casas-personagem

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CASAS-PERSONAGEM: O LIMITE ENTRE O ESPAÇO FÍSICO E O MENTAL EM
“A QUEDA DA CASA DE USHER” E “A CASA TOMADA”
Jucilene de Lourdes Vieira
Resumo:
No presente trabalho, pretendemos fazer uma análise de dois contos: “A queda da casa de Usher”,
de Poe, e “A casa tomada”, de Cortázar. Inicialmente, faremos considerações específicas do conto de
Poe, depois, buscaremos destacar os pontos de tangência entre as duas histórias. Nossa análise será
feita à luz de Todorov, Borges e Propp. Serão privilegiados os aspectos do espaço físico – a casa – em
ambos os contos e a influência desse espaço na mente de cada personagem, principalmente dos personagens que narram cada uma das histórias.
Palavras-chave: casa · decadência · personagem
Abstract:
In the present work, we intend to analyze two stories: “The Fall of the House of Usher”, by Poe and
“A Casa Tomada” (“The Taken House”), by Cortázar. First, we will make some specific considerations to Poe’s short story, and then, we will look for to detach the tangent points between the two
stories. Our analysis will be done under the light of Todorov, Borges and Propp. The physical space
aspects will be privileged – the house – in both stories, and the influence of that on the mind of each
character, especially on the narrators of each story.
Keywords: house · decay · character
Tomaremos, como ponto de partida, o conto de Poe “A queda da casa de Usher”. O espaço físico aparece já no título, o que nos leva a buscar, no desenvolvimento do enredo, a
importância desse espaço e quais os fatores que desencadearão o fim premeditado: a queda.
Esse aspecto do título gera, antes mesmo do início da leitura da narrativa, uma atmosfera
de decadência e dá à casa um papel de destaque, quase personificada. Como exemplo de
análise, V. I. Propp diz:
Já sabendo como se dividem as seqüências, podemos desmembrar qualquer conto em suas
partes constituintes. Vimos que as partes constituintes fundamentais são as funções dos personagens. Temos ainda os elementos de união e as motivações. As formas de entrada em cena dos personagens ... ocupam um lugar muito especial. Por último, temos os elementos atributivos ou acessórios... 1
Já que nesta análise destacaremos a casa como “personagem”, vamos colocá-la como
“parte constituinte fundamental” no desenrolar dos fatos. No início do conto, ela é descrita
pelo narrador: “Contemplei a cena que tinha diante de mim – a simples casa, a simples
paisagem característica da propriedade, os frios muros, as janelas que se assemelhavam a
olhos vazios...”. 2 Diante dessa descrição, evidencia-se o aspecto personificador do ambiente
da história, cujas janelas são relacionadas a “olhos vazios”. Essa primeira visão que o narrador tem da casa, envolve-o numa atmosfera de medo, de “mau presságio”, de morte – o-
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PROPP. A morfologia do conto maravilhoso, p. 94.
POE. A queda da casa de Usher, p. 7.
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lhos vazios são olhos sem vida – colocando-o em imediata hesitação. Ele admite não poder
“lutar contra as sombrias visões que se amontoavam”.
Envolvido por um ambiente sombrio, o visitante vai desenhando para o leitor as imagens
“fantasmagóricas”, distorcidas e invertidas, refletidas na superfície também sombria do lago.
Uma imagem refletida na água não é uma imagem real. E é a partir do retrato dessa cena que
o leitor passa a partilhar da mesma hesitação experimentada pelo narrador.
No decorrer da história, o narrador procura, no plano racional, justificar a impressão estranha e aterrorizante que o dominara. Ele busca assegurar-se de que tudo é apenas “um
sonho”. Encontramos em Todorov a afirmação de que a busca de explicações racionais faz
com que a narrativa se afaste do gênero fantástico e se aproxime de outro gênero “vizinho
do fantástico”, o estranho ou o maravilhoso.
Em se tratando da “casa”, toda a sua descrição justifica a iminente queda: madeiras apodrecidas, abóbada esquecida, a presença de uma fenda quase imperceptível. No entanto,
em todo o desenrolar da história, percebemos que a decadência do ambiente é reflexo da
própria decadência, física e mental, dos seus habitantes: os irmãos Roderick e Madeleine
Usher. A descrição desses personagens é bastante semelhante à descrição da casa: ele, com
tez cadavérica, de palidez espectral e cabelos que lembravam teia de aranha; ela, possuidora de uma apatia constante. Assim, vemos fundir-se, em um só elemento, moradia e morador; espaço físico e mental; habitat e habitante.
Se identificarmos, portanto, uma fusão entre os personagens e a casa, não podemos deixar de voltar ao título, cuja queda ganha um novo significado: a queda de uma linhagem
familiar, o fim da antiga raça dos Usher. Identificamos também, entre a casa e os irmãos, a
existência de um “duplo”. Primeiro, temos a casa duplicada pelo reflexo no lago. Depois,
temos a revelação que a narrativa nos traz: Roderick e Madeline são irmãos gêmeos. Encontramos em Borges, uma passagem acerca do duplo: “Sugerido ou estimulado pelos espelhos, pelas águas e pelos irmãos gêmeos, o conceito do duplo é comum a muitas nações.
(...) o duplo é nosso anverso, nosso contrário, aquele que nos complementa, aquele que não
somos nem seremos”. 3
Evidentemente, a casa refletida no lago jamais será a casa real, assim como o irmão jamais será a irmã e vice-versa. Há uma semelhança distorcida em ambos os casos, em relação à casa, a distorção se dá pela constante ondulação da superfície da água, já em relação
aos irmãos, temos uma distorção de sexo, um é homem, a outra é mulher. Sendo de sexos
diferentes, a relação entre os dois personagens gera uma conotação estranha – a possibilidade de um incesto – conotação essa para a qual não encontramos uma confirmação dentro
da história, mas apenas algumas passagens que servem para “suscitá-la”, como a frase “irmã ternamente amada” ou “sempre existira entre ambos certa simpatia de natureza quase
inexplicável”.
A hesitação em se tratando de haver ou não uma relação incestuosa fica, no entanto,
apenas no âmbito do leitor que se torna o verdadeiro “caçador de indícios” que confirmem
ou apaguem de vez as suspeitas. O incesto é um dos mais antigos tabus da humanidade e
nele seria possível buscar uma explicação para o isolamento dos personagens, para a luta
interior que o narrador descobrira no amigo Roderick, quando afirma: “Havia momentos,
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BORGES. O livro dos seres imaginários, p. 85-86.
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contudo, em que eu pensava que seu espírito, incessantemente agitado, se achava em luta
com algum segredo opressor, que ele não tinha coragem de divulgar...”. 4
A essa altura da história, Lady Madeleine já havia “falecido” e o narrador aceita ajudar o
amigo a fazer o que ele chama de “sepultamento temporário” numa das criptas do jazigo da
família. Aqui, mais uma revelação acerca da casa nos chama a atenção: ela própria serve de
“túmulo” para a “dinastia” dos Usher. Porém, a decisão do irmão torna-se inquietante e
serve para estimular ainda mais o terror que vai se apoderando completamente do narrador. Após tremer diante de todo o cenário apavorante que vê ao redor, o narrador busca
sempre explicações na realidade, conforme nos revela a seguinte passagem:
... sob a superfície das imensas massas de agitado vapor, bem como sobre todos os objetos
terrenos que nos cercavam, resplandecia uma claridade sobrenatural, uma emanação gasosa
que pairava sobre a casa e a envolvia numa mortalha luminosa e bem visível.” (...) essas aparições (...) não passam de fenômenos elétricos nada extraordinários... ou pode ser que tenham sua origem terrível nos miasmas fétidos do lago. 5
Na sequência da narrativa, o personagem-narrador parte para a leitura de um livro – o
único que encontrara a mão – a fim de desfazer um pouco aquela atmosfera que fora criada
no interior do aposento. Estranhamente, os sons que vão sendo descritos na passagem lida
por ele, vão sendo reproduzidos em partes indistintas da casa, como se esta ouvisse e partilhasse da leitura. Essa constatação reafirma o pavor e reacende o assombro no leitornarrador.
Aqui, ao identificarmos um jogo metalinguístico, deparamo-nos com uma súbita ambiguidade. Há, ao mesmo tempo, um narrador que narra o que é lido pelo leitor do conto e
que lê, na obra que apanhara, aquilo que vai narrando. Assim, concomitantemente, os barulhos lidos vão se misturando aos barulhos produzidos pela casa e o leitor vai se misturando ao narrador que descreve tanto os sons lidos por ele, como os sons ouvidos. Isso tudo
produz novo estranhamento no leitor, colocando-o em completo estado de alerta para a
importante revelação que o conto traz em seguida: Madeline fora enterrada viva pelos dois
amigos.
Roderick Usher revela essa “aterrorizante verdade” já num sussurro inaudível, consumido pelo horror que lhe trouxera tal constatação. Aos poucos, o leitor vai percebendo o
significado dos sons emitidos pela casa, como se essa tomasse as dores da moribunda. Junto com o leitor, também o narrador vai tomando consciência dos fatos, até que a figura de
Madeleine aparece à porta, deplorável, com marcas da luta que travara na clausura. O desfecho da cena traz a morte de ambos os irmãos, que caem pelo chão, um nos braços do outro. Em seguida, o narrador foge e vê que, atrás dele, a casa desmorona e é “engolida” pelo
lago.
Foi necessário que parafraseássemos esse final do conto, para que pudéssemos enfatizar
como, mais uma vez, a casa porta-se como personagem. Diante da morte dos irmãos Usher,
o que mais restaria a ela, que era, na verdade, um prolongamento da existência dos dois? A
queda, ou seja, a morte. O espaço físico ultrapassa a fronteira do espaço espiritual, destrói o
4
5
POE. A queda da casa de Usher, p. 21.
POE. A queda da casa de Usher, p. 23.
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limite entre físico e mental e, quase numa atitude catártica, aceita a “queda” para expurgar
todos os males, medos e pecados, os quais abrigava.
No conto “A casa tomada”, de Júlio Cortázar, assim como em Poe, temos a descrição da
casa: “Gostávamos da casa porque, além de ser espaçosa e antiga (...), guardava as lembranças de nossos bisavós, do avô paterno, de nossos pais e de toda a nossa infância”. 6 Neste
conto, também temos a casa personificada pelo narrador-personagem, quando afirma: “Às
vezes, chegamos a pensar que foi ela [a casa] que não nos deixou casar”. 7 Diante dessa afirmação, percebemos que a casa aparece como decisiva na relação entre os dois personagens – também irmãos – ela ganha força de outro personagem. O próprio narrador afirma
que a casa tem, ao lado da irmã Irene, mais importância do que ele.
Em outras passagens do conto, notamos que o “papel” dado à casa não é de simples espaço físico. Ela consegue, de acordo com o narrador, impedir o casamento da irmã, fazer o
próprio narrador perder a sua pretendente e percebemos, além de tudo, que ela “dita” as
atitudes dos irmãos, que passam a existir em função “dela”:
Acostumamo-nos Irene e eu a persistir sozinhos nela, o que era uma loucura, pois nessa casa
poderiam viver oito pessoas sem se estorvarem. Fazíamos a limpeza pela manhã, levantandonos às sete horas, e, por volta das onze horas, eu deixava para Irene os últimos quartos para
repassar e ia para a cozinha. O almoço era ao meio-dia, sempre pontualmente; já que nada ficava por fazer, a não ser alguns pratos sujos. 8
Outro aspecto que se evidencia nesse trecho é a necessidade de isolamento dos dois, já
que havia na casa espaço para muitas pessoas. Essa constatação traz ao leitor um ligeiro
questionamento, o porquê da opção pela vida reclusa. Na passagem seguinte, a forma como
o narrador se refere ao relacionamento entre ele e a irmã – “simples e silencioso matrimônio de irmãos” – serve para acentuar ainda mais tal dúvida, gerando no leitor a mesma hipótese do conto de Poe: há entre eles uma relação incestuosa? Seria esse o motivo do isolamento dos dois? Seria esse o motivo de preocuparem tanto com a limpeza da casa, uma
tentativa de limparem suas próprias almas? Mais uma vez a narrativa abre o caminho para
a dúvida e não a esclarece.
Os irmãos parecem não fazer quase nada o dia inteiro. A irmã Irene limita-se a tricotar e
o irmão, põe-se a observá-la. É como se ali, naquela ação de trabalhar o fio de lã, residisse
todo o fio da vida dos dois e da casa, ou seja, o fio condutor da própria história narrada. A
irmã vive cercada de hábitos que, sem dúvida, remetem à Penélope da Odisséia, de Homero. Ou seja, ela está sempre num eterno fazer, num eterno adiar, ora em função da personagem masculina do enredo, ora em função da própria casa.
Na seqüência da narrativa, deparamo-nos com o primeiro elemento causador da hesitação: ruídos estranhos vindos de alguns dos cômodos da casa. O narrador assim os descreve:
(...) fazia a curva que levava para a cozinha quando ouvi alguma coisa na sala de jantar ou na
biblioteca. O som chegava impreciso e surdo, como uma cadeira caindo no tapete ou um abafado sussurro de conversa. (...) Joguei-me contra a parede antes que fosse tarde demais, fe-
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CORTÁZAR. A casa tomada, p. 11.
CORTÁZAR. A casa tomada, p. 11.
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CORTÁZAR. A casa tomada, p. 11.
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chei-a de um golpe, apoiando meu corpo; felizmente a chave estava colocada do nosso lado e
também passei o grande fecho para mais segurança. 9
A atitude do narrador em trancar bruscamente a porta serve para salientar ainda mais a
hesitação no leitor. Nada explica tais ruídos, se eles seriam produzidos por pessoas que
invadiram de fato a casa ou seriam sons sobrenaturais. Esse mesmo acontecimento é percebido no conto de Poe, quando o narrador começa a ouvir os ruídos estranhos, semelhantes
aos que são citados no livro que está lendo. Em ambas as histórias, ignora-se a origem dos
barulhos. No entanto, esse desconhecimento só se mantém em Cortázar, já que seus personagens passam, a partir de então, a ocupar a parte que sobrou da casa sem apresentar
quaisquer questionamentos acerca da origem dos ruídos. Há, neles, uma passividade inquietante, uma aceitação de que aquela parte da casa fora “tomada”.
Outros acontecimentos vão sendo revelados, à medida que os dois irmãos buscam uma
adaptação no que lhes sobrou da casa. O narrador revela ficar a maior parte do tempo no
quarto da irmã, e, estranhamente, confessa que ambos parecem, aos poucos, pararem de
pensar: “Estávamos muito bem, e pouco a pouco começamos a não pensar. Pode-se viver
sem pensar”. 10 Certamente, uma forma segura de ignorar os problemas é não pensar neles.
Em seguida, o irmão reclama do fato de Irene falar dormindo. O mundo dos sonhos
sempre assusta, já que nele não controlamos o que podemos ou não dizer. Agimos como
“autômatos”, estátuas que falam e, de certa forma, esse fator ameaçava a forma como os
dois estavam vivendo: sem pensamentos ou falas reveladoras. Por outro lado, temos o sono
como uma “falsa morte”, como a morte apresentada por Madeleine, personagem do conto
anterior.
De certa forma, à medida que os fatos vão sendo narrados, a casa parece assumir o domínio de tudo. Novos ruídos surgem e, dessa vez, no lado em que os personagens se refugiaram:
Pela noite sinto sede, e antes de ir para a cama eu disse a Irene que ia até a cozinha pegar um
copo d’água. Da porta do quarto (ela tricotava) ouvi barulho na cozinha ou talvez no banheiro, porque a curva do corredor abafava o som. Chamou a atenção de Irene minha maneira
brusca de deter-me, e veio ao meu lado sem falar nada. Ficamos ouvindo os ruídos, sentindo
claramente que eram deste lado da porta de mogno, na cozinha e no banheiro, ou no corredor mesmo onde começava a curva, quase ao nosso lado.
Sequer nos olhamos. Apertei o braço de Irene e a fiz correr comigo até a porta cancela, sem
olhar para trás. Os ruídos se ouviam cada vez mais fortes, porém surdos, nas nossas costas.
Fechei de um golpe a cancela e ficamos no corredor. Agora não se ouvia nada. 11
A sequência descrita no excerto acima cumpre sua função de elevar a tensão necessária
para criar o ambiente fantástico. Importante também destacarmos a onisciência seletiva
dada ao narrador. Como a narrativa apresentada já foi resolvida, já está completamente
fechada, ficamos “presos” às opiniões deste narrador, que já conhece todos os fatos e os
apresenta subjetivamente.
No desfecho de “A casa tomada”, deparamo-nos com a fuga dos dois irmãos, diante da
constatação dos novos ruídos:
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CORTÁZAR. A casa tomada, p. 14.
CORTÁZAR. A casa tomada, p. 14.
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CORTÁZAR. A casa tomada, p. 18.
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— Tomaram esta parte — falou Irene. O tricô pendia das suas mãos e os fios chegavam até a
cancela e se perdiam embaixo da porta. Quando viu que os novelos tinham ficado do outro
lado, soltou o tricô sem olhar para ele.
— Você teve tempo para pegar alguma coisa? — perguntei-lhe inutilmente.
— Não, nada.
Estávamos com a roupa do corpo. Lembrei-me dos quinze mil pesos no armário do quarto.
Agora já era tarde. 12
A fuga dos dois irmãos acontece de forma brusca, assim como o narrador de “A queda
da casa de Usher”, que também foge apavorado, após presenciar a morte dos dois irmãos.
Chama-nos a atenção, no epílogo de “A casa tomada”, a presença do fio do tricô nas mãos
de Irene que, na pressa, não percebe que o novelo ficara para trás. É como se os dois fugissem, mas deixassem, na casa, toda a origem dos seus problemas, um fio que eles arrastariam pela vida afora. Um fio que nos remete ao mito grego, no qual “o fio de Ariadne” é metáfora do amor que salva do labirinto da solidão. Em Poe, o fio também aparece, mas na teia
de aranha, à qual são comparados os cabelos de Roderick Usher. No caso do conto cortaziano, o fio de lã não une os personagens, nem serve como um recurso de salvação. Irene
assegura-se de que aquele fio não lhes seria útil e o abandona. O irmão, por sua vez, livrase da chave. Com esse gesto, ele se livra, metaforicamente, da possibilidade de alguém ir
remexer no passado deles.
Com esse desfecho, diante do gesto do “enlaçar a cintura” da irmã, deparamo-nos, assim
como em Poe, com a presença do duplo. A irmã é praticamente uma parte latente da personalidade do irmão. Os dois são complementares. Os irmãos estão metamorfoseados em apenas uma pessoa, dependentes um do outro, simbióticos. Essa ligação é forte o suficiente
para não haver nenhuma forma de contestação na reação de ambos. O que se espera de um
se reflete imediatamente no outro.
Conforme nos revela toda a narrativa, o fantástico em Cortázar não usa recursos sobrenaturais. Ele utiliza, sutilmente, as reações humanas para causar o choque necessário para
este tipo de narrativa. A completa falta de reação das personagens, a fuga incessante e o
desejo louco de acomodação a qualquer custo cumprem o papel do sobrenatural. E o leitor
não obtém a resposta para suas hesitações. Ao contrário, o conto, bastante breve, deixa arestas para o leitor aparar, após a leitura. E se, no primeiro conto aqui analisado, temos a
queda da casa, nesta segunda narrativa isso não acontece, embora, para os dois personagens, é como se todo o passado deixado para trás se desmoronasse, definitivamente.
Assim, reafirmamos a importância do espaço físico em ambas as histórias, um espaço
que se torna decisivo para os acontecimentos, tanto no plano real como no sobrenatural,
tanto no plano físico como no espiritual.
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CORTÁZAR. A casa tomada, p. 18.
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REFERÊNCIAS
BORGES, Jorge Luis. O livro dos seres imaginários. Trad. Heloísa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
CORTÁZAR, Júlio. A casa tomada. In: _____. Bestiário. Trad. Remy Gorga Filho. Rio de
Janeiro: Expressão e Cultura, 1986. p. 11-18.
POE, Edgar Allan. A queda da casa de Usher. In: _____. Histórias extraordinárias. Trad.
Brenno Silveira e outros. São Paulo: Abril Cultural. 1978. p. 7-27.
PROPP, V. I. Morfologia do conto maravilhoso. Trad. Jasna Paravich Sarhan. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1984.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castello.
São Paulo: Perspectiva, 2007.
Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 142-148.

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