Contos - Colégio Estrela Sírius

Transcrição

Contos - Colégio Estrela Sírius
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Contos
1.
Feliz Aniversário (Clarice Lispector)
2.
Conto da escola (Machado de Assis)
3.
Negrinha (Monteiro Lobato)
4.
Inundação (Mia Couto)
Profª. Cindia Patti
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1. Feliz Aniversário
Clarice Lispector
A família foi pouco a pouco chegando. Os que vieram de Olaria estavam muito bem vestidos
porque a visita significava ao mesmo tempo um passeio a Copacabana. A nora de Olaria apareceu de
azul-marinho, com enfeite de paetês e um drapeado disfarçando a barriga sem cinta. O marido não veio
por razões óbvias: não queria ver os irmãos. Mas mandara sua mulher para que nem todos os laços
fossem cortados e esta vinha com o seu melhor vestido para mostrar que não precisava de nenhum deles,
acompanhada dos três filhos: duas meninas já de peito nascendo, infantilizadas em babados cor-de-rosa e
anáguas engomadas, e o menino acovardado pelo terno novo e pela gravata.
Tendo Zilda a filha com quem a aniversariante morava disposto cadeiras unidas ao longo das
paredes, como numa festa em que se vai dançar, a nora de Olaria, depois de cumprimentar com cara
fechada aos de casa, aboletou- se numa das cadeiras e emudeceu, a boca em bico, mantendo sua
posição de ultrajada. "Vim para não deixar de vir", dissera ela a Zilda, e em seguida sentara-se ofendida.
As duas mocinhas de cor-de-rosa e o menino, amarelos e de cabelo penteado, não sabiam bem que
atitude tomar e ficaram de pé ao lado da mãe, impressionados com seu vestido azul-marinho e com os
paetês.
Depois veio a nora de Ipanema com dois netos e a babá. O marido viria depois. E como Zilda a
única mulher entre os seis irmãos homens e a única que, estava decidido já havia anos, tinha espaço e
tempo para alojar a aniversariante e como Zilda estava na cozinha a ultimar com a empregada os
croquetes e sanduíches, ficaram: a nora de Olaria empertigada com seus filhos de coração inquieto ao
lado; a nora de Ipanema na fila oposta das cadeiras fingindo ocupar-se com o bebê para não encarar a
concunhada de Olaria; a babá ociosa e uniformizada, com a boca aberta.
E à cabeceira da mesa grande a aniversariante que fazia hoje oitenta e nove anos.
Zilda, a dona da casa, arrumara a mesa cedo, enchera-a de guardanapos de papel colorido e
copos de papelão alusivos à data, espalhara balões sungados pelo teto em alguns dos quais estava
escrito "Happy Birthday!", em outros "Feliz Aniversário!" No centro havia disposto o enorme bolo
açucarado. Para adiantar o expediente, enfeitara a mesa logo depois do almoço, encostara as cadeiras à
parede, mandara os meninos brincar no vizinho para não desarrumar a mesa.
E, para adiantar o expediente, vestira a aniversariante logo depois do almoço. Pusera-lhe desde
então a presilha em torno do pescoço e o broche, borrifara-lhe um pouco de água-de-colônia para
disfarçar aquele seu cheiro de guardado sentara-a à mesa. E desde as duas horas a aniversariante estava
sentada à cabeceira da longa mesa vazia, tesa na sala silenciosa.
De vez em quando consciente dos guardanapos coloridos. Olhando curiosa um ou outro balão
estremecer aos carros que passavam. E de vez em quando aquela angústia muda: quando acompanhava,
fascinada e impotente, o vôo da mosca em torno do bolo.
Até que às quatro horas entrara a nora de Olaria e depois a de Ipanema.
Quando a nora de Ipanema pensou que não suportaria nem um segundo mais a situação de estar
sentada defronte da concunhada de Olaria que cheia das ofensas passadas não via um motivo para
desfitar desafiadora a nora de Ipanema entraram enfim José e a família. E mal eles se beijavam, a sala
começou a ficar cheia de gente que ruidosa se cumprimentava como se todos tivessem esperado embaixo
o momento de, em afobação de atraso, subir os três lances de escada, falando, arrastando crianças
surpreendidas, enchendo a sala e inaugurando a festa.
Os músculos do rosto da aniversariante não a interpretavam mais, de modo que ninguém podia
saber se ela estava alegre. Estava era posta á cabeceira. Tratava-se de uma velha grande, magra,
imponente e morena. Parecia oca.
Oitenta e nove anos, sim senhor! disse José, filho mais velho agora que Jonga tinha morrido.
Oitenta e nove anos, sim senhora! disse esfregando as mãos em admiração pública e como sinal
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imperceptível para todos. Todos se interromperam atentos e olharam a aniversariante de um modo mais
oficial. Alguns abanaram a cabeça em admiração como a um recorde.
Cada ano vencido pela aniversariante era uma vaga etapa da família toda. Sim senhor! disseram
alguns sorrindo timidamente. Oitenta e nove anos!, ecoou Manoel que era sócio de José. É um brotinho!,
disse espirituoso e nervoso, e todos riram, menos sua esposa.
A velha não se manifestava. Alguns não lhe haviam trazido presente nenhum. Outros trouxeram
saboneteira, uma combinação de jérsei, um broche de fantasia, um vasinho de cactos nada, nada que a
dona da casa pudesse aproveitar para si mesma ou para seus filhos, nada que a própria aniversariante
pudesse realmente aproveitar constituindo assim uma economia: a dona da casa guardava os presentes,
amarga, irônica. Oitenta e nove anos! repetiu Manoel aflito, olhando para a esposa.
A velha não se manifestava. Então, como se todos tivessem tido a prova final de que não adiantava
se esforçarem, com um levantar de ombros de quem estivesse junto de uma surda, continuaram a fazer a
festa sozinhos, comendo os primeiros sanduíches de presunto mais como prova de animação que por
apetite, brincando de que todos estavam morrendo de fome.
O ponche foi servido, Zilda suava, nenhuma cunhada ajudou propriamente, a gordura quente dos
croquetes dava um cheiro de piquenique; e de costas para a aniversariante, que não podia comer frituras,
eles riam inquietos. E Cordélia? Cordélia, a nora mais moça, sentada, sorrindo. Não senhor! respondeu
José com falsa severidade, hoje não se fala em negócios! Está certo, está certo! recuou Manoel depressa,
olhando rapidamente para sua mulher que de longe estendia um ouvido atento.
Nada de negócios, gritou José, hoje é o dia da mãe! Na cabeceira da mesa já suja, os copos
maculados, só o bolo inteiro ela era a mãe. A aniversariante piscou os olhos.
E quando a mesa estava imunda, as mães enervadas com o barulho que os filhos faziam,
enquanto as avós se recostavam complacentes nas cadeiras, então fecharam a inútil luz do corredor para
acender a vela do bolo, uma vela grande com um papelzinho colado onde estava escrito "89". Mas
ninguém elogiou a idéia de Zilda, e ela se perguntou angustiada se eles não estariam pensando que fora
por economia de velas ninguém se lembrando de que ninguém havia contribuído com uma caixa de
fósforos sequer para a comida da festa que ela, Zilda, servia como uma escrava, os pés exaustos e o
coração revoltado.
Então acenderam a vela. E então José, o líder, cantou com muita força, entusiasmando com um
olhar autoritário os mais hesitantes ou surpreendidos, "vamos! todos de uma vez!" e todos de repente
começaram a cantar alto como soldados. Despertada pelas vozes, Cordélia olhou esbaforida. Como não
haviam combinado, uns cantaram em português e outros em inglês.
Tentaram então corrigir: e os que haviam cantado em inglês passaram a português, e os que
haviam cantado em português passaram a cantar bem baixo em inglês. Enquanto cantavam, a
aniversariante, à luz da vela acesa, meditava como junto de uma lareira. Escolheram o bisneto menor que,
debruçado no colo da mãe encorajadora, apagou a chama com um único sopro cheio de saliva! Por um
instante bateram palmas à potência inesperada do menino que, espantado e exultante, olhava para todos
encantado. A dona da casa esperava com o dedo pronto no comutador do corredor - e acendeu a
lâmpada. Viva mamãe! Viva vovó! Viva D. Anita, disse a vizinha que tinha aparecido. Happy birthday!
gritaram os netos, do Colégio Bennett.
Bateram ainda algumas palmas ralas. A aniversariante olhava o bolo apagado, grande e seco.
Parta o bolo, vovó! disse a mãe dos quatro filhos, é ela quem deve partir! assegurou incerta a todos, com
ar íntimo e intrigante. E, como todos aprovassem satisfeitos e curiosos, ela se tornou de repente
impetuosa: parta o bolo, vovó! E de súbito a velha pegou na faca.
E sem hesitação , como se hesitando um momento ela toda caísse para a frente, deu a primeira
talhada com punho de assassina. Que força, segredou a nora de Ipanema, e não se sabia se estava
escandalizada ou agradavelmente surpreendida.
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Estava um pouco horrorizada. Há um ano atrás ela ainda era capaz de subir essas escadas com
mais fôlego do que eu, disse Zilda amarga. Dada a primeira talhada, como se a primeira pá de terra
tivesse sido lançada, todos se aproximaram de prato na mão, insinuando-se em fingidas acotoveladas de
animação, cada um para a sua pazinha.
Em breve as fatias eram distribuídas pelos pratinhos, num silêncio cheio de rebuliço. As crianças
pequenas, com a boca escondida pela mesa e os olhos ao nível desta, acompanhavam a distribuição com
muda intensidade. As passas rolavam do bolo entre farelos secos. As crianças angustiadas viam se
desperdiçarem as passas, acompanhavam atentas a queda. E quando foram ver, não é que a
aniversariante já estava devorando o seu último bocado? E por assim dizer a festa estava terminada.
Cordélia olhava ausente para todos, sorria. Já lhe disse: hoje não se fala em negócios! respondeu José
radiante.
Está certo, está certo! recolheu-se Manoel conciliador sem olhar a esposa que não o desfitava.
Está certo, tentou Manoel sorrir e uma contração passou-lhe rápido pelos músculos da cara. Hoje é dia da
mãe! disse José. Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de coca-cola, o bolo desabado, ela era a
mãe. A aniversariante piscou.
Eles se mexiam agitados, rindo, a sua família. E ela era a mãe de todos. E se de repente não se
ergueu, como um morto se levanta devagar e obriga mudez e terror aos vivos, a aniversariante ficou mais
dura na cadeira, e mais alta. Ela era a mãe de todos. E como a presilha a sufocasse, ela era a mãe de
todos e, impotente à cadeira, desprezava- os.
E olhava-os piscando. Todos aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne
de seu joelho, pensou de repente como se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete anos, era o único a ser a
carne de seu coração, Rodrigo, com aquela carinha dura, viril e despenteada. Cadê Rodrigo? Rodrigo com
olhar sonolento e intumescido naquela cabecinha ardente, confusa. Aquele seria um homem. Mas,
piscando, ela olhava os outros, a aniversariante. Oh o desprezo pela vida que falhava. Como?! como
tendo sido tão forte pudera dar á luz aqueles seres opacos, com braços moles e rostos ansiosos? Ela, a
forte, que casara em hora e tempo devidos com um bom homem a quem, obediente e independente, ela
respeitara; a quem respeitara e que lhe fizera filhos e lhe pagara os partos e lhe honrara os resguardos.
O tronco fora bom. Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma
boa alegria. Como pudera ela dar à luz aqueles seres risonhos, fracos, sem austeridade? O rancor
roncava no seu peito vazio. Uns comunistas, era o que eram; uns comunistas.
Olhou-os com sua cólera de velha. Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Incoercível,
virou a cabeça e com força insuspeita cuspiu no chão. Mamãe! gritou mortificada a dona da casa. Que é
isso, mamãe! gritou ela passada de vergonha, e não queria sequer olhar os outros, sabia que os
desgraçados se entreolhavam vitoriosos como se coubesse a ela dar educação à velha, e não faltaria
muito para dizerem que ela já não dava mais banho na mãe, jamais compreenderiam o sacrifício que ela
fazia. Mamãe, que é isso! disse baixo, angustiada.
A senhora nunca fez isso! acrescentou alto para que todos ouvissem, queria se agregar ao espanto
dos outros, quando o galo cantar pela terceira vez renegarás tua mãe. Mas seu enorme vexame suavizouse quando ela percebeu que eles abanavam a cabeça como se estivessem de acordo que a velha não
passava agora de uma criança. Ultimamente ela deu pra cuspir, terminou então confessando contrita para
todos. Todos olharam a aniversariante, compungidos, respeitosos, em silêncio.
Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Os meninos, embora crescidos provavelmente já
além dos cinqüenta anos, que sei eu! os meninos ainda conservavam os traços bonitinhos. Mas que
mulheres haviam escolhido! E que mulheres os netos ainda mais fracos e mais azedos haviam escolhido.
Todas vaidosas e de pernas finas, com aqueles colares falsificados de mulher que na hora não agüenta a
mão, aquelas mulherezinhas que casavam mal os filhos, que não sabiam pôr uma criada em seu lugar, e
todas elas com as orelhas cheias de brincos nenhum, nenhum de ouro! A raiva a sufocava. Me dá um
copo de vinho! disse.
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O silêncio se fez de súbito, cada um com o copo imobilizado na mão. Vovozinha, não vai lhe fazer
mal? insinuou cautelosa a neta roliça e baixinha. Que vovozinha que nada! explodiu amarga a
aniversariante.
Que o diabo vos carregue, corja de maricas, cornos e vagabundas! me dá um copo de vinho,
Dorothy! ordenou. Dorothy não sabia o que fazer, olhou para todos em pedido cômico de socorro. Mas,
como máscaras isentas e inapeláveis, de súbito nenhum rosto se manifestava.
A festa interrompida, os sanduíches mordidos na mão, algum pedaço que estava na boca a sobrar
seco, inchando tão fora de hora a bochecha. Todos tinham ficado cegos, surdos e mudos, com croquetes
na mão. E olhavam impassíveis. Desamparada, divertida, Dorothy deu o vinho: astuciosamente apenas
dois dedos no copo. Inexpressivos, preparados, todos esperaram pela tempestade. Mas não só a
aniversariante não explodiu com a miséria de vinho que Dorothy lhe dera como não mexeu no copo. Seu
olhar estava fixo, silencioso.
Como se nada tivesse acontecido. Todos se entreolharam polidos, sorrindo cegamente, abstratos
como se um cachorro tivesse feito pipi na sala. Com estoicismo, recomeçaram as vozes e risadas. A nora
de Olaria, que tivera o seu primeiro momento uníssono com os outros quando a tragédia vitoriosamente
parecia prestes a se desencadear, teve que retornar sozinha à sua severidade, sem ao menos o apoio dos
três filhos que agora se misturavam traidoramente com os outros.
De sua cadeira reclusa, ela analisava crítica aqueles vestidos sem nenhum modelo, sem um
drapeado, a mania que tinham de usar vestido preto com colar de pérolas, o que não era moda coisa
nenhuma, não passava era de economia. Examinando distante os sanduíches que quase não tinham
levado manteiga. Ela não se servira de nada, de nada! Só comera uma coisa de cada, para experimentar.
E por assim dizer, de novo a festa estava terminada. As pessoas ficaram sentadas benevolentes. Algumas
com a atenção voltada para dentro de si, à espera de alguma coisa a dizer.
Outras vazias e expectantes, com um sorriso amável, o estômago cheio daquelas porcarias que
não alimentavam mas tiravam a fome. As crianças, já incontroláveis, gritavam cheias de vigor. Umas já
estavam de cara imunda; as outras, menores, já molhadas; a tarde cala rapidamente.
E Cordélia, Cordélia olhava ausente, com um sorriso estonteado, suportando sozinha o seu
segredo. Que é que ela tem? alguém perguntou com uma curiosidade negligente, indicando-a de longe
com a cabeça, mas também não responderam. Acenderam o resto das luzes para precipitar a
tranqüilidade da noite, as crianças começavam a brigar.
Mas as luzes eram mais pálidas que a tensão pálida da tarde. E o crepúsculo de Copacabana, sem
ceder, no entanto se alargava cada vez mais e penetrava pelas janelas como um peso. Tenho que ir, disse
perturbada uma das noras levantando-se e sacudindo os farelos da saia. Vários se ergueram sorrindo. A
aniversariante recebeu um beijo cauteloso de cada um como se sua pele tão infamiliar fosse uma
armadilha.
E, impassível, piscando, recebeu aquelas palavras propositadamente atropeladas que lhe diziam
tentando dar um final arranco de efusão ao que não era mais senão passado: a noite já viera quase
totalmente. A luz da sala parecia então mais amarela e mais rica, as pessoas envelhecidas. As crianças já
estavam histéricas. Será que ela pensa que o bolo substitui o jantar, indagava-se a velha nas suas
profundezas. Mas ninguém poderia adivinhar o que ela pensava.
E para aqueles que junto da porta ainda a olharam uma vez, a aniversariante era apenas o que
parecia ser: sentada à cabeceira da mesa imunda, com a mão fechada sobre a toalha como encerrando
um cetro, e com aquela mudez que era a sua última palavra. Com um punho fechado sobre a mesa, nunca
mais ela seria apenas o que ela pensasse.
Sua aparência afinal a ultrapassara e, superando-a, se agigantava serena. Cordélia olhou-a
espantada. O punho mudo e severo sobre a mesa dizia para a infeliz nora que sem remédio amava talvez
pela última vez: É preciso que se saiba. É preciso que se saiba. Que a vida é curta. Que a vida é curta.
Porém nenhuma vez mais repetiu. Porque a verdade era um relance. Cordélia olhou-a estarrecida.
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E, para nunca mais, nenhuma vez repetiu enquanto Rodrigo, o neto da aniversariante, puxava a
mão daquela mãe culpada, perplexa e desesperada que mais uma vez olhou para trás implorando à
velhice ainda um sinal de que uma mulher deve, num ímpeto dilacerante, enfim agarrar a sua derradeira
chance e viver.
Mais uma vez Cordélia quis olhar. Mas a esse novo olhar a aniversariante era uma velha à
cabeceira da mesa. Passara o relance. E arrastada pela mão paciente e insistente de Rodrigo a nora
seguiu-o espantada. Nem todos têm o privilégio e o orgulho de se reunirem em torno da mãe, pigarreou
José lembrando-se de que Jonga é quem fazia os discursos. Da mãe, vírgula! riu baixo a sobrinha, e a
prima mais lenta riu sem achar graça. Nós temos, disse Manoel acabrunhado sem mais olhar para a
esposa. Nós temos esse grande privilégio disse distraído enxugando a palma úmida das mãos. Mas não
era nada disso, apenas o mal-estar da despedida, nunca se sabendo ao certo o que dizer, José esperando
de si mesmo com perseverança e confiança a próxima frase do discurso.
Que não vinha. Que não vinha. Que não vinha. Os outros aguardavam. Como Jonga fazia falta
nessas horas José enxugou a testa com o, lenço como Jonga fazia falta nessas horas! Também fora o
único a quem a velha sempre aprovara e respeitara, e isso dera a Jonga tanta segurança.
E quando ele morrera, a velha nunca mais falara nele, pondo um muro entre sua morte e os outros.
Esquecera-o talvez. Mas não esquecera aquele mesmo olhar firme e direto com que desde sempre olhara
os outros filhos, fazendo-os sempre desviar os olhos. Amor de mãe era duro de suportar: José enxugou a
testa, heróico, risonho.
E de repente veio a frase: Até o ano que vem! disse José subitamente com malícia, encontrando,
assim, sem mais nem menos, a frase certa: uma indireta feliz! Até o ano que vem, hein?, repetiu com
receio de não ser compreendido.
Olhou-a, orgulhoso da artimanha da velha que espertamente sempre vivia mais um ano. No ano
que vem nos veremos diante do bolo aceso! esclareceu melhor o filho Manoel, aperfeiçoando o espírito do
sócio. Até o ano que vem, mamãe! e diante do bolo aceso! disse ele bem explicado, perto de seu ouvido,
enquanto olhava obsequiador para José. E a velha de súbito cacarejou um riso frouxo, compreendendo a
alusão.
Então ela abriu a boca e disse: Pois é. Estimulado pela coisa ter dado tão inesperadamente certo,
José gritou-lhe emocionado, grato, com os olhos úmidos: No ano que vem nos veremos, mamãe! Não sou
surda! disse a aniversariante rude, acarinhada.
Os filhos se olharam rindo, vexados, felizes. A coisa tinha dado certo. As crianças foram saindo
alegres, com o apetite estragado. A nora de Olaria deu um cascudo de vingança no filho alegre demais e
já sem gravata.
As escadas eram difíceis, escuras, incrível insistir em morar num prediozinho que seria fatalmente
demolido mais dia menos dia, e na ação de despejo Zilda ainda ia dar trabalho e querer empurrar a velha
para as noras pisado o último degrau, com alívio os convidados se encontraram na tranqüilidade fresca da
rua. Era noite, sim.
Com o seu primeiro arrepio. Adeus, até outro dia, precisamos nos ver. Apareçam, disseram
rapidamente. Alguns conseguiram olhar nos olhos dos outros com uma cordialidade sem receio. Alguns
abotoavam os casacos das crianças, olhando o céu à procura de um sinal do tempo. Todos sentindo
obscuramente que na despedida se poderia talvez, agora sem perigo de compromisso, ser bom e dizer
aquela palavra a mais que palavra? eles não sabiam propriamente, e olhavam-se sorrindo, mudos. Era um
instante que pedia para ser vivo.
Mas que era morto. Começaram a se separar, andando meio de costas, sem saber como se
desligar dos parentes sem brusquidão. Até o ano que vem! repetiu José a indireta feliz, acenando a mão
com vigor efusivo, os cabelos ralos e brancos esvoaçavam.
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Ele estava era gordo, pensaram, precisava tomar cuidado com o coração. Até o ano que vem!
gritou José eloqüente e grande, e sua altura parecia desmoronável. Mas as pessoas já afastadas não
sabiam se deviam rir alto para ele ouvir ou se bastaria sorrir mesmo no escuro.
Além de alguns pensarem que felizmente havia mais do que uma brincadeira na indireta e que só
no próximo ano seriam obrigados a se encontrar diante do bolo aceso; enquanto que outros, já mais no
escuro da rua, pensavam se a velha resistiria mais um ano ao nervoso e à impaciência de Zilda, mas eles
sinceramente nada podiam fazer a respeito: "Pelo menos noventa anos", pensou melancólica a nora de
Ipanema. "Para completar uma data bonita", pensou sonhadora. Enquanto isso, lá em cima, sobre escadas
e contingências, estava a aniversariante sentada à cabeceira da mesa, erecta, definitiva, maior do que ela
mesma. Será que hoje não vai ter jantar, meditava ela. A morte era o seu mistério.
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2. Conto da escola
Machado de Assis
A escola era na Rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era de 1840. Naquele dia uma segunda-feira, do mês de maio - deixei-me estar alguns instantes na Rua da Princesa a ver onde iria
brincar a manhã. Hesitava entre o morro de S. Diogo e o Campo de Sant'Ana, que não era então esse
parque atual, construção de gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito, alastrado de
lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o problema. De repente disse comigo que o
melhor era a escola. E guiei para a escola. Aqui vai a razão.
Na semana anterior tinha feito dois suetos, e, descoberto o caso, recebi o pagamento das mãos de
meu pai, que me deu uma sova de vara de marmeleiro. As sovas de meu pai doíam por muito tempo. Era
um velho empregado do Arsenal de Guerra, ríspido e intolerante. Sonhava para mim uma grande posição
comercial, e tinha ânsia de me ver com os elementos mercantis, ler, escrever e contar, para me meter de
caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas que tinham começado ao balcão. Ora, foi a lembrança do último
castigo que me levou naquela manhã para o colégio. Não era um menino de virtudes.
Subi a escada com cautela, para não ser ouvido do mestre, e cheguei a tempo; ele entrou na sala
três ou quatro minutos depois. Entrou com o andar manso do costume, em chinelas de cordovão, com a
jaqueta de brim lavada e desbotada, calça branca e tesa e grande colarinho caído. Chamava-se Policarpo
e tinha perto de cinqüenta anos ou mais. Uma vez sentado, extraiu da jaqueta a boceta de rapé e o lenço
vermelho, pô-los na gaveta; depois relanceou os olhos pela sala. Os meninos, que se conservaram de pé
durante a entrada dele, tornaram a sentar-se. Tudo estava em ordem; começaram os trabalhos.
- Seu Pilar, eu preciso falar com você, disse-me baixinho o filho do mestre.
Chamava-se Raimundo este pequeno, e era mole, aplicado, inteligência tarda. Raimundo gastava
duas horas em reter aquilo que a outros levava apenas trinta ou cinqüenta minutos; vencia com o tempo o
que não podia fazer logo com o cérebro. Reunia a isso um grande medo ao pai. Era uma criança fina,
pálida, cara doente; raramente estava alegre. Entrava na escola depois do pai e retirava-se antes. O
mestre era mais severo com ele do que conosco.
- O que é que você quer?
- Logo, respondeu ele com voz trêmula.
Começou a lição de escrita. Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados da escola; mas era.
Não digo também que era dos mais inteligentes, por um escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito
no estilo, mas não tenho outra convicção. Note-se que não era pálido nem mofino: tinha boas cores e
músculos de ferro. Na lição de escrita, por exemplo, acabava sempre antes de todos, mas deixava-me
estar a recortar narizes no papel ou na tábua, ocupação sem nobreza nem espiritualidade, mas em todo
caso ingênua. Naquele dia foi a mesma coisa; tão depressa acabei, como entrei a reproduzir o nariz do
mestre, dando-lhe cinco ou seis atitudes diferentes, das quais recordo a interrogativa, a admirativa, a
dubitativa e a cogitativa. Não lhes punha esses nomes, pobre estudante de primeiras letras que era; mas,
instintivamente, dava-lhes essas expressões. Os outros foram acabando; não tive remédio senão acabar
também, entregar a escrita, e voltar para o meu lugar.
Com franqueza, estava arrependido de ter vindo. Agora que ficava preso, ardia por andar lá fora, e
recapitulava o campo e o morro, pensava nos outros meninos vadios, o Chico Telha, o Américo, o Carlos
das Escadinhas, a fina flor do bairro e do gênero humano. Para cúmulo de desespero, vi através das
vidraças da escola, no claro azul do céu, por cima do morro do Livramento, um papagaio de papel, alto e
largo, preso de uma corda imensa, que bojava no ar, uma coisa soberba. E eu na
escola, sentado, pernas unidas, com o livro de leitura e a gramática nos joelhos.
- Fui um bobo em vir, disse eu ao Raimundo.
- Não diga isso, murmurou ele.
Olhei para ele; estava mais pálido. Então lembrou-me outra vez que queria pedir-me alguma coisa,
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e perguntei-lhe o que era. Raimundo estremeceu de novo, e, rápido, disse-me que esperasse um pouco;
era uma coisa particular.
- Seu Pilar... murmurou ele daí a alguns minutos.
- Que é?
- Você...
- Você quê?
Ele deitou os olhos ao pai, e depois a alguns outros meninos. Um destes, o Curvelo, olhava para
ele, desconfiado, e o Raimundo, notando-me essa circunstância, pediu alguns minutos mais de espera.
Confesso que começava a arder de curiosidade. Olhei para o Curvelo, e vi que parecia atento; podia ser
uma simples curiosidade vaga, natural indiscrição; mas podia ser também alguma coisa entre eles. Esse
Curvelo era um pouco levado do diabo. Tinha onze anos, era mais velho que nós.
Que me quereria o Raimundo? Continuei inquieto, remexendo-me muito, falando-lhe baixo, com
instância, que me dissesse o que era, que ninguém cuidava dele nem de mim. Ou então, de tarde...
- De tarde, não, interrompeu-me ele; não pode ser de tarde.
- Então agora...
- Papai está olhando.
Na verdade, o mestre fitava-nos. Como era mais severo para o filho, buscava-o muitas vezes com
os olhos, para trazê-lo mais aperreado. Mas nós também éramos finos; metemos o nariz no livro, e
continuamos a ler. Afinal cansou e tomou as folhas do dia, três ou quatro, que ele lia devagar, mastigando
as idéias e as paixões. Não esqueçam que estávamos então no fim da Regência, e que era grande a
agitação pública. Policarpo tinha decerto algum partido, mas nunca pude averiguar esse ponto. O pior que
ele podia ter, para nós, era a palmatória. E essa lá estava, pendurada do portal da janela, à direita, com os
seus cinco olhos do diabo. Era só levantar a mão, despendurá-la e brandi-la, com a força do costume, que
não era pouca. E daí, pode ser que alguma vez as paixões políticas dominassem nele a ponto de pouparnos uma ou outra correção. Naquele dia, ao menos, pareceu-me que lia as folhas com muito interesse;
levantava os olhos de quando em quando, ou tomava uma pitada, mas tornava logo aos jornais, e lia a
valer.
No fim de algum tempo - dez ou doze minutos - Raimundo meteu a mão no bolso das calças e
olhou para mim.
- Sabe o que tenho aqui?
- Não.
- Uma pratinha que mamãe me deu.
- Hoje?
- Não, no outro dia, quando fiz anos...
- Pratinha de verdade?
- De verdade.
Tirou-a vagarosamente, e mostrou-me de longe. Era uma moeda do tempo do rei, cuido que doze
vinténs ou dois tostões, não me lembro; mas era uma moeda, e tal moeda que me fez pular o sangue no
coração. Raimundo revolveu em mim o olhar pálido; depois perguntou-me se a queria para mim.
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Respondi-lhe que estava caçoando, mas ele jurou que não.
- Mas então você fica sem ela?
- Mamãe depois me arranja outra. Ela tem muitas que vovô lhe deixou, numa caixinha; algumas
são de ouro. Você quer esta?
Minha resposta foi estender-lhe a mão disfarçadamente, depois de olhar para a mesa do mestre.
Raimundo recuou a mão dele e deu à boca um gesto amarelo, que queria sorrir. Em seguida propôs-me
um negócio, uma troca de serviços; ele me daria a moeda, eu lhe explicaria um ponto da lição de sintaxe.
Não conseguira reter nada do livro, e estava com medo do pai. E concluía a proposta esfregando a
pratinha nos joelhos...
Tive uma sensação esquisita. Não é que eu possuísse da virtude uma idéia antes própria de
homem; não é também que não fosse fácil em empregar uma ou outra mentira de criança. Sabíamos
ambos enganar ao mestre. A novidade estava nos termos da proposta, na troca de lição e dinheiro,
compra franca, positiva, toma lá, dá cá; tal foi a causa da sensação. Fiquei a olhar para ele, à toa, sem
poder dizer nada.
Compreende-se que o ponto da lição era difícil, e que o Raimundo, não o tendo aprendido, recorria
a um meio que lhe pareceu útil para escapar ao castigo do pai. Se me tem pedido a coisa por favor,
alcançá-la-ia do mesmo modo, como de outras vezes, mas parece que era lembrança das outras vezes, o
medo de achar a minha vontade frouxa ou cansada, e não aprender como queria, - e pode ser mesmo que
em alguma ocasião lhe tivesse ensinado mal, - parece que tal foi a causa da proposta. O pobre-diabo
contava com o favor, - mas queria assegurar-lhe a eficácia, e daí recorreu à moeda que a mãe lhe dera e
que ele guardava como relíquia ou brinquedo; pegou dela e veio esfregá-la nos joelhos, à minha vista,
como uma tentação... Realmente, era bonita, fina, branca, muito branca; e para mim, que só trazia cobre
no bolso, quando trazia alguma coisa, um cobre feio, grosso, azinhavrado...
Não queria recebê-la, e custava-me recusá-la. Olhei para o mestre, que continuava a ler, com tal
interesse, que lhe pingava o rapé do nariz. - Ande, tome, dizia-me baixinho o filho. E a pratinha fuzilava-lhe
entre os dedos, como se fora diamante... Em verdade, se o mestre não visse nada, que mal havia? E ele
não podia ver nada, estava agarrado aos jornais, lendo com fogo, com indignação...
- Tome, tome...
Relancei os olhos pela sala, e dei com os do Curvelo em nós; disse ao Raimundo que esperasse.
Pareceu-me que o outro nos observava, então dissimulei; mas daí a pouco deitei-lhe outra vez o olho, e tanto se ilude a vontade! - não lhe vi mais nada. Então cobrei ânimo.
- Dê cá...
Raimundo deu-me a pratinha, sorrateiramente; eu meti-a na algibeira das calças, com um alvoroço
que não posso definir. Cá estava ela comigo, pegadinha à perna. Restava prestar o serviço, ensinar a lição
e não me demorei em fazê-lo, nem o fiz mal, ao menos conscientemente; passava-lhe a explicação em um
retalho de papel que ele recebeu com cautela e cheio de atenção. Sentia-se que despendia um esforço
cinco ou seis vezes maior para aprender um nada; mas contanto que ele escapasse ao castigo, tudo iria
bem.
De repente, olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em nós, com um riso que me pareceu
mau. Disfarcei; mas daí a pouco, voltando-me outra vez para ele, achei-o do mesmo modo, com o mesmo
ar, acrescendo que entrava a remexer-se no banco, impaciente. Sorri para ele e ele não sorriu; ao
contrário, franziu a testa, o que lhe deu um aspecto ameaçador. O coração bateu-me muito.
- Precisamos muito cuidado, disse eu ao Raimundo.
- Diga-me isto só, murmurou ele.
11
Fiz-lhe sinal que se calasse; mas ele instava, e a moeda, cá no bolso, lembrava-me o contrato feito.
Ensinei-lhe o que era, disfarçando muito; depois, tornei a olhar para o Curvelo, que me pareceu
ainda mais inquieto, e o riso, dantes mau, estava agora pior. Não é preciso dizer que também eu ficara em
brasas, ansioso que a aula acabasse; mas nem o relógio andava como das outras vezes, nem o mestre
fazia caso da escola; este lia os jornais, artigo por artigo, pontuando-os com exclamações, com gestos de
ombros, com uma ou duas pancadinhas na mesa. E lá fora, no céu azul, por cima do morro, o mesmo
eterno papagaio, guinando a um lado e outro, como se me chamasse a ir ter com ele. Imaginei-me ali, com
os livros e a pedra embaixo da mangueira, e a pratinha no bolso das calças, que eu não daria a ninguém,
nem que me serrassem; guardá-la-ia em casa, dizendo a mamãe que a tinha achado na rua. Para que me
não fugisse, ia-a apalpando, roçando-lhe os dedos pelo cunho, quase lendo pelo tato a inscrição, com uma
grande vontade de espiá-la.
- Oh! seu Pilar! bradou o mestre com voz de trovão.
Estremeci como se acordasse de um sonho, e levantei-me às pressas. Dei com o mestre, olhando
para mim, cara fechada, jornais dispersos, e ao pé da mesa, em pé, o Curvelo. Pareceu-me adivinhar
tudo.
- Venha cá! bradou o mestre.
Fui e parei diante dele. Ele enterrou-me pela consciência dentro um par de olhos pontudos; depois
chamou o filho. Toda a escola tinha parado; ninguém mais lia, ninguém fazia um só movimento. Eu,
conquanto não tirasse os olhos do mestre, sentia no ar a curiosidade e o pavor de todos.
- Então o senhor recebe dinheiro para ensinar as lições aos outros? disse-me o Policarpo.
- Eu...
- Dê cá a moeda que este seu colega lhe deu! clamou.
Não obedeci logo, mas não pude negar nada. Continuei a tremer muito. Policarpo bradou de novo
que lhe desse a moeda, e eu não resisti mais, meti a mão no bolso, vagarosamente, saquei-a e entregueilha. Ele examinou-a de um e outro lado, bufando de raiva; depois estendeu o braço e atirou-a à rua. E
então disse-nos uma porção de coisas duras, que tanto o filho como eu acabávamos de praticar uma ação
feia, indigna, baixa, uma vilania, e para emenda e exemplo íamos ser castigados. Aqui pegou da
palmatória.
- Perdão, seu mestre... solucei eu.
- Não há perdão! Dê cá a mão! Dê cá! Vamos! Sem-vergonha! Dê cá a mão!
- Mas, seu mestre...
- Olhe que é pior!
Estendi-lhe a mão direita, depois a esquerda, e fui recebendo os bolos uns por cima dos outros, até
completar doze, que me deixaram as palmas vermelhas e inchadas. Chegou a vez do filho, e foi a mesma
coisa; não lhe poupou nada, dois, quatro, oito, doze bolos. Acabou, pregou-nos outro sermão. Chamounos sem-vergonhas, desaforados, e jurou que se repetíssemos o negócio apanharíamos tal castigo que
nos havia de lembrar para todo o sempre. E exclamava: Porcalhões! tratantes! faltos de brio!
Eu, por mim, tinha a cara no chão. Não ousava fitar ninguém, sentia todos os olhos em nós.
Recolhi-me ao banco, soluçando, fustigado pelos impropérios do mestre. Na sala arquejava o terror; posso
dizer que naquele dia ninguém faria igual negócio. Creio que o próprio Curvelo enfiara de medo. Não olhei
logo para ele, cá dentro de mim jurava quebrar-lhe a cara, na rua, logo que saíssemos, tão certo como três
e dois serem cinco.
12
Daí a algum tempo olhei para ele; ele também olhava para mim, mas desviou a cara, e penso que
empalideceu. Compôs-se e entrou a ler em voz alta; estava com medo. Começou a variar de atitude,
agitando-se à toa, coçando os joelhos, o nariz. Pode ser até que se arrependesse de nos ter denunciado;
e na verdade, por que denunciar-nos? Em que é que lhe tirávamos alguma coisa?
- Tu me pagas! tão duro como osso! dizia eu comigo.
Veio a hora de sair, e saímos; ele foi adiante, apressado, e eu não queria brigar ali mesmo, na Rua
do Costa, perto do colégio; havia de ser na Rua larga São Joaquim. Quando, porém, cheguei à esquina, já
o não vi; provavelmente escondera-se em algum corredor ou loja; entrei numa botica, espiei em outras
casas, perguntei por ele a algumas pessoas, ninguém me deu notícia. De tarde faltou à escola.
Em casa não contei nada, é claro; mas para explicar as mãos inchadas, menti a minha mãe, disselhe que não tinha sabido a lição. Dormi nessa noite, mandando ao diabo os dois meninos, tanto o da
denúncia como o da moeda. E sonhei com a moeda; sonhei que, ao tornar à escola, no dia seguinte, dera
com ela na rua, e a apanhara, sem medo nem escrúpulos...
De manhã, acordei cedo. A idéia de ir procurar a moeda fez-me vestir depressa. O dia estava
esplêndido, um dia de maio, sol magnífico, ar brando, sem contar as calças novas que minha mãe me deu,
por sinal que eram amarelas. Tudo isso, e a pratinha... Saí de casa, como se fosse trepar ao trono de
Jerusalém. Piquei o passo para que ninguém chegasse antes de mim à escola; ainda assim não andei tão
depressa que amarrotasse as calças. Não, que elas eram bonitas! Mirava-as, fugia aos encontros, ao lixo
da rua...
Na rua encontrei uma companhia do batalhão de fuzileiros, tambor à frente, rufando. Não podia
ouvir isto quieto. Os soldados vinham batendo o pé rápido, igual, direita, esquerda, ao som do rufo;
vinham, passaram por mim, e foram andando. Eu senti uma comichão nos pés, e tive ímpeto de ir atrás
deles. Já lhes disse: o dia estava lindo, e depois o tambor... Olhei para um e outro lado; afinal, não sei
como foi, entrei a marchar também ao som do rufo, creio que cantarolando alguma coisa: Rato na
casaca... Não fui à escola, acompanhei os fuzileiros, depois enfiei pela Saúde, e acabei a manhã na Praia
da Gamboa. Voltei para casa com as calças enxovalhadas, sem pratinha no bolso nem ressentimento na
alma. E contudo a pratinha era bonita e foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro
conhecimento, um da corrupção, outro da delação; mas o diabo do tambor...
13
3. Negrinha
Monteiro Lobato
Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços
e olhos assustados.
Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da
cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças.
Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na
igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na
sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Uma
virtuosa senhora em suma — ―dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral‖, dizia o
reverendo.
Ótima, a dona Inácia.
Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúva sem filhos, não a
calejara o choro da carne de sua carne, e por isso não suportava o choro da carne alheia. Assim, mal
vagia, longe, na cozinha, a triste criança, gritava logo nervosa:
— Quem é a peste que está chorando aí?
Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da criminosa abafava a
boquinha da filha e afastava-se com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões de
desespero.
— Cale a boca, diabo!
No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio, desses que
entanguem pés e mãos e fazem-nos doer...
Assim cresceu Negrinha — magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados. Órfã aos
quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a pontapés. Não compreendia a idéia dos grandes.
Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra provocava ora
risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não andava. Com pretextos de que às soltas reinaria
no quintal, estragando as plantas, a boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num desvão da porta.
— Sentadinha aí, e bico, hein?
Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas.
— Braços cruzados, já, diabo!
Cruzava os bracinhos a tremer, sempre com o susto nos olhos. E o tempo corria. E o relógio batia
uma, duas, três, quatro, cinco horas — um cuco tão engraçadinho! Era seu divertimento vê-lo abrir a janela
e cantar as horas com a bocarra vermelha, arrufando as asas. Sorria-se então por dentro, feliz um
instante.
Puseram-na depois a fazer crochê, e as horas se lhe iam a espichar trancinhas sem fim.
Que idéia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo, coruja,
barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha,
coisa-ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam. Tempo houve em que
foi a bubônica. A epidemia andava na berra, como a grande novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada
assim — por sinal que achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que
não teria um gostinho só na vida — nem esse de personalizar a peste...
O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os
dias, houvesse ou não houvesse motivo. Sua pobre carne exercia para os cascudos, cocres e beliscões a
mesma atração que o ímã exerce para o aço. Mãos em cujos nós de dedos comichasse um cocre, era
14
mão que se descarregaria dos fluidos em sua cabeça. De passagem. Coisa de rir e ver a careta...
A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora
senhora de escravos — e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se
afizera ao regime novo — essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia!
―Qualquer coisinha‖: uma mucama assada ao forno porque se engraçou dela o senhor; uma novena de
relho porque disse: ―Como é ruim, a sinhá!‖...
O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava
Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Inocente derivativo:
— Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!...
Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade. Cocres: mão fechada com
raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões de orelha: o torcido, de despegar a concha
(bom! bom! bom! gostoso de dar) e o a duas mãos, o sacudido. A gama inteira dos beliscões: do miudinho,
com a ponta da unha, à torcida do umbigo, equivalente ao puxão de orelha. A esfregadela: roda de tapas,
cascudos, pontapés e safanões a uma — divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível, cortante: para ―doer
fino‖ nada melhor!
Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando em quando vinha um castigo maior para
desobstruir o fígado e matar as saudades do bom tempo. Foi assim com aquela história do ovo quente.
Não sabem! Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negrinha — coisa de rir — um pedacinho de carne
que ela vinha guardando para o fim. A criança não sofreou a revolta — atirou-lhe um dos nomes com que
a mimoseavam todos os dias.
— ―Peste?‖ Espere aí! Você vai ver quem é peste — e foi contar o caso à patroa.
Dona Inácia estava azeda, necessitadíssima de derivativos. Sua cara iluminou-se.
— Eu curo ela! — disse, e desentalando do trono as banhas foi para a cozinha, qual perua choca, a
rufar as saias.
— Traga um ovo.
Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a ferver; e de mãos à cinta, gozando-se na
prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhos contentes envolviam a mísera criança
que, encolhidinha a um canto, aguardava trêmula alguma coisa de nunca visto. Quando o ovo chegou a
ponto, a boa senhora chamou:
— Venha cá!
Negrinha aproximou-se.
— Abra a boca!
Negrinha abriu aboca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa, então, com uma colher, tirou da
água ―pulando‖ o ovo e zás! na boca da pequena. E antes que o urro de dor saísse, suas mãos
amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas só.
Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo. Depois:
— Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste?
E a virtuosa dama voltou contente da vida para o trono, a fim de receber o vigário que chegava.
— Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre órfã, filha da
Cesária — mas que trabalheira me dá!
— A caridade é a mais bela das virtudes cristas, minha senhora —murmurou o padre.
15
— Sim, mas cansa...
— Quem dá aos pobres empresta a Deus.
A boa senhora suspirou resignadamente.
— Inda é o que vale...
Certo dezembro vieram passar as férias com Santa Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas, lindas
meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas.
Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa como dois anjos do céu —
alegres, pulando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos novos. Negrinha olhou imediatamente para a
senhora, certa de vê-la armada para desferir contra os anjos invasores o raio dum castigo tremendo.
Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime brincar? Estaria tudo mudado — e
findo o seu inferno — e aberto o céu? No enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se e veio para a festa
infantil, fascinada pela alegria dos anjos.
Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão no umbigo, e nos
ouvidos, o som cruel de todos os dias: ―Já para o seu lugar, pestinha! Não se enxerga‖?
Com lágrimas dolorosas, menos de dor física que de angústia moral —sofrimento novo que se
vinha acrescer aos já conhecidos — a triste criança encorujou-se no cantinho de sempre.
— Quem é, titia? — perguntou uma das meninas, curiosa.
— Quem há de ser? — disse a tia, num suspiro de vítima. — Uma caridade minha. Não me corrijo,
vivo criando essas pobres de Deus... Uma órfã. Mas brinquem, filhinhas, a casa é grande, brinquem por aí
afora.
— Brinquem! Brincar! Como seria bom brincar! — refletiu com suas lágrimas, no canto, a dolorosa
martirzinha, que até ali só brincara em imaginação com o cuco.
Chegaram as malas e logo:
— Meus brinquedos! — reclamaram as duas meninas.
Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos.
Que maravilha! Um cavalo de pau!... Negrinha arregalava os olhos. Nunca imaginara coisa assim
tão galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos... que falava
―mamã‖... que dormia...
Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse
brinquedo. Mas compreendeu que era uma criança artificial.
— É feita?... — perguntou, extasiada.
E dominada pelo enlevo, num momento em que a senhora saiu da sala a providenciar sobre a
arrumação das meninas, Negrinha esqueceu o beliscão,o ovo quente, tudo, e aproximou-se da criatura de
louça. Olhou-a com assombrado encanto, sem jeito, sem ânimo de pegá-la.
As meninas admiraram-se daquilo.
— Nunca viu boneca?
— Boneca? — repetiu Negrinha. — Chama-se Boneca?
16
Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.
— Como é boba! — disseram. — E você como se chama?
— Negrinha.
As meninas novamente torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da bobinha perdurava,
disseram, apresentando-lhe a boneca:
— Pegue!
Negrinha olhou para os lados, ressabiada, como coração aos pinotes. Que ventura, santo Deus!
Seria possível? Depois pegou a boneca. E muito sem jeito, como quem pega o Senhor menino, sorria para
ela e para as meninas, com assustados relanços de olhos para a porta. Fora de si, literalmente... era como
se penetrara no céu e os anjos a rodeassem, e um filhinho de anjo lhe tivesse vindo adormecer ao colo.
Tamanho foi o seu enlevo que não viu chegar a patroa, já de volta. Dona Inácia entreparou, feroz, e esteve
uns instantes assim, apreciando a cena.
Mas era tal a alegria das hóspedes ante a surpresa extática de Negrinha, e tão grande a força
irradiante da felicidade desta, que o seu duro coração afinal bambeou. E pela primeira vez na vida foi
mulher. Apiedou-se.
Ao percebê-la na sala Negrinha havia tremido, passando-lhe num relance pela cabeça a imagem
do ovo quente e hipóteses de castigos ainda piores. E incoercíveis lágrimas de pavor assomaram-lhe aos
olhos.
Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais inesperada do mundo — estas palavras,
as primeiras que ela ouviu, doces, na vida:
— Vão todas brincar no jardim, e vá você também, mas veja lá, hein?
Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas não viu mais a fera
antiga. Compreendeu vagamente e sorriu.
Se alguma vez a gratidão sorriu na vida, foi naquela surrada carinha...
Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma — na princesinha e na mendiga. E
para ambos é a boneca o supremo enlevo. Dá a natureza dois momentos divinos à vida da mulher: o
momento da boneca — preparatório —, e o momento dos filhos — definitivo. Depois disso, está extinta a
mulher.
Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma. Divina eclosão!
Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava, afinal, como fulgurante flor de luz.
Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de ser coisa — e doravante ser-lhe-ia impossível
viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!
Assim foi — e essa consciência a matou.
Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa voltou ao ramerrão
habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente transformada.
Dona Inácia, pensativa, já a não atazanava tanto, e na cozinha uma criada nova, boa de coração,
amenizava-lhe a vida.
Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infinita. Mal comia e perdera a expressão de susto que
tinha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos, cismarentos.
17
Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro do seu doloroso inferno,
envenenara-a.
Brincara ao sol, no jardim. Brincara!... Acalentara, dias seguidos, a linda boneca loura, tão boa, tão
quieta, a dizer mamã, a cerrar os olhos para dormir. Vivera realizando sonhos da imaginação.
Desabrochara-se de alma.
Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais, entretanto,
ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de
anjos... E bonecas e anjos remoinhavam-lhe em torno, numa farândola do céu. Sentia-se agarrada por
aquelas mãozinhas de louça — abraçada, rodopiada.
Veio a tontura; uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida, confusamente, num disco.
Ressoaram vozes apagadas, longe, e pela última vez o cuco lhe apareceu de boca aberta.
Mas, imóvel, sem rufar as asas.
Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou...
E tudo se esvaiu em trevas.
Depois, vala comum. A terra papou com indiferença aquela carnezinha de terceira — uma miséria,
trinta quilos mal pesados...
E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na memória das meninas
ricas.
— ―Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?‖
Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia.
— ―Como era boa para um cocre!...‖
18
4. Inundação
Mia Couto
Há um rio que atravessa a casa. Esse rio, dizem, é o tempo. E as lembranças são peixes nadando
ao invés da corrente. Acredito, sim, por educação. Mas não creio. Minhas lembranças são aves. A haver
inundação é de céu, repleção de nuvem. Vos guio por essa nuvem, minha lembrança.
A casa, aquela casa nossa, era morada mais da noite que do dia. Estranho, dirão. Noite e dia não
são metades, folha e verso? Como podiam o claro e o escuro repartir-se em desigual? Explico. Bastava
que a voz de minha mãe em canto se escutasse para que, no mais lúcido meio-dia, se fechasse a noite.
Lá fora, a chuva sonhava, tamborileira. E nós éramos meninos para sempre.
Certa vez, porém, de nossa mãe escutamos o pranto. Era um choro delgadinho, um fio de água,
um chilrear de morcego. Mão em mão, ficamos à porta do quarto dela. Nossos olhos boquiabertos. Ela só
suspirou:
– Vosso pai já não é meu.
Apontou o armário e pediu que o abríssemos. A nossos olhos, bem para além do espanto, se
revelaram os vestidos envelhecidos que meu pai há muito lhe ofertara. Bastou, porém, a brisa da porta se
abrindo para que os vestidos se desfizessem em pó e, como cinzas, se enevoassem pelo chão. Apenas os
cabides balançavam, esqueletos sem corpo.
– E agora – disse a mãe -, olhem para estas cartas.
Eram apaixonados bilhetes, antigos, que minha mãe conservava numa caixa. Mas agora os papéis
estavam brancos, toda a tinta se desbotara.
– Ele foi. Tudo foi.
Desde então, a mãe se recusou a deitar no leito. Dormia no chão. A ver se o rio do tempo a levava,
numa dessas invisíveis enxurradas. Assim dizia, queixosa. Em poucos dias, se aparentou às sombras,
desleixando todo seu volume.
– Quero perder todas as forças. Assim não tenho mais esperas.
– Durma na cama, mãe.
– Não quero. Que a cama é engolidora de saudade.
E ela queria guardar aquela saudade. Como se aquela ausência fosse o único troféu de sua vida.
Não tinham passado nem semanas desde que meu pai se volatilizara quando, numa certa noite, não me
desceu o sono. Eu estava pressentimental, incapaz de me guardar no leito. Fui ao quarto dos meus pais.
Minha mãe lá estava, envolta no lençol até à cabeça. Acordei-a. O seu rosto assomou à penumbra doce
que pairava. Estava sorridente.
– Não faça barulho, meu filho. Não acorde seu pai.
– Meu pai?
– Seu pai esta aqui, muito comigo.
Levantou-se com cuidado de não desalinhar o lençol. Como se ocultasse algo debaixo do pano. Foi
à cozinha e serviu-se de água. Sentei-me com ela, na mesa onde se acumulavam as panelas do jantar.
– Como eu o chamei, quer saber?
19
Tinha sido o seu cantar. Que eu não tinha notado, porque o fizera em surdina. Mas ela cantara,
sem parar, desde que ele saíra. E agora, olhando o chão da cozinha, ela dizia:
– Talvez uma minha voz seja um pano; sim, um pano que limpa o tempo.
No dia seguinte, a mãe cumpria a vontade de domingo, comparecida na igreja, seu magro joelho
cumprimentando a terra. Sabendo que ela iria demorar eu voltei ao seu quarto e ali me deixei por um
instante. A porta do armário escancarada deixava entrever as entranhas da sombra. Me aproximei. A
surpresa me abalou: de novo se enfunavam os vestidos, cheios de formas e cores. De imediato, me virei a
espreitar a caixa onde se guardavam as lembranças de namoro de meus pais. A tinta regressara ao papel,
as cartas de meu velho pai se haviam recomposto? Mas não abri. Tive medo. Porque eu, secretamente,
sabia a resposta.
Saí no bico do pé, quando senti minha mãe entrando. E me esgueirei pelo quintal, deitando passo
na estrada de areia. Ali me retive a contemplar a casa como que irrealizada em pintura. Entendi que por
muita que fosse a estrada eu nunca ficaria longe daquele lugar. Nesse instante, escutei o canto doce de
minha mãe. Foi quando eu vi a casa esmorecer, engolida por um rio que tudo inundava.

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