário” (PRETTO, 2003, p. 32). Com o recrudescimento da repressão, passa a aprofundar a ação política no Partido Operário Comunista, junto com Bona Garcia, outro líder estudantil da época. Com outros companheiros, formariam uma importante base territorial da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) na região, e tinham contato direto com Onofre Pinto. O perfil da organização sempre seria militarista, de inspiração cubana, mas teve forte entrada em setores “civis”. A organização inicialmente em Passo Fundo cumpria várias tarefas de ordem formativa, além de pequenas intervenções panfletárias, mas que eram de importante teor naquele contexto de Ditadura. O desejo de ampliar a ação prática levou à ruptura com o POC e a entrada na VPR (PRETTO, 2003, p. 35). Os militantes da VPR criaram uma companhia pesqueira, que servia de fachada para suas atividades. O jornal de Três Passos noticiou no momento da prisão: Perfizeram um total de 19 elementos. Mas não pescavam e não vendiam peixes. Apenas na semana Santa apareceram alguns que por sua vez haviam sido comprados de outros pescadores. Dinheiro não faltava à empresa. Os pseudo-pescadores eram regiamente pagos, em dia. Surgiram as suspeitas, foram efetuadas as prisões, de início a negativa peremptória, era pescaria. Mas a evidência dos fatos provava que jamais poderia sê-lo. Não era pescaria. Hábeis interrogatórios revelaram a verdade. Estava montado na barra do Turvo um APARELHO subversivo fazendo parte de gangs que assaltavam bancos, sequestravam autoridades e estouravam bombas terroristas. (O celeiro, 07/05/1970). Há alguns elementos instigantes nesse trecho da matéria de capa do jornal. Primeiro, a negativa de que os militantes exerciam função de pescaria, mesmo atentando um alto número de pessoas envolvidas e havendo a informação de que eles estavam inseridos na vida da cidade no abastecimento de peixes, chegando a vendê-los ao quartel da cidade (PRETTO, 2003). Mas há outro elemento mais relevante, que é a absoluta conivência com as táticas de tortura da repressão, aqui chamada de “hábeis interrogatórios”. É importante chamar atenção para isso, para que tenhamos elementos para entender como se constrói um falso consenso de que as pessoas apoiavam a Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos> ISSN 1808-043X – Versão eletrônica 14 repressão. Com o jornal amenizando a ação repressiva, mantém-se uma situação “habilmente naturalizada”. Daí em diante, várias notícias seriam publicadas de caráter especulativo, como o de que “notícias veiculadas pela imprensa Argentina e da capital do estado dão conta de que foi apreendido um caminhão carregado de armas e munições destinadas aos guerrilheiros de Três Passos”. O “fato”, fundamentado em hipotéticos jornais, serve para manter uma lógica de medo: se os militantes chegassem a receber as armas, o que poderia acontecer? Também envolvido neste caso estava Roberto de Fortini, um italiano que veio para o Brasil com a família, que fora trabalhar na produção frigorífica na região de Chapecó. Sua prisão foi destaque no jornal O observador, de Três Passos. Todos os nomes dos presos são citados, mas a manchete de capa é: “Preso Roberto de Fortini. Trama subversiva desmantelada. Aclara-se a situação” (O observador, 16/05/1970). “Aos poucos as autoridades vão se munindo de mais provas e mais elementos para aniquilar com propósitos de uma bem organizada quadrilha de subversivos comandada pela Vanguarda Popular Revolucionária, uma das quatro organizações comunistas que atuam no Brasil com a finalidade de se apoderar do Governo e comunizar a pátria” (O observador, 16/05/1970). Mais uma vez a imprensa cumprindo seu papel, citando as mesmas fontes e reproduzindo em primeiro lugar a versão oficial da polícia; em segundo, outros jornais, pois a notícia repercutiu no centro do país. Embora precisemos ter cuidado com o uso de documentação oficial, o mandado de citação dos presos dá conta de algumas atividades realizadas pelo grupo: Levando a cabo seus objetivos criminosos, não apenas promoveram reuniões clandestinas em locais diversos, inclusive às margens do Alto Uruguai, mas, ainda, efetuaram a impressão e distribuição de panfletos de incitamento à luta de classes e à animosidade destas contra os Poderes Constituídos, intitulados “Operários no Poder”, “Abaixo a Ditadura” e “Abaixo o Arrocho”, de preferência nos bairros e vilas, por ocasião das eleições municipais de 1968 e no dia 1º de maio de 1969, além de pichamentos de ruas, com os conhecidos chavões comunistas, confeccionados na residência do denunciado Bruno Piola. (RODRIGUES, 31/08/1970). O documento é ilustrativo de como funcionava a Ditadura: a proibição efetiva da liberdade de pensamento e a naturalização da apreensão, prisão e punição pelos crimes de expressar posições divergentes, contra os “poderes constituídos”. O relato insiste que a organização, que passara a fazer parte da VPR, pretendia instalar “um centro de treinamento de guerrilhas, para o que contavam, ainda, com o imediato concurso de elementos especializados que para lá afluíram posteriormente, inclusive o próprio excapitão Carlos Lamarca. Contando com elevados recursos financeiros [...] receberam Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos> ISSN 1808-043X – Versão eletrônica 15 vultuosas somas destinadas à aquisição de armas e munição na Argentina e no Paraguai” (RODRIGUES, 31/08/1970). Diz ainda que estariam já organizando um grupo paramilitar, usando sempre os pescadores como disfarce, mas de fato instalando uma área de treinamento de guerrilha. Segundo o informe, receberam muitas armas e munições, elaboraram códigos de comunicação, escavaram para esconder armas, munições e mantimentos. A partir daí, teriam começado a realizar aulas de tiros. A conclusão do documento, que mescla relatos com posições subjetivas ideológicas, é a seguinte: Sobram razões suficientes para se aquilatar da atividade delituosa dos denunciados que, filiados a organizações espúrias, de cunho supinamente subversivo, uniram os esforços para fazerem propaganda de incitamento à luta de classes e de animosidade destas entre si e contra os Poderes constituídos, praticando atos destinados a provocar a guerra revolucionária e tentando subverter a ordem política e social, promovendo ai insurreição armada no País, para exigir a derrubada das instituições nele vigentes. (RODRIGUES, 31/08/1970). Neste documento, foram citados: Roberto Antônio de Fortini, Bruno Piola, Antonio Alberi Maffi, Belmor Carlos Palma, Sergio Guimarães Siqueira, Reneu Geraldino Mertz, Adão Dias Machado, Jaime da Silva Ramos e Luiz Carlos de Oliveira. Chama a atenção, além da pretensa erudição do texto, o fato de que os envolvidos estavam “no xadrez” [sic], em Santa Maria, na 3ª Auditoria da 3ª Circunscrição Judiciária Militar. Santa Maria dista em torno de 300 km de Três Passos. Este foi um dos elementos mais ressaltados pelos familiares presentes na Audiência Pública da Comissão Estadual da Verdade do Rio Grande do Sul, ocorrida na cidade de Três Passos, em 2014. Clarissa Mertz relatou as dificuldades que a família encontrou, tendo seu pai enviado para longe, sendo a família de mãe e mais três filhas totalmente dependentes dele financeiramente, como era costume na época. O pai de Clarissa constava entre os “prioridade 1” da “Operação Arrastão”, realizada em 31/05/1974. Reneu era o primeiro nome da lista, seguido de Antônio Leutchuk, Roberto de Fortini, Antonio Maffi, Belmor Carlos Palma, Bruno Piola, Gelci Fensterseifer e Fioravante Gonçalves Dias. Este documento indica que, quatro anos depois, os envolvidos no processo ainda estavam sendo perseguidos, mesmo Fortini, o Gringo, que havia sido banido do país em janeiro de 1971, na troca dos 70 militantes pelo embaixador suíço. Clarissa Mertz declarou que seu pai foi preso em 30/03/1970 em Três Passos, onde ficou até junho daquele ano. De lá, foi levado para Santa Maria, onde permaneceu até agosto de 1971, quando foi julgado inocente. Na prisão, perdeu 20 quilos, perdeu a Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos> ISSN 1808-043X – Versão eletrônica 16 audição de um ouvido, adquiriu depressão e hipertensão, doenças que o levaram à morte aos cinquenta anos. Além do sofrimento com a prisão e a distância, a família passou por inúmeros constrangimentos. A casa foi invadida. Relata que a imprensa local acusava seu pai de “traidor da pátria e da família”.5 Alberi Maffi, que foi preso em 1970, recebeu os entrevistadores em sua residência, em Braga, no Rio Grande do Sul.6 Narra a trajetória de envolvimento com a militância política, do movimento estudantil à VPR. Ele chama a atenção ao fato de que a repressão não se restringia à VPR, mas aos sindicatos e à imprensa. A VPR decidiu então pela instalação da Unidade Tática na Barra do Turvo, coordenada por Roberto de Fortini, o local serviria tanto para a atuação direta quanto para esconder companheiros que estivessem em situação de dificuldade, sendo procurados e perseguidos. Presos, foram julgados por um Tribunal Militar. Todos foram terrivelmente torturados, independentemente de sua posição no movimento. 5 Os Grupos de 11 espraiados pelo sul A punição feita aos Grupos dos Onze foi algo de particular importância para percebermos o modus operandi da repressão. O primeiro passo, as primeiras medidas foram feitas diretamente pelas agências policiais, em sintonia com as Delegacias do DOPS, usando métodos antigos de prisão e interrogatório acompanhado de tortura. Os métodos de tortura eram uma sequência do que fora levado adiante pelo Estado Novo varguista: prisões arbitrárias, agressões físicas, socos, pontapés, surras, maus-tratos nas condições gerais de alimentação e proteção à pessoa (frio, falta de higiene, etc.). Mas havia junto alguns elementos de cunho moral. O primeiro deles, o afastamento da família e a falta de informações; o segundo, o serviço de desqualificação das pessoas, serviço este muitas vezes feito fora do cárcere pelos agentes religiosos que buscavam acabar com a solidariedade familiar e fraternal antes existente, acusando os perseguidos de comunistas, agitadores, subversivos. Perceba-se com atenção que essas pessoas foram perseguidas por terem participado de atividades antes do Golpe de 1964. É ilustrativo o texto no Inquérito Militar que “acusava” Leonel Brizola de “fomentar a criação e organização do “Grupo dos Onze Companheiros, ou também denominados Comandos Nacionalistas, fornecendo, inclusive, formulários e instruções de como 5 6 Clarissa Mertz. Termo Declaratório. Audiência Pública de Cascavel. 20/03/2014. Entrevista de Alberi Maffi, em Braga – RS, para Aluízio Palmar e Valdir Serri. 5/02/2014. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos> ISSN 1808-043X – Versão eletrônica 17 deveriam ser organizados” (IPM apud SZATKOSKI, 2003, p. 129). Assim, uma atividade que era legal é punida a posteriori, como se fosse algo ilegal, mesmo que não tenham reagido ao Golpe em 1964. Um estudo sobre as auditorias militares em Porto Alegre e Santa Maria, no que tange aos Grupos dos Onze, mostra que: Os processos instaurados na Auditoria Militar de Santa Maria para julgar a formação de Grupos dos Onze em Erechim, São Valentim, Herval Grande e Frederico Westphalen não apuraram nenhuma ação concreta contra a ditadura civil-militar instaurada após 10 de Abril de 1964. A formação dos Grupos ocorreu somente no papel, pois não há indícios de nenhum tipo de reunião, aquisição de armamentos ou de ação direta de oposição à ditadura. O “crime” foi simplesmente formularem e assinarem as listas para formação dos Grupos dos Onze. (ALVES, 2009, p. 130). É nessa linha que percebemos os depoimentos ouvidos nas Audiências Públicas, tanto em Cascavel como em Três Passos. Pessoas que foram presas sem saber exatamente o porquê, levados, tratados como animais. Pouco tempo depois, liberados. O exemplo, o medo, o terror seguiria para sempre em suas vidas. Esta é também a perspectiva da pesquisa de Baldissera (2003, p. 146), que mostra o envolvimento da Igreja, na tentativa de impedir a adesão aos grupos: “o padre avisava na Igreja para não assinarem as listas dos Grupos de Onze, por isso não surgiu novos grupos [...] mas tinha gente interessada”. Percebemos que os depoimentos dos envolvidos com esses grupos nas Audiências Públicas reproduzem em grande medida a lógica já apontada nesses estudos, como desenvolveremos a seguir. Waldemar Rossim teve sua residência invadida pela polícia, que vasculhou toda a casa buscando armamentos. Tomou uma coronhada de arma no peito e vários chutes, tudo isso dentro de sua própria casa. Além disso, foi discriminado na sua localidade de residência, tendo sido acusado publicamente pelo padre de ser “comunista”.7 Benjamim Machado estava na roça, trabalhando, quando viu os militares se aproximarem. Fugiu para o mato, mas sua casa foi invadida. Preso, ficou 10 dias na prisão, apanhou por socos, pontapés e chutes. Fugiu, escondendo-se no mato. Foi embora para a Argentina e lá morou por três anos, sem ter notícias da família. Sua mãe, que era bastante doente, ficou sozinha para sustentar os demais filhos, precisando da ajuda dos vizinhos.8 Também Adair Amaro passou por situação semelhante, conseguindo levar consigo a família para a Argentina, onde viveu por onze anos. 7 8 Waldemar Rossim. Termo Declaratório. Audiência Pública de Cascavel. 20/03/2014. Benjamim Machado. Termo Declaratório. Audiência Pública de Cascavel. 20/03/2014. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos> ISSN 1808-043X – Versão eletrônica 18 Ruth Pinheiro dos Santos foi preso denunciado por um conhecido seu, que o acusara de ter guardado armamento de guerrilheiros. Foi torturado na prisão, onde exigiam que desse conta das armas. Ficou seis dias preso em Santo Antônio do Sudoeste. Depois disso, passaram a ser taxados de comunistas, perderam crédito e tiveram que vender suas terras, indo embora para Foz do Iguaçu.9 Eliseo de Quadros passou por fatos parecidos. A acusação era de ter feito contato com membros dos Grupos dos Onze. Ficou seis meses preso, e seu pai, um ano. Sofreu na prisão torturas diversas. Seu pai, após ser libertado, acabou morrendo, provavelmente em consequência das torturas sofridas na prisão, segundo acredita a família. Caso semelhante aos demais é o de Geraldo Rocha. Ele foi preso em agosto de 1964, levado para a delegacia de Dionísio Cerqueira, onde foi duramente torturado, sofrendo “afogamento” (teve a cabeça amarrada e afogada), ficou vinte dias apanhando e levando golpes. Participou da fuga coletiva, em que se organizaram e conseguiram fugir. O interessante é que relata que não sabia do que se tratava o Grupo dos Onze. Fugiu para a Argentina, ficou seis anos lá. Quando voltou para o Brasil, nunca mais foi importunado pela polícia, o que é instigante, pois demonstra que não havia efetiva acusação contra ele à qual coubesse apuração e julgamento. Ele simplesmente voltou e seguiu vivendo com o medo de ser novamente procurado e punido. Os casos de Ramiro Boaventura Mariano e de Sérgio Goulart, em seus relatos, apontam mais claramente a existência de militância política, ainda que proveniente de período anterior ao Golpe de 1964. Jaime Mariano relata sobre seu pai dizendo que ele fora candidato a vereador em 1955 e 1960, no município de Campina da Lagoa. Era comerciante e apoiador do movimento sem-terra [sic], ajudando no transporte de trabalhadores. Seu pai chegou a ter contato com o PCB, recebendo materiais de leitura, como os jornais Terra Livre e Classe Operária. Ainda em 1956, foi preso e torturado pelo seu envolvimento com os “sem-terra” (luta dos posseiros) e por participar das reuniões. Mesmo assim, liberado, seguiu organizando o sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campina Grande. Após o Golpe em 1964, acabaram saindo da cidade, taxados de comunistas e subversivos. Seu pai morreu de cirrose hepática em decorrência de alcoolismo, ocasionado pela depressão sofrida. Sergio Goulart declara que, após o Golpe de 1964, sua família fugiu de Tenente Portela (RS) com destino a Barracão, em função de que seu pai e tios foram “acusados” 9 Ruth Pinheiro dos Santos. Termo Declaratório. Audiência Pública de Cascavel. 20/03/2014. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos> ISSN 1808-043X – Versão eletrônica 19 de participar dos Grupos dos Onze. Segundo ele, “seu avô, João Goulart, em meio a perseguições dos militares, faleceu depois de complicações oriundas de um tiro desferido por um soldado, que atingiu sua perna, causando hemorragia e consequentemente seu óbito”.10 Já seu pai, foi preso, ficando três meses na prisão, onde foi torturado física e psicologicamente. Foi então morar na Argentina; sempre que tentou voltar ao Brasil foi perseguido e, sendo preso, estigmatizado pelos moradores da cidade como “marginal”. Braulino Martins dos Santos também se fez presente na Audiência. E, como os organizadores não o conheciam previamente, foi por conta própria, chegou no evento e pediu para falar. Esse fato é relevante, pois mostra que havendo oportunidade, e com apoio, as pessoas ainda têm muito o que falar e mostrar. Nesse caso, o depoente chegou já trazendo um documento que comprovava sua fala. Em 21/04/1964, ele foi fichado no DOPS. Tinha então 28 anos, residente em Vila Gaúcha, no Paraná. Na ficha, constava que ele não era sindicalizado. Nessa data, consta que: “o fichado, por determinação do Exmo. Sr. Cel. Secretário de Segurança Pública do Estado, foi recolhido preso à Prisão Provisória do Ahú, por pertencer ao Grupo dos ‘ONZE’”. No dia 04/06/1964, há outro registro: “o fichado, nesta data foi posto em liberdade”. Em seu relato, emocionado e auxiliado pela filha, conta que foi amarrado e colocado dentro da caçamba de um caminhão. Quando chegaram ao destino, a caçamba foi levantada e ele, junto com outras pessoas, foi despejado como se fosse um saco de grãos. Preso e solto, não consta mais nenhuma observação na sua ficha. O apoio às reformas de base eram um ponto de apoio entre os signatários dos Grupos dos Onze e Brizola. Esses apoios se davam em distintos níveis, havendo muitas vezes algumas pessoas mais bem informadas, os “intelectuais” dos grupos, que faziam o papel articulador. Inúmeras cartas, inclusive de adesão aos grupos, foram apreendidas pelo DOPS e demonstram este teor, a vontade genuína de empreender reformas: Prezado Companheiro, temos a honra e respeito que o faz jus. Hipotecamos inteira solidariedade na campanha em favor das Reformas de base, da qual V Excia tem baluarte de projeção nacional. Já não podendo mais o povo brasileiro, espoliado e explorado até onde o termo alcança, ficar surdo aos gritos de alerta de V. Excia e tantos nacionalistas autênticos, que desejam realmente o engrandecimento da nossa Pátria, quase a beira do caos. É que para mostrar bem claro o nosso protesto, contra os demolidores e monopolizadores dos direitos que nos confere a Democracia, subscrevemos abaixo [...]. 10 Sérgio Goulart. Termo Declaratório. Audiência Pública de Cascavel. 20/03/2014. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos> ISSN 1808-043X – Versão eletrônica 20 A carta, enviada por Vilson Jacinto Duarte, de Umuarama, em março de 1964, para a rádio Mayrink Veiga, provavelmente nunca foi entregue, pois até o envelope se encontra arquivado no Dops, acompanhada de diversas outras com idêntico teor. Pessoas pedindo ajuda para criar jornais para difundir o ideal nacionalista, assim como pessoas pedindo ajuda financeira e nomeações, usando como justificativa ser membro de um Grupo dos Onze.11 Temos clareza de que estamos tratando com relatos que são fruto da memória tanto individual como coletiva desses homens. Mas, independentemente da parcela subjetiva de seus relatos, algo está claro, o fato de eles serem simpáticos a Leonel Brizola não fez deles guerrilheiros, e, por isso, não podem ser usados para justificar o clima de caça às bruxas anticomunista instaurado no pós-golpe. A repressão da Ditadura foi ferrenhamente instaurada imediatamente depois de dado o Golpe, e não apenas após o AI-5. 6 Nova Aurora, uma base da VAR-Palmares, vizinhos do MR8 A Audiência de Cascavel contou com o depoimento de Alberto Fávero12. Ele participou da organização de uma Base Territorial da VAR-Palmares, em Nova Aurora, no Paraná. Sua narrativa apresentou a situação de uma família de agricultores que teve sua propriedade invadida por 700 militares que buscavam o grupo da VAR-Palmares. Ali viviam Isabel Fávero e Luis André Fávero, irmão de Alberto. 13 Foram torturados já em casa, em frente aos pais, que foram amarrados e tiveram parte de sua produção roubada pelos militares. Alberto Fávero tem sido também um grande entusiasta da pesquisa histórica, colaborando para o conhecimento sobre todo aquele processo (CAMPOS, 2014). Depois, foram levados para Foz do Iguaçu e, junto com os demais colonos participantes do movimento, foram barbaramente torturados. Isabel, que estava grávida, sofreu aborto devido às torturas.14 Foram depois enviados presos para Porto Alegre e Curitiba. O que mais chama a atenção nesse processo é a contraditória forma de envolvimento da população naquele momento da prisão em Nova Aurora. Em 11 A N, Foz do Iguaçu. 30/01/1963. Pasta G11 – Dops. Ele também depôs na Audiência Pública da Comissão Nacional da Verdade, em junho de 2013, em Foz do Iguaçu. 13 Alberto Fávero. Depoimento à Audiência Pública em Cascavel. 21/03/2014. 14 Isabel esteve presente à Audiência Pública da Comissão Nacional da Verdade, em junho de 2013, em Foz do Iguaçu. O vídeo está disponível no sítio eletrônico da CNV: <https://www.youtube.com/watch?v=a3-vpaKAPSU>. 12 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos> ISSN 1808-043X – Versão eletrônica 21 primeiro lugar, a professora da escola em que trabalhava Isabel, sua direção, o padre, o delegado, todos agiram em conjunto para entregá-los à repressão. Mas, por outro lado, os pais dos alunos do casal não entendiam por que estavam sendo levados e guardam as melhores lembranças daqueles professores. Portanto, se há uma perseguição, e se há um sentimento persecutório, ele vem de dentro de órgãos institucionais como a escola e a igreja; não é natural que a população se coloque a princípio contrária à resistência. Para corroborar essa ideia, o Exército, nas semanas seguintes, permaneceu na cidade fazendo serviços assistenciais à população local. Ao mesmo tempo em que buscava mais informações, tentava mostrar um lado positivo do governo militar. O depoimento de Aluízio Palmar trouxe alguns elementos que são fruto de todos os anos de pesquisa que ele vem realizando relacionados à temática. Autor do livro Onde foi que vocês enterraram nossos mortos? (2006), seu trabalho até hoje segue sendo feito no sentido de elucidar os acontecimentos envolvendo a morte dos seis militantes, no que ficou conhecida como a chacina do Parque Nacional do Iguaçu. Mas ele também traz recordações sobre a tentativa de implantação de uma base territorial do Primeiro MR8 na região de Medianeira, o qual vem sendo investigado (HERLER, 2014). 7 Conexões Internacionais Já vimos em várias falas que a existência de regiões de fronteira foi a salvação de muitas pessoas que fugiram, se autoexilaram, viveram clandestinos na Argentina devido à facilidade relativa dessa possibilidade. Mas a fronteira foi também um ponto de facilitação da repressão. Conexões como estas foram muito bem demonstradas em estudo sobre as cidades fronteiriças do Brasil com o Uruguai, onde inclusive alguns dos militantes da VPR e da Operação Três Passos estiveram em missões (ASSUMPÇÃO, 2014). Ainda pouco investigadas essas conexões no Oeste do Paraná, e mesmo em Três Passos, temos um caso a destacar, narrado em Cascavel. Domiciana Gimenez Antunes relatou fatos envolvendo seu pai, cidadão paraguaio, que pertencera ao Movimento Revolucionário 14 de maio. É um caso revelador da barbárie e do silêncio imposto à população que vivia na Ditadura. Além disso, mostra a colaboração entre as polícias brasileira e paraguaia. Primeiramente, seu pai foi levado junto com outros seis companheiros pela polícia. Foi retirado do trabalho e levado para um local descampado. Levou um tiro no rosto, mas conseguiu escapar Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos> ISSN 1808-043X – Versão eletrônica 22 fugindo para o Paraguai. Seus seis companheiros foram assassinados na mesma ocasião. Em dezembro de 1978, foi preso em Foz do Iguaçu pelo Batalhão de Fronteiras de Foz do Iguaçu. Foi entregue por eles à polícia paraguaia, sofreu inúmeras torturas, acusado de pertencer ao Movimento Revolucionário 14 de maio e também por roubo de carros, em tentativa de caracterizar crimes comuns. Foi transferido para Assunção, onde ficou 11 anos preso. “As torturas pelas quais passou duravam o dia até a madrugada. Durante os anos de prisão as sessões de tortura passavam por ritual diário, onde uma música era ligada. Nesse momento, os militantes presos sabiam que alguém seria levado para a tortura e que retornaria no fim do dia quase morto. Nessas seções os militares chegaram a urinar sobre Remijo Gimenez para que ele acordasse dos desmaios ocasionados pelo espancamento.”15 Além disso, eram submetidos a se alimentar no mesmo recipiente em que defecavam e urinavam. A depoente diz que seu pai foi torturado pelo Sub Comissário Eusébio Torres, na presença do diretor Cantero Sapriga, do Oficial Segundo da Junta Martinez e do Comissário Cuenca. Seu pai foi libertado mediante intervenção da Anistia Internacional. Saiu extremamente debilitado, com doenças e abalos psicológicos. A família, durante o tempo da prisão, foi vítima de discriminação social por ter um “pai comunista”. Ramirez, na prisão, depois de ficar incomunicável, acusado das mais diversas coisas, fez uma greve de fome de dois meses para poder pressionar sua própria soltura. As conexões internacionais estão claras, além de percebermos aqui a utilização de métodos de tratamento aos presos muito semelhantes, todos eles vindos de um aprendizado comum quanto à forma de tratar os “inimigos da pátria”. 8 Ditadura em todo lugar Os documentos da Ditadura nos mostram que muito pouco ainda se sabe sobre quais foram os seus impactos reais no Oeste do Paraná e do Rio Grande do Sul, o que nos faz suspeitar que há muito a ser conhecido sobre a Ditadura no interior do Brasil. São poucos os estudos sobre essas temáticas, mas aos poucos se avança. Os movimentos sociais da memória e os comitês populares têm papel muito importante no processo. Nessas regiões, há vários militantes dos direitos humanos e simpatizantes dos mais diferentes movimentos. No âmbito do Paraná, há estudos sobre a Ação Popular e o Partido Comunista. Quanto ao Oeste, destaca-se o trabalho de Aluízio Palmar. O 15 Domiciana Gimenez Antunes. Termo Declaratório. Audiência Pública de Cascavel. 20/03/2014. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014. Disponível em: <http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos> ISSN 1808-043X – Versão eletrônica 23 trabalho de Nelci Mello dá conta de uma discussão sobre a Ação Popular e a JUC, no sudoeste, assim como elenca aspectos gerais da resistência. Já no Rio Grande do Sul, há um acúmulo maior de pesquisa, como as citadas neste artigo e outras reunidas na pesquisa acerca do Terror de Estado. Outras pesquisas têm avançado, inclusive buscando vínculos com outros lugares no interior do Brasil. O que nos parece claro é que não existiu consenso em torno da Ditadura, como queriam os aparatos de propaganda do regime. O fato da Ditadura ter sido civil-militar está muito mais vinculado ao Golpe e aos empresários do que a um consenso popular que a exigisse. As falas deixam clara a existência de amplos setores que se calaram diante das atrocidades e do medo. Recebido em novembro de 2014. Aprovado em dezembro de 2014. Stories of Resistance against Terror Abstract: In this paper, we discuss the dictatorship in western Paraná and in Rio Grande do Sul, from the Public Hearing of the State Truth Commission held in Cascavel, Santa Catarina, in March 2014, and the Audience of Três Passos, Rio Grande do Sul, in June 2014. We attempted to include the hearings in a period of social movements and public policies of memory. The outcome of the hearings may be relevant material for us to be acquainted with that reality, especially if we add academic researches which have been done to the analysis, some of them, jointly with social movements of memory. The research aims to point out the importance of the study on Dictatorship in the countryside. Keywords: Dictatorship. Resistances. Western Paraná. Referências ALVES, Taiara Souto. 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