- UNESP: Câmpus de Ourinhos

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- UNESP: Câmpus de Ourinhos
Volume 2 - número 2
Jul./Dez. – 2008
© 2007 Curso de Geografia do Campus Experimental de Ourinhos
CAPA
Márcio Rogério Silveira
DIAGRAMAÇÃO e EDITORAÇÃO
IMPRESSÃO
TIRAGEM
300
R4546
Revista Geografia e Pesquisa / Universidade Estadual
Paulista. Campus Experimental de Ourinhos. Curso
de Geografia.-- Ourinhos: Curso de Geografia,
2008.
Semestral
v.2, n.2, jan./jun.
ISSN 1982-9760
1. Geografia. 2. História. I. Universidade Estadual
Paulista. Campus Experimental de Ourinhos. Curso de
Geografia. II. Título.
CDD: 910.05
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Tânia Costa Garcia – UNESP / Franca
William Ribeiro Da Silva – UEL
Zeny Rosendhal – UERJ
SUMÁRIO
O DESENCONTRO TEÓRICO-METODOLÓGICO ENTRE A GEOGRAFIA
ESCOLAR E A GEOGRAFIA ACADÊMICA: O CONCEITO DE LUGAR EM
QUESTÃO. Noêmia Ramos Vieira
RADIOFONIA E AS “RAÍZES CAIPIRAS” DA MÚSICA POPULAR URBANA.
Profa.Dra. Maria Inez Machado Borges Pinto.
CARICATURAS CARNAVALESCAS NA CARETA: UMA VISÃO DO
CARNAVAL CARIOCA ATRAVÉS DA ÓTICA DAS REVISTAS ILUSTRADAS
(1908-1918). Profa. Dra. Fabiana Lopes da Cunha
A GOVERNANÇA TERRITORIAL NO BRASIL: As Instituições, os Fatos e os
Mitos. Elson L.S. Pires e Ricardo Toledo Neder
PLANEJAMENTO URBANO E SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL: INTERESSES
E CONFLITOS NO ESPAÇO URBANO DE OURINHOS/SP. Alessandra dos Santos
Julio
O PAPEL DO ESPAÇO GEOGRÁFICO NA TEORIA DA ACUMULAÇÃO E DO
MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA EM A PRODUÇÃO CAPITALISTA DO
ESPAÇO, DE DAVID HARVEY. Everaldo Batista da Costa
A IMPLANTAÇÃO FÉRREA NO NORTE PIONEIRO PARANAENSE: UMA
ANÁLISE A PARTIR DA NOÇÃO DE REDES TÉCNICAS. Coaracy Eleutério da Luz
Editorial
A revista Geografia & Pesquisa é uma publicação periódica de cunho científico voltada
para pesquisadores da ciência geográfica e áreas afins, que se tornou realidade em 2007, e
chega á sua terceira edição.
Neste terceiro número, o leitor vai dialogar com as multiplicidades das temáticas
geográficas como: geografia acadêmica X geografia escolar, culturas caipira e
carnavalesca, território, planejamento urbano, espaço geográfico e ferrovias. Esta
diversidade é importante para mostrar a riqueza dos estudos geográficos perante a realidade
atual.
O espectro de autores ainda na graduação aumentou, em relação ao primeiro número, e
contamos com a participação de graduandos, pós-graduandos, docentes pesquisadores e
livre docente da USP (Universidade de São Paulo), UNESP (Universidade Estadual
Paulista - Campus de Ourinhos), UNESP - Campus de Rio Claro e Faculdade Estadual de
Filosofia, Ciências e Letras de Cornélio Procópio.
Esperamos que estas comunicações sejam úteis e reiteramos o convite à comunidade na
divulgação da pesquisa e consolidação do periódico.
Luciene Cristina Risso
Editora Chefe
O DESENCONTRO TEÓRICO-METODOLÓGICO ENTRE A GEOGRAFIA
ESCOLAR E A GEOGRAFIA ACADÊMICA: O CONCEITO DE LUGAR EM
QUESTÃO1.
Noêmia Ramos Vieira2
A THEORETICAL AND METHODOLOGICAL FAILURE BETWEEN THE
GEOGRAPHY THAT IS TAUGHT AND THE GEOGRAPHY PRODUCED IN THE
UNIVERSITY: THE CONCEPT OF PLACE IN QUESTION.
RESUMO: O presente trabalho objetiva uma socialização dos resultados obtidos a partir de
uma investigação junto a 51 professores de Geografia das escolas estaduais da cidade de
Marília. Tal investigação revelou que as discussões existentes no âmbito da Geografia
escolar, no que diz respeito ao significado da categoria geográfica de lugar, estão muito
aquém daquelas realizadas no âmbito da Geografia acadêmica. O que revela a existência de
um desencontro teórico-metodológico entre a Geografia que se ensina e a Geografia
produzida na universidade.
ABSTRACT: Abstracts: The present work aims at a socialization of the results obtained
from an investigation with 51 teachers of Geography of the public schools of the city of
Marilia. Such investigation showed that the existent discussions in the context of the school
Geography, what concerns the meaning of the category place, are great on this side of those
carried out ones in the context of the academic Geography. What reveals the existence of a
theoretical and methodological failure between the Geography that is taught and the
Geography produced in the university.
Palavras-chaves: Geografia escolar, Geografia acadêmica, lugar, professor de geografia,
livro didático.
Words-keys: School geography, academic Geography, place, teacher of geography, text
book.
Considerações Iniciais
Nos últimos anos o desenvolvimento técnico e informacional do sistema
capitalista tem imprimido no mundo uma complexidade espacial a qual tem remetido os
1
Resultado parcial da Tese de Doutorado intitulada “As questões das Geografias do Ensino Superior e do
Ensino Fundamental a partir da formação continuada do professor e das categorias lugar, paisagem,
território e região: um estudo da Diretoria Regional do Ensino de Marília.”
2
Doutora em Geografia, Docente do Curso de Licenciatura em Geografia da UNESP – CE Ourinhos.
Endereço eletrônico: [email protected]
especialistas da Geografia a um intenso debate em torno do significado de lugar, paisagem,
território e região. A tônica desse debate tem sido a importância de se considerar o
significado dessas categorias para explicação da organização espacial da sociedade
contemporânea.
As discussões relativas a essas categorias têm estado presentes entre os
especialistas que têm se dedicado a refletir sobre esta área do ensino (MOREIRA, 1987;
SHOUMACKER, 1999; CAVALCANTI, 2002 e CALLAI, 2002). Estes têm reunido
esforços para que as referidas discussões cheguem até os professores do ensino básico e
promovam uma renovação teórico-metodológica nas teorias e nos métodos desta disciplina.
Moreira (1987, p. 181) há mais de duas décadas, quando propôs aos
professores a ruptura com a corrente da Geografia Tradicional e, uma renovação nos
métodos e nas teorias da Geografia que se ensina, nos chamou a atenção para a necessidade
de recuperação e da reinterpretação dialética das categorias e dos princípios que
historicamente tem feito o universo lógico do raciocínio geográfico. Segundo esse autor,
entre essas categorias estão: natureza, espaço, território, ambiente e paisagem.
Shoumacker (1999, p.46), estudiosa francesa, ao desenvolver os
princípios de uma didática da Geografia afirma que para uma aprendizagem eficaz e
coerente dos alunos acerca de sua realidade espacial, é indispensável que o saber escolar
seja organizado à volta das categorias3 e das noções centrais da geografia, os quais são
produzidos pela pesquisa universitária. Para essa autora essas noções centrais são meio,
paisagem, região, espaço e território.
Cavalcanti (2002, p.14), que tem se dedicado a refletir sobre os métodos
de desenvolvimento do raciocínio geográfico nos alunos, nos aponta que as categorias da
geografia – às quais ela dá o nome de conceitos geográficos mais abrangentes – são
instrumentos básicos para a leitura do mundo do ponto de vista geográfico. Elas são
“ferramentas, recursos intelectuais fundamentais para a compreensão dos diversos
espaços”. Para esta autora, são esses conceitos mais abrangentes que “permitem aos alunos,
no estudo da Geografia, localizar e dar significado aos lugares, pensar na sua significação e
na relação que eles têm com a vida cotidiana de cada um” (idem, 2002, p.15).
Callai (2002, p. 100) defende que o ensino de geografia deve
desenvolver no aluno o olhar espacial, ou seja, levá-lo a analisar a realidade com as
categorias da interpretação geográfica.
3
Ao invés de utilizar o termo categorias a autora utiliza o termo grandes conceitos, os quais tomamos como
sinônimo
Oficialmente essas discussões também foram introduzidas no âmbito do
ensino básico. Isso se concretizou a partir da década de 1990 com a elaboração e a
implantação de um referencial curricular nacional para a área de Geografia - Os Parâmetros
curriculares Nacionais4 (BRASIL, 1997).
Isso pode ser constatado quando tomamos contato com as orientações
teórico-metodológicas impressas no referido documento. Todos os eixos, temas e conteúdos
programáticos selecionados para essa área do ensino foram estruturados tendo como fio
condutor algumas das categorias geográficas, quais sejam lugar, paisagem, território e
região. Segundo os autores dos PCNs, a compreensão dessas categorias é condição
necessária para que o aluno compreenda o espaço, o qual é objeto de estudo da Geografia.
Isso a nosso ver é algo importante, pois a apropriação, por parte do
aluno, do significado dessas categorias constitui uma das condições para que ele
compreenda as espacialidades que resultam da relação sociedade-natureza, principalmente
daquelas que nós temos visto se configurarem mundialmente nos últimos tempos. O que,
para nós, representa a oportunidade de edificação de um ensino de Geografia como
instrumento de conscientização e libertação do indivíduo.
Por outro lado, a nossa atuação como professora de Geografia da rede
pública de ensino há 19 anos, as nossas reflexões sobre esse assunto e o nosso contato com
os professores de Geografia – tanto no trabalho como em oficinas pedagógicas e cursos
ministrados por nós nos últimos anos – têm nos mostrado uma realidade a qual tem nos
levado a algumas indagações: será que essas discussões se concretizaram nas esferas do
ensino básico tendo em vista que já se passaram 11 anos da introdução dessas discussões
por meio do referencial curricular nacional? Os professores se apropriaram dessas
renovações teórico-metodológicas? O conhecimento geográfico veiculado pelos livros
didáticos de geografia tem se mostrado atualizado com as reflexões realizadas no âmbito
da Geografia Acadêmica?
Essas indagações nos remeteram a uma investigação junto a 51
professores de Geografia que atuam no ensino fundamental das escolas situadas no
perímetro urbano de Marília, e a uma análise do conteúdo dos livros didáticos utilizados
por esses professores. O que nos levou a constatar que as discussões teórico-metodológicas
existente no âmbito da Geografia escolar em relação ao significado das categorias
geográficas de lugar, paisagem, território e região e sua aplicabilidade no ensino muito
pouco acompanhou as produções teóricas da academia. O que significa dizer que o
4
A partir desse momento utilizaremos o termo PCNs quando nos referirmos a esse documento
conhecimento geográfico ensinado na escola está muito aquém daquele produzido pela
Geografia acadêmica e daquele que se pretende construir para a formação do indivíduo
consciente e atualizado sobre sua realidade.
Nesse contexto o presente trabalho objetiva apresentar alguns dados que
obtivemos, através de nossa investigação, sobre o significado da categoria lugar.
Inicialmente apresentaremos algumas reflexões presentes no âmbito da
Geografia acadêmica sobre o conceito de lugar. Em seguida iremos expor algumas
conclusões obtidas a respeito do conceito de lugar no âmbito da Geografia escolar.
1. A Geografia acadêmica e o conceito de lugar
Durante muito tempo a Geografia considerou o lugar como a expressão
do espaço geográfico na escala local: dimensão pontual no sentido de localização
geográfica. Nos últimos anos o lugar tem sido analisado de forma mais abrangente.
Na Geografia esse conceito tem sido discutido com mais intensidade
dentro de duas de suas vertentes: a da Geografia Humanista e a da Geografia Crítica.
Iniciaremos com algumas considerações a respeito do conceito de lugar na perspectiva da
vertente humanista.
A Geografia Humanista surgiu entre os geógrafos na década de 70, como
uma crítica à Geografia de cunho lógico-positivista. Ela se faz “calcada nas filosofias do
significado, especialmente a fenomenologia e o existencialismo” (CORRÊA, 2003a, p.30).
Esta corrente contrapõe-se àquelas que estudam a organização do espaço
apenas com base nos processos de produção, ou seja, nos fatores materiais de existência da
sociedade.
Para Corrêa,
A Geografia Humanista está assentada na subjetividade, na intuição, nos
sentimentos, na experiência, no simbolismo e na contingência, privilegiando o
singular e não o particular ou o universal, e, ao invés da explicação, tem na
compreensão a base de inteligibilidade do mundo real. (2003a, p. 30)
Nessa corrente de pensamento o lugar é encarado como espaço vivido,
experienciado, contribuindo para determinar a identidade dos indivíduos e grupos, os quais
acabam por criar laços afetivos com ele.
Para Tuan (1983), um dos principais representantes dessa corrente de
pensamento, o lugar é o centro de significados construídos pelo indivíduo. No estudo do
lugar são considerados os sentimentos espaciais, as idéias de um grupo ou um povo sobre o
espaço, a partir da experiência.
Segundo Silva, (1986) para a Geografia Humanista “o lugar não é apenas
algo que objetivamente se dá, mas algo que é construído pelo sujeito no decorrer de sua
experiência”. Assim, “o lugar é algo que sugere alegria, ou solidão, ou nostalgia ou tensão”.
(SILVA, 1986, p.55).
Nessa concepção, o lugar é uma dimensão do espaço que não será
compreendido apenas através da análise de fatos objetivos presentes na realidade, mas
também através da análise de fatos subjetivos da realidade, como os sentimentos, as
sensações e a percepção que os indivíduos têm do espaço onde vive.
Leite (1998), em uma abordagem que realizou sobre o conceito de lugar,
tendo como referência a obra de geógrafos humanistas, nos mostra que segundo esses
intelectuais
Os lugares não são dotados de limites reconhecíveis no mundo concreto. Isto
ocorre porque sendo uma construção subjetiva e ao mesmo tempo tão
incorporada às práticas do cotidiano que as próprias pessoas envolvidas com o
lugar não o percebem como tal. Este senso de valor só manifesta-se na
consciência quando há a ameaça do lugar como a demolição de um monumento
considerado importante. (LEITE, 1998, p. 12)
Para essa autora a experiência do lugar manifesta-se também em
diferentes escalas. Todas as pessoas vivem rodeadas por camadas concêntricas de espaço
vivido, tais como o lar, a vizinhança, a cidade, a região e a nação. Tais entidades, segundo a
autora, são lugares experienciados diretamente. A cidade e a nação, embora não sejam
conhecidas integralmente por cada um dos indivíduos são centros de significados para os
indivíduos, e os grupos.
Isto nos faz atentar para o caráter imensurável do lugar. O lugar é um
espaço que não se delimita e não se explica pela sua localização geográfica. Ele pode ser a
casa, a rua, a região. O que importa é o grau de identidade entre pessoas/grupos e o lugar a
que se refiram (MAIA, 2002)
Corrêa (2003b), ao teorizar sobre os pressupostos da Geografia
Humanista, diz que na concepção desta corrente teórica “o lugar passa a ser o conceitochave mais relevante, enquanto o espaço adquire, para muitos autores, o significado de
espaço vivido” (p.30).
Para ele, o lugar – sinônimo de espaço vivido – se organiza não só em
função das necessidades vitais imediatas dos indivíduos, mas também em função das suas
aspirações, das suas crenças e do mais íntimo de sua cultura. Enfim, trata-se do espaço que
se relaciona com o afetivo e com o imaginário dos indivíduos que o construíram.
Para Lencioni (2003, p. 153), o espaço vivido é a principal referência da
Geografia Humanista. Trata-se do espaço construído socialmente a partir da percepção das
pessoas, ao mesmo tempo interpretado pelos indivíduos e revelador das práticas sociais.
Segundo a autora, essa corrente do pensamento geográfico concebe o lugar
não como um lugar em si, um lugar objetivo, mas como algo que transcende
sua materialidade, por ser repleto de significados (...). Reiterando, o lugar
transcende sua realidade objetiva e é interpretado como um conjunto de
significados. Nesse sentido, os monumentos, as obras de arte, assim como
cidades, são lugares porque são um conjunto de significados. (Ibidem, p.154)
No contexto da Geografia Crítica o lugar é concebido como “a porção do
espaço apropriável para a vida – apropriada através do corpo – dos sentidos – dos passos de
seus moradores, é o bairro, é a praça, é a rua” (CARLOS, 1996, p. 20). É o espaço passível
de ser sentido, pensado, apropriado e vivido através do corpo.
Santos (1997) considera que o lugar constitui a dimensão da existência, a
base da reprodução da vida e pode ser analisado pela tríade habitante-identidade-lugar. Mas
chama a atenção para o fato de que é preciso manter o significado de lugar ligado com o
significado de mundo, pois considera que “cada lugar é, ao mesmo tempo objeto de uma
dada razão global e de uma razão local, convivendo dialeticamente”. (Ibidem, p. 273)
Para este autor
Cada lugar a sua maneira é o mundo (...). Mas também cada lugar,
irrecusavelmente imerso numa comunhão com o mundo, torna-se
exponencialmente diferentes dos demais. A uma maior globalidade corresponde
uma maior individualidade (...). Para apreender essa nova realidade do lugar,
não basta adotar um tratamento localista, já que o mundo encontra-se em toda
parte. (SANTOS, 1997, p.252)
Isso significa que o lugar não pode ser analisado como um espaço passivo
e com a existência em si mesmo, é preciso considerá-lo globalmente ativo, pois é através do
lugar que enxergamos o mundo. “o mundo, nas condições atuais, visto como um todo é
nosso estranho. O lugar, nosso próximo, nos restitui o mundo: se este pode se esconder pela
sua essência, não pode fazê-lo pela sua existência” (SANTOS 1996).
Essa concepção de lugar considera esse espaço como resultado do
movimento dialético entre o local e o global.
Assim, pensar o lugar é pensar a história particular se realizando em
função de uma cultura, tradição, língua, hábitos que lhe são próprios, com o que vem de
fora, isto, são tudo aquilo que vai se impondo como conseqüência do processo de
construção do global. (CARLOS, 1996)
Assim, pensar o lugar na concepção da Geografia crítica é considerá-lo
como ponto de articulação entre a mundialidade em constituição e o local enquanto
especificidade concreta, enquanto momento. (CARLOS, 1996). Nas palavras de Santos
(1997) é pensar o lugar tanto como uma expressão de uma dinâmica que é única como uma
expressão da globalidade.
Como vemos apesar das diferenças de concepção sobre o conceito de lugar
as duas vertentes comungam em dois pontos. O primeiro deles é que na abordagem do lugar
é preciso ultrapassar a simples noção de localização geográfica e o segundo se refere à
necessidade de conceber o lugar como um espaço que tem a ver com a cultura e com a
existência de quem o habita.
2- A Geografia escolar e o conceito de lugar
2.1 O s professores e o conceito de lugar
A partir das entrevistas procuramos captar o conhecimento teóricometodológico do professor a respeito do conceito de lugar e alguns procedimentos
metodológicos utilizados pelo professor, junto aos alunos, para concretização do ensino
desse conceito.
Com relação ao significado de lugar, do total dos professores
entrevistados, dois deles não souberam dar o significado. O que nos levou a crer que esses
não têm tido contato com as produções científicas sobre o conceito
A maioria dos professores considera o lugar como a expressão do espaço
geográfico na escala local: dimensão pontual no sentido de localização geográfica.
Com já discutimos anteriormente, tanto na Geografia Humanista, SILVA,
(1986), LEITE (1998), MAIA (2002) e CORRÊA (2003a) como na Geografia Crítica,
CARLOS (1996) e SANTOS (1997) os lugares não se explicam por sua localização
geográfica não são dotados de limites reconhecíveis no mundo concreto. Esse é uma
construção subjetiva à medida que “é a porção do espaço apropriável para a vida –
apropriada através do corpo – dos sentidos – dos passos de seus moradores, é o bairro, é a
praça, é a rua” (Carlos, 1996, p. 20).
Segundo Tuan (1983, p. 6) o espaço só se torna lugar à medida que o
conhecemos melhor e o dotamos de valor. Nesses termos o significado de lugar ultrapassa o
de mera localização geográfica e o de espaço absoluto.
Os lugares não são dotados de limites reconhecíveis no mundo concreto.
Isto ocorre porque sendo uma construção subjetiva ao mesmo tempo tão
incorporada às práticas do cotidiano que as próprias pessoas envolvidas
com o lugar não o percebem como tal. (LEITE, 1998, p. 12)
Além disso, a experiência do lugar manifesta-se também em diferentes
escalas. Todas as pessoas vivem rodeadas por camadas concêntricas de espaço vivido, tais
como o lar, a vizinhança, a cidade, a região e a nação. A cidade e a nação, embora não
sejam conhecidas integralmente por cada um dos indivíduos, são centros de significados
para os indivíduos e os grupos. (LEITE, 1998)
Nessa direção Callai (2002, p. 107) quando discorre sobre as várias
possibilidades de estudar o lugar nos chama atenção para o seguinte:
Um lugar é a reprodução, num determinado tempo e espaço, do global, do
mundo. As relações não são pautadas pelo espaço, pela proximidade, pela
contigüidade, muito pelo contrário, ultrapassam as distâncias lineares e
contínuas. Estabelecendo-se a partir de interesses, que são externos na
maioria das vezes.
A partir disso, quando analisamos as respostas dos professores,
percebemos que esses limitaram o lugar como um espaço necessariamente próximo
fisicamente do aluno e com o qual ele tem contato direto.
Outro grupo de professores, em um primeiro momento, nos leva a pensar
que estão concebendo o lugar para a além da localização geográfica, mas quando foram
questionados de forma mais incisiva a compreensão que tivemos é de que o lugar para eles
tem o sentido de um espaço físico próximo ao aluno no sentido de localização geográfica.
Esses nos confirmaram que o que caracteriza o lugar é necessariamente o contato físico do
indivíduo com determinado espaço, no sentido de conhecer e ter a oportunidade de
presenciar e ficar a par da paisagem de um determinado espaço, uma cidade, país, etc. Para
esses professores quanto mais cidades o indivíduo circula maior número de lugares que ele
conhece.
Somente quatro dos professores entrevistados apontaram outra dimensão
do conceito de lugar além da dimensão da localização geográfica. Esses evocaram a
dimensão cultural do espaço
Em seguida levamos o professor a descrever uma atividade de ensino
realizada com seus alunos em que ele considera que esteja trabalhando o conceito de lugar.
Nesse momento captamos que mesmo os professores que evocaram a
dimensão cultural para explicar o significado de lugar ao se referirem as sua metodologias
de ensino consideram que estão trabalhando o significado de lugar com seus alunos quando
os levam a conhecer a localização geográfica do local onde vivem, tais como a escola ou
sua residência, seja no bairro, na cidade ou em outras escalas geográficas, como o país e o
continente. Isto fica claro quando eles apontam que os recursos utilizados para tal são: a
lista telefônica, para levar os alunos a localizarem a rua e o bairro onde moram no contexto
do município, no mapa de Marília; mapas de diversas escalas visando à localização pelo
aluno do seu local de moradia; passeio ao redor da escola a fim de que os alunos construam
croquis do seu entorno; observação e desenho do trajeto da casa até a escola, e também
quando levam o aluno a observar, descrever e listar elementos existentes em seu bairro ou
no seu município, como por exemplo, enumerar os serviços existentes no bairro e no
município; descrever as características físicas do bairro como altitude, declividade;
identificar se o município está situado em região de planície ou de planalto e quais as vias
de acesso são utilizadas para chegar do centro urbano até o bairro de sua moradia, ou
mesmo as indústrias existentes em seu bairro ou em seu município.
Somente um dos professores em sua resposta foi coerente com o que
respondeu sobre o significado de lugar. Esse em sua resposta sobre a metodologia disse que
considera ter trabalhado o conceito de lugar com o aluno quando pediu para que um aluno,
migrante do Estado de Santa Catarina, falasse sobre as diferenças existentes entre o seu
sentimento por São Joaquim – lugar de origem – e o seu sentimento por Marília – lugar de
destino. Embora demonstrando pouca sistematização da atividade de ensino, vimos que
esse recorreu à dimensão subjetiva do espaço, ou seja, a noção de espaço vivido.
A partir dos resultados obtidos sobre o conhecimento dos professores a
respeito do significado da categoria lugar, concluímos que ainda há muito que caminhar
para que o conhecimento veiculado no Ensino Fundamental acompanhe de fato as
discussões ocorridas na universidade a respeito do significado da categoria lugar.
2.2 - O Livro Didático de Geografia e o conceito de lugar.
As entrevistas nos apontaram que o livro didático de Geografia além de
ser o principal referencial teórico do professor do Ensino Fundamental, é também o
principal recurso didático utilizado para promover o contato do aluno com o conhecimento
geográfico.
Essa conclusão levou-nos a realização de uma investigação sobre a
natureza do conhecimento geográfico veiculado por esses manuais. De modo mais
específico, da natureza das reflexões realizadas sobre o significado de lugar.
Para a seleção dos livros a serem analisados levantamos o nome
daqueles que foram os mais citados durante as entrevistas e a partir desse levantamento
selecionamos aqueles cujo uso é mais freqüente pelos professores. Para tanto, pedimos para
os entrevistados citarem o nome de três autores com os quais eles têm tido contato, o que
resultou 153 citações. A tabela a seguir apresenta os autores citados pelos professores, a
classificação de cada um e número de vezes em que foram citados.
CLASSIFICAÇ
ÃO
AUTOR
NÚMERO
CITAÇÃO
1º
Melhem Adas
51
2º
José Willian Vesentini e Vânia Vlach
50
3º
16
4º
José Eustáquio de Sene e João Carlos
Moreira
Elian Alab Lucci
4º
Igor Moreira
6
4º
Celso Antunes
6
4º
Raul Borges Guimarães
6
5º
Vagner Costa Ribeiro
5
6º
Levon Boligian
4
7º
Helio Costa Garcia
3
TOTAL DE CITAÇÕES
DE
6
153
Entre esses, Melhem Adas foi o autor mais citado pelos professores
entrevistados, em segundo lugar classificou-se José Willian Vesentini e o terceiro lugar foi
ocupado por José Eustáquio de Sene. Os demais autores foram citados de forma esporádica
cuja freqüência se mostrou insignificante em relação àquela com que os três primeiros
autores foram citados. Cabe lembrar que o autor José Eustáquio de Sene não foi citado
nenhuma vez como a primeira opção dos professores e que Melhem Adas foi a primeira
opção de todos os professores.
Outro fato importante a se destacar é que das escolas visitadas, todas
possuem a coleção dos autores Melhem Adas e José William Vesentine e que somente
quatro escolas possuem a coleção do autor José Eustáquio de Sene.
A partir desses resultados, resolvemos realizar uma análise do conteúdo
geográfico veiculado pelos livros desses autores, os quais totalizam 12 exemplares, uma
vez que os livros desses autores estão organizados em coleções compostas de quatro livros,
um para cada série do 3º e do 4º ciclos do Ensino Fundamental.
As coleções objeto de nossa análise foram
•
COLEÇÃO GEOGRAFIA – Autor Melhem Adas – Editora
Moderna.
•
COLEÇÃO GEOGRAFIA CRÍTICA – Autores José Willianm
Vesentini e Vânia Vlach – Editora Ática.
•
COLEÇÃO TRILHAS DA GEOGRAFIA – Autores: José
Eustáquio de SENE e João Carlos Moreira – Editora Scipione.
•
Apresentaremos agora os resultados da análise que realizamos das
referidas coleções.
2.2.1- COLEÇÃO GEOGRAFIA Autor: Melhem Adas Editora: Moderna.
Nessa coleção as discussões a respeito do significado de lugar aparecem
somente no exemplar destinado à 5ª Série, nos demais exemplares elas estão ausentes.
Essas ocorrem no primeiro capítulo quando o autor se propõe a discutir o conceito de
espaço. Para tanto utiliza inicialmente o significado de espaço presente no Dicionário
Aurélio: “o espaço é o lugar mais ou menos bem delimitado, cuja área pode conter alguma
coisa”. A partir disso foi possível deduzir que o autor considera o lugar como sinônimo de
espaço físico.
Essa nossa percepção se confirma quando o autor procura ilustrar essa
definição utilizando exemplos concretos da vida do aluno:
Observe sua sala de aula.
-Ela ocupa um lugar ou espaço do prédio de sua escola.
-Ela contém várias coisas: carteiras mesas do (a) professor (a), o quadrode-giz, lixeira, apagador, cadernos, livros, lápis, pessoas, etc.
-Ela é delimitada, ou seja, possui limites (os seus limites são suas
paredes)
Além dos limites, ou seja, das paredes de sua sala existem outros
espaços no prédio de sua escola: o do corredor, de outras salas de aula,
da secretaria, da sala da diretoria, da biblioteca, dos banheiros, do pátio
da escola, da cantina, etc.
E além dos limites de sua escola, ou seja, dos muros que a delimitam,
existem muitos outros espaços: o espaço ocupado por outras construções
(casa, prédios de apartamentos ou comerciais, terrenos vazios, etc.) pelas
ruas, pelo quarteirão, pelo bairro, pela cidade etc. (...)
O mesmo acontece com o quarto onde você dorme. Ele ocupa um lugar
ou certo espaço de sua casa (...) e é também delimitado por paredes.
Da mesma forma que a sala de aula ocupa um lugar ou uma parte do
espaço do prédio de sua escola e o quarto ocupa um lugar ou um certo
espaço de sua casa, as coisas que existem na sala de aula e no quarto
também ocupam um espaço ou lugar (...)
O espaço possui muitas dimensões ou tamanhos. Pode ser de dimensão
muito pequena como, por exemplo, o espaço ocupado por um grão de
areia. Pode ter muitas outras dimensões, como o ocupado por um livro,
uma sala de aula, um quarto, um prédio de escola (...). Cada coisa ocupa
um lugar no espaço ou uma parte de um espaço maior. (ADAS, 2002,
p10-11)
Outra conclusão que chegamos ao analisar essas palavras é a de que o
autor concebe o lugar como um espaço objetivo e concreto e unicamente como o espaço da
localização geográfica. Em nenhum momento detectamos a intenção do autor em
considerar a dimensão subjetiva do lugar.
Posteriormente, no mesmo exemplar, o autor procura mostrar ao aluno
que o lugar onde ele reside com o tempo foi muito transformado pelo homem, por essa
razão ele é considerado espaço humanizado. Nesse momento, a nosso ver o autor comete
certa confusão conceitual.
A cidade onde você mora ocupa um certo espaço ou lugar da superfície
da terra. Antes de as primeiras pessoas chegarem ao lugar ou ao espaço
onde se situa a sua cidade, havia aí uma natureza original, isto é, uma
natureza (solo, vegetação, rios e córregos, clima e fauna) que não tinha
sido modificada pela ação humana. Existia, então, um espaço que
podemos chamar de espaço natural.
(...) Assim com a chegada das primeiras pessoas e famílias ao espaço e
ao lugar onde se situa sua cidade ou município o espaço rural que aí
existia foi sendo transformado ou alterado. Elas foram humanizando-o,
ou seja, deixando as marcas de sua atuação ou ação no espaço natural.
Assim, as pessoas que chegaram ao lugar ou espaço onde hoje existe o
seu município foram modificando ou transformando o espaço natural ou
a paisagem natural (...). Construíram, pelo trabalho, um novo espaço.
Esse espaço construído ou produzido pelo ser humano é o espaço
geográfico. (ADAS, 2002, p. 13-14, grifo nosso).
Nessa discussão, além de o autor reafirmar a sua convicção de que lugar
é um espaço mensurável e concreto ele induz o leitor a conceber que lugar, espaço, espaço
natural e paisagem natural possuem o mesmo significado.
Além de o autor não ter incorporado as inovações teórico-metodológicas
produzidas pela academia a respeito do significado de lugar, ele comete uma confusão
conceitual sobre os outros conceitos importantes da Geografia.
2.2.2 - COLEÇÃO GEOGRAFIA CRÍTICA. Autores: José William Vesentini e Vânia
Vlach. Editora: Ática.
As discussões a respeito do lugar acontecem no exemplar destinado a 5ª
série. Logo no primeiro capítulo, ao apresentarem o significado de espaço, os autores
concebem o lugar como sinônimo de espaço da localização geográfica. Isso fica claro no
seguinte trecho:
(...) cada coisa ocupa um lugar, ou seja, uma porção específica do
espaço. Sempre que fazemos a pergunta onde? , estamos nos referindo
ao espaço.
O espaço, portanto, refere-se ao lugar que as coisas ocupam e onde os
fatos ocorrem.
Podemos ainda nos referir ao espaço usando outros termos que servem
para medi-lo ou descrevê-lo como: lugar, região, área, localidade,
território, distancia, etc. (VESENTINI e VLACH, 2003 p. 8-9, grifos dos
autores).
No entanto, é no segundo capítulo intitulado “A sociedade moderna e o
espaço”, especificamente no item O espaço de vivência do ser humano, que as discussões
se fazem mais presentes. Aí a concepção de lugar continua atrelada à noção de espaço da
localização geográfica.
Assim como os objetos e os acontecimentos, nós seres humanos,
também ocupamos um lugar no espaço e situamo-nos no tempo.
Vivemos uma certa época e moramos num lugar. A humanidade ocupa
um espaço, que é o espaço geográfico. (VESENTINI e VLACH, 2003,
p. 14, grifo dos autores).
Em seguida, os autores utilizam exemplos mais concretos para que o
leitor-aluno consiga compreender de forma mais significativa o que vem a ser o espaço.
Nesse sentido assim o fazem
Vamos tomar como exemplo o lugar, ou seja, uma parcela do espaço
onde vive a estudante Renata, uma garota de nossa época. Renata vive
em nosso país. Ela mora num apartamento com os pais. Vamos observar
a planta ou desenho do apartamento de Renata (...).
O quarto de Renata é o seu espaço mais pessoal. É o lugar onde ela
dorme , estuda, fica sozinha. O quarto é uma parte do apartamento onde
Renata mora. (...)
Esse apartamento está localizado no 7º andar de um edifício onde
existem outros apartamentos semelhantes, ocupados por outras famílias.
O edifício, por sua vez, localiza-se numa rua. E a rua fica num bairro,
como podemos ver no mapa que localiza a rua onde Renata mora e tudo
o que fica nas proximidades.
Mas o espaço de Renata não é só esse. É o conjunto formado pelos
lugares onde ela vive, passeia, estuda, brinca , viaja (...). (Ibidem, 2003,
p.14-15)
Na seqüência, ainda utilizando o exemplo de Renata, os autores
percorrem todos os níveis de dimensões espaciais de localização geográfica. Eles iniciam
pelo lugar da casa e do bairro, em seguida a cidade e o Estado, o país, o continente e
finalmente o planeta Terra.
Nessa direção concluem as discussões a respeito do lugar admitindo ao
leitor que o lugar não deve necessariamente ser concebido como um espaço próximo do
aluno com o qual ele mantém contato físico. Mas a todo o momento eles deixam claro que
concebem o lugar unicamente como o espaço da localização geográfica.
Agora já conhecemos todo o lugar onde vive Renata. Certamente, esse
espaço tem diferenças em relação ao lugar onde você vive, mas também
tem muitas semelhanças; As diferenças são de caráter mais pessoal mais
restrito: você mora em outra residência, em outro bairro, talvez em outra
cidade e em um outro estado. Mas está no mesmo país que ela vive,
igualmente no mesmo planeta e na mesma época.
Como você vê, o espaço de vivência do ser humano possui vários níveis
ou dimensões. A menor dimensão do nosso espaço é a nossa casa e a
maior é a superfície terrestre, que se encontra atualmente dividida em
quase duzentos países ou nações (...)
(...) o espaço de vivência do ser humano e da sociedade humana, como
um todo, o espaço geográfico, restringe-se ao nosso planeta. (Ibidem,
p.16-17, grifos do autor)
Verificamos, também através do trecho apresentado acima, que a forma
dos autores se expressarem pode levar o aluno-leitor a conceber que o lugar, espaço de
vivência e espaço geográfico são sinônimos.
2.2.3 - COLEÇÃO TRILHAS DA GEOGRAFIA. Autores: José Eustáquio de Sene e
João Carlos Moreira. Editora: Scipione.
As discussões apresentadas pelos autores dessa coleção mostraram-se
atualizadas com o que tem se discutido no Ensino Superior sobre o significado de lugar.
Depois de promoverem uma reflexão sobre o significado de paisagem no
capítulo 1 do exemplar destinado à 5ª série, no capítulo 2, no item intitulado por
Desvendando o lugar onde vivemos, os autores iniciam as discussões sobre o lugar.
O lugar é a parte do espaço geográfico onde vivemos e interagimos com
a paisagem. É também no lugar que estabelecemos nossas relações com
outras pessoas, que criamos nossos laços afetivos, nossas lembranças e,
assim, acabamos criando uma identidade, uma ligação com a própria
paisagem desse lugar.
Lugar em geografia, portanto, indica a localização e muito mais: inclui
as formas naturais e as formas construídas da paisagem, e também as
relações humanas. O lugar é a paisagem carregada de significados, de
coisas que são importantes para nós, porque fazem parte do nosso dia-adia ou das nossas lembranças.
Podemos nos identificar criar uma ligação com um lugar, e nos lembrar
dele por sua paisagem (...) ou por seus cheiros.
Também podemos recordar de um lugar pelos seus sons (...) ou até pelos
seus sabores.
Também nos identificamos com lugares especialmente pelas relações
pessoais, duradouras ou passageiras, que construímos neles: as pessoas
da família que lá encontramos as pessoas da escola, as que cuidaram de
nós, nossos amigos, amores e também as pessoas com quem tivemos
brigas ou confusões. Enfim, a parte visível de um lugar é sua paisagem,
mas além dela, o lugar incorpora as relações humanas, tanto as de
cooperação como as de conflito.
É no lugar que se materializam as relações entre grupos de pessoas,
sejam as ações de solidariedade ou de conflitos sociais. No lugar as
pessoas trabalham, produzindo e distribuindo a riqueza de forma mais ou
menos desigual.
Hoje, embora nosso dia-a-dia continue a acontecer no lugar, como
resultado dos avanços tecnológicos nas comunicações, não estamos mais
restritos aos seus acontecimentos. (SENE e MOREIRA, 2001, p.34)
A partir disso verificamos que os autores se preocupam em ultrapassar a
concepção de lugar como o espaço da localização geográfica na medida em que procuram
ressaltar a dimensão subjetiva que envolve o significado de lugar. Outro fato importante é o
da preocupação existente por parte dos autores em estabelecer as relações e as diferenças
existentes entre a paisagem e o lugar. Além disso, os autores procuraram chamar atenção
para a importância de uma contextualização do lugar no momento histórico vivido por
nossa sociedade.
Além de oferecer uma discussão teórica sobre o significado dessa
categoria, os autores propõem atividades que levam os alunos a interagir com o lugar de
vivência.
No exemplar destinado à 6ª série as discussões sobre o lugar aparecem
no capítulo1, intitulado A história dos Lugares. Nesse não existem discussões sobre o
significado de lugar, mas os autores procuram mostrar, através do uso de fotografias antigas
e recentes de diversos lugares, as transformações ocorridas nas paisagens dos lugares ao
longo do tempo. Além de levar o aluno-leitor a uma reflexão sobre as prováveis causas das
transformações e das permanências da paisagem do lugar.
No exemplar destinado à 7ª série não identificamos discussões
específicas a respeito do significado de lugar.
No exemplar destinado à 8ª série os autores retomam as discussões sobre
o lugar, quando promovem uma discussão sobre o processo de globalização. Isso fica claro
no trecho abaixo, retirado do referido exemplar:
Certos elementos da globalização – objetos de consumo, modismos,
mensagens da mídia global, marcas de empresas globais, aparelhos de
comunicação, grandes infra-estruturas de transportes, etc. –
materializam-se na paisagem do lugar onde as pessoas vivem. (Ibidem,
2001, p.12)
Esse fato se vê reforçado no capítulo 4 do mesmo exemplar, o qual é
intitulado As cidades Globais. Em um texto complementar intitulado Lugar e Globalização
assim os autores se manifestam
O conceito geográfico de lugar é fundamental para o entendimento dos
fluxos da globalização. Lugar, para a Geografia, inclui as formas
naturais e as formas construídas da paisagem e também as relações
humanas. O lugar é a paisagem carregada de significado, de coisas que
são importantes para nós porque fazem parte do nosso dia-a-dia. Ou das
nossas lembranças. É a porção do espaço geográfico onde se desenrola o
cotidiano dos indivíduos.
É no lugar que se instalam os fluxos da globalização e não no espaço
geográfico como um todo. Os fluxos dão-se em redes através do espaço
geográfico mundial e os nós dessas redes são os lugares. Não podemos
esquecer que quem comanda os fluxos da globalização são pessoas.
Tudo isso é uma criação humana: a infra-estrutura que permite a
instalação dos fluxos, as normas que os regulamentam e, claro, as
palavras que os definem.
Todos os fluxos da globalização fazem parte do espaço geográfico:
ajudam a modelá-lo e são modelados por ele. Por exemplo, o fluxo de
capitais produtivos leva a instalação de fábricas, supermercados, hotéis,
etc. que modificam o espaço geográfico não apenas no lugar onde se
instalaram (...).
Com a Globalização, o próprio conceito de lugar deve ser redefinido.
Hoje as pessoas não estão mais restritas ao seu lugar, como acontecia em
um passado não muito distante. Cada vez mais as pessoas viajam pelo
mundo, tomando contato com outros lugares, outros povos e outras
culturas. Mesmo para quem não viaja, seu lugar, devido aos avanços das
telecomunicações (televisão, telefone, internet. etc.) , passou a receber
informações que vêm de vários outros lugares. Nesse contexto, podemos
dizer que o lugar se ampliou, e mesmo que, virtualmente, as
possibilidades de contato entre as pessoas se alargaram. (Ibidem, p. 92)
Aí percebemos certo desencontro com o que foi discutido anteriormente,
nos dois primeiros exemplares, sobre o significado de lugar. Isso porque nas discussões
realizadas pelos autores deixaram clara a concepção do lugar como um espaço subjetivo
que ultrapassa o sentido de localização geográfica. Adotaram uma concepção sintonizada
com os pressupostos da fenomenologia. Nas discussões realizadas no exemplar da 8ª série,
apesar de recorrerem a uma definição de lugar utilizada anteriormente, os autores se
aproximaram mais da concepção construída sob os pressupostos do materialismo histórico
e dialético, porém sem promover um aprofundamento desta. Isso a nosso ver fez com que o
lugar ficasse como o espaço físico e o da localização geográfica. As discussões realizadas
nos primeiros exemplares – 5ª e 6ª séries – não servirão para compreender o sentido de
lugar utilizado nessa etapa da escolaridade.
Apesar dessa contradição apresentada pelos autores, podemos considerar
que das três coleções analisadas essa foi a que mais se mostrou atualizada em relação às
discussões sobre o significado de lugar. O que se mostra contraditório tendo em vista que
das três coleções utilizadas essa é menos expressiva entre os professores entrevistados e
entre as escolas visitadas
Esse fato torna-se bastante preocupante, pois através de uma análise que
realizamos do conteúdo dos principais livros didáticos utilizados pelos professores
entrevistados, pudemos constatar muitas contradições teórico-metodológicas. O conteúdo
desses manuais de ensino, no que se refere ao significado das categorias geográficas
analisadas, também se encontra bastante desatualizado em relação ao que se discute no
Ensino Superior.
3-Considerações Finais
Para que a Geografia Escolar se edifique como um instrumento de
conscientização do indivíduo sobre sua realidade espacial, é muito importante que ela se
mantenha atualizada em relação às produções teóricas da universidade. Somente assim ela
poderá oferecer elementos para que o aluno compreenda o espaço geográfico, dialogue
com ele e amplie a sua visão de mundo, a sua consciência de suas responsabilidades e
direitos. A nossa pesquisa apontou para uma grande problemática vivenciada pela
Geografia escolar: o desencontro teórico metodológico entre esta e a Geografia acadêmica.
A partir dos resultados obtidos com nossa pesquisa podemos considerar
que intimas relações existem entre o conteúdo dos livros didáticos, no que diz respeito ao
significado de lugar e a concepção que os professores possuem a respeito do significado
dessa categoria.
Verificamos que as duas coleções didáticas mais utilizadas pelos
professores veiculam uma concepção de lugar como espaço físico e absoluto, espaço da
localização geográfica. Em nenhum momento detectamos aí uma abordagem do lugar
enquanto um espaço subjetivo.
No que tange ao conhecimento do professor sobre conceito de lugar,
com exceção de alguns professores, esse fato se repetiu, principalmente quando o professor
expõe atividades de ensino realizadas com os seus alunos para trabalhar o conceito de
lugar. Se observarmos as respostas dos professores e o conteúdo dos livros didáticos, temos
que muitas respostas coincidem com o exposto pelos autores em seus livros. A
superficialidade com que os autores abordam o conceito de lugar foi refletida no
conhecimento do professor. Conhecimento esse que não ultrapassa o do senso comum. Não
identificamos nas respostas dos professores nenhum traço das discussões realizadas na
última coleção analisada.
O fato de os professores de Geografia terem no livro didático seu
principal instrumento de atualização teórico-metodológica nos remete a algumas
indagações sobre o futuro do ensino de Geografia enquanto instrumento de formação do
indivíduo consciente. O que esperar de um ensino cujo professor não possui um
conhecimento consistente a respeito da ciência que é referência de sua disciplina? Como
esse professor poderá desenvolver junto ao aluno o raciocínio geográfico para que ele possa
pensar o mundo atual em sua complexidade espacial? O que esperar de um ensino cujo
instrumento de formação do professor sobre o conhecimento geográfico é o mesmo dos
alunos – o livro didático? Quais ações precisam ser implantadas pelas autoridades
educacionais para que o professor tenha acesso a outros veículos de formação a respeito da
natureza teórico-metodológica da ciência geográfica? Como conscientizar o professor sobre
o seu papel de agente da sua própria formação?
As respostas a essas indagações devem ser construídas por todos os
profissionais da área, seja os que atuam no âmbito da Geografia escolar seja os que atuam
no âmbito da Geografia Acadêmica. Por todos aqueles que de uma forma ou de outra têm
se envolvido com movimentos que visam à melhoria da qualidade do ensino público e
gratuito do país.
Muitos são os fatores que determinam essa problemática e também
muitas são as ações que precisam ser implantadas para solucioná-la. A nosso ver, esse
constitui um grande desafio para as autoridades educacionais brasileiras!
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RADIOFONIA E AS “RAÍZES CAIPIRAS” DA MÚSICA POPULAR URBANA
Profª. Drª. Maria Inez Machado Borges Pinto.
Livre-Docente do Depto. de História da FFLCH-USP.
O quadro de ampliação constante das formas de entretenimento popular e urbano
vinculados à música popular consolidou-se no Brasil nos anos 1930-1940 com a expansão
da indústria radiofônica e fonográfica. As empresas radiofônicas tornaram-se os principais
eixos da propagação da música popular, alterando de forma significativa a produção
artística musical. Assim, na cidade de São Paulo, marcada por diversas transições e fusões
das tradições musicais das festas populares (religiosas e profanas), calcadas nas matrizes
rurais, bem como envolvendo elementos culturais africanos e indígenas, assim como de
imigrantes de várias nacionalidades, sobretudo, italianos, as canções populares começaram
a ser produzidas e divulgadas pelos crescentes meios de difusão cultural, que apontavam
para um cosmopolitismo bastante tenso e difuso.
Nas décadas de 1930-1940, as emissões radiofônicas paulistas criaram novas formas
de produção e recepção cultural, organizando um mercado próprio de bens culturais. Neste
sentido, cabe ressaltar que as influências da radiofonia se multiplicaram em inúmeras
formas, originando situações ambíguas, contraditórias e conflituosas no contexto cultural
paulistano. As tensões desse quadro cultural, nascidos nos anos 1930, com o advento dos
meios de comunicação, marcariam de forma permanente o processo de produção,
disseminação e consumo da música popular nas décadas seguintes. Os novos meios
técnicos de difusão cultural, os discos e radiofonia foram de importância fundamental para
música popular na ampliação de seu universo cultural, entre a produção e o consumo. i.
Se, de um lado, o rádio imprimiu um ritmo anárquico, quase industrial, nas
produções musicais, com a finalidade de atender às demandas dos emergentes programas
radiofônicos; de outro, possibilitou o escoamento de uma rica produção musical existente.
Em São Paulo, o rádio nasceu atento a um tipo de cultura que tinha sua origem na oralidade
(a canção popular, a narrativa, o humor, a diversidade de sentidos) e que foi transportada
para a radiofonia. Mesmo nos primórdios de sua organização como um instrumento de
comunicação de massas, em meados da década de 1930, o rádio conseguiu determinar
modas e criar gostos, impondo gêneros e certa estandartização na música popular,
“regredindo a audição das massas”, na expressão Adorno ii, pois desde o declínio do
“vaudeville” todas as carreiras musicais foram feitas através ou com a ajuda das
transmissões eletrônicas, que podiam alcançar um público mais amplo, um programa no ar,
uma menção por parte de um “speaker”, que se tornaram maneiras mais populares de
divulgar músico e músicas.
Contudo, relativizando essa “padronização” e redução a certos modelos culturais, o
rádio, no Brasil, possibilitou que gêneros e estilos regionais urbanos originários nas
camadas mais pobres se difundissem para um quadro regional mais amplo. Tal como
ocorreu com o samba, canções sertanejas e os choros, alargando as possibilidades de
trabalho dos artistas e o universo de escuta dos ouvintes, ampliando as possibilidades de
produção e consumo, disseminando junto ao público ouvinte um certo tipo de cultura que
tinha suas raízes na oralidade e particularismos das culturas populares regionais.
Assim, em meio à circularidade cultural, possibilitada pela radiofonia e discografia,
emergiu um novo quadro cultural bastante conflitante, pois se a imposição de modelos de
escuta ganhou força cultural, com rápido desenvolvimento dos meios de comunicação
eletrônicos, também é necessário ter em conta que, inúmeras vezes, os artistas enfrentavam
modelos e gostos impostos pelas culturas de raiz e tradicionais, cujos elementos eram
considerados intransponíveis pelas comunidades de origem. E de modo inverso, a troca de
experiências geradas pela difusão cultural do rádio e dos discos, gerando um profuso
contato de estilos e gêneros musicais, possibilitou a transposição dos limites das formas
culturais fortemente marcadas por características comunitárias e locais.
Nessa perspectiva, interessa-nos mencionar como “a música negra” – clandestina e
mal vista no cenário urbano das primeiras décadas do século XX – estiliza-se
paulatinamente dentro dos padrões estéticos do Ocidente, urbaniza-se, invade os espaços
elegantes e a radiofonia para espraiar-se pelo Brasil, com o rótulo identificador e genérico
de “música popular brasileira”. A ascensão desta música envolve processos de coexistência
num universo cultural repleto de outras expressões musicais que definem a variedade e a
multiplicidade de alternativas artísticas difundidas pelas emissoras de rádio.
De um lado, estão produções musicais identificadas com fontes culturais estrangeiras,
como a valsa, a polca, a mazurca, a quadrilha; ou então, a modinha, gênero sentimental
inspirado nas árias operísticas, com profundas influências do cantar italiano e que tinham
grande receptividade na poética popular, sobretudo, nas “modinhas paulistas”
iii
Neste
aspecto, cabe destacar a grande presença na radiofonia paulista de composições musicais
ligadas aos valores e idéias do Brasil rural. Eram canções dolentes e versos bucólicos, cujo
tema central, sem desprezar o amor-romântico, versavam sobre os encantos da natureza
pátria e a exaltação idílica da vida campestre em oposição ao viver citadino.
Assim, por exemplo, “Chuá-Chuá” (1925), de Sá Pereira e Ary Pavão, ilustra o caso
de uma morena que abandona a cidade para gozar o seu amor num recanto bucólico do
campo, com o murmúrio das águas rolando, murmúrio expresso, aliás, pelo título
onomatopéico da canção. Por outro lado, havia ritmos nordestinos (desafio, coco,
embolada, toada, etc) que abordavam apologeticamente temas do sertão, sempre em
oposição à rotina urbana. Como se observa é a música captando o diálogo entre o mundo
rural em desagregação e o mundo urbano em incipiente formação.
Em São Paulo, como também no Rio de Janeiro, desde os primórdios do século XX
até os anos 1930, assistiu-se na música e nos elementos culturais diretamente vinculados a
ela a criação de focos de resistência de valores ruralistas e de mensagens sonoro-poéticas de
nosso sertão. Na imprensa, abundavam noticiais sobre este temática. Durante todo esse
período, falar como sertanejo, cantar como sertanejo, vestir-se como sertanejo e usar
pseudônimos sertanejos, era mais do que “moda”, pois se tornara uma demanda aos
intérpretes e compositores, na medida em que este retorno ao sertão era representado como
uma volta às genuínas raízes da brasilidade, descaracterizada pelo universo urbano iv.
De outro lado, como elemento ascendente, começou a ser difundido nas rádios “o
samba”, “forma de dança ainda indefinida, de uma extraordinária riqueza de elementos
musicais, melódicos e rítmicos, e de movimentos coreográficos...” v originários da cultura
dos negros africanos e das danças européias. Ao lado do samba aparecem outros gêneros
musicais como o maxixe, a batucada,
vi
a marcha
vii
e o choro
viii
que, embora guardando
características próprias que as diferenciam umas das outras, se configuram na visão do
consenso popular como expressões artísticas identificadas à tradição negra da cultura
brasileira. Em 1930, Paraguassú (Roque Ricciardi), concentrando-se na produção de
temáticas brasileiras, gravou canções, modinhas, toadas, sambas, emboladas, como o
cateretê “Racha Pé”, de Fernando Magalhães, enaltecendo as raízes bucólicas do campo do
ponto de vista do cidadão que se urbanizava:
“Gosto do samba/ Também do cateretê/ É a dança brasileira/ de fazê amanhece/ Eu da
cidade/ Você vivê lá no sertão/ Lá não tem tanta vaidade/ Tudo é justo, tudo é bão/ Vou no
samba do sertão/ (...)ix
Além deste atribuído rótulo étnico comum, essas formas musicais largamente
divulgadas pela radiofonia apresentam outros elos de afinidade. Sua popularização, nos
salões de dança e também nas rádios, as transformaram em elementos rítmicoscoreográficos. Sua riqueza e vivacidade as tornavam diferentes, até contrastantes, em
relação aos gêneros que até então eram preferidos como música de dança. Ou ainda,
quando, paradoxalmente, em oposição aos gêneros musicais em voga, como fox-trote,
charleston, tango e dobrado, elas se definem como expressões autênticas da cultura
nacional e como intérpretes de uma temática predominantemente urbana. Ao ser
identificada como símbolo da autenticidade nacional, essa música popular é parte de amplo,
contraditório e efervescente quadro ideológico nacionalista.
No momento, o que se objetiva destacar é a associação desses elementos musicais
com o novo estilo de vida urbano. Neste caso, essas canções passam a integrar um
complexo de variações culturais que se produzem em torno de novos focos de inspiração,
associados ao cenário urbano-industrial da cultura brasileira. Nestes gêneros musicais, o
universo rural é substituído pelos quadros urbanos, onde trafegam personagens
genuinamente citatinos, envoltos em contextos e problemas atrelados às condições de
convivência nas cidades em franco processo de adensamento populacional, caldeamento e
amálgama cultural. No ano de 1917, foi gravada a primeira música com o nome oficial de
samba, “Pelo Telefone”, composto pelo mulato Donga e interpretado por Baiano.
Nesta música, o tema é a necessária licença das autoridades policiais para se desfilar
em blocos e formar agremiações festivas, no cenário do carnaval carioca. Este samba
inspirou muitas paródias, onde a questão central era a crítica à polícia, ao jogo e ao rendezvouz, ou a pilhéria com personagens da 1ª Guerra Mundial, como o “ladrão Kaiser” e como
o “General Foch”. Os agentes publicitários também aproveitaram o samba para avisar que
“o chefe da folia (carnaval), pelo telefone, mandou dizer que toda parte há cerveja Fidalga
para se beber” x. Devido à popularidade desse samba xi apareceram muitas variantes com o
decorrer do tempo, tal como “Pelo Telefone”, publicada na coluna “Pingos e Respingos” do
Correio da Manhã, em 1917:
O Chefe da Polícia /Com toda carícia /Mandou-nos avisá /Que de rendez-vuzes
/Todos façam cruzes /Pelo carnavá... /Em casas da zona /Não entra nem dona (...)
/Converse fiado/No meio da rua /Em porta e janela /Fica a sentinela (...)/Com as arma
embalada(...) A lei da polícia/O chefe é ranzinza /No dia de “cinza” /Não quer Zé-Pereira
(...) /- Do chefe é orde? /- Não vou, não vou (...) /- Vá pra Avenida /- Não vou, não vou (...)
xii
Cabe matizar que nesta fase de intensas mudanças na música popular brasileira, que
passam a serem divulgadas pelas emissoras de rádio – quando ocorreu reformulação e
cruzamento de novos valores ligados aos interesses urbanos – surgiram composições
enquadradas nessas novas tendências musicais citatinas, porém, tematicamente, ainda
vinculadas à mística do campo, como os populares e famosos sambas, “Serra da Boa
Esperança”, de Ary Barroso e “Rancho Fundo”, de Lamartine Babo. Torna-se claro que o
resultado de todo esse processo de recriação musical dinamizado pela radiofonia e a
discografia não produziu o desalojamento das canções estrangeiras e sertanejas de nosso
populário musical. Coexistindo e cruzando-se com os gêneros musicais negros urbanos,
continuariam no cenário artístico os “voguismos” musicais, vindos do exterior e as
composições de cunho tipicamente rural.
Destaque-se que as programações das emissoras de rádio brasileiras, inclusive, a
paulista, expressavam a multiplicidade de tendências e gostos que permeavam a dimensão
estético-recreativa da nossa cultura, em que se entrecruzavam num hibridismo sui generis o
urbano e o rural, o nacional e internacional, o regional e o cosmopolita, amalgamando-se
em gêneros complexos, nitidamente heterogêneos e polissêmicos, com predominância ora
de uma, ora de outra matriz musical, que despontam neste ou naquele contexto, muitas
vezes sob a ação de fatores meramente circunstanciais. É esse quadro que se pode
visualizar no âmbito deste processo múltiplo de recriação cultural que através das “ondas
do rádio” transforma uma música local em nacional e a crescente sinonímia entre a música
“negra” urbana e “a música popular brasileira”.
Rádio Paulista: interpenetração das Culturas Rurais e Urbanas.
As polêmicas sobre a relevância da cultura/música rural na construção da
“cultura nacional” permeavam os debates dos intelectuais e artistas, sobretudo, os
modernistas, nas primeiras décadas do século XX. Reelaboradas por diversos
compositores populares e eruditos, de perfil nacionalista, elas eram interpretadas
como sendo a fonte das mais “autênticas tradições folclóricas” e as mais genuínas
expressões das “cultura nacional”, bem como, expressão da alma do homem
brasileiro. Essas questões exprimiam os sentimentos ambíguos de nossos escritores,
pesquisadores e compositores com referência à cultura popular, pois ao mesmo tempo
ela era uma atitude militante de redescoberta do país e nesse âmbito estava vinculada
ao projeto modernista, mas também significava a tradição de um passado que se
queria superar. No caso da música, processava-se uma “brasilidade modernista”, que
expressasse nítidos vínculos entre o passado e o folclore com as linguagens européias
mais contemporâneas, estimulando uma espécie de “intertextualidade”
xiii
, da qual
Villa Lobos parece ser a melhor expressão.
Contrapondo ao rigor da música européia o “seu informalismo caótico, jovem e cheio
de vida, num vale-tudo experimental antropofágico”, Villa-Lobos intercruza os efeitos do
sinfonismo descritivo, os timbres debussystas, os blocos sonoros poliritmicos e politonais
(próximos da música de Strawinsky), os temas da música indígena (inspirados nos dados de
Jean de Léry ou nos fotogramas de Roquete Pinto), os cantos sertanejos, a música dos
coretos de banda, a valsa suburbana, a bateria da escola de samba, etc.xiv Analisar uma
produção musical híbrida, polissêmica e complexa como a de Villa-Lobos é uma tarefa
árdua. Gilberto Mendes sugeriu que o “disparatado” (dos seus altos e baixos e do “mau
gosto” produzido da mistura em tais proporções) não é um acidente ou desvio estético, mas
uma dimensão da tumultuada busca “do transcendental, do cósmico, através do sentimento
nativo”.
Para o autor, todos compositores das Américas, entre eles “Ives, Cowell, Antheil e
Villa-Lobos, são de um “impressionismo e politonalismo baratos” frente à técnica
composicional de seus contemporâneos europeus: mas há na sua música, principalmente,
“naquilo que é ruim, mal feito”, algo mais que torna diferente em autenticidade, uma
independência em que se encontra “às raízes tipicamente americanas” de uma vanguarda
que se distingue da vanguarda européia. “Só nas Américas poderia surgir uma pop art, o
jazz, o “tropicalismo”, a música de Villa-Lobos e Ives. xv Nesse contexto, a musica popular
brasileira de forma mais ou menos diluída se transformou na linguagem básica dos
modernistas brasileiros, vinculada à civilização urbana industrial, na maioria dos espaços
onde penetrou.
A maioria das exóticas linguagens musicais regionais criou para si um corpo de
entusiastas que apreciavam essas formas de expressão não só como portadoras de uma nova
roupagem musical, mas como arte a ser pesquisada, registrada, como expressão da
nacionalidade. As raízes tradicionais, a cultura popular e o folclore ocupavam um espaço
privilegiado nos interesses dos modernistas brasileiros, sobretudo, músicos, constituindo-se
num dos eixos centrais daquele movimento. Evidentemente, o fecundo material musical
proveniente de todas regiões do país, composto por gêneros e matrizes culturais
diversificadas, plurais e criativas, muito contribuíram para incentivar o empenho pelo
registro, reelaboração, proteção e acentuada exaltação nacionalistas da cultura rural.
Além do mais, as referências rurais, nos primórdios do século XX, como os batuques,
cururus, sambas de roda, cocos, etc, permearam intensamente a constituição de múltiplos
gêneros musicais e a coreografia urbana popular, fazendo-se presente nos grandes centros
urbanos em formação, como Rio de Janeiro, São Paulo e Recife, através do samba, do
choro, do frevo e nas canções sertanejas, etc. E por outro lado, observa-se que em
diferentes gêneros a influência da cultura rural torna-se progressivamente rarefeita com o
desenvolvimento dos valores urbano-industriais. Cabe destacar a força das raízes rurais nas
diversas formas e ritmos da música sertaneja/caipira, no centro-sul, paradoxalmente, na
região mais urbanizada e industrializada do país, o Estado de São Paulo.
No sentido amplo, considera-se “sertanejo” o homem que habita no sertão e tem uma
vida rústica relacionada à agricultura de subsistência. Contudo, essa amplidão contemplou
intensas polêmicas. Permeia a visão dos folcloristas e estudiosos da cultura da música
nacional um nítido debate em relação a essa temática. Para muitos, o sertanejo é aquele
indivíduo “naturalmente puro e simples”, cujas raízes culturais estão no interior ou sertão
nordestino, o que o diferencia da cultura caipira, vinculada às regiões Sudeste e CentroOeste do país. Para outros estudiosos, quando se trata de música, a sertaneja e caipira tem a
mesma matriz cultural e geográfica, centrados nitidamente em regiões do interior do
Sudeste, Centro-Oeste e norte do Paraná.
O ponto diferencial entre elas seria que, a música sertaneja já teria suas origens
urbanizadas sendo criada nos médios e grandes centros urbanos, principalmente, na cidade
de São Paulo, produzida e difundida pelos modernos veículos de comunicação de massa,
sobretudo, o rádio. No sentido oposto, a música caipira, estaria mais vinculada às
autênticas, instintivas, genuínas e naturais tradições da cultura rural, completamente imune
à influência dos meios de produção e difusão de massa e, neste caso, mais próxima da
“música de raiz” ou “folclórica”.
No ensaio sobre a música brasileira (1928), Mário de Andrade afirmava que “nosso
populário sonoro honra a nacionalidade”, referindo-se às virtudes “autóctones” e
“tradicionalmente nacionais” da música rural. Neste âmbito, sugeria que essa raiz deveria
ser cuidadosamente separada da “influência deletéria do urbanismo, em sua tendência à
desagregação popularesca e a influência estrangeira” Cabe ressaltar que, no entanto, o
pensamento do poeta modernista não é esquemático. Ele procura matizar o seu critério de
valorização da música popular rural sobre a música urbana. Segundo Mário, nas regiões
mais prósperas do Brasil, “qualquer cidadezinha do fundo do sertão” possuía água
encanada, esgotos, luz elétrica e rádio”. Ressaltava, no entanto, que nas cidades maiores,
como Rio, Recife, Belém, apesar do progresso, internacionalismo e cultura, encontravam-se
“núcleos legítimos de música popular em que a influência deletéria do urbanismo não
penetra”
xvi
, pois havia manifestações muito características, da música popular brasileira
que não eram especificamente urbanas, tais como choro e modinha.
Assim, propunha aos pesquisadores discernir no “folclore urbano”, o que é
virtualmente autóctone, o que é tradicionalmente nacional, o que é essencialmente popular,
enfim, do que é “popularesco”, “feito à feição popular”, influenciada pelas modas
internacionais. Sem dúvida a concepção do “sertanejo”, no Rio de Janeiro, das primeiras
décadas do século XX, estava marcada pelo viés nacionalista de segmentos da
intelectualidade brasileira, fundado nitidamente nas fontes culturais rurais do Norte e
Nordeste. As temáticas da “moda sertaneja”, as referências aos espaços naturais, as
memórias de uma temporalidade idílica e do ambiente bucólico, com ritmos alegres e soltos
(como as emboladas) permeavam o universo cultural do Rio. Neste cenário, Catulo da
Paixão Cearense se tornou o rei dos cantores e das modinhas populares de inspiração rural
(“Luar do Sertão”, “Cabocla de Caxangá”, etc). Naquele espaço tal moda é bem visível,
revelando as necessidades e pressões do novo mercado de cultura popular em ascensão,
mas também em consonância com a perspectiva predominante dos intelectuais nacionalistas
que elegeram a temática da música do campo como a autêntica fonte de brasilidade/
nacionalidade.xvii Nesse período, Afonso Arinos de Mello Franco, que fixara residência em
Paris, mas visitava constantemente o país, foi um dos precursores em São Paulo do
movimento de “redescoberta do Brasil popular, folclórico” e colonial, em dimensão exótica
do passado, dos usos e costumes conservados nas tradições populares rurais, especialmente,
do Sudeste e Centro-Sul, tornando-se uma das referências intelectuais da reelaboração
nativista da cultura sertaneja pelo movimento modernista
Poucos anos após a morte de Afonso Arinos, que ocorrera, em 1916, toda uma nova
geração assumiu o viés nacionalista preconizado por esse autor. Em 1919, um grupo de
amadores encenou, adotando uma pronúncia “genuinamente paulista”, sem qualquer laivo
de línguas européias ou de lusitanismo, o “Contratador de Diamantes”, obra de Arinos,
buscando com atitudes despidas de afetação bem com na pronúncia acentuadamente
paulista, um senso de nacionalidade. Toda uma nova geração de membros da elite paulista,
ressentida das reviravoltas sociais, num tenso contexto cultural urbano-industrial,
acentuado pela ascensão dos imigrantes, buscava na reelaboração das matrizes culturais
tradicionais do ruralismo brasileiro um senso de identidade. xviii
Assim, a reelaboração da cultura rústica dos sertões brasileiros perpassou a
propagação radiofônica da música popular. Conforme assinalamos anteriormente, tal
tendência superou a condição de modismo, adquirindo densidade crescente como
catalisadora da cultura sertaneja, sobretudo, paulista, tornando-se quase uma imposição aos
intérpretes e compositores, no sentido que o retorno ao popular rústico era um estímulo à
fermentação nativista e ao culto da brasilidade, descaracterizados pelo ritmo desagregador
da vida urbana.xix
Um dos focos dos sucessos sertanejos, largamente difundidos pelo rádio, despontava
conjuntos tocando ritmos e melodias nordestinas. Entre outros, João Pernambuco violinista
que tocava choros com Villa-Lobos, parceiro de Catulo nas canções citadas. Organizou
com Donga e Pixinguinha, o grupo do “Caxangá”. Na década de 1920, apareciam novos
conjuntos, como “Turunas Pernambucanos” (do qual seriam Jararaca e Ratinho),
geralmente tocando emboladas e cocos. Em 1929, o “Bando dos Tangarás” (composto por
jovens de classe média, originalmente chamado “Flor do Tempo”) usa indumentária típica
do meio rural para tocar música popular urbana, influenciados por aquele modismo,
fazendo lembrar tanto os caboclos nordestinos como os caipiras do Sudeste e Centro-Oeste.
Cabe salientar, que os grupos vinculados à metrópole carioca, como “Caxangás” e
“Tangarás”, não limitaram seu repertório às singelas canções do campo, tocavam,
sobretudo, choros, tangos e sambas, tornando-se mediadores da circularidade e do trânsito
cultural rural, urbano e latino-americano da música popular no Brasil.
Na linha dessa moda sertaneja, de ampla vigência social, cabe referir-se a alguns
conjuntos que, em 1929, seguiam essas tendências como os “Chorões Sertanejos” e
“Turunas Paulistas”. Este último inspirava-se nitidamente nos grupos pernambucanos. No
caso dos "Chorões Sertanejos, comandados por Raul Torres (originário de Botucatu, SP),
suas composições recordam certo ecletismo e gosto pela fusão e bricolagem de diferentes
fontes e gêneros musicais, ao denominar-se, simultaneamente, como tocadores de choros e
moda sertanejas, emboladas, cocos, desafios e toadas. Em 1920 Garoto integrou o
conjunto.xx
Nesse panorama de fermentação cultural e musical nativista e de reelaboração do
vasto material do folclore, a visão dos intelectuais era perpassada por perspectivas
diferenciadas como relação ao projeto nacional. Em São Paulo, Oswald de Andrade
propunha uma postura mais instintiva, mais intuitiva, em relação à brasilidade, que deveria
distanciar-se radicalmente do “ranço” culto e intelectual. Por outro lado, Mário de Andrade
postulava que a cultura nacional fosse resguardada, pesquisada e sistematizada, e destas
perspectivas, a brasilidade deveria ser filtrada e construída pelo saber erudito dos
intelectuais.xxi
As reminiscências de Paulo Duarte revelam como estas perspectivas nacionalistas de
transposição erudita, sistemática e “científica” do folclore (a arte nacional presente na
inconsciência do povo) estavam solidificadas no Departamento de Cultura. Mário de
Andrade, lutando por uma elevação estético-pedagógica e cívica do país, que resultasse da
incorporação e reelaboração da rusticidade do folclore, propõe-se realizar no Departamento
de Cultura de São Paulo, um estudo do folclore como especialidade científica. Esse órgão
da Cultura Municipal, criado em 1935, por Fábio Prado e dirigido até 1938, por M. de
Andrade, incorporou a orientação pedagógica de seu diretor de converter o folclore em
ciência positiva, assim como sua postura em relação à percepção da missão civilizadora do
nacionalismo culto, atribuindo ao meio urbano, contornos institucionais e oficiais a estes
projetos. Recebendo “injeções maciças de folclore” xxii, a música nacionalista aproximaria
os intelectuais e o povo, separado por um abismo cultural e de classe, assim contribuindo
para forjar a idealizada identidade nacional. Estas questões revelam as fissuras e tensões
dos projetos nacionais, que lutavam pela reconstituição da cultura nacional rural,
incorporação das temáticas modernistas contemporâneas, modernização e o papel central
do Estado nas mudanças políticas e culturais.xxiii
Cornélio Pires: programas radiofônicos e a cultura caipira na cidade.
Diferenciando-se dos padrões esperados pela intelectualidade modernista e
tradicional, as referências rurais se preservaram de modo bastante variado, sobretudo ao
transformar-se, confundindo-se e misturando-se com as novidades urbanas, para produzir
algo diferenciado e inovador, distante, portanto, dos modelos indicados tanto pela alta
intelectualidade como por certa boêmia artística. Em São Paulo, fugindo dos padrões de
simples preservação das fontes rurais genuinamente nacionais da cultura, as tensões,
ambigüidade e convergências entre as culturas populares urbanas e rurais estabeleceram
uma nova combinação social e cultural, que seria bastante aceita pelas camadas populares
dos grandes centros e que o mercado fonográfico e radiofônico em crescimento soube
muito bem explorar.
Aproximadamente entre as décadas de 1910 e 1920, em São Paulo, já ocorria certa
difusão da cultura sertaneja originária da capital do país. Mas certamente as referências ao
tom nativista e nacionalista que iniciava a se generalizar no cenário cultural brasileiro e as
fortes raízes da cultura regional paulista tiveram um peso relevante nas produções musicais
locais, como também nas canções que se irradiavam através do Rio de Janeiro.
Desta forma é necessário sublinhar que o modelo sertanejo entre os paulistanos
essencialmente baseava-se nas fontes e tradições rurais caipiras locais e menos nas
nordestinas, como ocorria na capital de República. Nos anos 1910, Marcelo Tupinambá já
era relativamente popular em São Paulo no círculo de um público intelectualizado, em
decorrência de suas melodias caboclas e atividades no teatro, como “Cenas da Roça” e
“Flor do Sertão”, entre outras. Marcelo Tupinambá, pseudônimo de Fernando Lobo,
estudante da Escola Politécnica, era um compositor culto, de canções de cunho sertanejo.
Na função de diretor musical e das rádios Paulistas, cultivou a música erudita. Musicou
composições de autores expressivos, como Olegário Mariano, M, Del Picchia, M. de
Andrade, G. de Almeida e Oduvaldo Vianna, entre outros.xxiv
Foi Cornélio Pires quem de fato começou a difundir e popularizou as cenas rurais de
manifestações culturais caipiras por São Paulo. Já em 1910, encenou um mutirão e um
velório caipira
xxv
, no Colégio Mackenzie, contando histórias e “causos” da vida roceira
acompanhado de violeiros da zona rural, “caipiras de verdade”, tal como no caso de
“Lendas e Paisagens da Minha Terra”, que ganhou destaque na grande imprensa,
provocando grande interesse do público urbano.
xxvi
Nos anos 1920, instaura uma prática
que lhe daria grande popularidade, partindo de viagens nos interiores do sertão paulista,
recolhe um vasto material da cultura popular de recorte “sertanejo”, para em seguida relatálas em bem humoradas conferências e saraus regionalistas, lotando os teatros com um
público ávido de ouvir os “causos”, modas e danças da “vida singela” do campo. Neste
contexto, convém destacar que Cornélio será um dos pioneiros na gravação desses discos,
com suas crônicas humorísticas e anedotas caipiras, como “Musa Caipira”, de 1910, que
não exigiam grande reelaboração para radiofoniaxxvii.
A popularização e o sucesso surgiram inesperadamente para Cornélio Pires nesta
época passa a publicar em jornais importantes, como “O Estado de São Paulo” e periódicos
de vanguarda, como “O Pirralho”, publicou diversos livros de verso e prosa e multiplicou
suas palestras remuneradas pela capital paulista, cruzando “causos” com anedotas sempre
narradas em “dialeto” caipira. O público que freqüentava seus “saraus regionalistas e
humorísticos era diversificado, atraindo a classe média e a burguesia ilustrada. Conforme
anunciava “O Pirralho”, esses saraus lítero-musicais, verdadeiras festas de “arte nacional”
onde se tem o ensejo de saborear “coisas tão originais e tão nossas”, contava entre o
público, além do “Pirralho” em peso com a “jeunesses dorée” do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo. Esse periódico patrocinaria uma série de conferências sobre os
caipiras, “pelos nossos cinemas chics”, dedicando uma parte de suas palestras às moças da
elite paulistana, tratando de “scenas de namoro, correspondências amorosas e de tudo que
se refere aos amores caipiras.xxviii Suas palestras com temáticas de raízes caipiras paulistas e
humorísticas repercutiam em todo o Estado e alcançavam popularidade também no Rio de
Janeiro, para onde se mudou em 1917, ali se fixando até 1919. No Rio, Cornélio Pires
também teve uma trajetória artística de sucesso de público e também financeira, lançando
uma série de discos que continham referências às anedotas cariocas e “causos” sobre as
relações tensas e jocosas entre cariocas e portugueses.
xxix
Além do mais, freqüentou com
assiduidade o denso círculo boêmio carioca, mantendo relações intelectuais estreitas com
Coelho Neto e Bastos Tigre. Convém lembrar que neste contexto na capital da República
vivia-se aquela voga sertaneja entre os intelectuais nacionalistas, advindo daí a grande
acolhida dada a Cornélio Pires e o seu sucesso comercial.
Monteiro Lobato ressalta com sarcasmo o cunho “rendoso” do caipira de Cornélio
Pires, respondendo às críticas desse autor, no artigo, “Certos Escriptores”, em que Pires
referia-se a “Urupês” como sendo uma obra que criou o Jeca Tatu “erradamente", pois seria
uma representação do “caipira caboclo”; Pires acusava Lobato de atribuir ao Jeca Tatu as
características do caipira em geral. Em correspondência particular a Godofredo Rangel,
escrita em 1915, e não publicada na época, Monteiro Lobato rebate os comentários e
questionamentos de Cornélio, apontando algumas de suas referências ao mestiço caipira
que eram inexatas proporcionalmente e criticamente destacava com ironia como o caboclo
de Cornélio era uma estilização romântica, crivada de humor e extremamente lucrativa. Eis
algumas considerações de Lobato:
(…) A historia do caboclismo ... Aquilo foi fabricação histórica para bulir com o
Cornélio Pires, que anda convencido de ter descoberto o caboclo (…) O caboclo de
Cornélio é uma bonita estilização – sentimental, poética, ultra-romântica, fulgurante de
piadas – e rendosa. O Cornélio vive, e passa bem, ganha dinheiro gordo, com as exibições
que faz do “seu caboclo”Da caboclo em conferência a 5 mil réis a cadeira e o público mija
de tanto rir. E anda ele agora por aqui, Santos, a dar caboclo no Miramar e no Guarani.
Ora, o meu Urupês veio estragar o caboclo do Cornélio – estragar o caboclismo.xxx.
Diante do crescente êxito da “cultura caipira”, desde os anos 1930, já se encontrava
na programação radiofônica paulista alguns números “caipiras”, ou apresentações de
artistas cantando modas de viola, cateretês, batuques, etc. Cabe ressaltar que música
sertaneja só se popularizou entre o final dos anos 1920 e a década de 1930, sobretudo, por
ter ingressado no circuito das gravadoras e do rádio, apesar da presença marcante de
Marcelo Tupinambá no cenário musical e teatral paulistano, voltado para um público mais
elitizado e as costumeiras apresentações de cultura caipira de Cornélio Pires. Nesse
contexto, esse escritor incorporou na sua “troupe” inúmeros músicos amadores, populares
em suas regiões de origem. Alguns se profissionalizariam, alcançando bastante sucesso no
rádio e nos discos, além de atuarem no teatro. Vários artistas, famosos e populares, do
Teatro de Revista, passaram a atuar nos programas de rádio, revelando claramente, a
confluência entre teatro, cinema e rádio.
Entre eles podemos citar: Sebastião Arruda, Genésio Arruda, Jararaca e Ratinho,
bem como, Ari Barroso e Lamartine Babo, entre outros. Pode-se notar na discografia de
Cornélio Pires a atuação de vários desses artistas, como por exemplo, a dupla caipira
Mariano e Caçula, que gravou as modas de viola, tais como “Jorginho do Sertão” e “Moda
de Pião”xxxi e Sebastião Arruda, que gravou peças humorísticas e anedotas, tais como, “Um
Baile na Roça”e “Vida Apertada”xxxii Em 1929, criou a “Turma Caipira Cornélio Pires”,
composta por intérpretes e duplas caipiras (Mariano e Caçula, Mandi e Sorocabinha,
Arlindo Santana, Zico Dias, entre outros) com o objetivo de realizar apresentações musicais
no interior e na capital. Segundo os depoimentos de Mandi, a primeira apresentação dos
caipiras de Cornélio Pires foi no Teatro Municipal
em salões, teatros e cinemas elegantes.
xxxiii
, além de sucessivas apresentações
Com a crescente difusão da “cultura caipira”, mais do que uma aproximação entre o
rural e o urbano, assiste-se a uma interposição entre o rural oriundo do interior paulista e as
práticas culturais populares da metrópole paulista. Sob o prisma de um nacionalismo
impregnado de regionalismo, estas manifestações culturais contribuíram para firmar a
posição de São Paulo, com seu modo de vida, suas tradições, seu dialeto e sua música como
fonte de brasilidade, distanciando-se das influências européias e do “cosmopolitismo
dissolvente” representado pelo Rio. Nesse panorama cultural, a redescoberta das raízes
rurais atuava como elemento “purificador do artificialismo decorrente da urbanização”.
Ficavam claras inclusive as dimensões e os embates político-ideológicos dessas
produções culturais. São Paulo reafirmava sua liderança econômica, mas também suas
conquistas culturais e artísticas, irradiando-as sobre todo país, inclusive sobre o mundo
rural representado pelo nordeste, identificado como “passadista”. Em artigo publicado
alguns anos antes, em 1917, Alceu Amoroso Lima, na Revista do Brasil, assumiu tal
perspectiva em nome da “paulistaneidade”, situando-a como direito histórico ligado aos
ciclos econômicos. Assim, igualava os feitos econômicos de São Paulo aos intelectuais,
observando, que São Paulo possuindo uma “aristocracia da terra” preparava-se para “a
realeza na República” e que:
O século XVI pertenceu a Pernambuco, o XVII à Bahia, o XVIII à Minas Gerais, o
XIX ao Rio de Janeiro, o século XX é o século de São Paulo.xxxiv
Neste clima cultural, de exaltação nacionalista, com base no vigor do regionalismo
paulista, partilhado por muitos intelectuais, no mesmo ano de 1929, Cornélio Pires tomou
uma atitude inusitada no panorama fonográfico brasileiro. Como as empresas resistiam à
gravação da música caipira – por questões comerciais – financiou ele próprio a prensagem
de cinco discos, denominada “Série humorística, Série folclórica e Série Regional”,
Columbia, contendo, modas de viola, desafios, emboladas, valsas, batuques, cururus,
declamações de poemas, anedotas, peças humorísticas e narrativas folclóricas, cujos temas
versavam sobre raízes paulistas e caipiras, também, referiam-se a temáticas do cotidiano da
experiência urbanizadora, tais como “Agitação política em São Paulo”, “Cavando Votos”,
“O Zeppelin”, “O Jogo do Bicho” e “Quando as ‘Misses’ Desfilam” xxxv
Com tiragem por volta de 5 mil cada, totalizaram 25 mil unidades, uma cifra
considerável para o mercado fonográfico da época. A série de discos “independentes”
produzida pela “Turma Caipira Cornélio Pires” foi comercializada “de mão em mão,
exclusivamente nas apresentações no interior e na capital e na casa comercial que abriu na
rua 15 de Novembro, em São Paulo, para vender discos e aparelhos eletrônicos. Das duplas
trazidas por Cornélio Pires a São Paulo para apresentações e gravações a que produziu
melhor resultado, obtendo grande sucesso, com crescente produção de discos, foi a Mandi
(Manoel Rodrigues Lourenço) e Sorocabinha (Olegário Jose Godoy)
xxxvi
. Em seus
depoimentos, Sorocabinha que “ponteava viola” com apresentações constantes nas festas
populares e bailes caseiros, foi convidado para fazer “figuração” nos saraus caipiras para
demonstrar o “autêntico folclore paulista”, porque a capital estava “invadida pela música
Argentina”.xxxvii
No bojo de suas composições caipiras, Sorocabinha compôs uma moda narrando e
criticando a abusiva incidência de impostos sobre os gêneros alimentícios, bens de
subsistência produzidos pela economia doméstica dos sitiantes, do artesanato familiar e até
dos pequenos produtos coletados pelos caboclos da flora e fauna naturais. Em sua canção
ele se refere que o extorsivo “Imposto do Selo”, que já provocara tantos motins e revoltas
populares na sociedade brasileira, também incidia violentamente sobre os pequenos
produtos de consumo industrializados, as pequenas ocupações autônomas, apesar da estreita
lucratividade de certas profissões, como as de violeiros e seresteiros, como também sobre a
nova indústria cultural de bens eletrônicos, como a discografia e os programas radiofônicos.
Através da letra dessa moda caipira é possível mapear a cultura material, a indumentária, as
práticas alimentares e os hábitos de consumo, das camadas populares, quer as rurais, quer
dos entornos ruralizados das cidades, bem como, a crítica social desses pequenos
segmentos à política de arrecadação fiscal abusiva e arbitrária dos poderes públicos. Assim
cantava o trovador do cotidiano popular “Sorocabinha”, em uma moda gravada “No
Mercado dos Caipiras” (anedotas), numa das séries da discografia produzida por Cornélio
Pires:
“Paga imposto pra caça/também pra vendê melado/paga imposto... vendê palmito no
mercado/cargueiro e carro de boi/tudo tem de sê selado... balaio, peneira.../quem vende
queijo sem selo/ corre risco de ser multado/ farinha de milho e polvilho.../ até as minhoca
do sítio/ tem de ser arregistrado/ gente vê selo do governo/ em toda parte grudado/ nas
meias, nos guarda-chuva/ no chapéu/... esta viola que está tocando tem um selo
inutilizado/...este disco que está tocando não escapo do marvado/ arreio e pito de barro/
algodão, brim e riscado/ garrucha, coberto e sanfona/ tem o papel esverdeado/ já vi um
caixão de defunto/ com selo depindurado.../ qualquer dia sela as criança/ na hora do
batizado xxxviii
No decorrer dos anos, o Tesouro Nacional buscou reduzir a sua dependência dos
direitos de importação e esse fato, como testemunha a “Moda do Selo”, levou o Governo
Federal a entrar em conflito com São Paulo. Em 1918, o governador Altino Arantes
queixou-se de que o novo imposto de consumo federal incidia nefastamente sobe a
indústria e comércio paulista. Nos anos 1920 e 1930 o governo federal arrecadou 1/3 à
metade da renda anual total do imposto de consumo em São Paulo. Com efeito, um imposto
de renda federal seguiu o imposto de consumo em 1918, e São Paulo contribuiu com cerca
de 30% do total das receitas do imposto de renda federal até 1940.xxxix Tudo faz crer que
São Paulo fosse o principal contribuinte, não obstante o governo federal fornecer a São
Paulo muito mais do que ali arrecadou em impostos, subscrevendo a valorização cambial,
mantendo as políticas cambiais favoráveis ao complexo cafeeiro até 1931, e assegurando o
favoritismo de São Paulo nos empréstimos do Banco do Brasil. Destaque-se que o maior
item da dívida do governo paulista ao Banco do Brasil foi um empréstimo de 200000 cotos
para resgate das dívidas do Estado durante a Revolução Constitucionalista de 1932 contra
Vargas. xl
A voracidade arrecadadora e centralizadora do Governo Federal, assim como suas
tensões como os regionalismos, não deixou de ser notada pelas diversas classes sociais,
traduzindo em temáticas para a produção cultural da época, expressando jocosamente em
contos, “causos”, peças de teatro populares, “desafios” e modas de viola. Como foi visto,
algumas dessas canções foram gravadas por Cornélio Pires, notando-se que as tensões
sociais e resistências da época atravessavam a reelaboração das tradições, atualizando
antigas memórias, cujos motes datavam de tempos coloniais e imperiais, possibilitando a
crítica social no presente, como nos das modas viola que faziam a crítica da arbitrariedade
das leis e das instituições republicanas desorganizando a improvisação da sobrevivência
cotidiana da população pobre:
“Essa lei que vem agora/ é ruim pros pai de famia;/ vivem c’ao cabeça quente/ sem
poder ter alegria/... Pra se escapa dessa lei/ O casá num tem valia/ Inté que eu vi na listra/ É
um home pai de famía.”xli
Essas gravações, que abriram caminho para outros lançamentos, formavam um
conjunto bastante heterogêneo, e dela faziam parte, tanto recitativos, “cousas” caipiras,
anedotas e histórias de conteúdo políticoxlii, como modas de viola, músicas tradicionais do
interior paulista e do nordeste, valsas, canções sambas e suas variações, marchas, e até
peças tradicionais recolhidas, como as toadas de mutirão e outras. A novidade maior que a
série trazia era a gravação de moda de viola e outras peças do cancioneiro rural paulista xliii.
No caso de São Paulo, com a presença multiétnica de negros, mestiços, brancos e índios nas
“bandeiras” dos “desbravadores paulistas”, a repercussão da mitologia européia e indígena,
amalgamada pelas crenças africanas, tão bem reelaborada por Cornélio Pires em sua vasta
produção discográfica, teve irradiação muito ampla, como muito bem ilustram seus discos:
“Astúcias de Negro Velho – Rebatidas Caipiras” (humorismo)xliv “Simplicidade de Caipiras
– Numa Escola Sertaneja” (humorismo)xlv, “Jorginho do Sertão” (moda de viola) (Mariano
e Caçula)xlvi
Nas fronteiras pioneiras de entrada para o sertão os mitos são extremamente
recorrentes, sem grandes distinções de fronteiras regionais, “batendo mato e subindo”, essa
população migrante recorria ritos mágicos de sobrevivência, utilizando-se de mandingas,
patuás, sururucas e cuités, buscando obter proteção de seres sobrenaturais, que poderiam
potencializar as suas energias de sobrevivência no duro cotidiano de suas atividades,
valendo-se disso para um largo aproveitamento da fauna e da flora circundantes para
fabricação de mezinhas, graças às experiências de um contínuo peregrinar por amplos
territórios xlvii
“Fui no mato catá lenha/ Santo Antonio me chamo/ Quando o Santo chama gente,/
Qui fará os pecadô!”xlviii
O senso prático dos colonizadores, o apego à experiência e ao imediato, possibilitou a
incorporação de práticas costumeiras de sobrevivência e da cultura material dos índios e
negros, explicaria a sua capacidade de sobreviver nos sertões, em meio às ameaças de um
meio hostil, onde se nota que a caça e a coleta assumem conotações de expedientes férteis e
divinatórios
xlix
. O processo intenso de interação e convívio entre eles possibilitou aos
sertanistas paulistas saturar-se de sua cultura material, mesclando-a com costumes de raízes
ibéricas, transformados em processos de mudança cultural no novo mundo. O folclore
paulistano, fruto do impacto de culturas, com algumas variantes, apresenta elementos
comuns a São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Mato
Grosso e Goiás.
Tanto mais isso é verdadeiro que a toada “Prenda Minha” com registros iniciais no
Rio Grande do Sul do século XIX, foi reproduzida por Mário de Andrade, em São Paulo,
sendo acolhida por gaúchos residentes no Rio de Janeiro. Apesar das toadas refletirem as
peculiaridades musicais de cada região, as toadas do Centro-Sul, com raras exceções têm
textos curtos, de matizes amorosos, líricos e cômicos, procurando fugir da forma
romanceada, ficando no quadro geral das modas ou modinhas matutas, que andam
anônimas pelo interior do país, propiciando constantes reelaborações:
“Vou me embora, vou me embora/ Prenda Minha,/Tenho muito que fazer/ Tenho de
ir para o rodeio/... Quando foi de madrugada/ Prenda Minha/ Foi se embora e me deixou/
Troncos secos deram frutos/ Prenda Minha...”l
Na rota da busca de espaço das realidades movediças dos sertanistas paulistas e das
roças volantes do seu processo de infixidez no meio natural, de onde recolhia os recursos
vitaisli, muitas vezes, como durante os períodos colonial, imperial e, mesmo republicano,
fugindo do recrutamento compulsório, cuja violência ficara marcada na memória das
camadas populares, alimentando com esse tema a reelaboração de suas tradições, como no
caso das referências à prestação do serviço militar. No livro “Sambas e Cateretês”, há
referências de modas em que o caipira procura escapar ao serviço militar obrigatório,
utilizando subterfúgios improvisados, inclusive, aproveitando-se do próprio estigma de
ignorância, do descuido com normas higiênicas, do matuto brutalizado, fingindo, inclusive,
demência:
“Os rico é que inventa as coisa/...depois é o pobre quem paga/ estes são sem
garantia/...Vô fazê u’a carta farsa/ pra mandá pro presidente;/ queu não sirvo pra sordado/
que tenho farta de dente/ num corto mais meu cabelo,/ nem corto mais minha
unha:/pensarão que tô demente...”lii
Essa relação movediça das populações foi captada e expressa nos registros
discográficos de Cornélio Pires, expressando-se em modas e toadas tradicionais, com
estórias que narravam as relações das atividades cotidianas dos sertanejos com seu meio
ambiente, refletindo-se, inclusive, nos títulos dos discos: “A fala de nosso bichos”
(imitação de animais) – “Danças Regionais Paulistas, Cana Verde e cururu” (canto típico).,
“Toada de Cateretê – Toada de Samba – Toada de Mutirão”, (folclore), “Moda do Rio
Tiête” (moda de viola), “Boiada Cuiabana” (moda de viola), “Recrutamento” (samba) e
“Incruziada” (canção) “No Mercado dos Caipiras” (humorismo), “Astúcias de Negro Velho
– Rebatidas de Caipiras (humorismo) liii.
Neste contexto, Cornélio Pires recolheu, entre outros, inúmeros “causos”
“fantásticos”, com elementos fabulosos que apontam os percalços tangíveis, que ponteavam
esse contato tenso e ambíguo entre o homem e a natureza, além da visão de paisagens
idílicas. Aspectos da mentalidade mágica característica da época, como “o montão de
assombros” que assinalavam as vicissitudes deste convívio, o impacto provocado pela
paisagem inóspita sobre o imaginário e a reelaboração de antigas superstições populares
européias. Nos caminhos da hierarquia de saberes que permeavam a configuração do
universo das práticas mágico-religiosas presentes em São Paulo havia aquelas práticas e
crenças que chegavam na bagagem dos imigrantes europeus. Essas práticas e crenças eram
similares às das religiosidades já existentes numa São Paulo que mantinha aspectos
socioculturais acaipirados, entre as múltiplas e ritmos sociais que perpassavam o seu
tumultuário processo de urbanização. Essas práticas e crenças trazidas pelos imigrantes
aproximavam-se das sínteses elaboradas entre o catolicismo ibérico e as tradições africanas
e indígenas, cujos complexos de símbolos e representações participavam do tenso processo
de hibridismo cultural das tradições da sociedade brasileira, datando do período colonial.
Era o caso dos relatos de “casas assombradas” e manifestações de “almas penadas”,
comentados no cotidiano dos paulistanos.liv
Numa passagem da obra “Quem conta um conto” elenca as inúmeras assombrações
que permeavam o tecido mental dos caipiras paulistas, mineiros, etc. Nessa geografia
mitológica sobrevive uma fauna fantástica de entidades assombradas:
“Eu juro! Quando fui buscá remédio na vila, tive que vortá.../ Eu vi u’a porca deste
tamanho, sortando fogo pr’os óio e pr’o nariz.../ - Nas noite de vento, do arto da
Samambaiá, a gente ove uns grito à meia noite... É o Caipira./ -Deus te livre!/ O majó Lucio
tamêm jura que viu lubizome pr’aquelas banda.../ - Na sexta-feira-maió, um tropêro vortô.
Diz que ... saci dançando cu’a perna só in roda de uma veia dos óio vermeio e de nari
arcado. Diz que é a Veia-de-máqualidade.../...Um cavalo-sem-cabeça ponoteando c’o
Demônio in riba no meio dos bitatá e sortando fogo p’ras venta.../ Defunto Nhô Tomé que
era home de sangue-de-peixe, pôco ante de morrê, conto que u’a feita viu o Cuiza-ruim,
tocano viola, num catira, dançando infrente à cruis, por u’a Mãe d’Àgua, a Mãe de Oro... o
Lobo-do- Mato, a Arma-do-Padre-Aranha...lv
Essas gravações serão com muita freqüência transmitidas pelas emissoras paulistas
nos seus programas de cultura sertaneja, como na Rádio Educadora e Rádio Cruzeiro do
Sul.
Ao lado dos músicos amadores da “Turma Caipira de Cornélio Pires”, apresentavam-se
artistas mais consagrados como Paraguassú, com o pseudônimo de Maracujá, Raul Torres,
como Bico Doce, além da participação de números humorísticos e recitativos de Sebastião
Arruda, ator de cinema e teatro. Freqüentemente, além das gravadoras e do rádio, os
músicos “caipiras” tiveram uma atuação expressiva no cinema. Foram lançados no decurso
da década de 1930 inúmeros filmes com intensa popularidade e atração comercial. Como o
famoso “Acabaram-se os Otários”, com Genésio Arruda e participação de Paraguassú, em
1929, tendo temáticas do cotidiano roceiro, os costumes, crenças e canções dos habitantes
da roça como foco central; tradição essa retomada de certa forma por Mazzaropi. O sucesso
e prestígio desses temas e “cousas” do sítio e os impasses e conflitos entre a rotina tranqüila
do “caipira e o ritmo acelerado da vida na metrópole, inspirou grande parte da produção
cinematográfica de Mazzaropi.
Cornélio Pires não tinha como objetivo realizar sínteses intelectualistas ou eruditas;
gravou tanto modas de viola, com cantores do interior, como emboladas e composições de
autores conhecidos com cantores já com sucesso no rádio, teatro e no cinema paulista. Sua
preocupação central era vender discos, e não só preservar esta música, tarefa na qual foi
muito bem sucedido. Numa de suas crônicas publicadas no Diário Nacional, Mário de
Andrade, criticou uma das gravações da “Série Regional”; “Escoiendo Noiva”lvi (gravação
no 2001B, com a Caipirada Barretense). Neste artigo, procurou delimitar as fronteiras em
que se poderia produzir uma “documentação rigidamente etnográfica” ou uma gravação
mais cuidadosa da música popular de caráter folclórico. Com relação à esta última,
propunha que “a intromissão da voz tem de ser dosada para evitar o excesso de repetição
estrófica. Os acompanhamentos tem de variar mais na sua polifonia, já que não é possível
na sua harmonização, o que os tornaria pedantes e extra-populares. E variar também na
instrumentação.”lvii
Já com relação às cantigas e danças com viola de Zico Dias, Mário de Andrade tecia
elogios, referindo-se “ao delicioso cantar do piracicabano Zico Dias”, acentuando que nesta
gravação “a Victor conseguiu algum equilíbrio e discos bons” lviii.
O êxito da série caipira de Cornélio pela Columbia, bem como, de algumas duplas,
estimulou o interesse das gravadoras concorrentes. A RCA Victor, logo em seguida, passou
a investir nesta música regional paulista, formando a “Turma Caipira Victor”, convidando
Mandi para organizá-la a despeito do ciúme de Cornélio.
Não há menor dúvida que a iniciativa de Cornélio Pires abriu um fértil mercado pra
gravações regionais. Em junho de 1930, a Parlaphon anunciava, com destaque, no jornal “O
Estado de São Paulo”, entre outras gravações, duas de Mandi e Sorocabinha: “A Crise e a
Caninha Verde” (moda de viola). No mês seguinte a Victor publicava uma relação dos seus
primeiros discos brasileiros gravados em São Paulo. A Columbia anunciava o lança,mento
de “Scena de Feira Nortista” ( humorístico), “Que Moça Bonita”, com letra de Cornélio
Pires, “O Jeca Tatu” e “Afinado” e “Notícias da Roça”, com a dupla Jararaca e Ratinho.lix
Convém destacar que além das gravadoras e do rádio, os cantores de música “caipira”
ocuparam espaço no cinema. Filmes de grande apelo popular e comercial, como o famoso
“Acabaram-se os Otários", com Genésio Arruda e participação da Paraguassú, de 1929,
foram lançados ao longo da década de 1930, tendo caipiras ou a temática sertaneja como
eixo central, cuja tradição continuada por Mazzaropi, num outro momento de migração e
expansão urbana, em tempos mais recentes. Na esteira desses filmes, Cornélio Pires, em
1934 filmou “Vamos Passear”, uma espécie de documentário da cultura rural paulista,
gravado sem cenário, nos arrabaldes, vizinhanças, entornos do Jabaquara, com o objetivo
de coletar sambas genuinamente rurais, o cancioneiro rústico danças e “causos da roça”,
que seriam registrados como sendo as autênticas raízes da arte brasileira. No filme participa
parte da “Turuna Caipira” e “Sorocabinha”, interpretando danças, procurando divulgar,
num movimento próprio das modas de viola, ligadas às características de comunicação
folclórica, as circunstâncias poéticas, cuja circulação nota-se nas tradições orais ou mesmo
em manuscritos e impressos, reelaborando o patrimônio cultural das regiões de São Paulo,
Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Historicamente
essas regiões foram marcadas pelas frentes pioneiras da mineração, da agricultura agroexportadora e da economia de abastecimento interno, envolvendo, inclusive, a circularidade
cultural no trânsito das tropas de muares.
Para alguns escritores, como Amadeu Amaral, Afonso Arinos de Mello Franco,
Mário de Andrade e Cornélio Pires, entre outros, nesse cenário de “cosmopolitismo
dissolvente”, as tradições populares tinham o excepcional poder de enraizar o indivíduo,
identificando-o com seu “torrão nativo”, sendo que nada poderia pulverizar o poder
nacionalizador e vital das tradições, dada a plasticidade notável da cultura cabocla de se
adaptar às condições e circunstâncias mais diversas, pois essas tradições, através da
transmissão oral e anônima, teriam a virtude de “preservar” raízes luso-castelhanas,
indígena e africana, que viria a ser largamente divulgada, quer pela literatura folhetinesca,
jornais e cinema, quer pela discografia e programações radiofônicas.
As várias ilustrações da imprensa, como a charges e caricaturas, bem com as imagens
filmicas produzidas no período, procuram apresentar os contrates de paisagens pastoris
bucólicas e da vida pacata das pequenas cidades interioranas com o caos avassalador da
vida urbana paulistana. Inspiravam-se, de um lado, em obras românticas, como a “O
curandeiro”, “A Capirinha”, “A Casa do Caboclo” e “Cousas Nossas”, para recriar uma
visão sentimental e mítica de formas de convívio social mais estável e, de outro, nos
horrores das notícias sensacionalistas e de folhetins, que forneciam, com suas narrativas
trágicas e bombásticas, vasto material para uma produção fílmica.
Essas notícias envolviam as grandes e pequenas tragédias e vicissitudes da
experiência urbana, gerando melodramas, de bandidos sanguinolentos, mas românticos, de
inocentes mocinhas desencaminhadas por ricos rapazes, de milionários decaídos na pobreza
pelos vícios, que se regeneram posteriormente, maridos que desgraçam suas famílias pelos
brilhos dos cabarés, de assassinatos misteriosos e de cadáveres esquartejados, como no caso
dos filmes “O crime da mala”, “O crime de Cravinhos”, “Dioguinho”, “Acabaram-se os
Otários...”, “Vício e Belleza”, “Enquanto São Paulo dorme...”, em que se destacavam as
transposições para um ambiente brasileiro de narrativas do cinema estrangeiro, mas que,
todavia, ganhavam coloração local, inclusive em sua relação com a imprensa escrita.lx
Exprimindo o movimento cultural de “redescoberta” do Brasil popular, “folclórico”,
em 1917, surgia, assim, “O Curandeiro”, direção de Antônio Campos, uma comédia
baseada num conto de Cornélio Pires, “Quem Conta um Conto...”, que em torno de um
enredo cujas tramas envolviam as práticas “primitivas” de um curandeiro da roça, eram
retratados, a partir de uma visão exótica, usos e costumes da cultura caipira, preservados na
tradição popular urbana ou rural. É interessante destacar que as cenas da vida rural desse
filme foram captadas no entorno da cidade de São Paulo, nos bosques do Jabaquara e de
Pirituba, que permitia a reprodução de paisagens “naturais”, afeitas ao estilo de vida pacata
no campo e rotineira das pequenas cidades interioranas, bem como, dos arredores da cidade
de São Paulo.
Convém lembrar que, nas primeiras décadas do século XX, Cornélio Pires instaurou
uma prática de relatar em bem-humoradas conferências e saraus regionalistas, com grande
audiência, “causos”, lendas, danças, músicas e costumes autênticos das roças, preservados
na tradição popular rural paulista, muitas vezes, encenadas por “caipiras de verdade”,
apresentando danças e cantorias, profanas e religiosas, como o cururu, uma das mais
antigas danças rurais, já existente no tempo dos jesuítas, que a empregavam na prática da
catequese dos indígenas, em que os participantes se movem em uma coreografia variada
entoando desafios, seguindo uma seqüência ritual em direção ao altar, onde se localizam as
imagens dos santos, mas que ao se urbanizar configurou-se um desafio entre repentistas,
que tiram os versos de improviso dependo da natureza do tema.
Essas apresentações de cunho integralmente nacional, com raras influências européias
do teatro urbano, destacavam-se pelo realce da pronúncia “genuinamente” paulista, em vez
das línguas européias do português lusitano, que, inclusive, os atores profissionais e
amadores brasileiros assumiam nos palcos. O sucesso desse “saraus regionalistas” foi tão
grande, que após sucessivas apresentações esse tipo de evento acabou sendo uma prática
habitual em comemorações mundanas, festas filantrópicas ou quermesses, geralmente, com
a exibição dos dançadores, violeiros e cantadores, autênticos da roça.lxi Dessa forma, o
cinema se inspirou fartamente no sucesso desse filão, investindo maciçamente na
reelaboração visual de cenas de uma cultura popular “evanescente” de raízes rurais.
Todavia, havia outras influências que perpassavam esse tipo de produção fílmica
regionalista, seja do ponto de vista da improvisação técnica, seja do ponto de vista do
hibridismo de seu conteúdo. Em “A Caipirinha”, filme do gênero “falante-cantante”,
produzido em 1919 e exibido 1922, com atores e atrizes que “dublavam”, falando e
cantando, nos bastidores ao lado do projetor, por de trás de um tecido transparente, cenas
representadas em filme mudo - cuja inventividade expressou uma particularidade do
cinema brasileiro - retratava-se quadros de cantos e danças sertanejas, expressando, assim,
a simplicidade mítica dos ambientes rurais do interior e da cultura rústica do Estado de São
Paulolxii Esse filme, baseado numa comédia de Cesário da Mota, é considerado, por alguns
autores, como a primeira película verdadeiramente regional.
Em sua exibição, no Cinema Congresso, em São Paulo, os atores e atrizes foram
acompanhados nas músicas pela orquestra da Rádio Cruzeiro do Sul. Note-se que nessa
exibição a simplicidade das cenas da vida roceira apresentadas contrastava com o luxo do
acompanhamento musical sofisticado. Além disso, deve-se salientar que, paradoxalmente,
esse filme foi editado em estilo norte-americano e determinados personagens masculinos
adotavam vestimentas aparentadas ao estilo do exótico “cowboy” que se configurava no
cinema hollywoodiano. Na construção das tradições nativistas paulistas almagamava-se
matrizes culturais rurais tradicionais e elementos modernos internacionais, sinalizando o
hibridismo cultural polissêmico do cinema brasileirolxiii.
No cenário da produção fílmica paulista, além da apresentação dos usos e costumes
roceiros, suas canções, danças e música, nota-se o imbricamento da produção da literatura
regional com a nascente narrativa fílmica, bem como de outras linguagens. É interessante
assinalar os deslizamentos e reagregações dos conteúdos míticos difusos pelo imaginário
social, que perpassa esse imbricamento. Em “A Casa do Caboclo”, na segunda versão, do
ano de 1931, drama baseado na canção homônima de Hekel Tavares e Luiz Peixoto, de
grande audiência popular, pode-se observar o entrelaçamento das produções de diversas
linguagens de difusão cultural, tal como rádio e a discografia. Assim, idealizando-se,
romanticamente, a vida singela do campo são encenadas algumas canções roceiras de
grande sucesso, bem como, apresentadas as danças de cateretê, umbigadas e congadas,
executadas por autênticos dançadores e músicos da roça, com seus instrumentos
característicos, violão, cavaquinho, flauta, atabaques, tambores, chocalhos, reco-reco,
“genuínas” expressões culturais das raízes da brasilidade. Como por exemplo, o “Cateretê
de Piracicaba”, em que temas da sociabilidade cotidiana das camadas populares afloram
como mote das cantorias, como no caso do consumo de aguardente:
Vô largá da pinga/ Vô largá por nada/ Eu não bebo mai/ Essa pinga marvada/ Ela é
agradave/ mais muito marvada/ Ela é agradave/ mas muito marvadalxiv
Ainda na perspectiva do nacionalismo cultural dos anos 1930, que seria largamente
ampliado durante toda Era Vargas, cabe destacar o filme “Cousas Nossas”, do americano
Wallace Downey, de 1931. Trata-se de um filme que integra números musicais com
esquetes humorísticos, que foi grande sucesso de bilheteria e considerado, por alguns
autores, como o segundo longa-metragem sonoro brasileiro, ainda pelo sistema
“vitaphone”. Em sua realização foi utilizada a aparelhagem da produtora e distribuidora de
disco Colúmbia para gravação dos discos. Há que se destacar que nessa película, a narrativa
fílmica se transforma num veículo capaz de revelar a peculiaridade e a originalidade da
cena brasileira, seguindo uma tendência predominante na Europa de recuperação da cultura
popular local e regional, como expressão suprema da nacionalidade.
Nessa fita cinematográfica, o conhecido poeta Guilherme de Almeida, um mais dos
mais contundentes representantes do ufanismo da modernidade paulista, defensor de um
“cinema à americana”, que deveria mostrar ao mundo as belezas naturais de nossa terra e o
progresso de nossa pujante metrópole, considerando, índios, pretos, sertões e bairros
humildes como tabus cinematográficos, faz uma aparição, apresentando e comentando,
números musicais, em que se apresentaram artistas cancionistas do folclore brasileiro,
como Stefania de Macedo e intérpretes de “modinhas” do interior paulista como Paraguassú
lxv
, bem ao gosto de nossos intelectuais modernistas, que valorizavam ideologicamente
essas manifestações locais como símbolos vitais da “genuína” cultura brasileira e da coesão
político-ideológica da nação. As tendências desse gênero musical se firmariam no gosto do
público brasileiro ao longo dos anos dando origem, a partir de 1943, à produção das
chanchadas da Atlândida, que mesclavam música, cantores e humor brasileiros.
Das programações radiofônicas já incluíam algum tipo de “sertanejo”, variando dos
contos, “causos” a esquetes humorísticos à música sertaneja. Aparecia também a música
popular de influência nordestina, sobretudo, emboladas e sambas. Isso tudo mesclado com
música instrumental, clássica ou popular; e a programação também se vinculava às
múltiplas colônias da cidade cosmopolita. Toda essa variedade e polifonia musical vinha a
princípio estruturada nos “quartos de hora”, contrastando essa organização com a
desestruturação e improvisação dos primórdios da radiofonia.
Gradativamente, foram se firmando enquanto programas mais definidos, gravitando
em torno dos nomes de alguns artistas que agregavam em torno de si um círculo de outros
cantores e compositores, tais como, Cornélio Pires, Raul Torres, Ariovaldo Pires, entre
outros, havendo mesmo recomposição de duplas e trios originais. Alguns programas
procurando seguir o ritmo de trabalho e lazer das camadas urbanas de trabalhadores e
setores médios, por volta de 1942, eram apresentados à noite ou pela manhã, mas a maioria
das emissoras iniciava a programação por volta das 8:00 hora, ou no início da tarde.
Contudo, nem sempre os horários eram constantes. Freqüentemente, esses
“programas sertanejos” ou “programas caipiras” eram anunciados nos grandes jornais,
sempre sob a direção de um artista ou dupla de sucesso reconhecido. Programas como de
“Nhô Totico”, o “Arraial da Curva Torta” e “Serra da Mantiqueira” faziam enorme sucesso
nas rádios paulistas e eram dirigidos a um público eminentemente urbano que se
interessavam segundo a imprensa por “coisas nossas”, portanto eram veiculados como
programas regionais folclóricoslxvi. Assim, em 1940, o jornal “O Diário de São Paulo”
anunciava um programa de rádio com cultura popular rural rústica como apresentando
“esplêndidos números de música nossa, entremeados de anedotas”, danças e “ditos
caboclos”
lxvii
, repleto de brasileirismos e expressões, hábitos que dão novo vigor e
colorido, “ao falar de nosso povo “com suas tradições e emoções genuínas”, sem os travos
do classicismo lusitano estilo e as “claudicâncias esdrúxulas da sintaxe sertaneja”, como
apontavam alguns estudiosos da “língua brasileira”lxviii
Em 1936, Sorocabinha também teve seu próprio Programa na Rádio Difusora, com
cantos e tendo seus discos sertanejos no ar até 1940. Era prática corrente que as músicas
sertanejas fossem veiculadas através da discografia por algumas questões evidentes; apesar
da expansão do setor, não havia duplas/músicos caipiras profissionalizados suficientes na
cidade para se apresentar “ao vivo” nos inúmeros programas radiofônicos; além do mais,
era mais econômico para as emissoras tocar discos do que contratar músicos. lxix
Muitas programações, apesar de carregar na identificação de “caipiras”,
diversificavam seu repertório, mesclando, com criatividade, personagens imigrantes com os
caboclos da roça e, em decorrência disso, atingindo maior audiência de entre os ouvintes
urbanos. Assim, quando a radiofonia passa a irradiar uma linguagem própria, rápida e
integrada à rotina diária, sensível de “registrar o efêmero do cotidiano”, ela estabelece
ligação com “a mistura, a incorporação anárquica de ditos e refrões” familiares a amplas
parcelas de uma população multiétnica e policlassista como a de São Paulo.lxx Essa
linguagem além de retratar a composição multiracial de São Paulo nos anos 1930, incorpora
à programação radiofônica o caldo cultural que as criações humorísticas já haviam
anteriormente produzido em estreita conexão com o teatro musicado, o teatro de revista, as
gravações fonográficas e as primeiras produções cinematográficas. A concisão, o ritmo
veloz e a fluência dos trocadilhos e jogos de palavras, a habilidade na produção de versos
adaptados à música, aos ritmos ágeis da dança e aos anúncios publicitários, que a
linguagem radiofônica incorpora da linguagem humorística, amplia o potencial do rádio de
aproximar do “amigo ouvinte” cosmopolita de São Paulo.
É verdade que um dos fatos que um dos fatos responsáveis pelo estrondoso sucesso
dos discos, programas e artistas “sertanejos” foi o vertiginoso crescimento dos surtos de
migrantes, provenientes, sobretudo, do interior do Brasil (SP, MG, além de,
substancialmente, a predominância na corrente migratória do Estados do Nordeste Norte),
em busca de trabalho na metrópole industrial. Pouco a pouco, nos anos 1930, o contingente
de migrantes, fruto do grande êxodo rural, sobretudo do nordeste, já ultrapassava
consideravelmente o número de migrantes estrangeiros. Esses “desenraizados” faziam de
vida cultural intensa uma forma de atuação dentro da comunidade: conjuntos musicais,
cordões carnavalescos, teatro amador, clubes dançantes, cantigas e festas religiosas, e
foram decisivos na formação e expansão do público do mercado de bens culturais, atrelado
aos ritmos sertanejos na capital, pois se identificavam profundamente com essa cultura e
música que falavam sobre o mundo rural. Desse modo, ficavam pouco a pouco delimitados
e hierarquizados os espaços de pobreza e de convívio cultural, de uma sociabilidade
peculiar à cidade cosmopolita, criando-se novos focos núcleos de vida cultural e
comunitária em São Paulo, vinculados aos contingentes de migrantes desenraizados.lxxi
1
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FONTES, Hermes. A modinha brasileira In: Ilustração Brasileira, Rio: 07 set. 1922.
1
ALMIRANTE, No tempo de Noel Rosa Rio: Francisco Alves, 1963. p.p. 11-100. A
popular canção “Luar do Sertão (1915), de Catulo da Paixão Cearense, ilustra bem este
tipo de música, que era expressão sertaneja da nacionalidade. Alguns títulos de música
relacionadas à temática sertaneja que faziam sucesso: “Luar do Sertão”, “Coração
Sertanejo”, “Matuto Alegre”, “Tristeza de Caboclo”, “Canção Cearense”, “Cabôca di
Caxangá”, etc. Alguns nomes de cantores então adotados: Paraguassu, Zé Portêra, João
Pernambucano, Mané do Riachão.
1
ALMEIDA, Renato de. História da Música Brasileira. 2ª ed. Rio.. F. Briguiet, 1942, p.
193. BORGES. João B.P. Cor, Profissão e Mobilidade. O negro e o Rádio de São Paulo,
São Paulo, EDUSP, 2001, p.p.193-194. Samba, “expressão musical que nasceu na batucada
dos pretos e nas chulas dos acompanhamentos de cortejos e onde a letra tem menor
interesse do que a música... onde os versos são quebrados, a linguagem chula, dominando
as expressões de gíria”. Segundo J. B. P. Borges, esta definição de Renato de Almeida, não
consegue apreender a forma musical que na atualidade é chamado de “samba”,
principalmente, depois do movimento musical da “bossa nova”.
1
ANDRADE, Mário, Música, Doce Música, São Paulo: Livraria Martins Ed. 1945, p. 23.
1
Como observa Lúcio Rangel. Sambistas e Chorões. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1962. A compositora e maestrina Chiquinha Gonzaga, depois de acurada observação da
música e dança dos negros, lançou, em 1889, a sua marcha carnavalesca “O Abre Alas”, e
depois disto este gênero musical consagrou-se como música da carnaval.
1
Os choros tocavam músicas populares comuns, a que depois deram um traço próprio.
Lúcio Rangel op. Cit. P. 56.
1
Paraguassú Noite Enluarada CD. Revivendo Músicas Comércio de Discos Ltda. s/data.
1
Almirante, op. cit. p.p. 17-22, Lúcio Rangel, op. cit. p. 17.
1
Ver. CUNHA, Fabiana Lopes da. Da marginalidade ao estrelato: o samba na construção
da nacionalidade (1917-1945). São Paulo: Annablume, 2004. p.p. 65-66.
1
Correio da Manhã, em 15/02/1917.
1
CONTIER. Arnaldo. Modernismo e Brasilidade: música, utopia e tradição. In: NEVES,
Adauto. (org.) S Tempo e História. São Paulo: Cia. das Letras, 1992.
1
SQUEFF, Enio. e WISNIK, José Miguel. O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira.
São Paulo: Brasiliense, 1982. p.p. 165-166.
1
MENDES, Gilberto. A música In: Afonso Ávila (org.) O modernismo. São Paulo:
Perspectiva, 1975 p.p.131,132.
1
Ver Mário de Andrade, Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Martins, 1962. p.p.
163-167.
1
Entre muitos outros, com alguns matizes, identifica-se tal tendência em M. de Andrade,
Heitor Villa-Lobos, Renato de Almeida, Camargo Guarnieri, por exemplo.
1
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo nos frementes anos 20.
São Paulo: Cia. das Letras, 1992. Cap. 4. item I p.p. 238-245.
1
PEREIRA, J. B. Borges. Op. cit. p.p. 197-198.
1
MORAIS. José Geraldo Vinci. Metrópole em Sinfonia: História cultura e música popular
na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2000. p.p. 239-240.
1
MORAIS, Eduardo Jardim de. A Brasilidade Modernista: sua dimensão ffilosófica. Rio
de Janeiro: Graal, 1978.
1
FERNANDES, Florestan. Os estudos folclóricos em São Paulo. In: O folclore em
questão. 2ª ed. 1985, p. 643. Recebendo “injeções maciças de folclore” ( a expressão é de
Florestan Fernandes), a música nacionalista aproximava os intelectuais e o povo, separado
por um abismo cultural e de classe e contribuía para forjar a idealizada identidade nacional.
1
MORAES, José Geraldo Vinci de. Metrópole... op. cit. São Paulo: Estação Liberdade,
2000. p.p. 216-240.
1
ALMEIDA, Benedito Pires de. Marcelo Tupinambá. Obra Musical de Fernando Lobo.
São Paulo: Editora do Autor, 1993.
1
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu... op. cit. p. 249.
1
Cornélio Pires. Lendas e Paisagens da Minha Terra. OESP, 7.7.1922. PIRES, Cornélio.
Conversas ao Pé do Fogo: estudinhos, costumes, contos, anedotas, scenas São Paulo.
Editora Nacional, 1921.
1
PIRES, Cornélio. Musa Caipira. São Paulo: Livraria Magalhães, 1910.
1
O PIRRALHO, nºs: 102 de 22.08.1913. 165 de 12.12.1914 e 190 de 05.05.1915.
1
Catálogo da Columbia entre os anos de 1929-1930 Discos nºs; 20005-B Anedotas
Cariocas e Danças Regionais Paulistas. (Turma do Cornélio Pires). 20008-B Os cariocas e
os portugueses (anedotas) – Mecê diz que vai casá (moda de viola ) – BBC-British
Brodcasting Corporation . VEIGA, Joffre Martins. A vida pitoresca de Cornélio Pires. São
Paulo: O Livreiro Edições, 1961. p.144-145.
1
Apud. LOBATO, J. Bento Monteiro, 1944. A Barca de Gleyre – quarenta aos de
correspondência literária entre Monteiro Lobato e Godofredo Rangel. Pref. Edgard
Cavalleiro. São Paulo: Cia. Editora nacional, p. 286. NAXARA, Márcia Regina
Estrangeiro em sua própria terra- representações do brasileiro, 1870-1920. São
Paulo:Annablume/FAPESP, 1998. p.p. 126, 127 170.
1
Catálogo da Colúmbia op. cit. nºs: 20006-B, 10/1929, 20007-B 10/1929.
1
Idem. nºs. 20011-B s/data 20013-B s/data.
1
CARDOSO JR. Abel. Cornélio Pires. O primeiro produtor independente de discos no
Brasil. Sorocaba: Secretaria do Estado da Cultura/Fundação Ubaldino do Amaral, 1986;
1
Apud. LIMA, Alceu A. Êxodo, RBR. Vol. 6, nº 21, p. 35, 09/1917. LUCA, Tânia Regina
de. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Editora da UNESP, p.
274.
1
Catálogo da Colúmbia op. cit. nºs; 20010-B 10/’1929, 20026-B, 07/1930, 20035-B
09/1930, 20040-B 10/1930.
1
TINHORÂO, José Ramos. Música popular em São Paulo: um século de evolução In: D.
O. Leitura nº 11. São Paulo: julho de 1992. Música Popular: do gramofone ao rádio e TV.
São Paulo: Ática, 1981. MORAES. José Vinci. op. cit. Foram quase 70 discos ( com duas
músicas de cada lado), por quatro gravadoras ( desde os independentes da Turma de
Cornélio na Columbia até Parlaphone, Odeon e Victor, p.p. 240-243 a 248.
1
Depoimentos de Sorocabinha no Arquivo MIS em 06/08/1991.
1
Catálogo da Colúmbia 20009-B, 1929.
1
Anuário Estatístico do Brasil III -1937 (Rio), 1937 p.439. Anuário... 1939/1940 p.p. 515-
19.
1
LOVE, Joseph. O Poder dos Estados. Análise Regional. p.p. 53-70-71-76. In: História
Geral da Civilização Brasileira. Vol. 08 Cap. II. p.p. 53-149.
1
PIRES, Cornélio. Sambas e Cateretês. São Paulo Gráfico-Editora Unitas Ltda, 1932 p.p.
57,58
1
PINTO, Maria Inez Machado Borges. Radiofusão, Integração Nacional na Era Vargas (
no prelo)
1
ARAÚJO. A. M. Cornélio Pires – O bandeirante do Folclore paulista. In: Revista da
Academia Paulista de Letras. nº. 72, ano 25, nov, 1968. p.p. 109/131.
1
Catálogo da Colúmbia. op. cit nº. 20001-B. 05/1929.
1
Idem, nº. 20002-B 05/1929
1
Idem nº. 20006-B 10/1929
1
DIAS. Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder no século XIX. São Paulo:
Brasiliense, 2ª ed. 1995; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1957. KOGURUMA, Paulo. Conflitos do Imaginário: a
reelaboração das práticas e crenças afro-brasileiras na Metrópole do Café, 1890-1920.
São Paulo: Annablume, 2001. PINTO, Maria Inez Machado Borges. Cotidiano e
sobrevivência: a vida do trabalhador pobre na cidade de São Paulo, 1890-1914. São
Paulo: EDUSP, 1994.
1
PENTEADO Jacob. Belenzinho, 1910: retrato de uma época. 2ª ed. São Paulo: Carrenho
Editorial/ Narrativa Um, 2003 p. 198.
1
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Sérgio Buarque de Holanda. Coleção Grandes
Cientistas Sociais, nº. 51 p.p. 25-44;
1
CASCUDO, Luís Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro São Paulo: Global, 2001p.p.
685,686.
1
JORGE, Janes. O que a cidade perdeu: o Tiête e outras águas. São Paulo: Tese de
Doutorado, DH/FFLCH, 2004.
1
1
, PIRES, Cornélio Sambas... op. cit. p. 61.
Catálogo da Colúmbia. op. cit 20007B 10/1929, 20005B 05/1929, 20020B 04/1930,
20033B 08/1930, 20028B 07/1930, 20031B 08/1930, 20045B s/ data, 20031B 08/1930.
20009B 10/1929. 20001B 05/1929.
1
KOGURUMA, Paulo op. cit. p. 242-259, 261.
1
PIRES, Cornélio. Quem conta um conto In: Conversas ao pé do fogo. São Paulo:
Tipografia Piratininga. 1921, p. p. 26, 27 Ver também CASCUDO. Luís Câmara.
Geografia dos feitos brasileiros. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976, p.p. 259-260.
1
Catálogo da Colúmbia op. cit. 20021B 04/1930
1
ANDRADE, Mário. Táxi e Crônicas no Diário Nacional. São Paulo: Duas Cidades/
Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976, p.p. 236-237.
1
Ibidem p. 322.
1
DUARTE, Geni. Múltiplas Vozes no ar: O rádio em São Paulo nos anos 30 e 40. Tese de
Doutorado. São Paulo: Depto. de História da PUC/SP, 2000. p.p. 94-101.
1
PINTO, Maria Inez Machado Borges. Retratos sensacionalistas: crônicas jornalísticas e
literárias, imagens cinematográficas e vida mundana. Anais do XVII Encontro Regional de
História – O lugar da História, digitalizado, CD Campinas: ANPUH- Nacional, 2004.
1
AMARAL, Amadeu. Tradições populares. São Paulo/Brasília: Hucitec/INL, 1982, p.
290-291 e O dialeto caipira. São Paulo: Hucitec, 1982. p. 29-31.
1
NORONHA, Jurandyr. Pioneiros do cinema brasileiro, 1896-1996. CD/Livro eletrônico.
EMC/Melhoramentos, 1996
1
PINTO, Maria Inez Machado Borges. Encantos e dissonâncias da modernidade:
urbanização, cinema e literatura em São Paulo (1920-1930) Tese de Livre Docência,
DH/FFLCH, 2002.
1
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário op. cit. 10ª ed.. p. 123.
1
Idem.
1
PINTO, Maria Inez Machado Borges. A reinvenção das tradições no cenário da
modernidade: a radiofusão e as suas raízes urbanas. In: ArtCultura – Revista do Instituto
de História da Universidade Federal de Uberlândia -Dossiê História e Música. nº 09 jul-dez
2004. p.p. 139-150.
1
DIARIO DE SÃO PAULO, 16.06.1940.
1
PEREGRINO JR. J. R. da R. F. A Língua Nacional. In: R.B.R. vol. 18 nº 70, p. 1717, out.
1921. op. cit. LUCA, Tânia Regina de. p.p. 269-270.
1
Depoimentos de Sorocabinha, Arquivo MIS – SP.
1
SALIBA. Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística na História
brasileira da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Cia das Letras,
2002, p.p. 219-338.
1
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Prefácio In: PINTO, Maria Inez Machado Borges.
Cotidiano e sobrevivência: a vida do trabalhador pobre em São Paulo, 1890-1940. São
Paulo: EDUSP, 1994. p.p. 229-255.
Caricaturas Carnavalescas Na Careta: Uma Visão do Carnaval Carioca Através da Ótica
das Revistas Ilustradas (1908-1918)5
5
Fabiana Lopes da Cunha,Doutora em História Social- FFLCH-USP,Profa. Assistente Doutora da UNESPCampus Experimental de Ourinhos
O artigo busca tratar das caricaturas carnavalescas, que compreendemos ser não apenas as
ilustrações, mas também os textos irreverentes e cheios de humor, publicados pela revista
Careta, entre o período de 1908, ano em que a revista publica seu primeiro número, e 1918.
Nosso objetivo é mostrar como a história da imprensa se cruzou efetivamente com a do
carnaval e o quanto as revistas ilustradas contribuíram para a difusão de certa representação
desta festa. Este processo aconteceu com a modernização destas publicações e com uma
nova geração de cronistas e artistas, que cheios de humor e talento usaram, como tema de
seus trabalhos, o carnaval. Estes deram à festa, as feições de seus traços e anedotas,
comentando através destes, os principais episódios e proibições concernentes à folia
durante o período em que se buscava modernizar não apenas a capital, mas também o
carnaval.
Palavras-Chave: Carnaval- Rio de Janeiro- Revistas
Carnival Caricatures in Careta: A View of the Carnival of Rio de Janeiro through the
Optics of the Illustrated Magazines (1908-1918)
The article looks to treat the carnival caricatures, what we understand to be not only the
illustrations, but also the irreverent and full of humour texts, published by Careta
magazine, between the period of 1908, year in which the magazine publishes its first
number, and 1918. Our aim is to show how the history of the press has crossed effectively
with the history of the carnival and how the illustrated magazines contributed to the
diffusion of certain representation of this party. This process happened with the
modernization of these publications and with a new generation of chronicle writers and
artists, who full of humour and talent used, like subject of his works, the carnival. They
gave the form of his drawings and anecdotes to the party, commenting through those, the
main episodes and prohibitions concerning the revelry during the period in which it was
tried to modernize not only the capital, but also the carnival.
Key-Words: Carnival - Rio de Janeiro - Magazines
[...]Ta por aqui um sujeito
(não sei d’onde elle vem não)
Espaiando que este anno
Houve uma improhibição
De não se jogá entrudo,
Nem xiringa, nem limão
E quem desobedecê
Póde é pará na prisão.
O povo aqui não gostaro
Ninguém ficou satisfeito,
Foi, entonce, o individio
(Veja as arte do sujeito!)
Disse que ia ensiná
Como é carnavá dereito,
Pro povo se adeverti
E brincá, mas doutro jeito.
De modos qu’inda este anno
O entrudo tá reinando.
Homes, muié, môços, veio,
Ta tudo doido, brincado.
Inté compade Juvêncio,
Co’as
perna
bamba,
arrastando,
Mette no meio das moça,
Co’a xiringa, xiringando.
Ahi elle foi pro rancho,
Chamou argumas pessoa
E disse: “Entrudo decente
N’é xiringa nem canoa.
Eu trago aqui uns vidrinho,
Isto sim! Que é coisa bôa!
Esguicha um’agua de cheiro,
Mas não moia, sécca atôa.”
Toda a parte onde ocê vai,
É só laranja de chêro
É balde, é bacias d’agua...
Isso leva o dia intero.
Honte garraro o vigário
E foi tal o aguacêro
Qu’lle sahiu como um pinto.
Fulo,dando o desespêro[...]
(Thereza da Conceição)6
Ahi, compade, o sujeito
Tirou da caixa um vidrinho
Fechado das duas banda
Uma dellas co’um ferrinho
O home apertou o ferro,
Espirrou um esguichinho;
Todos ficáro pateta,
Ninguém não via o furinho.
Ahi preguntaro elle:
_“Môço, quanto custa isso?
Será coisa do diabo?
Não será argum feitiço?”
_ “Não!ocês póde comprá,
Não tem nenhum compromisso,
Custa, um cinco mirreis,
Mas vale; n’é desperdiço”
As môça, ahi vendo qu’elle
Queria era lucro grosso,
Seguraro, umas pros braço,
Outras garraro o pescoço
E, com chapéo, roupa e tudo,
Merguiáro elle num poço.
Coitado! Que banho em regra!
Tive inté pena do môço.
Credo! Que môças sem modo!
Que brincadeira estovada!
O pobre sahiu do banho
Vendendo azeite ás canadá.
Não quiz sabê de negocio,
Não quis sabê de mais nada,
Promptou as mala e de tarde
Metteu o macho na estrada.
6
Careta, Rio de Janeiro, 25 de fevereiro de 1911
Tal narrativa bem humorada é a última referência que encontramos nesta revista
ilustrada a respeito do entrudo. Quem faz alusão a esta brincadeira é José do Patrocínio
Filho, em sua coluna “Cartas de um Matuto”, numa carta escrita pela personagem criada
por ele, Thereza da Conceição, ao seu compadre que mora no Rio de Janeiro, o coronel
Tibúrcio da Anunciação. Este texto mostra que ainda neste período, apesar da
introdução do lança-perfume, o entrudo continuava popular entre os brincantes do
carnaval, pelo menos em localidades mais distantes da capital federal, onde a comadre
de Tibúrcio, Theresa, provavelmente residia. A menção ao preço exorbitante exigido
para a aquisição dos vidros de lança-perfume mostra como estas inovações relativas às
folias momescas acabavam sendo inacessíveis ao bolso de boa parte da parte da
população e o quanto a festa carnavalesca estava ficando cada vez mais cara. Theresa da
Conceição, comadre do personagem Tibúrcio da Annunciação, conta ao coronel, através
de versos, a molhaçada a que o vendedor é submetido pelas moças quando estas se
deparam com sua avidez pelos lucros que a brincadeira do lança-perfume poderia lhe
render.
Textos e ilustrações em tom bem humorado ou irônico sobre o carnaval ou que
carnavalizavam temas como política, economia, costumes e relações sociais eram usuais
em periódicos e revistas ilustradas do período. Em contos, crônicas, versos ou charges é
possível perceber também o tom de intimidade e o envolvimento que os redatores destas
publicações tinham com a folia momesca. Poetas e cronistas, alguns deles publicitários,
teatrólogos, compositores e até mesmo atores, contribuíram para que a imprensa do
período fosse recheada de humor, de sátiras políticas e de costumes atreladas ao
carnaval. As caricaturas7 publicadas por estas revistas são extremamente elucidativas e
possibilitam que compreendamos parte da história do carnaval carioca e do contexto
histórico vivenciado por estes desenhistas e articulistas.
Em fins do século XIX, a imprensa no Rio de Janeiro, variada e numerosa,
introduzia várias inovações como a distribuição dos exemplares em carroças e o
incremento dos correspondentes estrangeiros com novidades, também, no campo das
técnicas e de sua estrutura, agora empresarial. Além da Gazeta de Notícias, que
publicava em suas páginas portrait-charges com o título de “Caricaturas Instantâneas”,
onde se vislumbrava o perfil de políticos e homens de letras, o Jornal do Brasil passou a
investir em ilustrações, abrigando, em seu prédio, oficinas de fotografia e
7
Entendemos a caricatura da mesma forma que Herman Lima, ou seja, que estas não se restringem
apenas aos desenhos, mas se estendem para os textos de sabor jocoso e irreverente.
galvanoplastia. Desta forma, este periódico passa a publicar diariamente os desenhos de
Julião Machado, Artur Lucas (Bambino) e Raul Pederneiras.8 Todas essas modificações
possibilitaram o aumento da tiragem do jornal, que então atingia 50.000 exemplares, e a
transição da pequena para a grande imprensa. É em meio a essas transformações que
ocorre uma nova onda de proliferação das revistas ilustradas no país.
As folhas e pequenas “revistas”, muito mais que os almanaques,
de organização demorada e complexa e custo relativamente
elevado, emergem como publicações típicas da “explosão
jornalística” no final do século XIX. Literárias, noticiosas,
recreativas, doutrinárias, essas publicações transformam-se no
suporte impresso das mais variadas concepções e práticas
culturais. 9
Com os novos artefatos técnicos como os litógrafos, daguerreótipos e máquinas
de escrever, proliferou na primeira década do século XX a publicação de revistas
semanais. As revistas ilustradas, grande sucesso já no século XIX, retomaram seu
fôlego juntamente com as transformações urbanas que a capital sofreu e que
modificaram os costumes e a ocupação do espaço citadino. Com um visual arrojado e
dinâmico, elas se tornaram um grande sucesso nos primeiros anos do século passado. As
câmeras fotográficas flagraram em instantâneos o movimento desta nova cidade, a
moda, os passeios das senhoras pelas ruas elegantes da cidade. As ilustrações coloridas
em traços firmes, elegantes e menos rebuscadas do que o estilo que Agostini consagrou
no século anterior, acompanhadas de frases telegráficas, com mensagens curtas e
diretas, fizeram do humor um dos pontos fortes destas publicações.
Tanto o carnaval quanto o humor já faziam parte do cotidiano da capital federal,
assim como as revistas ilustradas, que surgiram nas três últimas décadas do século XIX,
ainda no período imperial (segundo Saliba, nestes anos chegam a circular em torno de
sessenta revistas ilustradas no Rio de Janeiro). Entretanto, foi apenas no início do século
XX, com o incremento da imprensa de novas tecnologias relacionadas à impressão e à
reprodução, que ocorreu um aumento significativo no número de tiragens e do público
leitor. Foi também neste período, principalmente durante os anos dos primeiros
governos republicanos, que o carnaval passou por inúmeras mudanças, não apenas com
relação ao itinerário dos desfiles das Grandes Sociedades, que se concentravam na
8
SODRÉ, Nelson Werneck. A História da Imprensa no Brasil. 4ª. Ed. RJ: Mauad, 1999. p. 274
JANOVICTCH, Paula Ester. Preso Por Trocadilho: A Imprensa de Narrativa Irreverente Paulistana
1900-1911. SP: Alameda, 2006
p. 17
9
Avenida Central após a reforma urbana, mas também com relação ao espaço destinado
pela imprensa ilustrada às diferentes manifestações carnavalescas. Mesmo que em
inúmeros textos e charges estas referências sejam irônicas ou que tenham surgido ainda
alguns preconceitos com relação às manifestações ou participações das camadas
populares na folia, a crescente alusão a estas mostra, de um lado, a ampla participação
destas classes na festa e, de outro, algumas posturas paradoxais dos intelectuais e
artistas com relação a isso.
Dessa forma, se a história da imprensa se cruzou efetivamente com a do carnaval
em meados do século XIX, quando os periódicos passaram a investir na propagação e
construção de um carnaval com ares europeus, promovendo bailes de máscaras e
desfiles carnavalescos, tal processo se completou e se modificou com a modernização
destas publicações e com uma nova geração de cronistas e artistas. Estes, cheios de
humor e talento, usaram como tema de seus trabalhos o carnaval, dando a ele as feições
de seus traços e anedotas, comentando, através de crônicas e pequenos textos ou versos,
os principais episódios ocorridos antes, durante e após os festejos carnavalescos.
Através de uma destas revistas ilustradas, a Careta, onde contribuiu um dos grandes
nomes da caricatura do período, J. Carlos, é perceptível a importância do carnaval na
vida destes homens de letras e pincéis e quão relevante foi a contrapartida que eles
possibilitaram não apenas ao público leitor, mas a nós historiadores, pois podemos
resgatar e reconstruir por meio destas publicações não somente a história do carnaval,
mas também compreender o contexto do período, os problemas políticos, a moda, as
inovações e mudanças na vida da população carioca. É possível, também, entender a
importância do carnaval e do humor para a saúde financeira destas empresas
jornalísticas e editoriais, pois a abordagem e o tema agradavam o público leitor, bem
como na vida destes escritores e artistas, os quais não apenas escreviam sobre esta festa
de forma irreverente, mas participavam ativamente dela como foliões e, portanto,
artífices desta história.
NASCIMENTO DA CARETA
Em 1908, surgiu no Rio de Janeiro uma das revistas ilustradas de maior
durabilidade do século XX: a Careta (de junho de 1908 a outubro de 1960). Fundada
por Jorge Schmidt, ela era conhecida por ser reduto de poetas parnasianos e contou com
a colaboração de vários profissionais também vinculados a Fon-Fon!, tais como:
J.Carlos, Kalixto e Bastos Tigre. Também escreveram para a revista outros escritores de
renome como Olavo Bilac, Martins Fontes e Lima Barreto, dentre outros. É importante
ressaltar que as denominações dadas a estas revistas, a Fon-Fon! como reduto de poetas
simbolistas e a Careta como sendo a dos parnasianos, refere-se muito mais ao grupo
idealizador destas publicações do que, de fato, à contribuição dos inúmeros literatos no
transcorrer de suas existências. Além disso, vale lembrar que o momento da criação da
Careta, bem como o período que estamos focando, era “vulnerável a novas idéias” e,
muitas vezes, tais correntes estéticas e seus representantes acabavam mesclando-as com
outras tendências contemporâneas.10
Com um design mais despojado em seu título, a revista, vendida a 300 réis o
número avulso, mostra na ilustração da capa sempre um “portrait charge”, ou uma
“careta” de um político ou pessoa que estava em proeminência no cenário nacional. No
primeiro número, por exemplo, vê-se estampado o rosto do presidente Afonso Pena, nos
traços de J. Carlos. Até o no. 95, em março de 1910, a revista continuava com este
modelo e, a partir daí, sua capa passou a estampar estas personalidades acompanhadas
de cenas ou cenários, juntamente com um pequeno texto recheado de humor e sátira.
10
MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira. V. 2. Realismo e Simbolismo. SP: Cultrix, 2001.
11
12
Seu conteúdo humorístico é ressaltado de forma dúbia no editorial do primeiro
número ao afirmar que seu programa tem como objetivo unicamente “fazer caretas”. E
por careta define uma cara pequena, mas ressalta, que por aí “existe muita gente de
quem se diz ter duas e mais caras; não é demais, por conseqüência, que nós tenhamos
uma porção de caretas que iremos mostrando todos os sábados [...]”.13
11
Careta, Rio de Janeiro, 06 de junho de 1908.
Careta, Rio de Janeiro,02 de abril de 1910.
13
Careta, Rio de Janeiro, 06 de junho de 1908.
12
Compara seus “portrait charges” e seus comentários a respeito destes com as
“caretas sérias do Instituto Histórico e a sua perfeição e semelhança garantidas. Mas
nunca fiando... Quem vê caretas, não vê corações”. Enfatizando sempre sua
preocupação em fazer rir, o editorial destaca que quer do público, caretas, mas não as de
“mau humor, preferimos francamente, sorrisos, mesmo daqueles que mais parecem
caretas”. E quanto às mulheres, representantes “desse sexo que se diz barbado e vive a
depilar-se agora, seguindo as novas correntes estéticas do pan-americanismo (!?),
enfurecer-se ao mirar a Careta, não haverá duvida também: deitamo-lhe convictamente
um palmo de língua de fora”. Ressalta ainda que os editores de Careta buscam a
simpatia do público com “P maiúsculo”, e talvez aos que apreciam as“sessões galantes
do jornalismo smart”.14
Com estes comentários inseridos no editorial de abertura é possível perceber o
público que a revista pretendia atingir, o das camadas médias urbanas e de parte da elite,
principalmente aquela facção propensa ao “jornalismo smart” e, também, o masculino.
A Careta, assim como outras revistas ilustradas do período, faz parte de um
contexto em que o avanço das técnicas gráficas, separa estes periódicos dos jornais.
Desta forma, segundo Saliba, somente no Rio de Janeiro o número de revistas chegava a
118, e grande parte delas se auto-intitulavam “humorísticas”.
Quando se separam dos jornais, as revistas começam a ganhar
uma estrutura semi-empresarial, procurando veicular aquilo que
atendia aos interesses do público leitor e, não raro, já
segmentando a circulação e o consumo das publicações.15
Os humoristas, comprimidos entre “o teatro ligeiro e o jornalismo de ocasião,
num precário equilíbrio para agradar, a todo custo, o público das revistas ilustradas”,
tinham na sociedade um lugar “efêmero, do passageiro, daquele que diverte os outros,
desde que não produzisse uma comicidade à custa dos ‘outros’, explicitamente maldosa,
degradante ou obscena”. 16 Eles, em geral, não eram reconhecidos socialmente e tinham
dificuldade para se autoproclamarem humoristas. Raul Pederneiras, segundo Elias,
chegou a escrever um tratado a respeito do humor e, antes de compilá-lo, teria proferido
inúmeras palestras sobre humor e caricatura, buscando justificar ou teorizar estes temas.
A dificuldade dele e de outros humoristas em se reconhecerem enquanto tais estaria no
14
Careta, Rio de Janeiro,06 de junho de 1908.
SALIBA, Elias Thomé. Raízes do Riso: A Representação Humorística na História Brasileira: Da Belle
Époque Aos Primeiros Tempos do Rádio. SP: Cia. Das Letras, 2002. p. 41.
16
Saliba, op., cit., p. 133-4.
15
fato de eles serem confundidos com a boemia - os casos mais evidentes eram Emílio de
Menezes e José do Patrocínio Filho, mas poderíamos citar também Bastos Tigre,
K.Lixto, J. Carlos, Storni, entre outros.
Ao fazer um mapeamento das atividades destes humoristas, Saliba conclui que
havia muitos elementos comuns aos dezesseis que ele analisou. A maioria possuía uma
formação fragmentada por conta da inserção precoce na atividade jornalística, muitos se
associaram a empregos públicos modestos, “mais da metade deles praticou outras
formas
de expressão, à margem da literatura, como teatro de revista
(texto, desenho de figurinos ou, em alguns casos, como atores),
caricatura e desenho, publicidade e música; a maior parte de sua
produção foi circunstancial: a produção jornalística foi
parcialmente reunida em livros de publicação posterior, e a
produção publicitária e de teatro de revista em grande parte se
perdeu, sendo conhecida apenas aquela dos anos em que vieram
a público; a grande maioria desses humoristas ficou distante das
atividades políticas, mas principalmente [...] ficou distante dos
círculos da literatura culta, como a Academia Brasileira de
Letras.17
Por conta destas múltiplas atividades e, por conseguinte, de um contato mais
direto com o mercado, os humoristas que colaboravam com estas revistas semanais
passaram a ter uma proximidade maior com o público. Isto acabou fazendo com que
tivessem interesses e atividades múltiplas, ligadas ao teatro de revista, ao cinema, à
publicidade e à música.
O teatro de revista, desta forma, atraía escritores e artistas de talento,
principalmente os que possuíam uma verve cômica e satírica. Eram nestes espaços de
lazer, muitas vezes com músicas ou revistas de autoria dos articulistas e caricaturistas
das revistas ilustradas que as canções carnavalescas eram lançadas, tornando-se
sucessos no carnaval do ano seguinte. O próprio carnaval, durante muitos anos, possuiu
características da revista, pois nos desfiles das sociedades carnavalescas, além dos
carros alegóricos, que passeavam pela avenida com motivos geralmente relacionados à
Europa, ao Oriente e à mitologia grega, também desfilavam os carros de crítica e de
idéias. Estes expressavam temas atrelados ao cotidiano e às notícias mais comentadas
durante o ano. Em geral, faziam críticas a políticos, a certos modismos e à situação
financeira do povo. As revistas ilustradas acompanhavam o mesmo ritmo, ou seja,
17
Saliba, op., cit., p. 76-7
também estampavam em suas páginas o seu próprio desfile, como os que eram
elaborados na Careta por Tom, no carnaval de junho de 1912, ou através dos desfiles
com o título de “Carros de Estado”, desenhados por J. Carlos, e que eram estampados
nas páginas da revista a partir de 1918.
Dos três grandes nomes da caricatura do período, J. Carlos, Kalixto e Raul
Pederneiras, que Herman Lima considera como sendo os que deram as diretrizes da
caricatura nacional por conta de terem fixado os tipos, usos e costumes da nova cidade e
sociedade que estava em formação no início do século XX, os dois primeiros assinaram
várias ilustrações neste periódico. Destes, J. Carlos imprimiria à Careta, pelos vários
anos em que foi responsável por suas ilustrações, parte de sua personalidade.
J. Carlos (José Carlos de Brito e Cunha), nascido em Botafogo a 18 de junho de
1884, iniciou a publicação de seus desenhos na revista O Tagarela, em 23 de agosto de
1902 e somente parou quando sofreu um mal súbito sobre a prancheta de trabalho, na
redação da revista Careta, quando discutia com João de Barros sobre o desenho que
estava confeccionando, em 2 de outubro de 1950.
Este exímio desenhista contribuiu para inúmeras revistas ilustradas e jornais,
sucessivamente na revista Avenida, no Malho, na Fon-Fon! e, em 1908, quando a
revista Careta é lançada, ele seria o diretor artístico e a ilustraria com exclusividade até
1921. Sua produção foi extensa, pois durante vários anos, elaborou de oito a dez
desenhos por semana para a Careta, O Malho e Para Todos. Segundo Herman Lima,
não existiu uma revista ou publicação ilustrada que não tenha tido alguma contribuição
sua.
Em seu traçado elegante, J. Carlos buscava na paisagem carioca as mudanças
que a cidade vinha sofrendo, sua arte iniciando exatamente quando a nova capital
surgia, sobre as ruínas da velha cidade imperial. Na Careta, ficaram famosas as
Aventuras de Brocoió, que retratavam, de forma irreverente, através de quadrinhos, as
inúmeras dificuldades vivenciadas pelo personagem na capital federal. Também se
tornaram famosas suas caricaturas que abriam a revista e que eram acompanhadas da
coluna Almanaque das Glórias, assinada por Leal de Sousa, companheiro do exímio
desenhista, para quem compunha os textos que assinava sob a firma de Vol-Taire, por
onde desfilaram ininterruptamente, de 1909 a 1914, centenas de personalidades ilustres
da época, da política, da ciência e das letras.
Para Herman Lima, o fato de este exímio desenhista ter trabalhado grande parte
de sua vida na Careta, acabou tornando-a a “crônica mais exata da realidade política do
seu tempo.
Muitos dos próceres da época, em particular o Barão do Rio
Branco, o Marechal Hermes, Pinheiro Machado, Nilo Peçanha,
Epitácio Pessoa, estão mais vivos e verdadeiros nas charges que
lhes dedicou do que em qualquer biografia que lhes tracem os
historiadores de hoje, pois a caricatura apresenta em última
análise, a opinião do homem da rua, a voz da crítica
contemporânea, o comentário direto e imediato como o registro
dum fait divers. 18
Suas charges também dialogavam com as obras de Olavo Bilac, Emílio de
Menezes, Aníbal Teófilo ou Olegário Mariano, pois elaborava os desenhos que
acompanhavam estes textos. Suas caricaturas relacionadas ao carnaval sempre fizeram
críticas políticas ou mostraram, com grande elegância e traços finos, os modos e
costumes da época. Trataremos, aqui, das ilustrações e textos que representavam o
carnaval e as medidas que tentavam coibir e regrar esta festa, assim como a maneira
irreverente que este tipo de publicação retratava tais medidas oficias.
Tentando Regrar o Carnaval
Em 1908, o então chefe da polícia da capital federal, o Sr. Alfredo Pinto, proibiu
que os carnavalescos se vestissem de índio. Apesar de tal atitude ser aprovada por parte
da imprensa, uma charge da revista Careta, apesar de mostrar o quanto a fantasia era
vista de forma negativa, também faz alusão à forma autoritária com que ela foi proibida,
pois na imagem o “elegante” pierrô chuta um índio, expulsando-o da festa:
18
Idem., op., cit., p. 1079-80
19
Tal proibição estava não apenas relacionada ao que a figura do índio
representava naquele momento para a elite brasileira, símbolo do atraso e do império,
mas também à vinculação destes fantasiados com os cordões. Em geral, os que se
fantasiavam de índio eram os que ficavam ao lado do estandarte do cordão, para
protegê-lo de um possível ataque de um cordão rival. Este tipo de agremiação
carnavalesca era extremamente malvista porque, além de ser composta por foliões das
camadas subalternas, possuía como sócios, capoeiras, que eram os escolhidos para o
encargo de proteger o estandarte, o maior símbolo identitário da comunidade e do
grupo. A sua passagem era o ponto mais importante do desfile do cordão e quando
homenageados pelo “comércio de bairro ou pelos jornais que visitavam com freqüência,
recebiam guirlandas de flores” que eram colocadas no estandarte ou “pano” como
também era chamado. Se ganhavam um prêmio, então o usavam para confeccionar
outro estandarte, maior e mais luxuoso.20 Não é por acaso, portanto, que as pessoas
escolhidas para defender estes “panos” fossem, em geral, exímios capoeiras, que às
vezes usavam, além das navalhas, adereços da fantasia em suas lutas para proteger o
19
Careta, Rio de Janeiro, 20 de fevereiro de 1909.
CUNHA, Maria Clementina Pereira da. Vários Zés, um Sobrenome: As Muitas Faces do Senhor
Pereira no Carnaval Carioca da Virada do Século. IN: Carnavais e Outras F(r) estas: Ensaios de História
Social da Cultura. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, CECULT, 2002.p. 400-1.
20
estandarte do ataque de uma comunidade adversária. A vinculação dos cordões aos
capoeiras era tão estreita que a própria denominação destas agremiações seria um termo
empregado entre as maltas de capoeira e serviria para designar suas “correrias”.21 “O
termo possuía, também, outras acepções interessantes, dicionarizadas no período:
formação militar utilizada na Guerra do Paraguai e forma de dançar em fila em
situações festivas- ambas adequadas ao uso dos membros de maltas”.22
Há outro motivo para esta proibição, evidenciado na revista Careta através de
fotografias no carnaval de 1911. Em 1910, por iniciativa do ministro Rodolfo Miranda
foi criado o SPI (Serviço de Proteção ao Indígena), sob a orientação de Cândido
Rondon. Algumas regiões do Brasil passaram a ser demarcadas como divisas de
territórios indígenas. As fotografias abaixo ilustram caboclos que foram catequizados
por Miranda e flagrados nas ruas durante o carnaval. Um deles, portando um cocar e
uma batina, onde se vê estampada uma cruz, reforça a política do governo de
assimilação destes nativos.
23
A foto abaixo, de 1912, mostra um duelo entre dois índios também
catequizados. Busca-se, com a proibição do uso destas fantasias e com esta nova
política indigenista, modificar os hábitos e vestimentas dos nativos:
21
Informação de Carlos Eugênio Soares, apud, Maria C.P.Cunha. Vários Zes...p.415.
Idem., op., cit., p. 415.
23
Careta, Rio de Janeiro, 04 de março de 1911.
22
24
Apesar deste interdito (o de proibir o uso da fantasia de índio) vir ao encontro
do anseio de muitos dos que compunham a elite letrada do Rio de Janeiro, vemos que
por conta desta atitude autoritária, o chefe da polícia foi alvejado com caricaturas cheias
de humor satírico, como as estampadas nas páginas de outras revistas ilustradas do
período, como a Fon-Fon!
A proibição de certas fantasias e mascarados passa a ser uma constante nos
carnavais seguintes, quando os principais alvos seriam as de diabo e de padre. O
interessante destas proibições é que, apesar delas, eram flagrados, pelas ruas da cidade,
grupos carnavalescos portando fantasias de diabo e diabolina, como comprova a
fotografias estampadas na revista Careta25 com relação ao bloco de Ameno Resedá. Em
1911, ano em que a foto foi tirada, o grupo de Ameno Resedá chegou ao seu auge com a
solicitação do então presidente, Hermes da Fonseca, para uma apresentação do grupo no
Palácio das Laranjeiras. Os foliões apresentaram, então, o seu enredo “A corte de
Belzebu”, com um elenco recheado de entidades relacionadas ao diabo: Belzebu,
Astaroth, Belfegor, Mefisto e suas diabinhas. Se de um lado a oficialidade proibia a
fantasia de diabo, por outro, o palácio presidencial no domingo de carnaval estava cheio
de diabinhos chifrudos. Entoando “Viúva Alegre” em ritmo de marcha-rancho, estes
24
Careta, Rio de Janeiro,24 de fevereiro de 1912. Na legenda da foto vem as seguintes informações:
“Dois caboclos, um discípulo da professora Daltro e o outro catequisado pelo coronel Rondon, duelandose em plena Avenida, cada qual querendo provar a superioridade da sua civilização.”
25
Careta, Rio de Janeiro, 04 de março de 1911.
diabos ordeiros, não eram vistos como uma ameaça, ao contrário dos que eram
aprisionados pelas ruas da cidade. É o momento de consagração dos ranchos, vistos
como manifestações populares comportadas e disciplinadas, uma possível solução para
os cordões, que como já dissemos, eram vistos com grande desconfiança pelas
autoridades e pelas elites.
Além do diabo e do índio, outras fantasias passam a ser malvistas, como a de
morcego, de morte ou caveira, de burro ou a de pai João, porque estavam associadas a
um tipo de carnaval e carnavalesco que a cidade queria exterminar.
Segundo Maria Clementina P. da Cunha, em fins do século XIX, o “numeroso
conjunto de incidentes policiais registrados e comentados pelos veículos de imprensa foi
fundamental para que se criasse a imagem de perigo que passou a cercar os mascarados
[...] e a lançar suspeitas sobre a brincadeira do ‘Você me conhece?’”26 A autora relata
algumas ocorrências policiais durante o período carnavalesco, demonstrando que a
violência, os mascarados e suas troças, bem como as detenções relacionadas a estes
fatos, tornavam-se cada vez mais comuns. Os mascarados passavam a ser associados a
crimes e violência.
Estes tipos e mascarados, referiam-se cada vez mais a outros tempos, pois, estas
vestes e as atitudes inerentes a quem as portava não condiziam com o carnaval educado
e elegante que a elite ansiava há tanto tempo. Com a regeneração urbana, assim como a
cidade e o próprio espaço do carnaval foi remodelado e repensado, era também urgente
que se revissem os “tipos” que poderiam desfilar pelas ruas.
Para Ferreira27, assim como para Queiroz28, o novo carnaval foi implementado
por uma elite atrelada ao café, que se esforçou na tentativa de tornar as distintas e
múltiplas manifestações carnavalescas em uma festa com uma identidade única e fixa,
uma espécie de “carnaval burguês”. No entanto, para Leonardo Pereira29, se era um
anseio desta burguesia a criação de uma festa mais civilizada, coube a uma elite de
letrados a elaboração e implementação deste projeto. O modelo para a inspiração deste
novo carnaval é importado de Paris, que já vinha influenciando comportamentos e festas
no Rio de Janeiro desde 1808, com a chegada da corte portuguesa.
26
CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia: Uma História Social do Carnaval Carioca entre
1880 e 1920. S.P., Cia. Das Letras, 2001. p. 31.
27
FERREIRA, Felipe. Inventando Carnavais: O Surgimento do Carnaval Carioca no Século XIX e
Outras Questões Carnavalescas. RJ: Editora UFRJ, 2005.
28
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Carnaval Brasileiro: O Vivido e o Mito. S.P., Brasiliense, 1992.
29
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O Carnaval das Letras: Literatura e Folia no Rio de Janeiro
do Século XIX. 2ª. Ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004.
Se o convívio com os mascarados avulsos pelas ruas da cidade incomodava
esta elite, que se sentia insegura e ameaçada sem saber ao certo que tipo de pessoa se
escondia sob determinadas fantasias, apesar de em geral estas denunciarem a condição
sócio-econômica do folião por seus temas ou materiais que as confeccionavam, os
bailes ou bal masqués davam grande tranqüilidade aos brincantes mais abastados, já que
nestes eventos o acesso era vedado a camadas sociais menos favorecidas. Mas havia
ainda outra preocupação, associada principalmente às fantasias de dominó, também
importada dos bailes parisienses. Seu sucesso estava relacionado à dificuldade em saber
quem portava tal fantasia, o que possibilitava a traição de ambos os sexos, pois
permitiam que tanto mulheres quanto homens se liberassem anonimamente nas
penumbras dos bal masqués ou que pudessem sair às escondidas pelas ruas da cidade.
Isto, às vezes, podia gerar alguns mal entendidos e constrangimentos, pois era
impossível saber quem estava embaixo de tanto tecido.
Homem ou mulher?
Esta era a pergunta que imperava no High Life, nos
Políticos, nos Tenentes, sempre que surgia um mascarado. As máscaras eram um
problema, tanto em espaços públicos quanto no interior dos bailes, pois, muitas vezes, o
marido, querendo dar as suas “escapadelas” nestes festejos, podia acabar sendo flagrado
pela esposa (também mascarada). Isto ocorreu de fato com um famoso folião do Rio de
Janeiro, o jornalista e literato Carlos Laet, cujo caso, para sua vergonha, foi noticiado
amplamente pelos principais jornais do período, forçando-o a “desaparecer” por uns
tempos.
Outro caso que ficou famoso foi o que ocorreu no High Life com o meritíssimo
juiz Cícero Seabra. Animado com um dominó que havia se insinuado para ele, caiu num
desenfreado maxixe e acabou declarando amor à vista dos lindos olhos que o
hipnotizara, convidando-o para a ceia. Só depois do jantar e do champagne foi que
soube que o seu par na dança, o dominó que o enfeitiçara, era o Dr. Humberto Gotuzzo.
Imagine a cara do meritíssimo juiz! Coisas idênticas aconteceram com o Dr. Feijó
Júnior que dançou nos Tenentes com o Sr. Fonseca Hermes, cada qual fantasiado
pensando que o outro era uma dama, e com Araújo Jorge que atraído pela elegância do
João do Rio, metido num dominó azul, passou a dirigir-lhe diversos galanteios até
descobrir quem era de fato a sua “musa”.
De qualquer forma, apesar dos constrangimentos que tais máscaras e fantasias
podiam provocar, elas eram toleradas e até mesmo incentivadas, desde que ficassem
restritas aos freqüentadores dos salões mais seletos da cidade, ou melhor dizendo, desde
que os espaços de diversão para classes sociais diferentes fossem distintos e não se
mesclassem.
Dentre as fantasias que foram proibidas durante o início da década de dez,
havia ainda a de travesti, muito popular entre os foliões, sendo que os homens se
vestiam de mulher e estas com trajes masculinos. A proibição destes trajes, em 1912,
acaba possibilitando uma prisão feita no carnaval daquele ano e noticiada pela Careta
em texto assinado por Sancho Sanches. Dois argentinos, Luiz Fernandes Blanco e José
Alvarez, que travestidos respondiam pela alcunha respectivamente de Monsieur Vênus e
Monsieur Focas, foram flagrados, aproveitando do anonimato das vestes, em atitudes
libidinosas entre si. Tal fato foi visto como um “atentado ao pudor” e “uma ofensa aos
nossos hábitos de eternos filhos de família”. O articulista afirma:
Ainda não chegamos a adquirir foros de Babilônia moderna.
Nossa Avenida Central, com o aspecto de rua da Matriz,
sempre embandeirada, sempre em festa, não é um Carrefour por
onde podem passear , à solta , os vícios das grandes metrópoles
européias. Aqui impera aquela moralidade que presidia os chás
de família do Império, as partidas de bisca dos antigos solares
do Botafogo e as conferências da Glória do Conselheiro
Correia. 30
Este tipo de comentário, contido no texto, encontrava eco numa sociedade ainda
extremamente conservadora. No início do século XX, havia alguns padrões de conduta
amorosa que deveriam ser seguidos. Durante o namoro e o noivado, o casal deveria ficar
sob forte vigilância dos pais, com o objetivo de manter intacta a honra da filha. Tais
regras não apenas regulavam os relacionamentos amorosos, mas também “faziam parte
de uma política higiênica ditada pelas elites citadinas e pelos médicos e eram definidos
de maneira bastante clara e rígida”.31 Para tentar manter um controle sobre essas ações,
o Código Civil brasileiro de 1916 estabeleceria uma série de normas com o intuito de
regrar o vínculo conjugal para que fosse assegurada a ordem familiar.
Tal moralidade, contudo, não afetava as atitudes dos esposos, que nestes dias de
festa, procuravam algum dominó ou mascarada para dar uns apertos e cair no maxixe.
No entanto, parece que a imprensa, antes mesmo da legislação destas regras, começa a
se preocupar com certas atitudes mais libertinas com relação ao sexo oposto. É o que
30
Careta, Rio de Janeiro, 24 de fevereiro de 1912.
CHAVES, JacquelineCavalcanti. Os Amores e o Ordenamento das Práticas Amorosas no Brasil da
Belle Époque. IN: Análise Social, vol. XLI (180),2006,p. 840.
31
evidenciam as charges expostas nas revistas ilustradas do período. Histórias com certo
teor moral e “educativo” eram publicadas e tentavam alertar aos que usavam o carnaval
para dar suas escapadelas, que poderiam se dar muito mal e inclusive cair na cilada da
própria esposa, ou se tornar alvo de chacotas por ter flertado com a empregada ou com
um homem.
Os padrões de comportamento, valores e ideais importados da Europa,
relacionados à moral e ao controle de certas emoções, não eram seguidos por todos ou
da forma como queriam as autoridades e, muito menos, se deu de forma tranqüila ou
homogênea. Muitas vezes, estes padrões impostos pelas classes políticas chocavam-se
com hábitos arraigados, provenientes de formas de sociabilidade diferentes e de classes
sociais distintas. Além de a população brasileira ser bastante heterogênea, o fato de
existirem dançarinas que se encontravam disponíveis em propiciar certos prazeres aos
“chefes de família” em locais públicos, e que estes muitas vezes freqüentavam, permitia
que estes códigos fossem burlados freqüentemente.
Segundo Maluf e Mott, prevalecia na Capital Federal uma dupla moral que seria
responsável pelos conflitos domésticos. Estas eram estimuladas, portanto, por um
sistema rígido de valores que exigia coerência de
comportamentos, tanto na esfera doméstica quanto fora dela,
algo bastante difícil num período de urbanização e
industrialização crescentes, as quais convocavam os indivíduos
e a família para novas formas de associação e lazer, ao mesmo
tempo em que ofereciam outras oportunidades, ainda que
desiguais, de trabalho.32
Ora, tais oportunidades eram aumentadas pelo carnaval, como já dissemos. Estas
ações eróticas ou amorosas proibidas vinham sempre acompanhadas de pretextos e
desculpas muito comuns nestes dias, onde a liberalidade e os excessos eram
corriqueiros.
Tais atitudes também eram usuais entre as classes menos favorecidas, só que as
desculpas para se conseguir “escapar” das obrigações conjugais deveriam ser um pouco
diferentes, como alude a caricatura de J. Carlos:
32
MALUF, M., e MOTT, M. L.. Recônditos do mundo feminino. IN: SEVCENKO,N. (org.). História da
Vida Privada no Brasil,V. 3, São Paulo, Companhia das Letras, 1998.p. 385.
33
Ela- Então, seu desbriado!...Isto são horas?
Ele- São Belisário é que é, filhinha. Eu estive preso.
A imagem acima retrata um lar bastante simples, onde a mulher, sem grandes
atrativos, questiona o desaparecimento do marido durante todo o carnaval. Este evoca
“São Belisário”, fazendo referência clara ao chefe de polícia do Rio de Janeiro,
Belisário Távora. Ou seja, enquanto os maridos infiéis nas camadas superiores
utilizavam como recursos para conseguir se libertar dos laços matrimoniais durante os
festejos, um convite à mulher para descansar em Petrópolis, um recanto elitista, e depois
dela instalada na cidade, ele utilizaria como pretexto algo relacionado ao trabalho, para
então cair na pândega na capital; ou como nas camadas médias, a invenção de uma
doença que teria acometido um amigo ou um acidente no qual um conhecido teria sido
vítima, poderiam servir como uma desculpa razoável para enganar a esposa; no caso das
camadas populares, o pretexto mais usado se vinculava aos problemas com as
autoridades policiais, afinal, a perseguição destas era intensa e cotidiana sobre os
cidadãos mais pobres. No carnaval, como vimos anteriormente, eram cada vez menos
toleradas as fantasias que agradavam aos populares, como as de índio ou diabinho. No
caso da caricatura acima, o fato de o indivíduo estar embriagado, pois a imagem de J.
Carlos insinua isso, com sua entrada trôpega na residência, também poderia ser um
motivo para a prisão. Outra medida adotada foi a “caça aos mendigos”, tentando
33
Careta, Rio de Janeiro,04 de março de 1911.
eliminar os pedintes, “indigentes, ébrios, prostitutas e qualquer outros grupos marginais
das áreas centrais da cidade” juntamente com a pressão para um “confinamento de
cerimônias populares tradicionais em áreas isoladas do centro”, que serviriam para
evitar que duas sociedades distintas se mesclassem, embora estas “fossem uma e a
mesma”.34 Diante deste quadro, a resposta dada pelo marido na charge acima é muito
plausível.
A felicidade conjugal, de qualquer forma, em distintas classes sociais, parecia
mesmo estar ameaçada diante da liberalidade destes dias de folia. Há inúmeras anedotas
e crônicas que narram as desventuras de ambos os sexos, algumas se referindo a traição
do marido, outras à desconfiança do esposo ou do noivo com relação às atitudes da
amada. Histórias reais ou fictícias, narradas nestas revistas, denotam a desconfiança
cada vez maior dos homens com relação às mulheres. Tais relatos mostravam não
apenas a excessiva liberdade proporcionada pelo carnaval, mas também uma mudança
no comportamento das mulheres, evidenciada também na forma como estas passam a
querer desfrutar tais festividades.
Cair na folia, ou melhor, no maxixe, e depois, em
fins da década de 1910 e início da de 1920, no samba ou na marchinha carnavalesca,
era o anseio de grande parte da população carioca no início do século XX,
independentemente da classe social. Com o passar dos anos, como seria natural com
tantas mudanças na cidade, estimuladas pelos prazeres e entretenimentos noturnos, as
mulheres também passam cada vez mais a reclamar seu espaço dentro da folia e a
maneira de desfrutar esta festa.
Antes disso, porém, as proibições relacionadas às fantasias eram ironizadas, e
consideradas como abusivas e sem sentido por parte da elite intelectual. É possível
percebermos isso nas várias crônicas do período que satirizam o chefe de polícia e as
novas leis que proibiam as fantasias relacionadas à igreja, como as de padre ou freira e
as de travesti (quando um homem se vestia de mulher e vice-versa). Este é o caso da
crônica escrita por José do Patrocínio Filho em sua coluna Cartas de um Matuto, de 04
de fevereiro de 1911, onde o personagem Tibúrcio da Anunciação conta sua saga
carnavalesca, quando resolve de última hora participar das brincadeiras folionas e sem
nenhuma fantasia elaborada para esse fim resolve usar o velho traje de padre que estava
guardado num velho baú.
34
SEVCENKO, N. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República.
3a. ed., S.P., Ed. Brasiliense, 1989. p. 33-34.
Nestes versos, o Cel. Tibúrcio da Anunciação narra suas desventuras e sua
postura com relação aos sons e ritmos do carnaval popular e de rua, pois não resistindo
aos zabumbares dos zé-pereiras, resolve improvisar uma fantasia e cai na folia. Sem
saber da proibição do chefe da polícia às fantasias de padre, ele sai feliz e folgazão a
brincar com os passantes, fingindo ser o “padre defunto Romão”. Acaba sendo preso,
fato que o deixa inconformado, pois acha que a polícia fica perdendo tempo, atrás de
“bobicia”, proibindo e prendendo alguns mascarados que ousavam sair vestidos de
personagens que haviam sido proibidos. No entanto, é importante ressaltar que estas
prisões se davam quando o indivíduo não tinha licença para utilizar tal traje, pois o que
o chefe da polícia ansiava era o controle da grande massa de mascarados avulsos que
aumentava a cada ano e que assustava e afugentava das ruas os brincantes das classes
mais abastadas.
Se a proibição tinha que ser aceita e acatada nas ruas, o mesmo não se dava
nas colunas dos jornais e revistas ilustradas, onde os cronistas e humoristas passam a
descrever e narrar histórias ironizando tais interditos. Um pequeno diálogo, entre um
padre e um suposto folião durante o carnaval, questiona tal lei:
- Então, reverendo, deixou a religião?
-Não, apenas a batina, durante o carnaval.
-Também cai na pândega?
-Oh! Não. O chefe de polícia querendo moralizar o carnaval
proibiu nos três dias o uso da batina. Eis tudo.35
Independentemente das formas com que o carnaval foi representado, ou as
maneiras com que foi festejado o fato é que, nenhuma proibição oficial, seja nas
fantasias ou na troca de datas da folia, fez com que estes dias deixassem de ser muito
comemorados pelas distintas classes sociais. Na verdade, estes interditos acabavam
sendo carnavalizados pela imprensa e, claro, pelos foliões nas ruas do Rio de Janeiro. E,
cada vez mais, a capital federal passava a se identificar ou ser associada com esta
festividade.
Entrudos, desfiles, cordões, ranchos, zé-pereiras, confetes, serpentinas, lançaperfumes, mascarados, bailes e banhos a fantasia, foram diferentes formas que os
foliões usaram para brincar, rir e se divertir durante o carnaval. Para alguns, tais festejos
eram um momento de maior liberalidade, onde certas atitudes e proximidades com o
sexo oposto eram possíveis e, até certo ponto, permitidas. Para outros, era o momento
35
Careta, Rio de Janeiro, 25 de fevereiro de 1911
de extravasar suas frustrações através de brincadeiras e bebedeiras. Para os articulistas e
humoristas das revistas ilustradas era não apenas uma forma de se divertir, mas também
de angariar seu salário e incutir de forma muitas vezes bem humorada e satírica, nestas
páginas coloridas, suas opiniões e críticas a respeito de vários assuntos, inclusive sobre
o próprio carnaval.
REFERÊNCIAS:
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no Brasil da Belle Époque. IN: Análise Social, vol. XLI (180),2006.
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SODRÉ, Nelson Werneck. A História da Imprensa no Brasil. 4ª. Ed. RJ: Mauad, 1999.
A GOVERNANÇA TERRITORIAL NO BRASIL:
As Instituições, os Fatos e os Mitos.36
LA GOUVERNANCE TERRITORIALE AU BRÉSIL:
Les Institutions, les Faits et les Mythes.
Elson L.S. Pires37
Ricardo Toledo Neder38
Resumo
As análises recentes sobre as organizações e institucionalidades territorializadas têm
dado grande destaque às formas de regulação capitalista do espaço, permitindo abrir a
reflexão sobre as diferenças de trajetórias históricas e de tipos de desenvolvimento
endógeno. No Brasil a criação surpreendente de organizações e instituições locais sob a
forma de conselhos, comitês, agências e consórcios que ultrapassam os limites
municipais é parte desse quadro de análise da reação local às mudanças globais.
Palavras chaves: organizações, instituições, regulação, local, global.
Resumé
Les analyses récentes des organisations et des institutions territorialisées mettent
en relief les formes de régulation capitaliste de l’espace, ce qui permet d’ouvrir une
réflexion sur les différentes trajectoires historiques modèles de développement
endogène. Au Brésil la surprenante création d’ organisations et d’institutions locales
36
A versão original deste artigo foi apresentado no Seminário Internacional “Analyse des Changements
Institutionnels: caractérisation, méthodes, théories, acteurs”, La Rochelle, 2005.
37
Professor do Departamento de Planejamento Territorial e Geoprocessamento e do Programa de PósGraduação em Geografia, Área Organização do Espaço, da Universidade Estadual
Paulista/UNESP/Campus de Rio Claro. Emaill: [email protected]
38
Professor e pesquisador do Centro de Desenvolvimento Sustentável (CDS) da Universidade de Brasília
(UNB). E-mail: [email protected]
sous la forme de conseils, comités, agences et consortiums qui dépassent les limites
municipales fait partie de ce cadre d’ analyse de la réaction locale aux changements
globaux.
Mots clés: organisations, institutions , régulation, local, global.
INTRODUÇÃO
A nova constituição brasileira de 1988 impulsionou novos processos de
territorialização e localizações das atividades econômicas e de desenvolvimento local e
regional, abrindo o leque de possibilidades de governanças territoriais. Esse processo
tem gerado igualmente, maior desenvolvimento territorial local. As investigações
apontam dois tipos de tendências nos últimos 20 anos. De um lado, houve disseminação
de conselhos locais de gestão de políticas públicas de caráter redistributivo, e
proporcionalmente, menor difusão de fóruns de desenvolvimento regional (vinculados a
decisões econômicas com impacto na mobilização abrangente sobre a representação da
sociedade civil local).
Ambos os tipos de conselhos têm apresentado inovações institucionais
importantes, embora não sejam ainda capazes de alterar a qualidade da gestão pública e
da governança territorial como um todo no país. Em certas regiões o fracasso dessas
formas para a gestão descentralizada do Estado tem significado o reforço das
tradicionais administrações e de suas políticas de clientelas sob o poder dos prefeitos e
parlamentares no Congresso. Ao contrário, onde essas formas se desenvolvem há
resultados positivos apontando para o aumento da capacidade de representação social e
de novas formas da governança do desenvolvimento territorial local e regional.
Esse artigo é a um só tempo teórico e metodológico sobre a análise da regulação
do território, identificando e caracterizando a ação coletiva dos atores sociais diante da
governança e das condições para o desenvolvimento de longo prazo, em regiões
situadas no estado de São Paulo (centro-sul do Brasil, com 32 milhões de habitantes
onde são gerados 55% do produto interno bruto do país).
Para tratar dessas questões, este artigo foi estruturado em quatro seções: (1) As
explicações da dinâmica territorial da regulação; (2) A reterritorialização da economia e
da política no Brasil; (3) A nova governança territorial no Brasil: os exemplos da
Câmara Regional do ABC paulista e do Comitê da Bacia Hidrográfica dos Rios
Piracicaba-Capivari-Jundiaí; (4) Conclusões ou problemas da eficácia da representação
dos conselhos na governança territorial.
1. AS EXPLICAÇÕES DA DINÂMICA TERRITORIAL DA REGULAÇÃO
1.1 Gênese e regulação dos territórios
A organização particular do território local e regional como principal agente do
desenvolvimento pode ser observada em três dimensões: (i) no sistema de representação
social dos atores, através dos processos interativos que consolidam hábitos de
convivência entre grupos sociais, que criam instituições, estruturas organizacionais e
simbólicas, associando-os a comportamentos normativos; (ii) no espaço geográfico de
definição da estratégia dos atores, isto é, do local ou região das ações que consolida a
proximidade geográfica e institucional dos atores; (iii) no horizonte temporal dos atores,
na qual está presente a apreensão do ritmo e da organização temporal particular do
território (COLLETIS; PECQUEUR, 1993:499).
Nessa perspectiva de análise, os territórios criados pelos atores sociais podem
ser vistos como estruturas espaciais evolutivas, marcados por movimentos longos de
tendências às vezes ultrapassadas por uma sucessão de fatos, ou situações novas nas
quais é necessário se adaptar, se inovar e se regular. (COLLETIS; PECQUEUR,
1999:537; PECQUEUR, 2000; COURLET; SOULAGE, 1995; COCCO; GALVÃO;
SILVA, 2003; MONIE; SILVA, 2003).
O território enquanto agente principal do desenvolvimento está expresso nas
formas de representação social, em que a governança territorial é um recurso específico
e intransferível, na medida em que incluem todos os aspectos históricos, culturais e
sociais locais, que estão na base da diversidade da organização espacial da produção e
da contínua integração entre esferas econômica, social e política.
O estudo do território deve ser um estudo da constituição de um espaço abstrato
de cooperação entre diferentes atores com uma ancoragem geográfica estabelecida,
disposta a engendrar os processos de criação dos recursos particulares (sociais,
econômicos e virtuais), de implantar projetos, resolverem problemas e apontar para
soluções inéditas (GILLY; PECQUEUR, 1995; BENKO; PECQUEUR, 2001;
PECQUEUR, 2000:15). Podemos acrescentar a esta concepção a idéia de que a
institucionalização dessa cooperação organiza o território simultaneamente como
representação simbólica do local (lugar) e assimila-a com um sinal incontroverso pelo
tipo específico de desenvolvimento social. Essa abordagem nega a perspectiva de ver o
território como um simples palco ou suporte das atividades humanas, e dá mais ênfase a
autonomia do local na produção de normas e regras - formais e informais - previamente
estabelecidas.
Assim sendo, o território pode ser analisado como “o modo de estabelecimento
de um grupo, no meio ambiente natural, que na organização das localizações das
atividades, instaura e faz prevalecer condições da comunidade-linguagem e da
aprendizagem coletiva” (PERRIN, 1992; APUD GILLY; PECQUEUR, 1995, p. 304).
O território está assim assimilado a um meio complexo que “reagrupa em um todo
coerente um aparelho produtivo, uma cultura técnica e os atores” (MAILLAT; PERRIN,
1992).
Trata-se de um território histórico, social e cultural que é também território
econômico marcado pelas condições favoráveis a uma economia de oferta de inovações
e de produção de valor adicionado (BEAUVIALA et al, 1998, p. 235). Enquanto tal, um
território condiciona a localização dos atores, pois as ações que incidem sobre ele
dependem da própria constituição dos atores. É nesse sentido que o território condiciona
a localização dos atores como resultado de um jogo prévio constituído seja por motivos
extra-econômicos (laços comunitários, identidade local, paixão, associações familiares)
seja por motivação econômica (interesse, contrato, trocas ou jogo concorrencial). Como
um tipo de motivação não está dissociado do outro, trata-se, pois, de uma constituição
que apresenta complexas vias de mão dupla entre economia e cultura (SEN, 2000).
Como instância intermediária de desenvolvimento e da regulação local o
território pode ser concebido como uma forma particular de organizar o coletivo já que
permite a agregação e a interação dos atores. Essa agregação se dá em torno dos
arranjos institucionais (relações de produção, de trabalho, desconcentração e
descentralização do Estado por meio de serviços locais e de coletividades territoriais),
por processos mercantis (concorrência a partir da gestão de recursos competitivos entre
territórios) e por adaptação ao regime inter-regional e inter-nacional (globalização).
Dessa forma, o território local não é o lugar de uma simples projeção do modo de
regulação – por exemplo, tal como é definido por instâncias centrais do estado nacional
ou de corporações empresariais sobre um espaço geográfico supostamente dado. Ao
contrário, o território local é uma construção social que gera um sistema de
representações comuns aos seus membros, que cria suas próprias regras e que faz
emergir as formas de regulação parcial relativamente autônoma por meio de
dispositivos territoriais de regulação, como aqueles observados recentemente no Brasil.
Em tal plano da regulação, não estamos diante de um local definido a priori
sobre critérios predeterminados, mas de territórios socialmente construídos pelos atores
locais (as empresas dos diversos setores, os poderes públicos descentralizados ou
locais). Os territórios locais guardam essa coerência com os compromissos sociais
estáveis e se organizam segundo um conjunto de regras e de instituições que são
parcialmente elaboradas neste nível.
Em seu conjunto, as análises regulacionistas acabam por revelar que a
construção do território não se limita aos aspectos econômicos e políticos objetivos ou
utilitaristas, mas compreende também os critérios subjetivos ou práticos do cotidiano
pertencentes a uma identidade local ou regional. Esses aspectos podem ser objeto das
lutas pelo poder de representações mentais, materiais e de manifestações sociais
(BOURDIEU, 1989).
Subjacente a esse objeto nos deparamos com um elemento característico desse
vínculo que é o fato de que a instituição não se reduz ao simbólico, mas ela somente
pode existir no simbólico, pois é impossível fora de um simbólico já previamente
presente na organização de uma dada região, território e economia, num sistema de
direito, num poder instituído, numa religião sob a forma de sistemas simbólicos
sancionados (um título de propriedade, um ato de venda é um símbolo do "direito"
socialmente sacionado do proprietário de proceder a um número indefiniado de
operações, segundo Castoriadis (1982:142).
1.2 Regimes de governança e governança territorial
Conforme afirma Lindberg (1991, p. 321),
les mécanismes de gouvernment n´existent pas de façon isolée
interviennent ensemble dans dês combinaisons diverses, ce est-àdire des governance regimes qui varient selon l´industrie et l´époque
considerées. De plus à chaque moment de temps, les acteurs tendent
à s´organiser, adopter des régles d´éclange et utiliser des moyens de
controle qui son propes à un mode de gouvernment plutôt qu´un
outre. En ce sens, certais mécanismes de gouvenment sont
dominants au sein duún mode de gouvernment (LINDBERG, 1991,
p. 321; apud Boyer; Saillard, 1995, p. 545).
No plano da dimensão territorial da regulação, as análises dos efeitos de
proximidade, a historicidade dos territórios e as dinâmicas de recursos, todas elas
resultam das estratégias dos atores coletivos que se engajam para coordenar ações, que
permitam resolver problemas locais e regionais oriundos da aglomeração da
especialização ou especificação territorial. Dessas análises resultam freqüentemente os
conceitos de governança territorial, associado aos processos de tomada de decisão e de
ação das empresas e setores produtivos locais.
Essas reflexões sugerem algumas questões acerca da regulação social e da
governança do território. Como atores lançam mão de determinados meios para
construir um padrão de estabilidade social? Como os atores lidam com planos que
contemplam opacidades sociais (geram mais incertezas do que resoluções e
coordenação)? Como são estabelecidas pelo planejamento as relações entre normas
regulatórias, funções operacionais responsabilidades decisórias e avaliações?
Tanto a velocidade quanto a consistência de um movimento na direção dessas
questões dependem do grau de consolidação da comunidade cívica com identidade
coletiva, base para o desenvolvimento de sistema de governança da comunidade. Os
fatores de caráter cultural e histórico, resgatados pelo conceito de capital social,
auxiliam na compreensão de como as crenças podem integrar pro-ativamente a
constituição de uma cultura política local e regional mais cívica e participativa
(PUTNAM, 1996; CORREA, 2003).
1.3 Território e identidade
A construção da identidade coletiva depende em grande medida dos
determinantes do conteúdo simbólico, do seu significado para os que a ela se associam
ou se excluem (CASTELLS, 1999b). Assistimos assim, nos últimos anos, a elaboração
sobre como regem fatores subjetivos do território, (confiança interpessoal, a
solidariedade, a reciprocidade e tolerância).
Como a identidade coletiva é territorializada, a diversidade territorial se apóia na
aquisição e na adaptação de conhecimentos gerais e específicos os quais são filtrados
pela própria prática, institucionalidade e culturas locais. Nesse sentido, o território
tornou-se um dos contextos nos quais se desenvolve a divisão do trabalho cognitivo
(BECATTINI; RULLANI, 1996). Ou seja, trata-se da divisão do trabalho na produção e
utilização dos conhecimentos que podem ser classificados em contextuais (quando se
produzem num contexto local e são específicos de tal território) e codificados (quando
se trata de conhecimento de caráter global, mas facilmente transferível, embora só
possam ser utilizados adequadamente quando contextualizados nos ambientes
produtivos particulares ou locais).
Do mesmo modo tornam-se obrigatória a codificação de alguns dos
conhecimentos contextuais, quando se quer facilitar sua transferibilidade e conseguir,
desse modo, economias de escala suficientes. Na divisão de trabalho cognitivo de tipo
circular, o território local gera conhecimentos para uso global, e o global fornece aos
circuitos locais conhecimentos procedentes de todo o mundo (LLORENS, 2001, p. 27).
É conveniente lembrar aqui que essas dimensões podem estar identificadas e
entrelaçadas nos saberes produzidos pela divisão do trabalho, conforme definia Foucault
(1978): o trabalho visto como produtividade econômica; como instância simbólica, e
como regulação social.
Em síntese, se partirmos para um conceito operacional, o território local
compreende um determinado espaço geográfico institucional, social e cognitivo – um
bairro, município, rede de municípios, arranjos produtivos, clusters, bacias
hidrográficas, vales, favelas – que atenda aos seguintes condicionantes:
(i) culturalidade – apresente identidade coletiva de caráter social, cultural,
econômica, política, ambiental, histórica;
(ii) convergência – apresente a capacidade de promover uma convergência de
ações e estratégias em termos de expectativas de desenvolvimento; e
(iii) potencialidades – apresente capacidade de mobilização de recursos e de
integração econômica e social no âmbito local.
2. A RETERRITORIALIZAÇÃO DA ECONOMIA E DA POLÍTICA NO
BRASIL
2.1 A reterritorialização da urbanização brasileira
Brevemente, podemos situar no Brasil três marcos histórico de reterritorialização
contemporânea. Um primeiro ocorreu após a Segunda Grande Guerra no século
passado, marcado pela expansão para o centro-oeste do país com a construção da nova
capital (Brasília), em cujo rastro ficou extensa malha de estradas como infra-estrutura
para a expansão da indústria automobilística (então recém instalada), além da expansão
de outras de bens de consumo duráveis e de bens de capital.
O segundo movimento ocorre no ciclo dos governos militares (1964-1984) com
a consolidação da marcha para o centro-oeste, que atinge a Amazônia e é marcada pela
culminância da urbanização com o translado migratório de quase 50% da população e
sua concentração em 10% dos municípios do país. Consolidam-se nesse quadro os
mercados consumidores urbanos para as indústrias de bens duráveis de consumo.
O terceiro movimento tem início a partir de 1988 com dispositivos
constitucionais que estipularam a redivisão do trabalho político das atividades e funções
dos municípios no país. Desde então, passam a assumir a gestão de políticas setoriais e
territoriais antes sob responsabilidade federal e dos estados, tais como: planejamento
urbano, habitação, saneamento e águas, transporte de massa, educação básica, saúde
pública e algumas políticas de desenvolvimento.
Nesse terceiro momento se consolida a retorritorialização da ocupação das áreas
periféricas intra-urbanas pelos grupos sociais trabalhadores e populares (VILLAÇA,
1998). O movimento de adensamento do território urbano em relação aos centros
respectivos passou a ser um processo alimentado pela concentração dos investimentos
públicos e privados no papel do capital imobiliário, diante de uma economia intraurbana em todas as capitais e áreas metropolitanas do centro-sul e sul, além do centrooeste e nordeste do País.
De 1988 até a atualidade avolumaram-se os investimentos econômicos e
financeiros em poucos desses pólos no País, tendo início importantes articulações dos
sistemas de transportes, telecomunicações, energia e redes sociotécnicas de educação
superior (graduação e pós-graduação) entre outras (SANTOS; SILVEIRA, 2001).
Tal reterritorialização definirá um perfil de distribuição de recursos e população
dos municípios do país em três grandes grupos na atualidade: o primeiro deles se
distingue por estar dotado de economia urbana e população superior a 500 mil
habitantes, formado por apenas 31 municípios (grupo dos 31, ou G-31); o segundo
grupo com 100 a 500 mil habitantes está concentrado em 194 municípios (grupo dos
194 ou G-194); o terceiro grupo possui população e economia regional sem
predominância urbana, e está distribuído nos 5.336 municipalidades restantes, ou 95%
dos municípios (grupo dos 2.336 ou G-5.336; IBGE, 2000).
2.2 A marcha da descentralização política e econômica do Estado brasileiro
Os historiadores mostram que a primeira contestação republicana ao regime
monárquico no Brasil desde o fim das revoltas provinciais foi o Manifesto Republicano
de 1870, que exigia, entre outros temas, a implantação da Federação, nos moldes norteamericanos. A solução para as novas aspirações e conflitos surgidos com as
transformações econômicas e sócias da segunda metade do século XIX parecia estar no
federalismo. Desde então, a centralização passou a ser vista como um entrave ao
desenvolvimento do país (BERCOVICI, 2004, p. 29).
A Constituição de 1946 consolidou a estrutura cooperativa no federalismo
brasileiro, previsto já em 1934, com grande ênfase na redução dos desequilíbrios
regionais, favorecendo, apesar do reforço do poder federal, a cooperação e a integração
nacional. Foi sob a vigência desta Constituição, na década de 1950, que a Questão
Regional ganhou importância no debate político nacional, com a concepção de que a
atuação estatal e o planejamento regional eram elementos essenciais para o
desenvolvimento, de acordo com as diretrizes elaboradas pela recém-criada CEPAL
(Comissão Econômica para América Latina). Desde então, todas as constituições
brasileiras têm a preocupação de tentar consagrar instrumentos para a superação das
desigualdades regionais. Buscava-se a harmonização interna do desenvolvimento
nacional. Em 1959 foi criada por meio da Lei 3.692 de 15 de dezembro a
Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE).
Em vários estados da federação foram criados órgãos próprios de planejamento.
Esses órgãos tinham por função dinamizar as forças produtivas das suas áreas de
atuação e integrá-las ao sistema nacional. A Constituição de 1988 institui
expressamente, em seu artigo 23, o Federalismo Cooperativo, descrevendo uma série de
matérias cuja competência é comum entre União, Estados, Distrito Federal e
Municípios. Entretanto, prescreve um parágrafo único desse artigo que diz que lei
complementar fixará normas para a cooperação entre os entes da federação tento em
vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.
Com a restauração do federalismo pela Constituição de 1988, as políticas de
desenvolvimento regional devem ser elaboradas e implementadas dentro dos marcos do
sistema federal, ou seja, com a coordenação e cooperação da União e todos os entes
federados. Cabe também à União articular o desenvolvimento e a redução das
desigualdades regionais, através da criação de regiões administrativas (que nunca saiu
do papel), dos incentivos e da ação de organismos regionais (artigo 43).
A questão da descentralização no país surge do processo de elaboração do
sistema tributário e financeiro durante a Assembléia Constituinte de 1987/1988 e teve
como característica a polarização regionalista. A concepção de descentralização no
Brasil ainda é vaga, mas já apresenta polêmica nos debates. Entretanto, na maioria das
vezes, o sentido de descentralização utilizado é o anglo-saxônico e norte-americano, ou
seja, como um redirecionamento para os agentes locais e para o mercado,
fundamentando as visões neoliberais. Sob este enfoque, a descentralização é
apresentada como um fator de eficiência e controle da atuação governamental,
sugerindo que o poder central e/ou estatal é corrupto e ineficiente (SOUZA, 1997). A
partir de então, o Governo Federal simplesmente reagiu à perda de recursos, reduzindo
ao máximo as transferências não-obrigatórias (subvenções),39 desguarnecendo as
políticas sociais, agora também responsabilidade de Estados e Municípios
(BERCOVICI, 2004:66). A queda do volume de gastos federais foi tão rápida e
acentuada que a crise social só não foi maior graças ao aumento dos gastos subnacionais
com a implementação de políticas públicas.
No entanto, após a Constituição de 1988, de modo lento, inconstante e
descoordenado, os Estados e Municípios vêm substituindo a União em várias áreas de
atuação, especialmente nas áreas da saúde (através do Sistema Único de Saúde – SUS),
educação, habitação e saneamento. Esta transferência não planejada e descoordenada de
encargos contradiz o lugar comum de que os entes federados receberam apenas verbas,
e não encargos (BERCOVICI, 2004, p. 67).
O debate do sucesso da descentralização de políticas regionais e sociais no
Brasil está ligado ao fortalecimento das capacidades institucionais e administrativas do
Governo Federal, que é o nível do governo que dirige e coordena a implementação das
políticas descentralizadas pelos entes federados (ARRETCHE, 2000), mas também pela
capacidade de criatividade de recursos específicos das localidades e regiões, onde se
destaca a governança territorial. Desse modo, o fator determinante da descentralização
bem-sucedida de políticas sociais e regionais não se reduz a decisão política do Estado
de elaborar uma política nacional deliberada, mas também do desenvolvimento local e
39
São transferências voluntárias de recursos para cobrir despesas de determinados órgãos ou entidades
públicas, devendo estar previstas na lei orçamentária (artigo 12 da Lei 4.320, de 1964).
da capacidade competitiva das regiões. Portanto, a decisão de descentralizar está,
irremediavelmente, ligada à questão histórica das desigualdades regionais e à
capacidade dos territórios criarem arranjos institucionais locais e regionais eficientes,
isto é, a governança territorial.
Os conselhos de gestão local e regional e os consórcios intermunicipais regionais
são exemplos dessas mudanças na regulação territorial do país. Só agora em 2005 por
meio da Lei 11.107, de 6 de abril, é que foram criadas as normas para contratação de
Consórcios Públicos entre os entes da federação para a realização de objetivos de
interesse comum. São nesses dispositivos institucionais que estão abertas as
possibilidades de criação de territórios corporativos transmunicipais, para realização de
interesses diversos conforme as expectativas com relação aos ativos e recursos
territoriais.
2.3 Conselhos de gestão local (CGL) e de gestão regional (CGR)
A reforma constitucional brasileira de 1988, e posteriores reformas setoriais
viabilizaram uma explosão de conselhos de gestão local (CGL) para o desenvolvimento
territorial. A partir de 1999 o Censo Nacional brasileiro identificou cerca de 27 mil
desses conselhos em várias regiões do país, formado por prefeituras, entidades civis,
associações de produtores rurais e urbanos. O mesmo ocorre com os conselhos de
desenvolvimento regional (CDR), formados aos milhares por outras novas organizações
e instituições para o desenvolvimento local e regional. Trata-se de colegiados de gestão
paritários e deliberativos, com representação social e de caráter setorial nos municípios
assim como nos governos estadual e central (Polis).
Tais conselhos podem assumir três configurações a partir da experiência
brasileira nos últimos 15 anos: (i) Conselhos de programas da gestão de governo (caso
do orçamento participativo, programas de desenvolvimento rural, transferência de renda
mínima e alimentação escolar, cestas-básicas e conselhos de habitação e
desenvolvimento urbano e de desenvolvimento econômico; não possuem orçamento
próprio. (ii) Conselhos permanentes de defesa dos direitos sociais e humanos (defesa
dos direitos da mulher, direitos civis em situações extremas de ameaça aos direitos
humanos, meio ambiente, patrimônio cultural, urbanismo, lazer e cultura; igualmente
não possuem orçamento próprio e (iii) Conselhos gestores permanentes de políticas
públicas - colegiados consultivos e, noutros casos, deliberativo sobre políticas de
educação, saúde, assistência social, criança e adolescente, política das águas, e fundos
sociais. Esses são dotados formalmente de orçamento e têm tradição de transferência e
descentralização de recursos, estando associados às áreas setoriais dos governos.
Encontram-se nos três níveis de governo no Brasil (municípios, estados e União).
Integram esse tipo de conselhos os Consórcios Intermunicipais e Comitês de Bacia
(DAGNINO, 2002, 1997; NEDER, 1995, 1996; BENEVIDES, 1991; TEIXEIRA et al,
2004). Os CGLs e CDRs concentram-se entre esse último tipo de Fórum funcionando
sobretudo nos municípios do G-31 (metropolitanos) e do G-194 (de 100 a 500 mil
habitantes).
3. EXEMPLOS DE NOVA GOVERNANÇA TERRITORIAL NO BRASIL?
3.1 O consórcio intermunicipal da região do ABC
A experiência de governança territorial na região do ABC apresenta inovações
importantes, e duradouras. Nos anos 1990 foram criados a Agencia de
Desenvolvimento, o Consórcio ABC, um Fórum da Cidadania, e a Câmara Regional do
ABC. A Câmara Regional do ABC tem a função de priorizar as leis de interesse comum
entre sete municípios; seu braço operacional para elaboração de projetos de
desenvolvimento é o Consórcio do ABC, e a Agência de Desenvolvimento é
responsável pela atração dos investimentos. A governança até o momento alcançada é
uma das mais importantes experiências da nova institucionalidade territorial do país.
Enquanto arranjo – ou sistema - o formato multisetorial e interinstitucional da
Câmara Regional do ABC permite atuar como um conselho de desenvolvimento
regional. Em 10 anos de atuação tem demonstrando a capacidade de se erigir como
alternativa virtuosa às tendências de desterritorialização da globalização, seja para a
reestruturação da região do ABC paulista, seja para a construção de novas relações
sociais e novos modelos de sociabilidade territorial. A resposta que a região vem dando
à crise econômica se apóia na significativa densidade institucional que caracteriza a
região, no capital social acumulado, resultado de um complexo processo de constituição
de atores e de espaços de interlocução e negociação que teve lugar na região, nos
últimos 20 anos (ABRAMO; LEITE, 2002; LEITE, 2003). É importante lembra que a
gênese da Câmara Regional do ABC remonta, no entanto, a um momento um pouco
anterior, quando da criação do Consórcio Intermunicipal das Bacias do Alto
Tamanduateí e Billings, em dezembro de 1990, congregando os sete municípios da
região.
Sob a perspectiva do tratamento teórico sobre o enraizamento social das
instituições produtivas e de regulação social, sua delimitação territorial apresenta um
duplo problema. Legislações nacionais que regulam investimentos públicos com
abrangência regional podem não reconhecer essas experiências, em segundo lugar, ao
contrário, experiências locais podem não ser contempladas na legislação nacional. Isso
também ocorre com projetos ou planos de desenvolvimento traçados no governo central
para regiões e territórios específicos (retornaremos adiante a essa questão).
3.2 O comitê da bacia hidrográfica dos rios Piracicaba-Capivari-Jundiaí
O comitê delibera e influi na política estadual para as águas. Os membros da
sociedade civil são igualmente autorizados a intervir e discutir modalidades de
planejamento participativo na aplicação de instrumentos e princípios. A criação dos
comitês no Brasil e, especialmente, em São Paulo, foi direcionada num primeiro
momento (1984-1991) para ampliar a esfera da negociação social e político-econômica,
para alocação de recursos visando um objetivo central: a cobrança do uso econômico da
água, no quadro mais amplo da gestão dos usos múltiplos (entre abastecimento humano
e agricultura, prioritariamente, e depois para usos de residenciais ou produtivos).
O papel dos colegiados tem sido o de superar as descontinuidades no
planejamento e ações entre governos intermunicipais e o governo regional (estadual),
além de visar à superação da baixa capacidade de mobilização de investimentos em
setor estratégico para o desenvolvimento – caso da água e do esgotamento sanitário e
saúde pública (NEDER, 2002a, 2002b). O caso de Comitê da bacia hidrográfica dos rios
Piracicaba-Capivari-Jundiaí (no interior de São Paulo) vem demonstrando maior
capacidade de mobilização e institucionalização para criar formas de regulação sobre a
expansão da industrialização sem controle. Além disso, atua para a reestruturação das
formas de gestão colegiada na região, com a construção de novas relações sociais e
novos modelos de desenvolvimento econômico com sustentabilidade ambiental e
ecológica.
A resposta institucionalizada do comitê é uma das experiências com mais êxitos
de resposta à crise socioambiental, ao se apoiar no capital social acumulado na luta
pelos recursos hídricos da bacia, resultado de um complexo processo de constituição de
atores públicos e privados e representantes da sociedade civil, na construção de espaços
de interlocução e negociação nos últimos 10 anos.
O debate do Plano da Bacia no Comitê segue as tendências internacionais em
geral divididas entre duas posturas. A dos defensores de modelos geridos com base em
critérios de alocação político-institucionais produzidos como resultado de consenso
gerado por processos no interior da gestão da bacia envolvendo água e saneamento. O
outro grupo opera seus sistemas de gestão com base em mercados de água enquanto
instrumento para administrar o abastecimento, promovendo a transferência anual de uso
de água entre vendedor e comprador. A expectativa dos agentes no Comitê no ciclo de
elaboração quadrienal do Plano é incluir as principais metas e ações para a melhoria da
qualidade e da quantidade de águas dos mananciais da região, políticas voltadas ao
gerenciamento sustentável desse recurso natural.
3.3 Novos desafios
Os principais desafios desses novos arranjos institucionais no Brasil na criação
de novos territórios locais podem ser resumidos nos seguintes aspectos. No caso do
ABC Paulista, a presença de entidades associativas regionais exige que sejam criadas
sempre novas condições para um pacto de regulação. Tais entidades estão ainda longe
de uma governança territorial uniforme e sistêmica sobre seus atores, recursos e
instituições locais.
Resulta daí que aumenta o desafio de inovar, e ao fazê-lo provocar a reinvenção
do território. Mesmo que as modalidades de regulação combinadas territoriais e setoriais
não tenham eventualmente capacidade de alterar o ordenamento estatal ou garantir
resultados amplos para os atores (de legislação e de públicas implementadas sem
defasagens), a existência do pacto de regulação neutraliza os efeitos negativos do jogo
de forças de outros atores (caso, por exemplo, da concorrência intercapitalista, da
exclusão do território de programas federais e estaduais que sempre provocam acirradas
disputas e tencionam o pacto).
Aqui se coloca justamente o problema da convergência afeto aos movimentos de
transnacionalização de capitais, fluxos de riqueza e investimentos que alteram a
capacidade de regulação nacional, regional, e territorial (STREECK; SCHMITTER,
1984; STREECK; SCHMITTER, 1991). Esta dimensão pressupõe que o maior
fortalecimento dos movimentos de convergência deve ser qualificado -- por exemplo,
pelas cláusulas dos pactos de regulação, de forma a incorporar o capital social.
Nesse sentido, no Brasil, há dúvidas sobre se a capacidade dessa governança
(que se traduz inclusive em interesse econômico) será capaz de gerar uma economia
política para a sociedade incivil, cuja meta seria geração de renda, ocupação, emprego
em serviços co-extensivos aos objetivos de sustentabilidade social. Aliás, problemas
estes que também se colocam em várias cidades-mundiais e no interior das sociedades
altamente industrializadas, acerca de que tipo de pacto social que se desenha para o
futuro (WOLF, 1989).
Outra dimensão comum presente no debate sobre a eficácia da ordem associativa
presente nesses arranjos institucionais diz respeito aos valores que orientam a inclusão e
exclusão de sujeitos societários. Essa dimensão é chave para a transição da gestão
centrada na lógica mesoeconômica setorial e da cadeia produtiva -- necessária com
aumento da governança territorial, mas insuficiente -- para uma lógica de regulação
associativa com a sociedade civil não-econômica que se traduz em fortalecimento das
entidades não-empresariais em geral (SCHIMITTER, 1986, PUTNAM, 1993).
No caso da governança no ABC sua principal vantagem ou impacto tem sido
atuar como um guarda-chuva aberto para que entidades associativas menores possam se
articular e formar redes assistenciais e envolver ganhos para os trabalhadores e
assalariados em geral. Até o momento, nada indica que essas experiências tenham
desenvolvido alternativas ao que historicamente se convencionou chamar de pacto de
renda e salários, com proteção social (Offe 1989). Dois modelos presidem hoje esse
debate.
De um lado, há uma expectativa de que o Estado assuma o papel de fieldepositário moral das obrigações que o cidadão tem em relação ao vizinho, parente,
amigo ou conhecido, dado que vivem numa mesma comunidade e território (regulação
societária baseada nas redes informais e entidades associativas as quais tendem a
fortalecer o capital social). De outro lado, contudo, o esforço de romper dependências,
aprofundar concorrências e expandir mercados impõe uma cultura política de mercado
como inteiramente distante daquelas obrigações. Grupos comunitários fortes tentam
romper essa lógica apelando tanto para a primeira quanto para a segunda expectativa.
Daí se estabelece o status de civil que confere direitos de certas camadas, grupos e
classes sociais entrarem no clube, na universidade, nas entidades organizadas, nas
empresas no território, enfim, nas entidades organizadas da cidade.
Aos excluídos se estabelece o status de incivil - que é o direito dos outros grupos
excluírem sujeitos concretos. Há, ainda, entre esses dois extremos, aqueles que podem
esperar ser incluídos - portanto, não estão nem lá, nem cá. Ou seja, não é cidadão pleno,
e tampouco se encontra em fase pré-política ou de minoridade de direitos (para o
desenvolvimento territorial trata-se de um desafio que é introduzir nas franquias da
cidadania requisitos de transição como parece ser o caso da renda mínima associada à
geração renda e ocupação com novas condições de sustentabilidade social econômica e
espacial).
Para a governança territorial isto significa, na prática, formas de intermediação
sobre orientações e políticas territoriais e setoriais (urbanas, socioambientais, políticas
sociais e locais as mais diversas) de caráter sustentável aplicados aos serviços de água,
saneamento, abastecimentos de gêneros alimentícios, transportes sob uma ótica de
interdependência como requisito básico, e não competitivo com a governança
empresarial no território.
Tanto num caso quanto noutro, sob esse tipo de intermediação, as partes definem
formas de parcerias e arranjos entre ações e estruturas público-governamentais e
organizações privadas. (SHARPE, 1993, OFFE, 1995; KAMERMAN; KAHN, 1993).
Arranjos desse tipo foram, e ainda são, comuns em diferentes sociedades civis e seus
respectivos estados no campo dos setores de produção industrial até meados dos anos
1970/1980. A diferença nos anos 1990/2000 refere-se à existência de arranjos entre os
demais setores de atividades e interesses fora do círculo das relações industriais. O que
envolve diferentes níveis de governo (local, estadual/regional e nacional conforme
mencionado no caso do ABC), em torno de disputas por bens públicos e semi-públicos
(PUTNAM, 1993, SCHMITTER, 1986).
Num balanço mais amplo sobre a experiência dos comitês no estado de São
Paulo um de seus problemas de regulação e governança territorial ainda é visão restrita
sobre os diferentes público-beneficiários das ações do comitê de bacia. É função da
regulação ampliar as diferenças específicas de governança. Por exemplo, em bacias
urbanas existe a necessidade de responder a três tipos de governança. Uma típica do
território metropolitano, outra das cidades médias externas às áreas metropolitanas, e a
terceira, relativa também a cidades médias, mas situadas no perímetro interno dos anéis
metropolitanos que apresentam gravíssimos déficits de governança pois estão em
territórios que excluem parcelas consideráveis da classe trabalhadora nas periferias
urbanizadas precariamente em áreas vitais para a qualidade dos recursos hídricos
urbanos (NEDER, 2002).
No tocante a influir na destinação dos investimentos os comitês de bacia (com
exceções como o acima analisado), são ainda uma instância de regulação social, mas
não estão adequados para uma autêntica governança territorial em decorrência destas
dificuldades. Dessa forma, os comitês (e suas entidades-participantes) vêm se
constituindo em sujeitos de um controle social ainda assistemático e mal distribuído
territorialmente, com pouco controle sobre os resultados das políticas públicas
necessárias. Esse tipo de controle social sobre a ação do Estado tem se revelado como
uma modalidade de regulação social (não se trata do acesso individual para reclamar ao
ministério público, mas de intervir no ato das assembléias e encontros dos conselhos).
4. CONCLUSÕES
As conclusões deste artigo remetem aos problemas de eficácia da representação
na governança territorial no Brasil.
As experiências de governança regional do ABC e a do Comitê de Bacia
Hidrográfica analisados neste artigo permitem dizer que um dos principais obstáculos
ao planejamento e desenvolvimento territorial é compatibilizar as ações no plano das
desigualdades intra-setoriais, interinstitucionais, interempresariais, locais e regionais. A
passagem (sempre potencial) da regulação estatal para a governança territorial tem
várias dimensões problemáticas. Uma delas diz respeito às configurações locais e
territoriais para superar a ação reivindicatória no incremento do ritmo de incorporação
da sociedade incivil (i.é. sem organização em entidades civis próprias).
São problemas comuns aos consórcios e comitês sua manipulação pelos
procedimentos tecnoburocráticos no aparelho de Estado. Essas distorções encontram
uma possível resolução no aprofundamento das tentativas de governança territorial sob
o federalismo republicano local, regional e setorial. Mas esbarram em um último
obstáculo próprio da representação social. Esta, devido à familiaridade persistente com
a exclusão social com ou sem assalariamento prévio, continua sujeita a políticas do
favor, tendo como pano de fundo a violência gestada pelo sistema econômico.
Suas demandas, isto é, reivindicações, estão sujeitas a se converter em moeda de
troca ou manipulação, parte da barganha de vontades de grupos já funcionando sob uma
racionalidade dos partidos, políticos clientelistas e redes de interesse.
No Brasil, uma possível explicação para isso residiria na existência de códigos
sociais de ocupação, renda, titulação de origem familiar, étnica e religiosa sob os quais a
sociedade se hierarquiza e diferencia os indivíduos. Os caminhos da reestruturação
brasileira na globalização, como parte do contexto mais geral de transformações
econômicas e sociais parece revelar um complexo fenômeno de reterritorialização.
A análise de novas formas institucionais de regulação territorial vem emergindo
em meio a esse processo de mudanças, cuja elucidação assume grande importância para
entender as nossas especificidades em relação às experiências internacionais. Reagindo
às conseqüências globais desse processo, a sociedade brasileira vem se movimentando
em direção a modos alternativos de produção, criando novas formas institucionais de
controle, de governança e regulação do território local e regional.
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PLANEJAMENTO URBANO E SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL:
INTERESSES E CONFLITOS NO ESPAÇO URBANO DE OURINHOS/SP40
Alessandra dos Santos Julio 41
Marcio Rogério Silveira 42
RESUMO
O artigo busca analisar o modo como às novas políticas públicas de planejamento
urbano estão sendo implantadas nos municípios brasileiros. E mais precisamente qual é
o impacto destas políticas no espaço intra-urbano destes municípios, especialmente, a
segregação socioespacial. Essas novas políticas, a que nos referimos, tratam-se das
medidas estabelecidas pela Constituição Federal de 1988 e regulamentadas no Estatuto
da Cidade (Lei Federal Nº. 10.257 de 2000). O instrumento base que materializa todas
estas medidas é o Plano Diretor, definido pelo Estatuto da Cidade como instrumento
básico da política de desenvolvimento e expansão urbana. O Estatuto da Cidade salienta
a necessidade da participação da sociedade civil no planejamento e na gestão do urbano,
como forma de alcançar um real desenvolvimento e crescimento socioespacial com
cumprimento da função social da cidade. Na pesquisa o enfoque maior será relegado ao
município de Ourinhos/SP. O estudo de caso servirá como base para compreendermos
empiricamente estas diretrizes. Assim, o que nos cabe analisar, a partir do caso do
município de Ourinhos, é o efeito concreto das novas políticas de planejamento
participativo.
Palavras Chave: Planejamento Urbano. Plano Diretor, Segregação Socioespacial.
Espaço Urbano. Ourinhos/SP.
URBAN PLANNING AND SOCIAL SPATIAL SEGREGATION:
INTERESTS AND CONFLICTS ON THE URBAN SPACE OF OURINHOS/SP
ABSTRACT
40
Pesquisa integrante do Projeto de Pesquisa Regular: Dinâmica Produtiva Regional e Transferência de
Recursos Privados para Infra-Estruturas Públicas no Território Paulista: a Região de Ourinhos
(Financiada pela FAPESP).
41
Estudante de Graduação Curso de Geografia, Universidade Estadual Paulista, Ourinhos-SP,
[email protected] Curso de Geografia, Universidade Estadual Paulista, Ourinhos-SP,
[email protected]
42
Professor Titular Curso de Geografia, Universidade Estadual Paulista, Ourinhos-SP,
[email protected]
The article tries to analyze how the new public politics of urban planning has been
implanted in the Brazilian countries. And more specifically what is the impact of these
politics on the intra-urban space of these countries, especially, the social spatial
segregation. These new politics that we are talking about are the bounds established by
the Constituição Federal of 1988 and established on the Estatuto da Cidade (Lei
Federal No 10.257 of 2000). The basic instrument that materializes all these
establishments it’s the Plano Diretor, defined by the Estatuto da Cidade as a basic
instrument of the development politics and urban expansion. The Estatuto da Cidade
emphasizes the necessity of participation of the civil society on the planning and on the
management of the urban, as a way to reach a real development and social spatial
growing with the accomplishment of the social function of the country. At the search the
more important focus will be transported to the country of Ourinhos/SP. The study of
case will serve as a base to understand empirically these standards. So, what befits to
us is to analyze, with the case of Ourinhos/SP, the concrete effect of the new politics of
participated planning.
Key Words: Urban Planning. Director Plan. Social Spatial Segregation. Urban Space.
Ourinhos/SP.
INTRODUÇÃO
A cidade contemporânea é uma formação híbrida resultado da ação de uma
diversidade de agentes que produzem e reproduzem o espaço urbano. Um dos agentes
responsáveis é o Estado que, por vivermos em uma democracia, é representante do povo
e deve assim atender aos interesses da sociedade. Dentro das responsabilidades do poder
público está a intervenção no espaço urbano a fim de construí-lo e organizá-lo de forma
planejada, de acordo com as necessidades do município e visando ao bem-estar de toda
a população.
A ação do Estado na produção do espaço urbano é bastante complexa visto que
sua atuação não está neutra às contradições da sociedade capitalista. Para o
direcionamento das intervenções e gestões do espaço urbano o Estado tem disponível,
segundo a legislação urbanística federal, estadual e municipal, uma variedade de
instrumentos como tributos, zoneamentos, parâmetros urbanísticos, leis e planos
diretores. Todos esses instrumentos têm por objetivo que a cidade cresça de forma
ordenada e se desenvolva socioespacialmente.
No que tange ao planejamento urbano, ou seja, à organização da cidade de
forma a prever a sua evolução e assim se precaver de problemas futuros, o principal
instrumento atualmente é o Plano Diretor. A Constituição Federal de 1988 (art. 182)
destaca que o Plano Diretor é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de
expansão urbana do município, a fim de definir a função social da cidade. Da mesma
forma, a Constituição de 1988 atribui maior autonomia aos municípios, reconhecendo a
sua capacidade de organização e a necessidade de um planejamento que considere as
particularidades existentes em cada município.
Assim, durante o artigo enfocaremos a ação do Estado, através especialmente
dos planos diretores, como um agente que contribui com a existência e manutenção da
segregação socioespacial.
Seria errôneo, sem dizer simplista, colocar a segregação socioespacial como
fruto apenas das políticas públicas, quando ela é na verdade também resultado de uma
correlação de forças e atores, produzindo e reproduzindo o espaço urbano. De forma
que a segregação socioespacial não é um fenômeno novo na estrutura urbana, mas tem
sido acentuada nos últimos anos, principalmente a partir da segunda metade do século
XX. Essa seqüela é decorrência direta da relação entre urbanização e os mecanismos de
reprodução do capital, os quais engendraram mudanças significativas na economia e na
sociedade.
Assim, o estudo do planejamento urbano no município de Ourinhos torna
possível entender a complexidade das relações estabelecidas entre as políticas públicas,
os interesses do capital e a organização do espaço de uma cidade de porte médio. O
município de Ourinhos está localizado no sudoeste do estado de São Paulo, na divisa
com o estado do Paraná (médio Vale do Paranapanema) e destaca-se como um
importante centro regional (sede da região do governo de Ourinhos) devido,
principalmente a suas atividades econômicas (comércio, indústrias e agropecuária) e ao
entroncamento logístico (ferroviária e rodoviária). Essa região do estado apresenta
poucos estudos. Em Ourinhos, particularmente, não foram encontrados trabalhos
referentes ao papel do planejamento urbano na produção do espaço urbano e na
formação de espaços segregados. Portanto, o respectivo estudo é pertinente, pois não só
pode chamar a atenção do setor público para áreas que necessitem de maiores
investimentos, como também contribuir com a população em geral, ao questionar se o
Plano Diretor possui viabilidade de execução ou se limita a um texto utópico e/ou
segregacionista, que segue a lógica de “planos mitos” apresentada por Villaça (2004).
PLANEJAMENTO URBANO E PLANO DIRETOR: EVOLUÇÃO
HISTÓRICA
Compreender o processo de urbanização é ao mesmo tempo compreender o
processo de evolução do pensamento e do ideário da sociedade, uma vez que, “pensar o
urbano significa também pensar a dimensão do humano”. Assim, para entender o
“fenômeno urbano” é necessário entender a sociedade e seus problemas (CARLOS,
1994, p. 24). Lefebvre compreende a cidade como uma construção inter-reativa entre o
espaço e as relações sociais. Daí compreender que se deva falar em “socioespacial”.
Frente às conturbações e contradições concretizadas no espaço urbano foram
propostos vários planos urbanísticos na tentativa de ordenar a cidade. Os modelos
elaborados sempre foram impostos de cima para baixo – Estado/povo – objetivando
uma cidade ideal. E, apesar dessas constantes intervenções, é perceptível que as tantas
formas de intervenção no espaço não conseguiram resolver os conflitos sociais
geradores desses territórios contraditórios.
O processo de reforma urbanística no Brasil se iniciou nos primórdios do séc.
XX. Nesse momento histórico ela seguia os modelos europeus do Urbanismo
Modernista, os quais prezavam pelo embelezamento das avenidas centrais, colocação de
praças, parques e a higienização com a construção de instrumentos de saneamento.
Tanto as modernizações quanto a construção das primeiras cidades novas brasileiras
seguiam esse modelo no qual “a inspiração era fundamentalmente européia e mais
marcadamente francesa” (REZENDE, 1999 apud MARICATO, 2000, p.137). Dentre
essas intervenções de “modernização” podemos destacar a Reforma Passos no Rio de
Janeiro, a remodelação do bairro do Recife (bairro portuário de Pernambuco) e os
Planos de Melhoramentos da capital de São Paulo.
De base conservadora e positivista, essas reformas urbanísticas importadas da
Europa representaram de forma bastante arbitrária um modelo de segregação
socioespacial e de favelização que perdura de maneira análoga até os dias atuais. Fruto
de um processo que colocava a recém-nascente burguesia capitalista e o segmento
médio urbano no centro da cidade e os pobres na periferia, destacando-se as encostas
dos morros e as áreas pantanosas (no caso do Rio de Janeiro) e longe do centro urbano
(no caso de São Paulo). Todas essas intervenções tinham por resguardo a idealização de
uma cidade ideal, porém de acordo com o interesse da classe dominante. Assim, as
questões sociais eram totalmente ignoradas e, ao mesmo tempo, parte da sociedade era
negligenciada.
As fortes mudanças no processo de ocupação e produção do solo urbano,
decorrentes da industrialização que se iniciava no Brasil a partir da década de 1950,
definiram novas formas e necessidades de planejamento. Principalmente, quanto às
necessidades advindas do grande contingente populacional recém-chegado aos centros
urbanos, vindos do campo.
Com a mudança do regime político brasileiro decorrente do Golpe Militar em
1964, o país passou a ser regulado por um regimento que procurava manter a “ordem” e
a “segurança nacional” com mãos de ferro. Consequentemente, o planejamento urbano
foi conservador porque também procurou manter a ordem econômica, social e política
da época e acabou por seguir a lógica do período histórico conhecido como os anos do
welfare state (Estado de Bem-Estar Social)43. Nas palavras de Maricato (2000, p. 126):
[...] o planejamento urbano ganhou a herança positivista, a
crença no progresso linear, no discurso universal, no enfoque
holístico. Da influência keynesiana e fordista, o planejamento
incorporou o Estado como a figura central para assegurar o
equilíbrio econômico e social, e um mercado de massas.
Assim, durante o regime militar, principalmente na década de 1970, o
planejamento urbano foi institucionalizado nas administrações municipais “com a
missão de promover o desenvolvimento integrado e o equilíbrio das cidades, em um
contexto de explosão do processo de urbanização” (ROLNIK, 2001, p. 115).
Essas diretrizes, que vigoraram até os anos de 1980, desenvolveram um
complexo industrial, proporcionando ao Brasil o apelido de “ilha da prosperidade”.
Logo, o desenvolvimento de novas técnicas e a formação de uma indústria de base
fortaleceram a mecanização da agricultura. Um dos efeitos diretos dessa mudança na
base econômica foi a expulsão dos trabalhadores do campo e, por conseguinte, a atração
desses para as grandes áreas urbanas44.
Com a crise do estado capitalista, na década de 1980, as estratégias de
planejamento reinantes também enfraqueceram:
(...) em outras palavras ele representa a substituição de um “planejamento forte”,
típico da era fordista, por um “planejamento fraco” (muita gestão e pouco
planejamento), o que combina bem com a era do pós fordismo, da desregulamentação e
do “Estado Mínimo” (SOUZA, 2002, p. 31).
Frente a uma imensa dívida externa, o país, através das elites dominantes,
optou por abandonar o modelo de “desenvolvimento coordenado” e aderir ao “Consenso
43
Todavia, devido ao tipo do regime militar brasileiro, as políticas de planejamento financiadas pelo
Estado seguiram uma linha desenvolvimentista para dar aporte às indústrias (parques industriais, pólos
industriais e tecnológicos), à integração territorial (rodoviarização) e às grandes empresas estatais
(Petrobrás, Eletrobrás e Siderbrás). Fato comprovado pelos investimentos nas superintendências de
financiamentos regionais para as macrorregiões (SUDENE, SUDAM, SUDECO, SUDESUL) e outros
espaços (Polamazônia, Polonordeste, entre outros).
44
Ainda, destaca-se, a ampliação da CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), para os trabalhadores
rurais.
de Washington” e ao projeto neoliberal. Como, conseqüência observou-se um
enfraquecimento do planejamento regulatório estatal, justificando a incorporação de
idéias mais flexíveis da ideologia neoliberal. Fatos que foram amplamente assegurados
nos governos Fernando Collor de Melo e Fernando Henrique Cardoso. No mesmo
período, houve uma maior concentração da pobreza urbana e ampliação da desigualdade
social.
NOVOS RUMOS NA POLÍTICA URBANA BRASILEIRA
Na década de 1980, o aumento das discussões quanto às políticas públicas e à
ampliação do número de instituições e movimentos populares, que lutavam por uma
cidade mais digna, culminaram com a promulgação de uma política de desenvolvimento
urbano prevista na Constituição de 1988. Nos artigos 181 e 182, ela esboça pleno
ordenamento e desenvolvimento das “funções sociais da cidade e garantia de bem-estar
aos seus habitantes”.
A partir dos anos 1990, os planos diretores ganharam ares de solução de todos
os problemas urbanos. Além disso, as políticas públicas passaram a dar maior
importância a um tipo denominado de planejamento “mercadófilo”, já que, nesse estilo
é priorizada a capacidade da cidade em atrair investimentos ao passo que os interesses
sociais são postos de lado em favor dos interesses do capital, ou seja, nenhuma abertura
à participação popular (SOUZA; RODRIGUES, 2004).
Com a necessidade de se estabelecer as diretrizes básicas de política urbana
para o país e a regulamentação dos capítulos urbanos da Constituição de 1988, foi
aprovada, em 2001, a Lei N° 10.257 – Estatuto da Cidade. Esse documento representa
um grande avanço nas discussões quanto às ações e intervenções no urbano, visando
constituí-lo realmente em um ambiente justo para toda a população.
Em 2003, o Presidente da República Luis Inácio Lula da Silva deu mais um
importante passo no sentido de melhorar as políticas urbanas brasileiras ao criar o
Ministério das Cidades, órgão responsável pela disseminação e aplicação do conteúdo
do Estatuto, sobretudo para viabilizar a produção de planos diretores para os municípios
que se enquadram dentro das características delimitantes da obrigatoriedade
(MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2005).
Paralelo a essa realidade, o processo de real participação da sociedade na
gestão do município ainda esbarra em outros obstáculos. Rapidamente podemos citar
alguns, como o “analfabetismo urbanístico” (MARICATO, 2000) da população, assim
como de seus direitos, a influência do capital imobiliário, conflitos de interesses,
pressões de setores da elite local, entre outros.
Sendo a segregação social a principal característica do atual modelo urbano, o
Estatuto coloca em dois pontos a melhor distribuição de serviços e atendimento com
regulação
fundiária à
população
excluída,
objetivando
com
isso
um
real
desenvolvimento socioespacial. No entanto, apesar do Estatuto da Cidade determinar
essas diretrizes aos planos diretores, ele não determina a sua total eficácia e a sua
aplicação no município como um todo (zona rural e urbana).
Portanto, no Brasil, de forma geral, o que falta não são leis. Ao contrário, essas
existem e, apesar de ainda haver desfalques, elas procuram ditar as normas para um uso
racional do espaço e dos recursos naturais. Todavia, elas esbarram na falta de vontade
política e nos conflitos de interesses. O planejamento urbano e o Plano Diretor não
devem ser encarados apenas como leis, mas como uma resposta a problemas locais, pois
da mesma forma que essas leis e mecanismos urbanísticos são reflexos de modelos
regionais, nacionais e mundiais, os problemas e desigualdades socioespaciais são
manifestações locais (com peculiaridades e especificidades) de problemas e eventos em
âmbito regional, nacional e mundial.
No presente estudo, portanto, observaremos o resultado prático-empírico e a
adequação de tais normas e instrumentos de planejamento urbano ao município de
Ourinhos.
OURINHOS:
FORMAÇÃO
SOCIOESPACIAL
MUNICIPAL
DESENVOLVIMENTO DO PLANEJAMENTO URBANO.
E
O
A expansão da produção cafeeira e a ampliação da malha ferroviária para o
oeste paulista nas últimas décadas do século XIX foram os fatores primordiais no
processo de urbanização da região de Ourinhos. Esses aspectos foram relevantes e
decisivos para a criação de quase todas as cidades da região. Ourinhos nasceu da
expansão das estradas de ferro para oeste do estado de São Paulo, mas, precisamente,
com a inauguração da Estação Ferroviária da Estrada de Ferro Sorocabana, em 1908.
Os primeiros moradores45 foram os trabalhadores da frente da Estrada de Ferro
Sorocabana que assentaram os trilhos e desmataram a área. As casas desses moradores
serviram de base para a formação do núcleo urbano do futuro município (DEL RIOS,
2007).
Com a ocupação da região por grandes fazendas, logo a população se tornou
considerável. A Vila se desenvolveu em torno da linha férrea, inicialmente como
pousada aos viajantes e trabalhadores da linha e posteriormente como moradia dos
imigrantes japoneses, libaneses, italianos, espanhóis e de outros povos em números
menos expressivos, atraídos pela expansão cafeeira.
Em decorrência de pretensões políticas de muitos moradores, sobretudo dos
fazendeiros, em 1918 o “Distrito de Paz Ourinho” passou à situação de Município de
Ourinhos ( DEL RIOS, 1992).
Na expansão da área urbana, se destacou o senhor Jacinto Ferreira de Sá que
em 1908 expandiu suas terras com a compra da Fazenda Furnas. De posse das terras,
Jacinto de Sá iniciou o loteamento de parte de sua fazenda, dando o primeiro passo na
construção do centro da cidade. “Em condições urbanísticas inovadoras, traçado
retilíneo, avenidas e ruas largas, diferenciando Ourinhos das cidades mais antigas do
estado” (DEL RIOS, 1992, p. 19). Em poucos anos Ourinhos viria a se tornar a maior
cidade da região.
Em jornal da década de 1930, era perceptível uma preocupação com as
características e com a remodelação urbana principalmente no centro da cidade. Esse
movimento já havia sido demonstrado, em 1927, com a inauguração do primeiro Coreto
da Praça Mello Peixoto, principal praça da cidade, e também com a demolição de
muitos prédios de madeira e com a colocação de sarjetas nas ruas, durante a
administração do prefeito José Galvão. Essa preocupação com o “embelezamento” era
uma característica da época, pois, ainda predominava o conceito de urbanismo europeu
e mais particularmente o francês, conforme exposto inicialmente (MARICATO, 2000).
Apesar do princípio de loteamento dos bairros e essa aparente preocupação
com a melhoria das condições físicas, principalmente do centro, até 1940 o município
era predominantemente rural. O comércio e a dinâmica da cidade se concentravam na
Avenida Jacinto Ferreira de Sá. O Senhor Jacinto de Sá e sua família, com o decorrer do
45
Não estamos aqui considerando os indígenas que ocupavam a região - Caiuás, Xavantes e Coroados que por direito são realmente os primeiros moradores da cidade, contudo, não encontramos estudos
fundamentados que possibilitem uma melhor afirmação quanto aos mesmos na cidade.
tempo, tornaram-se os maiores especuladores fundiários do espaço urbano de
Ourinhos/SP.
Em 1950, observamos a instalação das principais indústrias da cidade, que
continuam até hoje como importante fonte de empregos. Nesse momento, o município
já possuía uma população de 21.085 pessoas (10 637 homens e 10 448 mulheres),
segundo o Censo de 1950. Desse contingente, 13.457 moravam na área urbana no
município. O IBGE já fazia alusão nessa data à existência de uma área urbana e
suburbana46, que conjuntamente somavam 4.271 imóveis. Como infra-estrutura, a
cidade já possuía 39 ruas pavimentadas com paralelepípedos, basicamente as ruas da
área central. Dos imóveis, 4.506 eram servidos por iluminação pública, assim como 150
ruas. Desses prédios, 3.600 tinham água e 1.055 possuíam rede de esgoto.
A partir de 1950 as estratégias de mobilização e produção de planos
municipais foram amplamente aplicadas à legislação, de modo que se iniciava nesse
momento a preocupação com a elaboração de planos também para o município de
Ourinhos. Após 1950 foram elaborados exatamente seis planos para o município de
Ourinhos: Planificação Municipal de Ourinhos (1953), O Plano de Padre Lebret
(1955)47, Plano de Desenvolvimento Integrado (1967), Projeto Cura (1980), Plano
Diretor Físico (1982) e Plano Diretor Participativo (2006).
Em 1953, seguindo-se a tendência da época, foi publicado o texto de
Planificação Municipal de Ourinhos, organizado por Antônio Delorenzo Neto. O
documento é fruto dos estudos encomendados pelo prefeito Carmelingo Caló para a
elaboração da reforma administrativa e reforma geral da legislação municipal em 1952.
A Lei de Planificação, conforme seu próprio texto dispõe “trata-se de um recurso anual
para custear todos os estudos de planejamento de acordo (sic) com as etapas
estabelecidas na Lei respectiva”.
Essa iniciativa seguiu os padrões da época, porquanto, os planos urbanísticos
eram voltados para toda a cidade e apresentados em lei formal. Dessa forma, “abriga-se
algo mais próximo a um Código de Urbanismo, reunindo normas de parcelamento, uso
e ocupação do solo” (GOMES, 2006, p. 20).
É interessante destacar ainda um trecho da introdução da respectiva lei:
46
È relevante destacar que o jornal municipal a Voz do Povo de 1942, apresentava a zona suburbana
como sendo a Vila Odilon e a Vila Margarida que são exatamente as áreas povoadas que saem do eixo da
Avenida Jacinto Sá e pátio da ferrovia.
47
Trataremos mais detalhadamente dos planos elaborados pelo Padre Lebret, no Brasil, em um futuro
artigo.
Nestas condições, em cumprimento à disposição do Art. 27,
itens I e II, da Lei de Planificação aprovaram-se contratos para
o levantamento aerofotogramétrico do município, e elaboração
do Plano Diretor. Importa salientar que os serviços do Plano
Diretor, cuja última fase será o Plano de Urbanismo, será
precedido de levantamento e pesquisas que permitirão a análise
das condições locais geográficas, econômicas e sociais,
revelando a relação entre o município e a região em que se situa
(1954, p.16).
Portanto, o conceito de Plano Diretor para Ourinhos, como conjunto de
equipamentos e instrumentos urbanos que visem à “ocupação racional do território
municipal”, não é algo novo. O prazo para conclusão do plano de urbanismo era de
cinco anos, com previsão de contratação de uma empresa para o serviço técnico
especializado.
O segundo plano tratava-se, portanto, da segunda etapa do Plano de
Planificação. Ele foi elaborado para a cidade sob a coordenação do Padre Joseph Louis
Lebret em 1955 – ano seguinte à publicação do Código de Planificação – e foi
encomendado pelo prefeito Carmelingo Caló como continuidade ao projeto de
planificação.
O Padre Lebret possuía uma idéia diferenciada de zoneamento, que envolvia
conceitos economicistas e humanistas, algo novo para a época (anos de 1940). Nessa
década, ele organizou na França o movimento Economia e Humanismo, como forma de
introduzir um modo de pensar a contribuição ao desenvolvimento social a partir da
economia, com base nas idéias de São Tomás de Aquino. Segundo o próprio Lebret,
uma “economia humana”. Ele também criou, nos anos de 1940, o escritório SAGMACS
(Sociedade para a Análise Gráfica e Mecanográfica Aplicada aos Complexos Sociais).
A segunda etapa do projeto de Planificação foi cumprida apenas no papel e
todo o investimento realizado em diagnósticos e estudos não alcançou nenhum retorno
para a população. Segundo os entrevistados, Antônio Carlos Gregório e Aldo
Matachana48, o plano não foi colocado em prática devido a sua complexidade, alto custo
e falta de continuidade por parte do governo seguinte.
Em 1965 Carmelingo Caló retornou como prefeito e retomou alguns projetos.
Com o objetivo de efetivar as diretrizes expostas na Planificação de 1954, ele
48
Entrevista concedida pelo ex-prefeito Aldo Matachana Thomé, no dia 22 de Maio de 2007, em
Ourinhos/SP.
reorganizou o Código de Posturas, o Código Tributário e a Reforma Administrativa.
Seguindo as determinações da época, aqui descritas por Marisco (2001, p. 278):
É a partir de sessenta que a prática do planejamento se torna
institucionalizada, ou seja, passa a fazer parte de um programa
nacional de planejamento dos núcleos urbanos no país, tendo o
Governo Federal como o principal agente desencadeador desse
processo. O planejamento passa a ser concebido como um
modelo a ser seguido, a partir da definição de “roteiros básicos”
para a elaboração de planos diretores.
O “planejamento integrado”, conforme seu próprio nome procura salientar,
propunha uma inter-relação entre os aspectos físicos, sociais, econômicos e
institucionais, contrapondo-se aos planos físico-territoriais reinantes até então, ou seja,
elaboração de planos com fins estéticos e sanitaristas. Esse novo modelo foi uma
tentativa de pensar o crescimento da cidade considerando os novos “problemas
urbanos”, decorrentes das alterações que se promulgaram no Brasil a partir de 1950 com
a industrialização e a urbanização.
No município de Ourinhos, o sentido integrado do plano não foi considerado e
as ações que resultaram do Plano Integrado ignoraram os problemas sociais da cidade.
Como fruto desse plano, observamos apenas o alargamento de algumas avenidas da
cidade e asfaltamento. Fica claro, portanto, o desinteresse em buscar um
desenvolvimento e crescimento urbano coerentes com as necessidades de todos os
cidadãos.
Em 1980 a Prefeitura Municipal de Ourinhos iniciou a elaboração do Projeto
CURA (Comunidade Urbana para Recuperação Acelerada) a qual teve a participação de
uma equipe interna, a consultoria da Scructura S.A. (consultoria de engenharia) e
recursos do BNH (Banco Nacional de Habitação).
No caso de Ourinhos, o recurso foi utilizado para pavimentação de ruas,
construção de praças e parques infantis nos bairros Jardim Ouro Verde, Jardim América
e Jardim Itamaraty, além do Centro Social Urbano que fica no bairro Vila Nova. De
modo que não observamos uma concentração de investimentos em apenas uma
determinada região da cidade.
Até esse período, podemos observar que o planejamento urbano no município
de Ourinhos, principalmente ao que tange à legislação municipal, seguiu a lógica das
medidas que vigoravam no país e no estado de São Paulo, as quais eram fruto do
contexto histórico e político do período. Entretanto, na prática, poucas medidas saíram
do papel.
Mas, apesar desses planos que remetem ao planejamento urbano, somente em
1982 o município teve um Plano Diretor Físico aprovado. O Plano Diretor de 1982
estabeleceu, através de seus artigos, os instrumentos de produção e uso do espaço
urbano, como o parcelamento do solo e o zoneamento. Ele destacou o zoneamento,
demarcando o espaço urbano em sete tipos de zonas de usos diferentes. De forma
enumerativa e técnica foram colocadas as características admitidas em cada zona. Da
mesma forma foram dispostos os padrões a serem seguidos quanto à elaboração de um
loteamento ou outro tipo de ocupação do solo. No entanto, os dispositivos do referido
Plano Diretor não chegaram a ser efetivados. Uma vez que, no ano seguinte à
promulgação do plano, o novo prefeito, sancionou a Lei N º 2.435, que dispõe em seu
Art. 1º: Fica revogada em todos os seus expressos termos a Lei n° 2.408, que institui o
Plano Diretor Físico do Município de Ourinhos.
Concomitantemente, em 1984, foi aprovada a Lei N º 2.548 que dispõe sobre o
parcelamento de terrenos, ocupação dos lotes edificáveis e zoneamento do município,
entre outras providências. Estritamente técnica, ela dispõe as especificações para
loteamentos, construções e aberturas de vias públicas. Assim, o município de Ourinhos
efetivamente não teve um Plano Diretor em seu termo conceitual, ou seja, que visasse a
um desenvolvimento socioespacial. Como também teve pouca aplicação prática dos
planos de Planejamento Urbano, elaborados para o mesmo. Ao que tudo indica não
saíram do papel. Contudo, ainda, necessita-se de um melhor aprofundamento empírico
que confirmasse tal hipótese. Hipótese esta que confirmaria a teoria de Villaça (2004, p.
224):
Pelo menos durante cinqüenta anos – entre 1940 e 1990 – o
planejamento urbano brasileiro encarnado na idéia de plano
diretor não atingiu minimamente os objetivos a que se propôs.
A absoluta maioria dos planos foi parar nas gavetas e nas
prateleiras de obras de referência. A maioria dos pouquíssimos
resultados que produziram é marginal nos próprios planos e
mais ainda na vida das cidades às quais se referiam.
A CONSTRUÇÃO DO PLANO DIRETOR EM 2006
Acompanhando a determinação do Estatuto da Cidade, o município de
Ourinhos, que apresenta uma população de 98.868 mil habitantes49, concluiu o Plano
Diretor Participativo em 26 de dezembro de 2006, sancionada como Lei Complementar
Nº. 499. Uma nova tentativa de dispor diretrizes que conduzam o crescimento ordenado
e sustentável e que sirva de base para as políticas públicas do município para os
próximos 10 anos. Apesar desses objetivos, lembremos que primeiramente essa
elaboração do plano está pautada em uma exigência do Governo Federal.
No início do ano de 2006, a prefeitura municipal de Ourinhos começou uma
campanha de divulgação do Plano Diretor da cidade, com o intuito de divulgar o que
vem a ser um Plano Diretor e de que forma a população poderia estar participando da
construção do mesmo.
No entanto, durante a elaboração do Plano Diretor Participativo de Ourinhos
não foi observada uma forte participação da população ourinhense, apesar da divulgação
realizada pela prefeitura. Então, como se pensar em um plano participativo sem a
presença da população?
[...] um plano diretor não pode contentar-se em ser apenas uma
disciplina do crescimento físico ou da datação de serviços, mas
deve incluir uma clara preocupação com a dinâmica global das
cidades, buscando orientá-la no interesse das maiorias
(SANTOS, 2005, p.126).
Para averiguar a real participação popular no município de Ourinhos
realizamos um trabalho de campo. De maneira a verificar o grau de conhecimento dos
cidadãos a respeito do conceito de Plano Diretor e, mais precisamente, sobre o Plano
Diretor Participativo de Ourinhos. Elaboramos um questionário e aplicamos este aos
moradores de vários bairros da cidade50, procurando atingir todas as classes, nos mais
distintos bairros.
Em análise aos resultados percebemos um desconhecimento, por parte da
população, quanto à elaboração do Plano Diretor Participativo de 2006, como podemos
observar no Gráfico 1.
Ele demonstra que 87,6 % dos entrevistados não ficaram sabendo das reuniões
na Câmara Municipal e apenas 11,3 % tomaram conhecimento quanto às reuniões,
49
Fonte: Censo Populacional, IBGE, 2007.
Foram entrevistadas 490 residências distribuídas nas quatro zonas do município (zona norte, zona sul,
zona leste, zona oeste), entre os dias 02 e 08 de Julho de 2007, representando um percentual de 1,72% das
famílias residentes – domicílios particulares (28.366), segundo o Resultado da Amostra do Censo
Demográfico 2000 - Malha municipal digital do Brasil: situação em 2001. Rio de Janeiro: IBGE, 2004.
50
sendo que deste percentual apenas 1,1% estava totalmente informado do assunto, no que
diz respeito à natureza e ao objetivo das reuniões e também relativo a datas e horários.
Gráfico 1- Conhecimento sobre a elaboração do Plano Diretor Participativo de 2006
(%)
Não ficou sabendo
87,6%
Ouvio falar alguma coisa através
de meios de divulgação da
Prefeitura
11,3%
Sim estava totalmente a par
1,1%
0
20
40
60
80
100
Fonte: Pesquisa de campo.
A participação da população é de extrema importância pelo fato dela conhecer,
mais do que qualquer agente da prefeitura ou empresa contratada, as deficiências e
necessidades do bairro em que vive. Todavia, a realidade que permeia os chamados
planos participativos é contrária a esse ideal e o que se verifica, como exemplificado
através do caso de Ourinhos, é a soberania do interesse de poucos sobre o interesse da
maioria. Esse contexto é muito mais complexo, visto que a maioria da população não
tem total entendimento de seus direitos e da importância e eficácia de sua participação
na política do município, não se vendo como parte integrante do sistema e sim à mercê
do mesmo. Essa conjetura pode ser a explicação do porquê apenas 5,27%, dos 12,4%
dos entrevistados que ficaram sabendo das reuniões para levantamento de propostas
para o Plano Diretor, participaram de alguma reunião.
A “Participação Popular” conferiria um toque de democracia,
igualdade e justiça social às decisões políticas. Ela passou a ser
divulgada como uma espécie de vacina contra a arbitrariedade,
a prepotência e a injustiça. Com ela, todos tornar-se-iam iguais
perante o poder público. È essa ilusão que a recente ênfase em
Plano Diretor Participativo – querendo ou não – procura
inculcar na opinião pública (VILLAÇA, 2005, p.52).
De modo que o Plano Diretor ficou muito aquém de um verdadeiro plano
participativo. Ele até procura seguir as medidas estipuladas pelo Ministério das Cidades,
contudo, em relação à participação popular, empiricamente essas medidas não foram
aplicadas. Ainda existem os problemas decorrentes da não efetivação do mesmo, ou da
realização de parte, de acordo com o interesse de alguns, como ocorreu nos planos que o
antecederam. Por isso, o presente interesse em acompanhar o mesmo e verificar a
viabilidade de ser colocado em prática e, sobretudo, o interesse do Poder Executivo em
dar continuidade.
SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL EM OURINHOS
Temos procurado apresentar as relações entre o planejamento urbano e a atual
conjuntura das cidades brasileiras, nas quais a maior parte da população urbana
encontra-se à margem da economia capitalista, a ponto de Souza (2004, p.32) defender
que a “segregação exige o controle e a organização do espaço para manter uma ordem
sócio-espacial elitista e excludente”.
Lojkine (1997), Corrêa (1995) e Carlos (1994) concluíram que a segregação é
fruto da estratificação em níveis sociais decorrentes da divisão social do trabalho dentro
da economia capitalista. Igualmente observamos que o planejamento urbano como
prática não social foi amplamente utilizada para justificar ações segregacionistas desse
tipo. Dessa forma, após o levantamento e as devidas considerações sobre os planos que
foram construídos para a cidade de Ourinhos, principalmente o Plano Diretor
Participativo de 2006, tecemos algumas ponderações sobre a existência de uma
segregação socioespacial no município. Essa análise nos parece pertinente ao estudo por
concordarmos com Carlos (1994, p. 95):
As contradições sociais emergem, na paisagem, em toda a sua
plenitude, pois aqui os contrastes e as desigualdades de renda
afloram, já que o acesso a um pedaço de terra, o tamanho, o
tipo e material de construção vão espelhar mais nitidamente as
diferenciações de classe. O acesso a habitação e aos meios de
consumo coletivo serão diferenciados segundo a camada social
que se localizará e morará de modo diferenciado na cidade.
O trecho acima remete à descrição de modo indireto da segregação
socioespacial. Em termos conceituais, Castells (2000, p. 250) observa que é “a
tendência à organização do espaço em zonas de forte homogeneidade social interna e
com intensa disparidade social entre elas, sendo esta disparidade não só em termos de
diferença, como também de hierarquia”.
Lojkine (1997) define três tipos de segregação: 1) no nível da habitação,
confrontando a oposição entre o centro e a periferia; 2) no nível dos equipamentos
coletivos,
confrontando-se
as
sub-localidades
dos
loteamentos
populares
às
superestruturas dos condomínios da classe alta e; 3) no nível de transportes, com o
esfacelamento das conduções coletivas em contraste com o aumento dos automóveis e
melhoria de determinadas vias públicas.
No entanto, percebe-se que esses tipos estão entrelaçados, de modo que uma
região ao ser privilegiada, seja por interesse do capital imobiliário ou do poder público,
a ela se destinará todo e qualquer tipo de investimento, sendo verdadeira também a
afirmação: “isso decorre do interesse em valorizar áreas específicas da cidade”.
Corrêa (1995, p.62) observa que a expressão espacial das classes sociais é o
resultado do “diferencial de capacidade que cada grupo tem de pagar pela residência
que ocupa, a qual apresenta características diferentes no que se refere ao tipo e a
localização”. Fica claro, portanto, que a habitação tornou-se uma mercadoria51,
possuindo “valor de uso e de troca” (CORRÊA, 1995 p.62). Frisando-se que existe uma
dinâmica no espaço, ou melhor, dinâmica do próprio capital, a qual pode valorizar ou
desvalorizar uma determinada região, conforme reintegra Kowarick (1979, p. 82):
A dinâmica da produção dos espaços urbanos ao gerar uma
melhoria cria simultaneamente milhares de desalojados e
desabrigados que cedem seus locais de moradia para grupos de
renda que podem pagar o preço de um progresso que se opera
através de uma enorme especulação imobiliária.
Em face de tais determinações, Corrêa (1995) chama a atenção para os agentes
produtores e reprodutores do espaço urbano e, por conseguinte, da segregação
socioespacial:
•
em primeiro lugar, estão os próprios citadinos, as classes de menores rendas. Como
tentativa para solucionar a questão de como e onde morar, são obrigados a procurar
a moradia mais barata ou o local mais em conta para a construção de seu imóvel,
enquanto a classe dominante, utiliza-se da autosegregação, na medida em que
constroem condomínios fechados em zonas periféricas52 da cidade, em áreas com
51
No Brasil, a terra torna-se mercadoria, mais precisamente, no ano de 1850, com a “Lei de Terras”.
Neste sentido o termo vincula-se à idéia de áreas descentralizadas e nas bordas dos centros urbanos,
destinada à expansão urbana.
52
amenidades. Em contrapartida tem-se a exclusão do restante da população, ou seja,
uma “segregação imposta”;
•
em segundo, têm-se os proprietários e as incorporações imobiliárias que, ao
controlar o mercado de terras, são diretamente responsáveis pelo alto custo de lotes
próximos ao centro ou com amenidades e boa infra-estrutura;
•
em terceiro, os proprietários dos meios de produção, que necessitam de diferentes
espaços que atendam as suas necessidades de acordo com as atividades;
•
por último, temos o Estado, no caso a Prefeitura Municipal, já que cabe a esta a
formulação de leis e organização do espaço urbano de forma democrática,
sustentável e com justiça social. Na verdade, é nisto que vem a incidir a
Constituição de 1988 e, mais precisamente, o Estatuto da Cidade. Ao dar maior
autonomia aos municípios, eles cobram, como objetivo principal do planejamento
urbano, o desenvolvimento das funções sociais53 da cidade.
Lojkine (1997), assim como Carlos (1994), no trecho acima, entende o Estado
como agente determinante na configuração do urbano. Para ele, segregação urbana é
entendida como um mecanismo do Estado para garantir a adequada reprodução do
capital e da força de trabalho. De maneira que a planificação serviria não para a
democratização da cidade, mas para o acesso limitado de determinados setores da
sociedade. Transformando o direito à cidade em privilégio de alguns, ou seja,
compondo um forte processo de segregação. Ainda que a política urbana não se dê
através de planos, nem por isso deixa de responder à lógica da segregação social.
(...) Agente principal da distribuição social e espacial dos
equipamentos urbanos para as diferentes classes e frações de
classe, o Estado monopolista vai, portanto, refletir ativamente
as contradições e as lutas de classe geradas pela segregação
social dos valores de uso urbano. Longe de unificar o aparelho
de Estado, a subordinação de sua política à fração monopolista
do capital vai, pelo contrário, agravar as fissuras, as
contradições entre segmentos estatais, suportes de funções
sociais contraditórias (LOJKINE, 1997, p. 193).
A participação do Estado é também relevante quando compreendemos que
tanto o planejamento quanto a segregação são questões essencialmente políticas, devido
à correlação de forças na produção e reprodução da cidade.
53
Art. 1º Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece
normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem
coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.
Portanto, nessa relação entre agentes e processos que contribuem na produção
da segregação socioespacial, o poder público tem papel fundamental, mas temos que ter
claro que ele está inserido em um contexto que é na verdade “o processo de reprodução
do capital que vai indicar os modos de ocupação do espaço pela sociedade, baseado nos
mecanismos de apropriação privada” (CARLOS, 1994, p. 89).
Essa discussão conceitual incorpora e auxilia na construção do nosso objetivo
de compreender a produção do espaço do município de Ourinhos, que por sua vez está
embicado nessa realidade e, portanto, é “manifestação espacial” do atual sistema. Como
observa Harvey (1980, p. 59), “qualquer intenção de entender os mecanismos geradores
de desigualdades de renda deve, por isso, consistir em compreender o processo político
que opera numa cidade”. Dessa forma, o estudo e o diagnóstico empírico da segregação
socioespacial no município se faz pertinente por partir das relações sociais (políticas)
que culminaram para a atual conjuntura organizacional do município.
A ANÁLISE ESPACIALIZADA
MUNICÍPIO DE OURINHOS
DA
SEGREGAÇÃO
RESIDENCIAL
NO
Ainda são poucos os trabalhos que buscam compreender a organização do
espaço e a segregação nas cidades de porte médio. Isso nos ficou claro ao procurarmos
por uma metodologia para o trabalho que objetivamos realizar. De modo que para a
identificação da segregação socioespacial neste município buscamos trabalhar com base
nos estudos de metrópoles a partir das análises de Préteceille e Ribeiro (1999),
Kowarick (2004) e Sabatini (2004).
Assim, em Ourinhos escolhemos realizar uma análise primeiramente com três
variáveis, quais sejam, renda, educação e ocupação a partir dos setores censitários,
concordando com as abordagens de Kowarick (2004, p.96):
Sem dúvida nenhuma, as razões socioeconômicas parecem
constituir o elemento básico das formas diferentes de
apropriação
do
espaço.
Ou
seja,
o
triângulo
ocupação/renda/educação, elementos que andam juntos, é a
forma básica que leva à apropriação do espaço.
Após as considerações em tópico anterior sobre a miríade de variáveis
responsáveis pela segregação, acreditamos ser as razões socioeconômicas a base para a
compreensão do espaço tal como está organizado atualmente e igualmente concordamos
com Kowarick (2004) sobre os melhores parâmetros para essa identificação. Contudo,
do ponto de vista geográfico, não levar em consideração fatores conjunturais, que da
mesma forma caminham para a apropriação e uso diferencial do espaço, seria um estudo
pobre ou falho. Portanto, optamos por anexar a essas três variáveis o estudo do padrão
construtivo das habitações e a disponibilidade de equipamentos coletivos e infraestrutura. Esta opção também se deve por acreditarmos que as três primeiras variáveis
não dão conta de exprimir a ação do Estado no espaço intra-urbano de Ourinhos, o que
renegaria toda a introdução e o objetivo desse trabalho em observar o papel dos planos
urbanísticos e de desenvolvimento na segregação sócio-espacial da cidade.
PADRÃO CONSTRUTIVO DAS HABITAÇÕES
Apesar do relatório de pré-diagnóstico do Plano Diretor Participativo de 2006
fazer alusão à inexistência de “problemas graves na questão habitacional (...), não se
registrando a existência de habitação subnormal como favelas e cortiços”, em trabalho
de campo foi possível diagnosticar a existência de muitas residências que estão em
condições precárias.
Devido a sua recente história, a cidade possui uma grande quantidade de
imóveis de madeira, principalmente nos bairros mais antigos, como a Vila Perino, a Vila
Margarida e a Vila Nova. De tal maneira que muitas, com o passar dos anos e somadas
às ações intempéricas, apresentam-se em péssimas condições. Sendo assim, a citação no
texto do pré-diagnóstico quanto à não existência de residências subnormais pode ser
discutida, sobretudo, porque isso se reflete no Plano Diretor bem como auxilia no
processo de segregação. Apesar disso, é relevante que realmente não exista favela no
município54.
O tamanho e a qualidade das habitações também fazem parte do processo de
segregação, já que os segmentos de baixa renda, por falta de opção e de condições
financeiras, são levados a obter a casa própria em conjuntos habitacionais devido,
principalmente, à possibilidade de financiamento, representando, para muitos, a única
forma de acesso à moradia na área urbana.
Contudo, as casas nesses loteamentos são padronizadas e pequenas. De modo
geral, a política habitacional está voltada aos interesses das indústrias de construção
civil e do setor financeiro juntamente com o Estado (federal, estadual e municipal nas
ações político-partidárias e nos sistema de assistencialismo social) num jogo de
interesses visando ao maior lucro e provocando territórios diferenciados.
54
Tomando por favela a definição do IBGE, que a descreve como um aglomerado de pelo menos
cinqüenta barracos, em uma ocupação juridicamente “ilegal” de terras.
O próprio poder público torna-se criador privilegiado de
escassez, estimula assim, a especulação e fomenta a produção
de espaços vazios dentro das cidades; incapaz de resolver o
problema da habitação empurra a maioria da população para as
periferias e empobrece ainda mais os mais pobres, forçados a
pagar caro pelos precários transportes coletivos (...) (SANTOS,
1990, p. 123).
Todos esses fatores e particularidades (tipo de loteamento, local, histórico e
interesses públicos e privados) de ocupação conduziram à predominância de um padrão
construtivo em determinados bairros. Mas, enfatizamos a expressão “determinados
bairros”, já que a cidade de Ourinhos apresenta de modo geral uma heterogeneidade de
padrão construtivo em determinados bairros, principalmente os do centro e alguns
bairros populares.
DISPONIBILIDADE DE EQUIPAMENTOS COLETIVOS E INFRA-ESTRUTURA.
Considerando toda a lógica capitalista que procuramos expor, Lojkine (1997,
p. 183) observa o não interesse do capital pelos meios de consumo coletivo. A seu ver, a
maioria dos meios de consumo é supérflua pelos capitalistas: “Enquanto os meios de
circulação material e social são condições necessárias da reprodução do capital, os
meios de consumo coletivo só intervêm no nível da reprodução da força de trabalho”.
Por isso, a distribuição dos equipamentos coletivos e infra-estruturas seguem a lógica da
distribuição da população.
No caso específico da cidade de Ourinhos praticamente todos os bairros
apresentam água, iluminação, esgoto e asfalto. Contudo, verificou-se que a qualidade
desses equipamentos não é totalmente satisfatória, principalmente quanto ao asfalto e à
iluminação.
Durante trabalho de campo, que possibilitou a análise da participação popular
no Plano Diretor de 2006, realizamos também uma pesquisa qualitativa com os
moradores dos bairros visitados, a fim de verificar a opinião dos mesmos quanto aos
equipamentos coletivos disponíveis e à infra-estrutura dos locais de moradias dos
mesmos. No entanto, apesar de visualmente se observar uma grande deficiência nas
infra-estruturas e equipamentos coletivos públicos, a maioria dos entrevistados
considera de boa qualidade os respectivos equipamentos. Os melhores serviços, segundo
os entrevistados, são: a água, a rede de esgoto e a rede de transporte. O gráfico 2
apresenta a opinião dos entrevistados55 quanto aos maiores problemas nos bairros em
que residem.
Gráfico 2- Equipamentos mais deficientes na opinião dos entrevistados (%)
Iluminaçã
o
Asfalto
52,1%
57,22%
39,84%
Asfalto
Asfalto
58,55%
Zona norte
Zona sul
Zona leste
Zona oeste
Fonte: Pesquisa de campo.
Pudemos, também, evidenciar as péssimas condições do asfalto relatadas pelos
moradores, que nesse caso não se restringem apenas a um determinado local, já que o
asfalto de toda a cidade está em péssimas condições.
RENDA, EDUCAÇÃO E OCUPAÇÃO.
Conforme supracitado, muitos bairros em Ourinhos não apresentam uma
homogeneidade quanto ao padrão construtivo. Apesar disso, é possível uma
classificação dos bairros quanto ao padrão habitacional. Contudo, se faz pertinente uma
avaliação socioeconômica dos mesmos, pois existe uma concentração das famílias com
maiores condições financeiras na região oeste da cidade.
Nossa análise começa pelo mapa da renda (Figura 01). Nesse mapa podemos
observar a distribuição da população de acordo com a renda média das famílias. A
figura mostra que a população com renda entre 2 e 5 salários mínimos se concentra na
região norte e sul, exatamente onde estão vários conjuntos habitacionais. Ao mesmo
tempo, as famílias com renda entre 5 e 10 salários se encontram dispersas pela cidade.
Confirmando a hipótese levantada, as pessoas com maior renda estão na região oeste e
pela figura podemos ver também uma concentração dessas pessoas no trecho que vai do
centro em direção ao sul, onde estão os bairros Vila Moraes (reduto de clínicas) e a Vila
55
Refere-se às mesmas 490 residências que foram entrevistadas, entre os dias 02 e 08 de Julho de 2007,
citadas no subcapítulo anterior.
Matilde. Ao mesmo tempo, conforme destacado, quanto às residências, a região com
menor renda é onde está localizado o bairro Guaporé.
Figura 1- Mapa de renda na cidade de Ourinhos
Fonte: Estatcart, IBGE, Censo 2000.
Os dados do grau de instrução dos moradores, nossa segunda variável
censitária, vêm reafirmar a hipótese. Na região oeste e no centro, o número de
analfabetos é de apenas 5%. Ao mesmo tempo, conforme vai se afastando dessa região
para a periferia, o número de analfabetos aumenta. Índice que apresenta um número
expressivo nos bairros Vila Industrial (zona leste) e Guaporé (zona norte).
Fazendo uma inter-relação entre todos os pontos levantados durante o trabalho
e sobrepondo as variáveis censitárias e os outros dados levantados em trabalhos de
campo e entrevistas com os mapas dos bairros, culminamos com a figura final que
sintetiza a questão da segregação socioespacial no município de Ourinhos.
Metodologicamente para a construção do mapa, consideramos quatro valores para cada
variável, todos em ordem crescente, ou seja, as melhores condições valor 1 até 4 para as
piores condições. Culminando na seguinte tabela:
Tabela 1- Classificação final dos bairros de acordo com as variáveis
Pontos
Classificação quanto ao nível de segregação
1à4
Inexistência de segregação
4à8
Baixo nível de segregação
8 à 12
Moderado nível de segregação
12 à 16
Alto grau de segregação
Através do mapa podemos analisar que o nível de segregação socioespacial do
município de Ourinhos é menor no centro e na região oeste, aumentado de conforme vai
se distanciando destes espaços. As regiões com maiores níveis são leste e norte, os
bairros com nível 15, cor mais escura do mapa são os mais segregados.
Destacamos que nenhum bairro alcançou a primeira classificação, ou seja,
inexistência de segregação, isto se deve a variável infra-estrutura. A cidade de forma
geral apresenta problemas com relação a iluminação ineficiente e asfalto esburacado,
isso afeta a todos os moradores sem exceção, mesmo os que moram em condomínios
fechados e possuem segurança, áreas verdes e asfalto de boa qualidade dentro do
condomínio.
Figura 2
Ourinhos
-
Nível
de
segregação
social,
segundo
os
bairros
de
Fonte: Pesquisa de Campo; Estatcard - IBGE, 2000.
Organização: Alessandra dos Santos Julio
O PLANO DIRETOR FRENTE À REALIDADE MUNICIPAL
Foi possível diagnosticar que existem regiões no município que são segregadas
de acordo com fatores específicos. Consciente ou não dessa realidade, a lei do Plano
Diretor Participativo de 2006 trás em um de seus artigos a necessidade de:
Art. 09. Inciso IV - Reverter o processo de segregação sócioespacial na cidade por intermédio da oferta de áreas para
produção habitacional dirigida aos segmentos sociais de menor
renda, inclusive em áreas centrais, e da urbanização e
regularização fundiária de áreas ocupadas por população de
baixa renda, visando à inclusão social de seus habitantes (Lei,
4923 de 05 de Janeiro de 2006).
Esse artigo fomenta uma discussão quanto à abrangência e aos objetivos do
Plano Diretor Participativo. De modo que esse empreendimento social não depende
apenas da boa vontade política, mais se faz necessário uma ação conjunta entre todos os
agentes responsáveis pela produção do espaço. A mesma ainda esbarra em problemas de
ordem econômica, como um orçamento municipal capaz de suprir tais necessidades,
além de todos os conflitos que permeiam as políticas públicas já abordadas nesse
trabalho.
Podemos observar que no município de Ourinhos um dos fatores que
contribuiu para a diferenciação social e espacial foi a não efetivação dos planos
urbanísticos ou desenvolvimentistas projetados para a cidade. Vários trabalhos foram
realizados, onerando gastos públicos, mas não foram concluídos. Pragmaticamente
alguns foram iniciados, mas não concluídos. Não podemos afirmar como estaria
Ourinhos se os planos tivessem se realizado. Entretanto, podemos pensar o último plano
e realizar algumas projeções.
Como verificamos o problema não está somente durante a construção dos
planos, mas também na gestão dos mesmos pelo poder público. Como definição de
gestão fundamentamos a de Souza (2002, p.46): “a gestão é a efetivação, ao menos em
parte, das condições que o planejamento feito no passado ajudou a construir”. O que
impele um cuidado em observar a aplicação das diretrizes exposta no Plano Diretor que
foi nosso objeto de estudo.
Já se passou um ano da data de publicação da lei de aprovação do Plano
Diretor Participativo e poucas das diretrizes nele estabelecidas estão se realizando
efetivamente. Da mesma forma, as ações públicas e particulares, interferentes no espaço
urbano, não estão sendo pautadas nas diretrizes do Plano Diretor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A história de Ourinhos, particularmente, demonstrou um fator relevante para a
não efetivação dos planos elaborados para a cidade, qual seja, o fator político. A
descontinuidade de projetos e interesses entre uma administração e outra faz com que o
que foi iniciado seja ignorado e reiniciado do zero após a eleição. Portanto, o que
prevalece não é o planejamento urbano ou o cumprimento do Plano Diretor e sim o
programa de campanha do prefeito eleito. As promessas de campanha não são
adequadas ao planejamento urbano pré-estabelecido e sim o planejamento é adequado
aos programas de campanha do candidato eleito e de seu partido. O resultado é o
prevalecimento da “indústria” de planos diretores e descontinuidades graves de sua
execução.
Com vista nessa realidade, procuramos realizar uma avaliação geográfica da
organização espacial de Ourinhos, visando compreender as contradições desse espaço
urbano à luz do planejamento municipal. Grande salto foi dado no sentido de
diagnosticar a segregação socioespacial na cidade. A ponto de podermos afirmar que as
contradições encontradas no espaço intra-urbano de Ourinhos são de responsabilidade
do poder público municipal, porém, não somente desse, mas o papel desse agente é
extremamente marcante.
Fator relevante para esse estudo é a mutabilidade do espaço urbano decorrente
das necessidades da sociedade e das mudanças nos tipos de uso do solo. No
acompanhamento empírico, nos ficou claro a falta de comprometimento com algumas
necessidades da população. Daí a importância de um trabalho que relacione o “espacial
produzido com o social existente”.
Muitas questões foram levantadas quanto aos problemas sociais e quanto à
visão que os moradores da cidade têm sobre a mesma. Nosso objetivo, ao realizar as
pesquisas de campo, era comprovar a hipótese de que a população não estava informada
sobre a elaboração do Plano Diretor Participativo de 2006 e descontente com as infraestruturas dos bairros. Contudo, nos deparamos com uma realidade ainda mais
preocupante, qual seja, a falta de informação dos mesmos quanto aos seus próprios
direitos e a falta de interesse sobre a política pública municipal.
Acreditamos, portanto, ser um tanto quanto idealista supor a concretização de
todas as diretrizes estabelecidas nesse último plano. Contudo, deveriam prevalecer os
interesses da maioria sobre os de uma minoria.
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O PAPEL DO ESPAÇO GEOGRÁFICO NA TEORIA DA ACUMULAÇÃO E
DO MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA EM A PRODUÇÃO CAPITALISTA
DO ESPAÇO, DE DAVID HARVEY
EVERALDO BATISTA DA COSTA,
Aluno do Programa de Pós-Graduação
em Geografia Humana da USP /
Mestrado em Geografia
[email protected]
Em A produção capitalista do espaço, Harvey reúne sete ensaios produzidos ao
longo de trinta anos de estudos em geografia. O período que distancia a publicação de
cada texto não prejudica a concatenação das idéias para a homogeneização da obra;
cada ensaio apresenta-se interligado aos demais no que diz respeito a seus conteúdos de
cunho essencialmente metodológicos, que explicitam um cabedal teórico para
pesquisadores em ciências humanas, sobretudo em Geografia. Com uma abordagem
fundamentalmente marxiana, Harvey trata, principalmente, do papel do Estado, da
acumulação de capital, das lutas de classes, do processo de urbanização e da renda
monopolista atrelada à nova lógica mercantil que envolve a cultura, nas cidades.
Através do apanhado das obras de Karl Marx, Harvey esclarece que apesar do
descaso deste autor à dimensão espacial referente à teoria da acumulação, no modo de
produção capitalista, o exame atento de suas obras revela que há o reconhecimento à
acumulação de capital num contexto geográfico, desenvolvendo uma abordagem
relativa à teoria da localização, em que a “dinâmica está no centro das coisas”. Harvey
mostra como a teoria da acumulação se relaciona com o entendimento da estrutura
espacial, de forma que a análise da localização elaborada por Marx fornece um elo entre
a teoria da acumulação e a teoria do imperialismo.
Neste contexto, identificamos uma abordagem da questão da organização
espacial, da intensificação da atividade social, dos mercados e das pessoas numa
específica estrutura, bem como a questão da expansão geográfica, que são produtos
necessários para o processo de acumulação. Neste sentido, Harvey aborda as relações de
transporte, a integração espacial e o que ele reconhece como “anulação do espaço pelo
tempo”, de acordo com Karl Marx.
A distância espacial se contrai em relação ao tempo, quando o importante não é a
distância do mercado no espaço, mas a velocidade pela qual o mercado é alcançado, um
estímulo para a redução do tempo de circulação, diminuindo o “período de
perambulação da mercadoria”. Assim, a concentração da produção nas grandes
aglomerações urbanas é acompanhada por inovações associadas ao transporte, que
servem para anular o espaço pelo tempo.
Assim, esclarecemos nosso posicionamento. Segundo Harvey, “O capitalismo
apenas consegue escapar de sua própria contradição por meio da expansão” (p.64).
Significa que a expansão é também intensificação de necessidades sociais e expansão
geográfica. Para Harvey, a sobrevivência do capitalismo depende do estabelecimento de
novo espaço para a acumulação. Desta maneira, como pensar na anulação do espaço se
este mesmo espaço se torna subsídio para a sobrevivência do capitalismo, a partir de sua
expansão? Há uma anulação, uma expansão ou uma anulação para posterior expansão
do espaço? Não podemos desconsiderar que mesmo as distâncias sendo relativizadas
pela técnica e pela informação, estas ainda precisam ser percorridas, virtualmente ou
não. Desta forma, acreditamos que falar na anulação do espaço pelo tempo seja forçoso.
Mesmo Harvey, em determinado momento, questiona como aceitar a anulação do
espaço, mencionada por Marx, se a mobilidade geográfica do capital necessita de infraestruturas espaciais fixas e seguras para funcionar, se o transporte de mercadorias requer
um sistema de transporte sofisticado, eficiente e estável, amparado por um conjunto de
estruturas sociais e físicas (serviços jurídicos e armazéns) facilitando e assegurando a
troca? “A capacidade de dominar o espaço implica na produção de espaço” (p.150).
Neste processo, Harvey considera que o Estado deve desempenhar seu papel no
provimento de bens públicos e infra-estruturas sociais e físicas, requisitos necessários
para produção e troca capitalista, o que o faz se envolver na administração de crises e
agir contra a tendência de queda da margem de lucro, trabalhando pelo interesse de
classe coletivo. Imaginar que o capitalismo alguma vez funcionou sem o intermédio
firme do Estado é, para Harvey, um grande mito; pode sim, ter mudado suas funções
com o crescimento e o amadurecimento do capitalismo. Contudo, o autor é categórico
ao afirmar que o Estado capitalista precisa desempenhar suas funções básicas,
impreterivelmente, ou ser reformado, caso não consiga atender estas medidas, ou então
dar lugar a algum outro método de organizar a produção material e a vida cotidiana.
A análise da expansão e estruturação espacial elaborada por Harvey continua no
capítulo seis; agora, reconhecendo a cidade tanto como produto quanto condição dos
processos sociais de transformação em andamento, na fase mais recente do
desenvolvimento capitalista. Para o autor, o processo urbano está desempenhando a
reestruturação radial em andamento nas distribuições geográficas da atividade humana e
na dinâmica político-econômica do desenvolvimento geográfico desigual dos tempos
mais recentes. A cidade oferece, desta maneira, uma possibilidade de leitura da nova
lógica dos processos sociais que se dão em nível planetário.
Há um movimento no planejamento urbano de uma abordagem “administrativa”,
da década de 60, para formas de ações iniciadoras e “empreendedoras”, nas décadas de
70 e 80, este último buscando benefícios econômicos positivos, de acordo com Harvey.
É um grande problema, na concepção do autor, a reificação das cidades em
combinação com a linguagem que considera o processo urbano aspecto ativo em vez de
passivo do desenvolvimento político-econômico. Faz parecer como se as cidades
pudessem ser agentes ativos quando são simples coisas; a cidade é, na verdade, um
processo sócio-espacialmente estabelecido, no qual um amplo conjunto de atores, com
objetivos e compromissos diversos, relacionam-se por meio de uma configuração
específica de práticas espaciais entrelaçadas e com um conteúdo de classe definido. O
conjunto dos processos sociais, a urbanização, produz vários artefatos: formas
construídas, espaços produzidos e sistemas de recursos de qualidades específicas,
organizados numa configuração espacial distintiva. A ação social conseqüente deve
levar em consideração estes artefatos, pois muitos processos sociais (viajar, fazer
compras) se tornam materialmente direcionados por esses artefatos.
Conforme
Harvey,
deve-se
reconhecer
os
impactos
da
transição
do
administrativismo para o empreendedorismo urbano, quer sobre as instituições urbanas,
quer sobre os ambientes urbanos construídos. Há uma maior fragmentação do espaço
social urbano em zonas, comunidades e diversos “clubes da esquina”, enquanto, por
outro lado, o transporte rápido e integrado torna absurdo certo conceito de cidade
enquanto unidade física hermeticamente murada ou mesmo domínio administrativo
coerentemente organizado. Para Harvey, na governança urbana, a mudança para o
empreendedorismo deve ser analisada sobre escalas espaciais: zonas e comunidades
locais, centro da cidade e subúrbios (proposta para metodologia de análise urbana centro/periferia - fragmentação). Quem está sendo empreendedor, com qual objetivo? O
poder de organizar o espaço se origina em um conjunto complexo de forças mobiliado
por diversos agentes sociais, diz-nos Harvey. O novo empreendedorismo tem, como
elemento principal, a noção de parceria púbico-privado, em que a iniciativa tradicional
local se integra com o uso dos poderes governamentais locais, buscando e atraindo
fontes externas de financiamento, e novos investimentos diretos ou novas fontes de
emprego, que pode lançar uma sombra aparentemente benéfica sobre o lugar, de acordo
com o autor. Logo, projetos específicos podem se tornar foco da atenção pública e
política, desviando a atenção e recursos dos problemas mais amplos, que talvez afetem a
região ou o território como um todo.
Neste ponto, deixamos mais uma questão para reflexão. Muitas são as cidades
históricas brasileiras contempladas com programas de revitalização e conservação de
seus bens culturais. Contudo, devemos questionar até que ponto estes projetos estão
vinculados a políticas sérias de resgate cultural, memorial e identitário, beneficiando,
verdadeiramente, o local e uma maioria; ou se estão vinculados, estritamente, a
concepções do mercado e da “indústria cultural” (COSTA, 2008).
Segundo Harvey, o novo empreendedorismo urbano se apóia na parceria públicoprivado enfocando o investimento e o desenvolvimento econômico através da
apropriação estratégica das cidades, por meio da construção especulativa do lugar,
estabelecendo-se objetivos econômicos imediatos, em vez de propiciar a melhoria das
condições de vida no território.
A valorização de regiões urbanas degradadas, a inovação cultural, a melhoria
física do ambiente urbano e as atrações para o consumo e entretenimento se tornaram
facetas proeminentes das estratégias para regeneração urbana, a cidade aparece como
um lugar inovador, estimulante, criativo e seguro para se viver ou visitar, para se
divertir e consumir, de acordo com o autor. Eventos, congressos, festivais tornam-se
foco das atividades de investimento, a cultura do “é possível fazer”, para usar termos do
autor, é essencial para o desenvolvimento do empreendimento cultural, acrescentando
que as atividades culturais e as artes podem ajudar a romper a espiral descendente da
estagnação econômica nas cidades do interior. Assim, o espetáculo e a exibição
transformam-se em símbolos de um novo mundo, agregam novos valores aos locais
potencialmente escolhidos pelo capital especulativo.
Harvey afirma que é inegável que a cultura se transformou em algum gênero de
mercadoria, acredita que
algo muito especial envolve os produtos e os eventos
culturais, sendo preciso pô-los à parte das mercadorias normais; são produtos e eventos
que estão num plano mais elevado de produção e da criatividade humana, diferente da
produção da indústria tradicional. “Como a condição de mercadoria de tantos desses
fenômenos se harmoniza como seu caráter específico?”.
O autor busca entender como os processos contemporâneos de globalização
econômica se relacionam com as localidades e as formas culturais, através do
significado de “renda monopolista”, um conceito da economia política. Segundo
Harvey, este conceito pode propiciar interpretações valiosas sobre muitos dilemas
práticos e pessoais resultantes do nexo entre globalização capitalista, desenvolvimentos
político-econômicos locais e evolução dos sentidos culturais e dos valores estéticos.
Toda renda se baseia no poder monopolista dos proprietários
privados de determinadas porções do planeta. A renda
monopolista surge porque os atores sociais podem aumentar seu
fluxo de renda por muito tempo, em virtude do controle exclusivo
sobre algum item direta ou indiretamente, comercializável, que é,
em alguns aspectos, crucial, único, irreplicável. (p.222).
Na raiz do processo de valorização não está apenas a busca do lucro, mas a busca
das rendas monopolistas, segundo Harvey. Neste contexto, a linguagem de
autenticidade, originalidade, singularidade e qualidades irreplicáveis especiais avulta
grandemente. A generalidade do mercado globalizado gera uma força poderosa que
procura garantir não apenas a continuidade dos privilégios monopolistas da propriedade
privada, mas também as rendas monopolistas que resultam da descrição de mercadorias
como sendo mercadorias incomparáveis. Este processo compatibiliza-se com a própria
expansão do capitalismo e a seletividade do capital.
Para Harvey, as tentativas de acumulação absorvem os desenvolvimentos e as
tradições culturais locais. Há o interesse atual, tanto na inovação cultural local, como na
ressurreição e invenção de tradições do lugar, junto ao desejo de extrair e se apropriar
de tais rendas. Não se deve ver a globalização como uma unidade indiferenciada, mas
sim como uma padronização geograficamente articulada das atividades e das relações
capitalistas globais, segundo o autor.
Em um mundo altamente competitivo e fragmentado, a luta para acumular marcos
simbólicos e de distinção e capital cultural se intensifica, de acordo com Harvey. No
entanto, isso nos leva a questões relativas às opções de memória coletiva, estética e
beneficiários do processo, cabendo uma crítica pertinente e geral, sobretudo sobre as
novas relações e práticas sociais em núcleos urbanos apropriados pela chamada
“indústria cultural”, que as torna cidades mundializadas, muitas inseridas no circuito
global do turismo internacional.
Dispersos movimentos de oposição à globalização neoliberal indicam políticas
alternativas; não são inteiramente antagônicos à globalização, mas a quer em condições
muito diferentes, segundo Harvey; desejamos uma outra globalização, nem perversa,
nem como nos fazem vê-la, mas uma globalização que una e não fragmente o território,
a sociedade ou subverta valores tradicionais essenciais à convivência pacífica entre os
homens (SANTOS, 2000).
Assim, em A produção capitalista do espaço, David Harvey, com uma abordagem
crítica, contrapõem-se à desconsideração do papel do espaço geográfico na teoria da
acumulação e do modo de produção capitalista elaborado por Karl Marx. O autor
apresenta subsídios teóricos para uma análise contemporânea das dinâmicas globais que
rebatem sobre o território, fragmentando-o e pulverizando as relações tradicionais que
resistem no lugar; propõem uma busca de igualdades, símbolos e sentidos para
permanências e para a existência humana, onde o espaço geográfico é investido de papel
fundamental na análise.
Referência Bibliográfica
COSTA, Everaldo B. A dialética da construção destrutiva na consagração do
Patrimônio Mundial. Rio Claro (SP) / Revista Olam: Ciência e Tecnologia, Vol. 8, n°
1, 2008.
HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência
universal. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2000.
A IMPLANTAÇÃO FÉRREA NO NORTE PIONEIRO PARANAENSE: UMA
ANÁLISE A PARTIR DA NOÇÃO DE REDES TÉCNICAS
Coaracy Eleutério da Luz1
RESUMO
A ferrovia São Paulo-Paraná instalada na região do Norte Pioneiro paranaense durante a
primeira metade do século XX constituiu-se em um imprescindível instrumento, que
juntamente com as circunstâncias locais já existentes foram responsáveis pela
organização sócio-econômica e pelo escoamento dos principais produtos regionais
conforme
os
diferentes
momentos
econômicos
vivenciados
na
região.
Tal
empreendimento técnico verificado empiricamente é passível de compreensão
aprofundada a partir de idéias e conceitos atinentes à noção de redes técnicas, tais como
conexidade, linhas, nós, fluxos, seletividade espacial, interconexão instável, dentre
outros. Sustentando assim o principal objetivo do presente estudo que versa sobre a
análise do desenvolvimento da rede técnica de comunicação ferroviária implantada na
área em questão. Atingiu-se tal escopo por intermédio de levantamento de material
bibliográfico teórico-conceitual e regional, de material documentado junto às
administrações locais e de registros fotográficos. Percebendo-se finalmente que a
conjuntura ferroviária estudada possibilita uma verificação assentada em preceitos
teóricos da abordagem sobre redes, denotando-se daí como se deu a sua atuação na
configuração espacial tratada.
Palavras-chaves: Redes técnicas, ferrovia, Norte Pioneiro paranaense.
THE RAILWAY IMPLANTATION IN THE NORTE PIONEIRO
PARANAENSE: AN ANALYSIS THROUGH OF THE TECHNICAL
NETWORKS NOTION
ABSTRACT
The São Paulo-Paraná railroad installed in the region of the Norte Pioneiro paranaense
during the first half of the twentieth century constituted as an essential instrument,
which together with the local circumstances already existing were responsible for the
1
Docente do Departamento de Geografia da Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de
Cornélio Procópio, [email protected]
social and economical organization and for the export of the principal regional products
according to the different economical moments happened in the region. Such technique
enterprise checked empiric is passive of deep understanding through of ideas and
conceptions relative to notion technical networks, such as connectivity, lines, points,
flows, spatial selection, unstable interconnection, and others. Sustaining thus the main
goal of this study that is about the analysis of the development technical network
railroad communication installed in the area studied. Reached such objective through
the inquire of regional and bibliographic theoretical-conceptual material, of documented
material at the city halls and the photographic register. Noticing finally that the railroad
conjuncture studied allows a verification based on theoretical precepts of approach
about networks, indicating then how its performance happened in the spatial
configuration approached.
Key words: Technical networks, railroad, region of the Norte Pioneiro paranaense.
1. INTRODUÇÃO
No final do século XIX com a expansão da atividade cafeeira
paulista, esta atinge o território paranaense, cujas características climáticas e
pedológicas favoreceram seu desenvolvimento e o surgimento dos primeiros
povoados. Tal processo de povoamento e desenvolvimento sócio-econômico
dispôs de um significativo aliado a partir da década de vinte ao ser
concedido pelo governo estadual paranaense a permissão para a realização
de um empreendimento ferroviário, a princípio de iniciativa privada, que
ligasse a parte setentrional do Estado à cidade de Ourinhos em São Paulo,
considerada “boca de sertão” neste período.
Esta comunicação ferroviária, então denominada ferrovia São
Paulo-Paraná configura-se como um importante elemento contribuinte para
a estruturação sócio-econômica da região do Norte Pioneiro paranaense. A
partir das condições físicas e humanas preexistentes na região, a infraestrutura ferroviária proporcionou perceptíveis alterações espaciais na
paisagem regional e urbana, assim como, transformou o modo de vida das
populações locais em seus aspectos culturais, sociais e econômicos.
Durante a maior parte da narrativa histórica proveniente da
contribuição mútua entre ferrovia e região têm-se várias constatações de sua
próspera desenvoltura sócio-econômica. Contudo, ao longo dos anos o
patrimônio ferroviário brasileiro passou por um gradativo processo de
deterioração, colaborando para que na década de noventa fosse repassado à
iniciativa privada em virtude das políticas governamentais neoliberais
adotadas neste período, não se omitindo dessa ocorrência o conjunto
ferroviário existente na região estudada.
Perante essa realidade, o presente estudo analisa o evento
ferroviário no Norte Pioneiro paranaense, averiguando o caso de oito
municípios integrantes da mesorregião citada segundo a delimitação
regional adotada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística),
quais sejam: Jacarezinho, Cambará, Andirá, Bandeirantes, Santa Mariana,
Cornélio Procópio, Uraí e Jataizinho.
Para essa finalidade trata-se inicialmente da noção de redes
técnicas, discorrendo de forma sucinta sobre sua gênese e seus principais
conceitos a fim de subsidiar teoricamente nos próximos tomos a análise
empírica acerca da implantação ferroviária na área estudada e seu rearranjo
espacial a partir da última década do século passado. Por fim pretende-se
realçar as principais relações entre aspectos teóricos e a situação estudada,
legitimando uma forma de entendimento, pautada em fundamentos teóricos,
mais esclarecedora e desmistificada da inserção férrea na região.
2. A NATUREZA DO CONCEITO DE REDES TÉCNICAS:
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS
Buscando-se os aspectos embrionários da palavra ‘rede’ afiançase com base na etimologia que esta provém do latim retis e durante o século
XII é empregada para designar o conjunto de fios entrelaçados, linhas e nós
que servia para capturar pequenos animais. Ainda, ao longo de toda a
história das representações de rede houve uma associação entre esta e o
organismo humano com a finalidade de distinguir o corpo em sua totalidade
– como organizador de fluxos ou de tecidos – ou alguma de suas partes
específicas – o cérebro. Contudo, na segunda metade do século XVIII
rompe-se com esta percepção e introduz-se um novo conceito de rede
diferenciado então pela sua ‘saída’ do corpo. Assim, o termo rede é utilizado
pelos engenheiros cartógrafos no sentido moderno de rede de comunicação
para representar o território como um plano de linhas imaginárias ordenadas
em rede a fim de matematizá-lo e construir mapas. O importante nessa
prática diz respeito às formalizações de ordem reticular com base numa
visão geométrica e matemática do espaço que consistem no exercício prévio
necessário à constituição do conceito de rede que se torna logo operacional,
como artefato fabricado pelos engenheiros para cobrir o território. Dessa
maneira, a rede passa a ser objetivada como matriz técnica – infra-estrutura
rodoviária, estrada de ferro, telegrafia – transformando sua relação com o
espaço e com o tempo. A partir disso deve-se ainda enunciar que a história
da rede que antes fazia referência ao organismo, passa também a fazer
referência à técnica (DIAS, 2005, p. 14-15).
Feita esta primeira aproximação sobre a noção de rede derivamse algumas particularidades inerentes ao termo – linhas e nós – permeadas
de uma idéia de ligação, entretanto, condizentes a dois domínios distintos e
antagônicos – corpo e técnica. Pode-se concluir disso que anteriormente ao
século XIX, redes e sistemas sócio-técnicos funcionavam como as redes
existentes atualmente. Todavia, estes não foram conceituados dessa forma,
visto que até o início de 1800, as estradas francesas não foram presumidas
em termos de rede, e também poderia se afirmar que estas não constituíam
um sistema. Contudo, a ausência de uma nomenclatura nacional, a escala
dos projetos – as estradas interessavam aos agrimensores mais que aos
geógrafos – procedimentos para financiamento e tipo de representação de
interesses econômicos locais são fatores que justificam o fato das rodovias
serem na ocasião uma rede inconcebível. Da mesma maneira, no final do
século XVIII, fala-se ainda de linhas de abastecimento de água ou de esgoto
(OFFNER, 2005, p. 4).
Então, a premissa para a rede existiu, e esta pode ser percebida
no desenvolvimento de conceitos do corpo de exército militar francês de
engenheiros em estratégias de defesa; na criação de novas categorias de
pensamento entre doutores, engenheiros mecânicos, e matemáticos. Mas, foi
a doutrina de Saint-Simon (1760-1825) que elevou a rede ao grau de um
conceito. Através de uma metáfora organicista, esta doutrina foi transmitida
e enriquecida por seus numerosos e influentes epígonos que sintetizaram
duas das correntes mais poderosas do pensamento do século XIX – as
economias de circulação e a utopia da ligação universal. A doutrina de
Saint-Simon reuniu estes dois princípios na noção de rede, desse modo tudo
poderia ser colocado em relação a outro tudo e poderia ser gerada uma
circulação de pessoas, bens, capital, idéias, conhecimento (OFFNER, 2005,
p. 4-5). Entre o técnico e o domínio social, entre infra-estrutura e
organização, a rede é um conceito operacional e uma utopia social.
Dias (2005, p. 16) investigando sobre os fundamentos do
pensamento saint-simoniano revela que este filósofo partiu da idéia de que o
corpo humano se solidifica e morre quando a circulação é suspensa. Por
meio dessa analogia de organismo-rede, ele estabeleceu um instrumento de
análise para desenvolver uma ciência política e formular um projeto para
melhorar de forma geral o território francês, o qual se resumiria em traçar
sobre este território (organismo), as redes observadas sobre o corpo humano
de modo a assegurar a circulação dos fluxos, enriquecendo o país e
aumentando a melhoria das condições da vida de toda a população. Ainda, é
ressaltante mencionar que o pensamento de Saint-Simon e de seus adeptos
influenciou intensamente intelectuais, políticos e governantes europeus.
De acordo com as conclusões de Offner (2005, p. 6) esta
primeira aceitação básica da noção de rede, apreendida como uma máquina
circulatória, proporcionou uma visão logística – palavra incluída no
vocabulário militar em 1842 – da sociedade, na qual os meios de produção e
de comunicação estão totalmente ligados ao bem-estar coletivo. Além disso,
segundo este estudioso o discurso sistêmico – fluxo e totalidade orgânica –
não é remoto, se traduzido em terminologia contemporânea, e as propostas
de Saint-Simon não seriam negadas por partidários da complexidade.
Destacadas considerações de Dias (1995, p. 141) afirmam ser o
histórico das redes técnicas condizente ao relato das inovações, que
consecutivamente, surgiram em virtude de uma demanda social antes
localizada do que uniformemente distribuída. Assim, com a ferrovia, a
rodovia, a telegrafia, a telefonia e a teleinformática, ao se reduzir o decurso
de tempo permitiu-se instalar uma ponte entre lugares distantes. Ainda, a
interpretação da narrativa histórica das técnicas demonstra o quanto as
renovações nos transportes e nas comunicações redesenharam o mapa do
mundo a partir do século XIX, visto que este período se caracterizou pela
consolidação e sistematização de experimentos inovadores efetuados em
épocas anteriores.
Assim, na visão de Dias (1995, p. 147), as redes surgem como o
instrumento que viabiliza basicamente duas estratégias – circular e
comunicar – e, contudo estas possuem a capacidade de adaptação às
variações do espaço e às mudanças que advêm no tempo, sendo, portanto,
móveis e inacabadas, em um movimento que está longe de ser concluído.
Ainda, neste sentido Lefébvre indica um mecanismo de passagem do espaço
ao território no tocante à implantação de redes ao afirmar que a produção de
um espaço – o território nacional – espaço físico, balizado, modifica-se,
transforma-se pelas redes, circuitos e fluxos que aí se instalam, sejam estes
rodovias, canais, estradas de ferro, circuitos comerciais e bancários, autoestradas e rotas aéreas, etc. (DIAS, 1995, p. 147).
Neste mesmo rumo pode-se acrescentar que as redes são
formadas por troços – partes, fragmentos – que registraram sua instalação
em vários momentos históricos, e por esta razão são datados diferentemente
e muitos destes permanecem na configuração atual do território, sendo que a
sua substituição no território também ocorre em diferentes momentos
históricos (UEDA, 2005, p. 158). Além disso, de acordo com Silveira
(2005, p. 227) a rede pode ser apreendida como uma forma de organização
espacial que expressa ao mesmo tempo a condição e o resultado de uma
racionalidade técnica, econômica, informacional e normativa, e também da
dinâmica social e política, historicamente dadas. E ainda, a noção de rede
inclui duas dimensões complementares – a formal e a constitucional. No
tocante a sua forma e materialidade, esta corresponde a toda infra-estrutura,
que ao permitir o transporte de matéria, energia ou informação se inscreve
sobre um território. E quanto a sua constituição, ao seu conteúdo e a sua
essência, esta é também social e política, devido às pessoas, mensagens e
valores que a freqüenta (SILVEIRA, 2005, p. 231).
Para se inteirar deste ponto cabe aqui destacar algumas reflexões
feitas por Raffestin:
Imaginemos, desenhado num espaço de representação, um
diagrama em rede. Ele é formado, para um instante dado (pois
veremos amplamente que ele representa um estado qualquer de
uma situação móvel), de uma pluralidade de pontos (picos),
ligados entre si por uma pluralidade de ramificações (caminhos).
A palavra importante é “desenhos” (o traço do “desenho” do
poder). De início, toda estratégia não passa de um pensamento, de
um discurso ou de um gráfico que sintetiza as questões “como”,
“por que” e “quando”. Questões organizadas não sobre o modo da
linearidade, mas sobre o da “tabularidade”, que enriquece o
número das mediações possíveis, e essas últimas são flexíveis.
Essa multiplicidade de caminhos que estabelece a indeterminação
do encaminhamento é, segundo Michel Serres, a condição da
astúcia. A rede aparece, desde então, como fios seguros de uma
rede flexível que pode se moldar conforme as situações concretas
e, por isso mesmo, se deformar para melhor reter. (...) A rede faz
e desfaz as prisões do espaço, tornado território: tanto libera como
aprisiona. É o porquê de ela ser o “instrumento” por excelência do
poder (RAFFESTIN, 1993, p. 204).
Mediante os apontamentos de Toledo Junior (2003, p. 95), as
redes podem ser entendidas tanto como a presença de uma infra-estrutura no
território, quanto pelos serviços realizados por esta. A presença de infraestruturas, isto é, de dispositivos concretos no espaço, recebe entre outras
denominações a de redes técnicas. Tal termo é utilizado para fazer
referência às redes de eletricidade, de transporte, de distribuição de água, de
gás, de telecomunicações, entre outras. Assim, este não se refere
diretamente aos fluxos, à circulação que ocorre nas redes em geral, mas à
presença física de um conjunto de linhas e pontos.
Complementado tal ponto, Randolph (1999, p. 43) admite que as
redes caracterizam-se por serem estruturas abertas, aptas à expansão,
comunicativas,
sendo
altamente
dinâmicas
e
funcionando
como
instrumentos econômicos, sociais e culturais. De acordo com suas reflexões,
cada rede tem topologia, determina distâncias e velocidades (inclusive
simultaneidade), precisando naturalmente de certos suportes materiais,
energéticos e informacionais para poder desempenhar suas funções.
Depreende-se desse modo, que a presença de fluxos,
independente da espécie – de mercadorias a informações – pressupõe a
existência de redes. Conforme Dias (1995, p. 148), a primeira propriedade
das redes consiste na conexidade – qualidade de conexo – ou seja, que tem
ou em que há conexão. Segundo esta autora os nós das redes se caracterizam
como lugares de conexões, de poder e de referência. Ainda é válido
mencionar que as redes se designam por um “conjunto de elementos e
relações que se estabelecem entre elementos (nós) que entre si mantêm
determinadas atividades de intercâmbio e troca” (RANDOLPH, apud.
MOURA, 1997, p. 27).
Dessa maneira, pode-se dizer que “uma rede é um conjunto de
nós interconectados. Um nó é um ponto na qual uma curva apresenta uma
interseção com ela mesma (intersects itself)” (CASTELLS, apud.
RANDOLPH, 1999, p. 43). É através da conexidade que a rede solidariza os
elementos, entretanto, simultaneamente a esta capacidade de solidarizar,
está também a de excluir. Os organismos de gestão da rede sejam estes de
gestão técnica, econômica ou jurídica, não são neutros, pois estes colocam
em jogo relações sociais entre os elementos solidarizados e aqueles que
permanecem marginalizados (DIAS, 1995, p. 148). Concluindo, esta autora
argumenta que uma rede nunca pode ser como máxima, definida pela
totalidade de relações mais diretas, mas como uma rede resultante da
manifestação das coações técnicas, econômicas, políticas e sociais.
Relacionado a esta questão Raffestin (1993, p. 188) assevera que a
nodosidade, a centralidade e a marginalidade presente nas estruturas
reticulares estão unidas por meio dos atores que as fazem e desfazem. Em
sua concepção a nodosidade reúne os atores paradigmáticos, os quais por
sua vez se tiverem acesso à categoria de atores sintagmáticos, possivelmente
fundarão uma centralidade que determinará uma marginalidade ipso facto.
Para este autor as inversões topológicas não questionam coisa alguma na
estrutura relacional, havendo, portanto, um sistema progressivo –
nodosidade versus centralidade versus marginalidade – no entanto, pode
haver também uma ação regressiva que parte da estruturação à
desestruturação do poder. Complementando a presente concepção de rede,
têm-se importantes considerações de Dias (2004, sem página) que afiançam
ser esta uma estrutura de interconexão instável, composta de elementos em
interação, cuja variabilidade obedece a alguma regra de funcionamento.
Sendo assim, a comunicação através de redes é vinculada a uma
seletividade espacial, considerando que ao mesmo tempo em que integram
os agentes mais importantes, estas integram desigualmente os territórios,
seguindo o peso das atividades econômicas preexistentes, vindo a favorecer
a rigidez e o peso de antigas solidariedades (DIAS, 1995, p. 158).
Relacionando-se com esta questão, pode-se mencionar a falta de
homogeneidade do espaço, assim como, também, das redes. Ao se tratar da
‘distribuição homogênea’ e de ‘serviços ubiquitários, instantâneos e
simultâneos’ refere-se, principalmente, às redes e serviços existentes, e não
ao território ou a seus subespaços tomados na totalidade. Compreende-se
que a homogeneização é um mito, sua percepção resulta de um ‘delírio
analítico’ que associa à idéia de revolução espacial a existência de uma
indiferença espacial, porém o espaço permanece diferenciado, sendo esta
uma das razões pelas quais as redes que nele se instalam serem igualmente
heterogêneas (SANTOS, 1999, p. 213).
3. FERROVIA SÃO PAULO-PARANÁ E NORTE PIONEIRO: A
REDE TÉCNICA E A CONFIGURAÇÃO ESPACIAL NO SÉCULO
XX
As condições pedológicas favoráveis para a economia
cafeicultora a partir do território paulista propiciaram a expansão de sua
fronteira agrícola e econômica. Assim, esta se desloca para diversas
direções, atingindo a região do Norte Pioneiro paranaense na segunda
metade do século XIX, dando origem aos primeiros núcleos povoadores no
vale do rio das Cinzas (KROETZ, 1985, p. 114-115).
Porém, esta prática agrícola ainda neste período não obteve o
crescimento desejado nestes núcleos iniciais, que além deste produto
cultivavam também algodão, arroz, feijão e fumo, visto que a
comercialização da produção consistia em um grande impasse. Na época
praticamente não havia comunicação com o restante do território paranaense
e com São Paulo somente existiam péssimas ligações terrestres
(WACHOWICZ, 1987, p. 95).
Foi no fim da primeira década do século XX que a região de
Jacarezinho começou a produzir café em quantidades exportáveis
(WACHOWICZ, 1987, p. 107), assim como nesta área a ocupação da região
a leste do rio Tibagi também foi influenciada pela difusão da atividade dos
cafeicultores paulistas, tendo como ponto de partida a cidade de Ourinhos
em São Paulo. Tal fato foi reforçado pelo prolongamento da ferrovia
paulista Sorocabana até Ourinhos – considerada “boca de sertão” na época –
em 1908, beneficiando pela proximidade dos trilhos os núcleos paranaenses
de Jacarezinho e Cambará, já fundados no início do século passado, os quais
retomaram o plantio e a exportação cafeeira (KROETZ, 1985, p. 115).
Em virtude do aumento da produção de café e dos anseios locais
e paulistas de que houvesse uma comunicação ferroviária até os centros
produtores, solicitou-se ao governo do Estado do Paraná a concessão para a
construção de uma estrada de ferro1. Para tal empreendimento de iniciativa
privada, reuniram-se os capitais de vários fazendeiros que desenvolviam
suas atividades cafeicultoras no norte paranaense e acreditavam que além de
produzir fazia-se necessário escoar a produção (KROETZ, 1985, p. 115).
Então, pelo Decreto Estadual n. 896, de 2 de agosto de 1920,
concedeu-se a Antonio Ribeiro dos Santos e outros envolvidos, ou à
Companhia responsável que organizassem, a construção, uso e gozo de uma
ferrovia, que “partindo de um ponto conveniente do projetado ramal férreo
Jaguariaíva-Ourinhos, entre Jacarezinho e a barranca do rio Paraná, seguisse
até Cambará, daí atravessando os rios das Cinzas e Laranjinha e se
prolongasse até Jataí” (KROETZ, 1985, p. 117).
1
É válido mencionar que no final do século XIX a província paranaense já havia idealizado projetos de
uma ligação férrea que partisse da cidade portuária de Antonina atingindo as localidades do vale do
Paranapanema, procurava-se então direcioná-la ao Norte Pioneiro, impedindo assim que tal porção do
Estado se tornasse tributária da Província de São Paulo, no entanto, tal plano de viação terrestre não foi
concretizado (WACHOWICZ, 1987, p. 105). Ao longo do desenvolvimento histórico da ferrovia
estudada, houve outras tentativas paranaenses sem êxito de integrar economicamente essa região ao resto
do território do Estado.
No ano de 1922, a então Companhia Ferroviária Noroeste do
Paraná através do Decreto n. 3.536 do Estado de São Paulo, obteve a
concessão para construir a via férrea de Ourinhos, da estação da Estrada de
Ferro Sorocabana até o porto de Itaipava à margem esquerda do rio
Paranapanema. No ano seguinte a estrada de ferro passou a denominar-se
Companhia Ferroviária São Paulo-Paraná. E em 1924, no mês de junho
foram inaugurados os primeiros 22 quilômetros de linhas, partindo da
estação de Ourinhos até Leoflora no Paraná, e posteriormente neste mesmo
ano abriu-se a estação de Cambará no Km 30 (KROETZ, 1985, p. 117-119).
A ligação entre os dois trechos ferroviários já erigidos nos
territórios paranaense e paulista, era feito por meio de uma ponte provisória,
enquanto estava sendo erguida uma nova ponte metálica sobre o rio
Paranapanema, a qual foi concluída e inaugurada em 1927 (KROETZ, 1985,
p. 119).
Em 1923, foi organizada a Missão Montagu, constituída por
representantes políticos, financeiros e industriais ingleses, da qual fazia
parte o diretor da Sudan Cotton Plantation Syndicate, incumbido de
verificar a possibilidade de aplicação de capitais no Brasil, de modo a obter
o algodão, produto importado em larga escala, a fim de suprir a emergente
indústria têxtil da Inglaterra. Este investidor visitou o norte paranaense,
sendo informado sobre a valorização das áreas próximas da ferrovia no
trecho já construído, que se localizavam perto de Cambará, tendo ainda
conhecido um plano inteligente de vendas de terras férteis (KROETZ, 1985,
p. 120).
Assim, foi organizada em Londres no ano de 1924 a Brazil
Plantations Syndicate Limited com capital de 200.000 libras esterlinas,
iniciando suas atividades de cultivo de algodão em larga escala em São
Paulo, e em seguida em 1925, com o aumento dos investimentos para
760.000 libras esterlinas, passando a desenvolver a plantação de algodão
também no Paraná. Em 1928 a diretoria da Companhia de Terras Norte do
Paraná, subsidiária no Brazil Plantations Syndicate Limited, cessou as
atividades relacionadas ao cultivo de algodão, passando a dedicar-se
intensivamente à colonização das terras adquiridas do governo do Estado do
Paraná na margem esquerda do Paranapanema, entre os rios Tibagi e Ivaí.
Ademais, esta aceitou a aquisição da Companhia Ferroviária São PauloParaná (KROETZ, 1985, p. 120).
Desse modo a Companhia Ferroviária São Paulo-Paraná obteve
pelo Decreto n. 450, de 20 de abril de 1928, o privilégio de uso e gozo por
noventa anos, concessão esta que ficou extensiva desde Ourinhos até
Cambará, transpondo o rio Tibagi, seguindo em direção ao espigão divisor
entre os rios Paranapanema e Tibagi até o percurso de 280 quilômetros, em
ponto conveniente ao prolongamento da mesma estrada até o rio Paraná,
onde fosse mais próximo dos portos de São José e Guaíra (KROETZ, 1985,
p.121).
O prolongamento da estrada de ferro a partir de Cambará foi
realizado pela firma empreiteira Mac Donald Gibes Co., sendo que esta
atingiu Jataí em 1932, numa extensão de 184 quilômetros2 (MAPA 01).
Entre os produtos de maior quantidade e valor transportados até essa data
destacam-se o milho, seguido da madeira, do café e do feijão. O café ainda
não havia atingido maior tonelagem transportada, somente na década de
quarenta vai suplantar o milho, ocupando a segunda posição na pauta de
escoamento da produção3 (KROETZ, 1985, p.121).
2
Complementando o presente relato histórico o trecho estudado possui um total de 21 estações
ferroviárias localizadas de modo desigual espacialmente e temporalmente nos oito municípios abordados.
Sendo as seguintes estações com suas respectivas datas de inauguração: Marques dos Reis (1937),
Presidente Munhoz (data ignorada) e Leoflora no município de Jacarezinho (1925); Cambará (1925) e
Meirelles no município de Cambará (1930); Niepso da Silva (1948), Andirá (1930) e Timburi no
município de Andirá (1939); Cinzas (1939), Bandeirantes (1930) e Ibiúna no município de Bandeirantes
(1940); Laranjinha (1940) e Santa Mariana (1948) no município de Santa Mariana; Guapuruvu (1949),
Cornélio Procópio (1930), Catupiri (1941) e Congonhas (1932) no município de Cornélio Procópio; Uraí
(1936) e Serra Morena (1939) no município de Uraí; Frei Timóteo (1932) e Jataizinho (1932) no
município de Jataizinho. A ferrovia São Paulo-Paraná não auferiu seu objetivo original de alcançar as
margens do rio Paraná, chegando até Apucarana em 1942 e posteriormente no ano de 1972 tem seu
destino final na cidade de Cianorte (GIESBRECHT, 2008, sem página).
3
Além do transporte de cargas, também existia neste trecho o trafego de passageiros dividido entre as
seções Ourinhos-Maringá e Maringá-Cianorte, que perdurou até o ano de 1981 no primeiro traçado
(GIESBRECHT, 2008, sem página).
MAPA 01
No período condizente à eclosão da Segunda Guerra Mundial,
os países europeus que se envolveram neste conflito, tiveram a necessidade
de recursos cada vez maiores para conter as suas despesas internas. A
Inglaterra adotou uma política de retorno compulsório dos capitais ingleses
aplicados no exterior, com isso houve uma série de empresas à venda
anunciadas frequentemente pela imprensa londrina (KROETZ, 1985, p.125).
Ressalta-se nesta época a venda da Companhia de Terras Norte
do Paraná e da Companhia Ferroviária São Paulo-Paraná para um grupo de
empresários brasileiros em 1942. Nesse trâmite, finalizado somente em
1944, o governo da União, condicionou que a ferrovia, então prolongada até
Apucarana, possuindo 269 quilômetros, fosse incorporada por meio do
Decreto-lei n. 6.412 de 10 de abril à Rede Viação Paraná-Santa Catarina
(RVPSC)4 (KROETZ, 1985, p.125).
4. FERROVIA SÃO PAULO-PARANÁ E NORTE PIONEIRO: A
REDE TÉCNICA E A RECONFIGURAÇÃO ESPACIAL A PARTIR
DOS ANOS NOVENTA
Segundo Silveira (2002, p. 68), a incapacidade do Estado
brasileiro em gerar investimentos para os setores de infra-estrutura de um
modo geral, acarretou uma profunda deficiência no desenvolvimento
operacional de tais atividades. No caso do modal ferroviário, as
conseqüências se expressam da seguinte maneira: pela imagem de
ineficiência medida pela produção estagnada e pela inapetência na
competição intra e intermodal no mercado de transportes, pelos seus déficits
operacionais, pela pressão por recursos fiscais compensatórios, pela
deterioração de seus níveis de serviços, pelos desinvestimentos e problemas
regulamentares aguçados em tempos de crise fiscal (quando um novo
modelo ideológico, centrado na reforma do Estado e na necessidade de
incrementar a eficiência global da economia alcança o país), pela falta de
congruência da RFFSA às lógicas de entidade empresarial e por servir como
instrumento da política de governo.
4
Em 1957 a RVPSC foi incorporada pela Rede Ferroviária Federal (RFFSA), constituindo-se em uma das
unidades operacionais do governo federal (RFEFB, 1960, p. 191).
Em 1995, a deterioração da via permanente, a falência da
indústria ferroviária, o rodoviarismo abrangendo oitenta por cento do
investimento nacional destinado ao transporte e outros inconvenientes para a
ferrovia foram assunto de diversos seminários e debates ocorridos no país.
Com isso, consolida-se um estudo governamental para o arrendamento das
linhas, formando assim o Conselho Nacional de Desestatização que incluía,
após estudos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES), a RFFSA no Plano Nacional de Desestatização (PND) através do
Decreto n°. 473, de 10 de março de 1992, instituído pela Lei n°. 8.031, de
12 de abril de 1990 (RFFSA, 1997/1999). O decreto concedia a RFFSA e
sua subsidiária Armazéns Gerais Ferroviários S. A. – AGEF (criada em
1959 para operar armazéns e silos complementando o transporte de carga
efetuado pela Rede) por trinta anos, com possibilidade de renovação do
contrato por trinta anos adicionais (SILVEIRA, 2002, p. 69).
O modelo de desestatização da RFFSA resultou de um processo
que visava desonerar a União, fomentar investimentos e aumentar a
eficiência operacional. Estes objetivos deveriam ser atingidos na perspectiva
de reverter o quadro atual de redução na implantação de novas ferrovias e o
abandono da manutenção das antigas estradas de ferro. Isto ocorreria através
de uma coordenação operacional, tarifária e institucional, proporcionando
melhores condições para produzir, abastecer e comercializar. Para atingir
estas metas, o sistema operado pela empresa foi dividido em seis malhas
regionais para em seguida serem repassadas à iniciativa privada (RFFSA,
1997/1999).
Desta repartição da rede ferroviária nacional em malhas
regionais,
interessa-se
aqui
pela
Malha
Sul
que
integra
duas
Superintendências Regionais: a SR-5 de Curitiba e a SR-6 de Porto Alegre,
cujas linhas se estendem pelos três estados sulinos. Historicamente a SR-5 é
sucessora da Rede Viação Paraná - Santa Catarina e a SR-6 da Viação
Férrea do Rio Grande do Sul. Quanto aos aspectos de mercado, esta malha
apresenta dois fatores importantes, pois liga as regiões agrícolas do norte do
Paraná e do oeste gaúcho aos portos de Paranaguá e Rio Grande,
respectivamente, e atende a uma rota de grande potencial, sendo esta a
ligação da região metropolitana de São Paulo – conectada através da
FEPASA – com os estado do sul e com os parceiros econômicos do
Mercosul – Uruguai e Argentina. Atualmente, seu principal fluxo de tráfego
consiste no corredor Apucarana – Paranaguá, por onde escoam os produtos
agrícolas destinados à exportação. A Malha Sul é basicamente uma
transportadora de grãos e farelos direcionados para a exportação e de
combustíveis – derivados de petróleo e álcool – enviados às bases
secundárias de distribuição. Sendo ainda relevante o transporte de cimento e
de adubos e fertilizantes (RFFSA, 1996, p. 32, 36 e 38).
Em 1997 foram transferidos à concessionária América Latina
Logística (ALL) por parte da RFFSA os bens operacionais de sua
propriedade designados à atual prestação do serviço concedido por meio de
contrato de arrendamento. Diante desta abordagem sobre o repasse da malha
ferroviária no país ao poder privado, percebem-se nitidamente as questões
políticas, econômicas, jurídicas e técnicas envolvidas, e são estas que
influenciarão a tomada de novos procedimentos especialmente no trecho
estudado para a constituição de uma nova configuração ferroviária. Pois,
segundo Lima (196_, p. 96) quando uma linha férrea se torna inviável
economicamente, não havendo margem apreciável para elevação do produto
médio, recomenda-se que se envidem esforços no sentido de comprimir
despesas, suprimir ramais antieconômicos, fechar estações sem movimento,
concentrar e racionalizar os trabalhos de conservação das vias e dos
equipamentos.
Pelas considerações já apontadas neste tomo, é possível
contextualizar e compreender o rearranjo ferroviário verificado na seção
estudada confirmando-se com isso que as redes são capazes de se adaptar às
variações do espaço e às mudanças no tempo, caracterizando-se, portanto
como organizações móveis e inacabadas.
No trecho abordado percebe-se como ocorreu a sua seletividade
espacial em função da existência dos trilhos e do uso ferroviário de algumas
paradas que sustenta na atualidade o movimento dos trens, solidarizando
assim alguns locais, como é o caso de Marques dos Reis em Jacarezinho e
Jataizinho (15,39%) e excluindo o restante das estações remanescentes5
(MAPA 02).
MAPA 02
5
A respeito da seletividade espacial percebida no momento atual através da configuração espacial
promovida pela ferrovia, deve-se mencionar que no trecho completo Ourinhos-Cianorte, esta se encontra
desativada entre Maringá e Cianorte. Na seção estudada, apesar de apenas duas estações apresentarem uso
ferroviário, a concessionária atual detém algumas estações que futuramente podem vir a serem usadas,
como por exemplo, a estação de Santa Mariana. Fato este que reforça a flexibilidade presente na
organização das redes técnicas quanto ao estabelecimento de sua nodosidade e centralidade. Ainda esta
realiza atividades ferroviárias em algumas localidades por meio de instalações de menor porte construídas
recentemente (GIESBRECHT, 2008, sem página).
Do total de 21 estações analisadas, 13 remanescem no trecho
verificado, sobre estas os demais usos que acentuam a sua marginalidade
perante o contexto ferroviário regional se remetem à utilização como
residências para 38,46% dos bens, ainda 15,39% possuem uso cultural e
30,76% não apresentam nenhuma função social (QUADRO 01).
QUADRO 01
TIPOLOGIA DE USO DAS ESTAÇÕES REMANESCENTES NO TRECHO
ESTUDADO DA FERROVIA SÃO PAULO-PARANÁ NO NORTE PIONEIRO
USO
ESTAÇÕES
EXEMPLO
Ferroviário
Marques dos Reis
Jataizinho
Estação de Jataizinho
Cultural
Cornélio Procópio
Estação de Cornélio Procópio
Residencial
Cambará
Bandeirantes
Congonhas
Serra Morena
Frei Timóteo
Estação de Bandeirantes
Inexistente
Presidente Munhoz
Niepso da Silva
Andirá
Santa Mariana
Uraí
Estação de Uraí
FONTE: GIESBRECHT, 2008; Pesquisa de campo, fev-mai/2008.
ORGANIZAÇÃO: LUZ, 2008.
No que se refere às condições físicas das estações ferroviárias
pode-se classificar como conservadas um percentual de 28,57%, segue-se
nesta tipologia a percentagem de 33,33% para os imóveis considerados
degradados e 38,1% que estão demolidos (QUADRO 02).
QUADRO 02
SITUAÇÃO ATUAL DAS ESTAÇÕES FERROVIÁRIAS REMANESCENTES
NO TRECHO ESTUDADO DA FERROVIA SÃO PAULO-PARANÁ NO
NORTE PIONEIRO
Condições físicas
Estações
Exemplo
Conservada
Cornélio Procópio
Congonhas
Uraí
Serra Morena
Frei Timóteo
Jataizinho
Estação de Congonhas
Degradada
Marques dos Reis
Presidente Munhoz
Cambará
Niepso da Silva
Andirá
Bandeirantes
Santa Mariana
Estação de Cambará
Demolida
Leoflora
Meireles
Timburi
Cinzas
Ibiúna
Laranjinha
Guapuruvu
Catupiri
Plataforma da extinta
Estação de Meireles
FONTE: GIESBRECHT, 2008; Pesquisa de campo, fev-mai/2008.
ORGANIZAÇÃO: LUZ, 2008.
Ademais se demonstra aqui que uma rede técnica – a ferroviária
–
pode ser entendida perfeitamente como uma interconexão instável
composta de elementos em interação e que possui uma variabilidade que
obedece alguma regra de funcionamento. Sua instabilidade identifica-se
com a fase de movimento baixo de parte do trecho estudado, que não se
insere na dinâmica pretendida pela rede ferroviária em sua totalidade, sendo
esta a sua regra de funcionamento a existência de vantagens econômicas
para se efetuar o tráfego, que por sua vez alteram a interação entre os
elementos que a compõem.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apoiando-se na discussão teórica a respeito das redes técnicas e
suas diversas implicações espaciais percebe-se que a ferrovia em questão
apresenta seus principais atributos, tais como as estratégias de comunicar os
locais – nós ou pontos – produtores de café e outras mercadorias aos centros
consumidores e exportadores desta produção, gerando com isso uma intensa
atividade de circulação de tais fluxos. Tal empreendimento logístico que
atendeu ao movimento de mercadorias, pessoas e capital interligando
lugares com interesses em comum incrementou a organização espacial da
área estudada e contribuiu para melhoria das condições socioeconômicas
das populações envolvidas.
A narrativa ferroviária da região demonstra que além dos
circuitos e fluxos impostos ao espaço houve toda uma gama de atitudes
racionais técnicas, econômicas, informacionais e normativas para a
instalação de tal modalidade de transporte. Sua implantação alterou a
dinâmica social e política local, estadual e interestadual, visto que a
materialidade desta rede técnica era de interesse de diversos atores
pertencentes às esferas já citadas. Assim, seus aspectos constitucionais
envolveram as intenções sociais e políticas de fazendeiros locais, de
autoridades governamentais paranaenses e paulistas.
Ao longo do evento ferroviário na área estudada nota-se que o
desenho do poder imbricado pelos atores já mencionados, que estabeleceu a
nodosidade, a centralidade e a marginalidade da presente rede técnica,
sofreu uma deformação no sentido de melhor reter o movimento de
transporte segundo as alterações socioeconômicas do espaço em que esta se
encontra. O fato de que na atualidade a área estudada já não apresentar a
funcionalidade ferroviária que manifestava no passado, servindo somente
como passagem para a rede técnica em questão, realça a flexibilidade da
rede, além de sua necessidade de suportes materiais que provém do espaço
geográfico, instância esta tão fundamental para sua composição e atuação.
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