Falo ou não falo - Prof. Max Grinberg
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Falo ou não falo - Prof. Max Grinberg
FALO OU NÃO FALO ? Max Grinberg “...que o desejo de relações pessoais mais íntimas entre médico e doente está em via de crescer no nosso povo, mostra o alcance cada vez maior do apelo dos últimos tempos de se restabelecer o hábito quase extinto do médico e amigo de família...” Erwin Risak, O Olho Clínico, Áustria, 1936. PRIMEIRAS PALAVRAS A aplicação dos princípios da bioética facilita o médico tornar-se comunicativo com o paciente. Ela promove a confiança estimulando apresentação de objetivos claros, disposição para escutar, respeito a outras opiniões e tomada de decisões assumindo a responsabilidade. A bioética não é exatamente um dicionário de esperanto, mas contribui para aproximar médico e paciente pela linguagem, abrevia o caminho entre o conhecimento e a comunicação, ensina que só se fala sobre o que se sabe e provoca a correspondência entre atos e palavras. A bioética não é a última palavra, mas presta-se a perscrutar o que possa estar depreciando a comunicação médico-paciente; em rápidas palavras, ressalta fatores negativos como a exigüidade de tempo disponibilizado para a consulta ambulatorial ou à beira do leito, o caráter fortuito da relação médico-paciente sem a desejada seqüência que traz laços de confiança, a perda da postura de “ser médico” que por mais que se desvalorize, o paciente espera pela autoridade, a educação humanística em segundo plano (autômato profissional). Na beira do leito, ditados como para um bom entendedor meia palavra basta ou falar vale prata, calar vale ouro têm aplicações distintas ao uso comum, o que por si dá uma medida da complexidade da comunicação médico-paciente. A beira do leito necessita preservar-se de armadilhas, como a curiosa confusão que a língua portuguesa provoca em quem deseja aprendê-la, representada por pois sim/ pois não. As entonações costumam acentuar que pois sim é não e pois não é sim. Se médico fala com o cérebro pelo conhecimento e com o coração pela solidariedade, o paciente ouve com a pele, que sente o pedido de socorro que vem de dentro e percebe os recursos de ajuda que vêm de fora. Palavra não é sopa, mas a muito fria ou a exagerada quente desagradam, o que na linguagem bioética está ligado ao princípio da não maleficência. A temperatura ideal é a que possibilita ser degustada, esfriar a cabeça e aquecer o coração. Por isso, a palavra qualifica a comunicação não quando ela é transmitida, mas como ela é recebida. DUAS PALAVRAS: NÃO MALEFICÊNCIA O útil e eficaz pode ser inoportuno na óptica do momento. A técnica para corrigir uma hérnia inguinal promove beneficência, mas como o paciente está com pneumonia, a não maleficência fala mais alto. Penicilina benzatina promove beneficência ao prevenir atividade reumática até quando uma reação de hipersensibilidade hierarquiza a não maleficência. AAS é droga reconhecidamente beneficente cardiovascular, mas um episódio recente de sangramento gastroduodenal exige uma contra-indicação não maleficente- a realidade hemorrágica supera a potencialidade anti-isquêmica. A aplicação do princípio bioético da Não maleficência representou antiimprudência, nestes exemplos, na medida em que houve zelo de não causar danos desnecessários. A Não maleficência catalisa o quanto do ideal deve ser aplicado frente à realidade da situação clínica. Ela é um filtro da beira do leito, por onde nos cabe passar as conclusões de beneficência incorporadas como classes I e IIA em diretrizes. Vinte e cinco séculos depois, o “primum non nocere” hipocrático continua fundamentando atitudes de humanização no exercício da Medicina. Num cenário multifatorial, o personagem médico e o personagem paciente vivenciam adversidades 1 que o conhecimento científico as pretende cada vez menos iatrogênicas. Um dos instrumentos para harmonizar os interesses da beira do leito é a comunicação verbal que se preocupa com a Não maleficência- medir e pesar as palavras ditas e ouvidas. NÃO MALEFICÊNCIA, MÉDICO PALAVRA DE Não maleficência na comunicação médico-paciente é a ponte entre os procedimentos e as explicações evitando acrescentar ainda mais danos ao bem –estar físico, psíquico ou social, assim nos valendo da conceituação de saúde pela OMS. A extensão da ponte é variável de acordo com a especialidade médica e a valorização do órgão por parte do paciente. O médico gera um estímulo embutido na comunicação sobre conduta e prognóstico e o paciente reage de acordo com o seu modo de ver. A Não maleficência na comunicação lida com as ambigüidades geradas pelos avanços e limitações da Medicina. Inclui a palavra que melhor se adapta à idéia que o médico vai se comprometer com o método e ao mesmo tempo pode estar equivocado quanto ao resultado. O aspecto referente ao bem-estar físico tem a ver com a decodificação da palavra do médico em expectativa boa ou má. O poder da sugestão que alivia ou acentua certos sofrimentos como a dor não pode ser negado por mais que seja difícil obter comprovações rigorosamente científicas. Neste particular, palavra não maleficente é aquela que não contribui para provocar ou acentuar sintomas. Contudo, não pode ser ignorada a situação onde a palavra do médico desgosta justamente por significar “ameaça de cura” a uma moléstia crônica que representa papel essencial na vida do paciente que gira ao redor do órgão doente. O aspecto do bem-estar psíquico é mais complexo, pois há muitas superposições concorrendo para que o paciente se sinta angustiado ou infeliz. Angústia e infelicidade fazem parte da condição de doente e assim, a palavra realista do médico não pode ser responsabilizada isoladamente pelos pesares. Falar pode representar tão somente o reforço do sentimento negativo determinado pela circunstância clínica e assim não terá sido uma palavra maleficente; não falar pode privar o paciente de certas reflexões aliviadoras, cuja consecução seria não maleficente. A autenticidade da verdade, a caridade da suavização ou a compaixão do silêncio são mescladas na intenção sincera do médico de não ser indiferente e desejar promover a Não maleficência; mas elas resultam individualizadas nas eventuais conseqüências involuntariamente maleficentes para o paciente. A interpretação do comportamento do paciente com base em raciocínio lógico nem sempre cabe por ocasião de manifestações clínicas angustiantes. Matéria-prima é o quanto existe de expressão ansiosa ou agressiva em sua postura, fruto das experiências de vida acumuladas muito antes da palavra atual do médico. Esta passa a ser a “bola da vez” por uma questão de deslocamento de sentimentos. Padrões de comportamento frente às adversidades explicam, por exemplo, a peregrinação a muitos consultórios ouvindo sempre as mesmas palavras, tão beneficentes na boca dos vários médicos e tão maleficentes nos ouvidos daquele paciente; quanta raiva pela doença é deslocada para a palavra do médico, quanto sentir-se culpado pela negligência com a própria saúde provoca uma centelha já ao início do diálogo médico-paciente, quanto protesto contra o sistema de saúde que ambienta a palavra do médico é repassado para esta comunicação. Ressalte-se a surdez do “nocaute” que pode ocorrer pelo impacto da notícia desagradável; a contagem do tempo costuma se encarregar de fazer as comunicações internas necessárias para a aceitação; neste aspecto, a impressão inicial de maleficência é revertida, muitas vezes, por uma segunda opinião. O aspecto do bem-estar social inclui o efeito da palavra sobre a rotina pessoal e profissional do paciente. Não maleficência corresponde a comunicar o estritamente obrigatório quanto a restrições à capacidade 2 de realização de objetivos de vida. Quanto mais avança o conhecimento e a capacitação, menos a Medicina recomenda proibições no campo social. O conjunto famoso de frases do aforismo de Peter existiu como atitude não maleficente porque não havia recursos para mudar o mau prognóstico da gestação em portadora de cardiopatia. A farmacologia e a cirurgia orientadas pelo bom diagnóstico liberam cada vez mais a comunicação da palavra não maleficente que existe no bom prognóstico. ACENTUANDO AS PALAVRAS Qualidade na comunicação é um continuum ao longo da relação médicopaciente/família. A sintonia permanente é lápis e borracha sobre um papel onde os acontecimentos são desenhados a mão livre; o que foi dito poderá ser redito e o que faltou poderá ser acrescentado em nome da Não maleficência. Assim como o paciente que exerce o direito de renovar ou revogar o consentimento pós-informação, o médico pode reconsiderar a informação original à medida que se apercebe dos rumos, como faz quando reajusta doses ou muda a prescrição. No caso do diagnóstico, à medida que o leque das hipóteses vai se fechando, cada eliminação terá justificado palavras que até possam ter trazido apreensões exageradas; contudo, elas não representavam maleficência, vinculadas que estavam à boa-fé de evitar riscos desnecessários baseados apenas na presunção. Quando se trata de conhecimento científico, sentimo-nos em terra firme para transitar com argumentos técnicos; uma diretriz pode nos facilitar a decisão sobre prescrevo ou não prescrevo, indico ou não indico. Ela deverá ser tanto mais eficaz quanto mais respeitada a assertiva do famoso Harvey Cushing (1869-1939). Este epônimo da Endocrinologia escreveu que 60% da prática médica é bom senso-dependente; acrescentaríamos, em grande parte bom senso “não maleficente”. Mas quando se trata de comunicação, a seleção das informações por iniciativa do médico ou em resposta ao paciente/família nos coloca em muitos terrenos movediços. Espelhar-se no que gostaríamos de ouvir se fossemos o paciente não é regra infalível. O paciente aceita, modifica ou rejeita a informação de acordo com vivências esquematizadas, propósitos, subitaneidade ou cronicidade da situação clínica e confiança no médico. O médico, por outro lado, não consegue conversar isento de suas próprias emoções, o que podem fazer descarregar uma carga de ansiedade sobre o paciente ainda mais despreparado para lidar com ela. Em outras palavras, o médico produz a informação com um design e o paciente consome a mensagem por meio de um processo de decomposição e reorganização. O diálogo é instrumento essencial para dar bons alicerces à reconstrução e a bioética proporciona as plataformas. A comunicação não maleficente pressupõe resguardar a beira do leito de se transformar em uma torre de Babel. É importante que haja a máxima uniformidade nas informações e que cada membro da equipe de saúde não exagere no seu dialeto profissional. Da mesma maneira, a figura de um porta-voz da família é não maleficente em situações de pluralidade de interlocutores. DIÁLOGO É FEEDBACK O intuitivo faz parte da seleção de palavras não maleficentes, tanto quanto possível simples, solidárias e compreensivas. Todavia, o que parece cristalino para alguém tecnicamente familiarizado pode ser uma grande opacidade para quem é leigo e o alarme da confusão soa. O médico deve fazer saber o que aconteceu e o que de fato acontecerá, dentro do rigor da ciência; sobre o que pode ou não acontecer, enquadra-se nas sutilezas da arte da comunicação, especialmente se as notícias tendem a ser más. 3 Por mais estruturada que se almeje a comunicação, sempre estaremos diante do imponderável. Falar sobre morte pode ser dramático, quem lida com os meandros da morte súbita pondera caso a caso a sua verbalização ao paciente sob risco. Frente ao portador assintomático de estenose aórtica, nos valemos de estatísticas, apelamos para o paternalismo e não a mencionamos em nome da Não maleficência. Contudo, como não praticamos monólogo, muito conscientes de que não devemos tocar no assunto, somos surpreendidos, ocasionalmente, com uma pergunta explícita do paciente ou do familiar sobre morte súbita. Assim aprendemos que Não maleficência em comunicação dificilmente pode ser generalizada. Não há exatamente o maniqueísmo do certo ou errado, há o que dá certo e o que dá errado. É simplista conceituar que o paciente tem direito a “todas as informações” ou que o médico não deve ser nem reticente nem verborrágico. Há modos de se expressar, há momentos para se dizer, há a hora de ouvir e a ocasião de calar. A relação médicopaciente/família é antes de tudo uma relação humana. Há mais do que a anamnese ou 33 para ser dito pelo paciente, cada um a seu estilo. Há os que pouco dialogam, até por inibição frente ao médico, e podemos entender que ele esteja satisfeito com as informaçõesinclui o que não se interessa por outros ângulos de visão porque tem confiança cega. Há aqueles que consultam a internet, buscam segunda opinião e correm atrás da explicação a cada acontecimento -são aqueles que dão o que falar. Subdoses ou overdoses de informação são prejudiciais, o quantum satis deve prevalecer intuído a cada caso, idealmente pelo feedback do diálogo. Combinações do quis dizer e o que de fato disse e do que o que queria ouvir e o que de fato ouviu modulam o quantum satis. Quando a informação do médico chega inacabada, o paciente tende a completar por si mesmo, só pode usar o que conhece e há uma tendência natural ao pensamento negativo; a soma do que foi informado pelo médico com o que o paciente acrescentou por si compõe uma realidade única; a distorção é a conseqüência. Por vezes é o médico que não se ouve falar e, de repente, surpreende-se “dando uma aula” sem se policiar quanto à Não maleficência. Outras vezes é o paciente que não se ouve ouvir, pois está com o pensamento distante do que estamos lhe dizendo, escutando o seu “ouvido interior” e pretendendo saber até o que evitávamos sob o pretexto da Não maleficência. É como se houvesse um “monólogo a dois”. A decodificação é que o foco e o entorno do diálogo podem não ser idênticos para cada um; a compreensão do que se passa, o entusiasmo com a técnica que permite maravilhas, os influenciadores de prognóstico (foco do médico) não é suficiente para a necessidade do paciente; o que ele deseja (foco do paciente) é saber como irá funcionar, o que vai acontecer com ele. Harmonizar as freqüências de comunicação é promover a não maleficência. Um aspecto da não maleficência da comunicação médico-paciente é o quanto das percepções do que existe no ambiente do diálogo são subtraídas. Conversas paralelas de acompanhantes, imagens e sons de televisão e telefonemas são exemplos de estímulos que precisam ter a interação bloqueada em prol da concentração nas necessidades. Para cada relação médicopaciente/família há um comportamento verbal incluindo um universo de informações comunicadas e um universo de informações omitidas- bilateralmente. A família ajuda a construir a ponte da não maleficência entre o modo de falar e o modo ouvir. É um verdadeiro processo de terceirização, onde há muitos exemplos: o familiar que faz “tradução simultânea” de tudo que se fala ao paciente e o médico fica sem saber se passa a se dirigir para ele ou lhe pede silêncio; o médico que prefere aprofundar as explicações à família e deixar que ela edite a fita para o paciente; é o familiar que reinvidica em nome do paciente, até porque pela pluralidade, habitualmente, não faltam membros para que cada um assuma a 4 condução de determinado assunto. Um símbolo clássico é a comunicação tradicional do resultado cirúrgico, tão logo acabe o ato operatório. Há a equipe médica e a equipe família, ajustando o que foi consumado ao comunicado no pré-operatório. Aspecto curioso da beira do leito refere-se ao armazenamento da comunicação na memória do paciente/família. O que é inicialmente não maleficente sofre um efeito bumerangue quando surge uma intercorrência e as palavras retornam altamente maleficentes. É o caso de uma piadinha quebra-gelo do tipo “ o seu caso opero com uma mão só” que perde a graça porque passou a ser interpretada ao pé da letra ou da certeza categórica agora altamente incerta do “em dois dias você estará em casa”. É como houvesse uma série de câmeras que gravam vários ângulos da conversa e quando acontecem as frustrações, cenas de “tirateima” são imediatamente editadas. NÃO FUI INFORMADO Querer antecipar-se a todas as evoluções possíveis pode incluir palavras que serão entendidas como imprudência na comunicação por parte do paciente/família. Este item tem interfaces bioéticas com o consentimento pós-informação assistencial por escrito, onde tudo é relacionado sem levar em conta as individualidades. No oitavo dos dez mandamentos para o jovem clínico, Joseph S. Alpert ensina que o processo de informação visando inserir o paciente/família no contexto do exercício da Medicina pode ser prejudicial quando aterroriza; ele faz uma provocação: como reagiríamos se o vendedor do automóvel que pretendemos comprar nos relatar que ficaremos sujeitos a acidentes de trânsito incluindo morte, paraplegia e tetraplegia? A verdade nua e crua com o objetivo de evitar futuro “não fui informado” pode soar “terrorista” para a ocasião. O ponto crítico é o quanto a informação sobre riscos contribuiria para provocar a desistência- da compra ou do tratamento. Há que se admitir que ninguém é tão ingênuo a ponto de achar que para se usufruir de um determinado benefício (conforto) não se corre nenhum risco de malefício (acidente). O princípio da autonomia lida com este aspecto. A habilidade em se comunicar com espírito positivo- boa mecânica facilita a condução habilitada e reduz riscos/ conhecimento e capacitação do médico promovem o bom resultado-pode contribuir para que o “fui informado” seja arquivado de modo equilibrado nos assuntos gerais e não se torne uma angústia na ordem do diaesperar um acidente a cada Km rodado ou uma reação clínica a cada comprimido ingerido. Muitas vezes nos apercebemos que certas explicações poderiam mais confundir do que ajudar. Um paciente com ICC recebe prescrição que inclui droga inibidora da enzima de conversão da angiotensina; no retorno declara melhoras, inclusive que desapareceu aquela tosse que tanto o incomodava. Falo ou não falo que há a possibilidade de voltar a tosse, agora drogadependente? Podemos classificar esta dúvida em grau baixo de potencial de futuro questionamento do tipo “não fui informado”. O dia-a-dia, contudo, faz coleção de incertezas mais preocupantes sobre o quantum satis; as combinações são caleidoscópicas e por mais que o bom senso as reúna em imagens semelhantes, o álbum de figurinhas está longe de ter um número pré-determinado. Não existe sempre ou nunca em Medicina é aforismo que nos lembra que decisões sobre falo ou não falo sobre reações adversas “de bula” e outras tantas isoladas só poderão ser classificadas exatamente como atitudes de Não maleficência da comunicação depois da evolução acontecida. O grande complicador é o fato negativo que só fica sendo conhecido pelo paciente/família no acontecimento e passa a ser interpretado como negligência na comunicação (o terrível “não fui informado”), quando pretendendo-se Não maleficência, informações foram omitidas. Assim, a palavra não dita por boa–fé 5 pode ter um preço a ser pago quando vier a ser cobrada em situações de questionamentos, habitualmente potencializadas pela frustração de um risco distante ter se tornado realidade. Aceitam-se melhor maus resultados atribuindo-os a causas que vem de fora, incluindo reagir com hostilidade contra o médico “bode expiratório”. Exceção é quando o paciente capaz toma a iniciativa de solicitar não ser informado, um direito constante do princípio da autonomia. O médico pode concordar em se calar quando entende que a solicitação não prejudica a sua responsabilidade profissional, mas deve ponderar sobre a conveniência do mesmo comportamento na escrita. Assim como existe a autonomia também para o médico, é preciso imaginar-lhe a figura da não maleficência. LIMIAR DE COMUNICAÇÃO Seria útil estruturar um limiar de comunicação, além do qual falamos e aquém do qual não falamos. A sua relação custobenefício em relação à não maleficência deve considerar responsabilidades na conduta, percepção do impacto e defesa de questionamentos. O limiar de comunicação precisa ser baixo quando se trata de negociar compromissos dentro do princípio da autonomia e do dever de se obter consentimento pós-informação. Entender, aceitar e fazer conforme a orientação médica é contribuir para que não ocorra danos por desinformação. O quantum satis terá pontos de referência menos subjetivos. Pode caber o conceito da Não maleficência relativa, pelo qual seria absolutamente impossível eliminar um admitido dano da comunicação em busca da beneficência. No citado exemplo da estenose aórtica, comunicar ao paciente sintomático que ele está sujeito à morte súbita a qualquer momento é mal menor diante da sua hesitação em concordar com a correção cirúrgica, única forma de beneficiar o prognóstico. O limiar é mais flexível em relação à percepção do impacto e à defesa de questionamentos. Influências multifatoriais dificultam ter certeza que conhecer as reações do interlocutor numa situação de esperança de sucesso permite intuir sobre o seu comportamento caso ocorra frustração da expectativa. A palavra que agrada pelo 99% de chance de sucesso é a mesma que desagradará se ocorrer o 1% de insucesso. Ademais, a surdez do nocaute do primeiro impacto à notícia que desagrada tem grande chance de reverter à medida que o tempo se encarrega de fazer as comunicações internas, muitas vezes facilitadas por uma segunda opinião. EFEITO PLACEBO/ NOCEBO Na busca de algo mais concreto sobre a Não Maleficência do falo ou não falo, podemos nos valer de estudos sobre efeitos adversos não específicos. Benedetti et al observaram que o efeito placebo pode ser aprendido consciente ou inconscientemente, fenômeno que estaria ligado a associações repetidas de causa e efeito; no primeiro caso, envolve expectativas e no segundo caso o imediatismo do efeito (pavloviano). Isto significa que reações a medicamentos podem não ser causadas diretamente pela ação farmacológica, mas por processo de condicionamento em que expectativas são criadas a partir de vivências e os mesmos sintomas acabam acontecendo. Barsky et al enfatizaram recentemente que pacientes com este tipo de comportamento precisam ser previamente identificados para reduzir maus resultados. Numa visão bioética, caracterizá-los seria uma forma de ajustar ações de Não maleficência para situações menos lógicas do riscobenefício. Se um comprimido quimicamente inerte gera efeitos, é de se conjecturar que uma palavra também possa. Aspectos culturais, experiência acumulada, gravidade da situação clínica e outros mais são fatores de influência. A palavra que transmite respeito, honestidade, experiência, interesse e 6 confiança traz uma força psico-social que contribui para elevar a adesão às recomendações e dar ânimo à integração com tudo que possa representar redução do desconforto. É o efeito placebo da palavra útil e eficaz catalisando uma real prevenção ou reparação terapêutica de danos (Beneficência). E quando a palavra associa-se a efeito adverso? Há 40 anos, Kennedy criou o termo Nocebo (nocere= prejudicar) para se referir aos efeitos indesejados do placebo. O conceito evoluiu para além das reações secundárias, na direção da expectativa; assim efeito adverso do placebo é quando a expectativa do paciente é de melhora e o sintoma é um acidente de percurso; efeito Nocebo é quando predomina a expectativa do paciente por um resultado mal sucedido e o sintoma passa a fazer parte do seu objetivo. Analogamente, a palavra do médico pode contribuir para desfavorecer o prognóstico, quando for recebida pelo paciente conforme um efeito nocebo. Este comportamento pode ser conseqüência de expectativas, sugestão, condicionamentos, ansiedade, depressão, somatização ou situações próprias de momentos de um ser humano reagindo biopsicossocialmente à adversidade nosológica. Por isso, a comunicação exige um equilíbrio entre a desnecessidade da informação e a potencialidade do efeito Nocebo. É oportuno frisar que o ganho secundário é um dos estímulos para ativação do efeito Nocebo. Nesta modalidade, a perspectiva de manter vantagens sociais, familiares ou econômicas, ou mesmo desembaraçar-se de responsabilidades, como resultado de estar doente, pode associar-se a posturas de vitimização e invalidez. Características psicológicas ligadas ao efeito Nocebo devem ser analisadas para dar sentido de justiça a eventuais situações de conflito. Neste aspecto, não é incomum deparamos com dificuldades para dar alta hospitalar; pois há queixas dissociadas dos exames físico e complementares; o paciente não parece estar preocupado em não atingir a melhora-alvo e ir para casa; uma atuação multiprofissional costuma concluir que a permanência representa uma verdadeira salvação de circunstâncias que não deseja enfrentar na sua rotina de vida. Do ponto de vista bioético, o efeito Nocebo prejudica a efetiva consecução do princípio de não causar danos (Não maleficência) pela palavra dita. PONTO FINAL Se pesquisar etiopatogenias pode ser um desafio, a de uma insatisfação do paciente é muitas vezes um enigma. Idiopatico é um providencial rótulo para conflitos da beira do leito atribuídos à comunicação. Seis anos de graduação e outros tantos de especialização não formam o médico em comunicação profissional não maleficente. O diploma está sempre um passo adiante porque todos querem a palavra do médico, mas nem todo paciente aceita estar do lado dela. Conforme a comunicação, a solução clínica torna-se um problema ético. A beira do leito testemunha desde conversações em mar de rosas a terremotos em escalas altas de Richter... Dizem que as palavras que não nos infernam são as que saem do céu da boca. O ato de bem dialogar acompanha-se da retroalimentação sensorial. É da sabedoria popular que a comunicação médico-paciente requer órgãos dos sentidos aguçados, literal ou metaforicamente. Olho clínico, visão de profeta, gosto pela profissão, tato no cuidar, cheiro de diagnóstico e ser todo ouvidos são atributos indispensáveis. O sexto sentido não pode ser desprezado. O “terceiro ouvido” resgata palavras que embora mal ouvidas foram armazenadas e cujo valor é percebido algum tempo depois (quando “cai a ficha”). A linguagem corporal, uma palavra-chave ou uma afirmação em alto e bom som funcionam como bússolas para nortear o bom termo da conversação. Nos casos em que justificamos o quantum satis, a análise de insatisfações comunicação-dependentes deve incluir a influência dos fatores acima referidos a cada momento representativo da relação médicopaciente/família; quando da negociação/ compromisso pré-intervenção, na 7 comunicação de uma intercorrência, na insatisfação de uma seqüela. O emprego da palavra exige decisões e cada um de nós tem o seu estilo de comunicação. A palavra será tanto mais útil e eficaz quanto mais o médico empregá-la na relação médico-paciente preocupando-se com a Não maleficência e quanto menos o paciente manifestar o efeito Nocebo. Referências • • • • Barsky AJ, Saintfort R, Rogers MP, Borus JF - Nonspecific medication side effects and the nocebo phenomenon. JAMA. 2002;287:622-7 Benedetti F, Pollo A, Lopiano L, Lanotte M, Vighetti S, Rainero I.Conscious expectation and unconscious conditioning in analgesic, motor, and hormonal placebo/nocebo responses. J Neurosci. 2003;23:4315-23 Hahn RA- The nocebo phenomenon: concept, evidence, and implications for public health. Prev Med. 1997;26:607-11. Kennedy WP- The nocebo reaction. Méd World 1961;91:203-5 8