a reumanização do povo japonês nas páginas da revista life

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a reumanização do povo japonês nas páginas da revista life
CAMPOS, A. P.; VIANNA, K. S. S; MOTTA, K. S. da; LAGO, R. D. (Org.). Memórias,1
traumas e rupturas. Vitória: LHPL/UFES, 2013, p. 1-14.
DEFININDO UM ALIADO: A REUMANIZAÇÃO DO POVO JAPONÊS
NAS PÁGINAS DA REVISTA LIFE (1945-1964)
Edelson Geraldo Gonçalves
Resumo
Esta comunicação tratará do processo de reumanização do povo japonês durante as primeiras
décadas do período pós Segunda-Guerra Mundial, mais especificamente entre os anos de 1945
(ano da rendição do Japão) e 1964 (marcado pela realização das Olimpíadas de Tóquio), tendo
como guia os processos de desumanização do povo japonês, apresentado por John W. Dower
em seu livro War Without Mercy, e de reumanização deste mesmo povo apresentado por
Shibusawa Naoko, em seu livro America’s Geisha Ally. No período aqui estudado o antigo
inimigo aliado do eixo foi plenamente convertido em um aliado estratégico no contexto da
Guerra-Fria, e um povo que durante a Segunda-Guerra foi definido como bárbaro e fanático
pela mídia norte-americana passa a ser definido como amável e plenamente humano,
buscando assim varrer da memória norte-americana (e ocidental como um todo) a lembrança
do passado recente militarista e agressor da nação japonesa. Na abordagem aqui proposta nos
limitaremos à averiguação deste processo nas páginas da revista semanal Life no período de
setembro de 1945 a setembro de 1964, usando como fonte as reportagens referentes ao Japão
escritas durante este período e identificando nelas o novo discurso americano sobre o Japão e
como este contrasta com o anterior para assim entendermos a definição dada pelos EUA do
seu novo aliado. As questões norteadoras do trabalho serão: como se deu o processo de
reumanização do povo japonês nas páginas da revista Life? E como exatamente é esta imagem
reumanizada que emergiu dessas páginas? A conclusão é de que o processo de reumanização
se deu pela construção de uma imagem dos japoneses que fosse dentro do possível, familiar
aos norte-americanos, sendo o novo Japão não apenas mais um país exótico do Extremo
Oriente, mas uma nação moderna e pacificada, que absorveu os valores de democracia e
individualismo, tornando-se assim algo reconhecível e confiável aos olhos americanos.
Palavras-chave: Japão, reumanização, Revista Life
Abstract
This communication will approach the rehumanization process of the Japanese people during
the first decades of the postwar period, more specifically between the years of 1945 ( the year
of the surrender of Japan ) and 1964 ( marked by the attainment of the Tokyo Olympics )
taking as a guide the processes of dehumanization presented by John W. Dower in his book
War Without Mercy and rehumanization of this same people presented by Shibusawa Naoko ,
in his book America's Geisha Ally. In the period studied here, the former enemy, ally of the
axis was fully converted into a strategic ally in the context of the Cold War, and a people who
during World War was defined as barbaric and fanatical for the American media, is now
defined as a gentle and fully human, seeking thus sweep of the American memory (and the
West as a whole) the memory of the recent past militaristic and aggressor of the Japanese
nation. In the approach proposed here confine ourselves to the investigation of this process in
the pages of the weekly magazine Life from September 1945 to September 1964 , using the
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Doutorando em História (Ufes).
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reports about Japan written at this time as a source and identifying on them the new american
discourse on Japan and how this contrasts with the previous, to understand the definition
given by the United States of his new ally . The guiding questions of this paper will be: how
was the rehumanization process of the japanese people in the pages of Life magazine? And
how exactly is this rehumanized image that emerge from these pages? The conclusion is that
the process rehumanization is done through the construction of an image of the Japanese who
were as far as possible, familiar to Americans , and the new Japan is not just another exotic
country of the Far East , but a modern and pacified nation, which absorbed the values of
democracy and individualism , thus becoming something recognizable and trustworthy in the
eyes of Americans .
Keywords: Japan; Rehumanization; Life Magazine.
Introdução
Este texto tratará do processo de reumanização do povo japonês durante as primeiras
décadas do período pós Segunda Guerra Mundial, mais especificamente entre os anos de 1945
(ano da rendição do Japão) e 1964 (marcado pela realização das Olimpíadas de Tóquio),
processo durante o qual o antigo inimigo aliado do eixo foi plenamente convertido em um
aliado estratégico no contexto da Guerra Fria, e um povo que durante a Segunda Guerra foi
definido como bárbaro e fanático pela mídia norte-americana passa a ser definido como
amável e plenamente humano, buscando assim varrer da memória norte-americana (e
ocidental como um todo) a lembrança do passado recente militarista e agressor da nação
japonesa.
Na abordagem aqui proposta nos limitaremos à averiguação deste processo nas páginas da
revista semanal Life no período de setembro de 1945 a setembro de 1964, usando como fonte
as reportagens referentes ao Japão escritas durante este período e identificando nelas o novo
discurso americano sobre o Japão e como este contrasta com o anterior para assim
entendermos a definição dada pelos EUA do seu novo aliado.
O Japão Pós-Guerra
O período pós-guerra no Japão é o período definido entre o final da Segunda Guerra Mundial
(1945) e algum ponto da década de 1980, não havendo sobre isso um consenso entre os
historiadores (GORDON, 1993, p. ix), sendo que aqui podemos fazer opção de considerar
esse período encerrado em 1989, o ano do falecimento do Imperador Hirohito (1901-1989) e
por consequência do final da Era Showa (1926-1989). Contudo o período abordado nesse
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texto vai de 1945 a 1964, no que podemos chamar de período de reconstrução da imagem do
Japão frente à opinião pública internacional, mas dados os interesses dos EUA,
principalmente frente à opinião pública norte-americana.
O governo japonês assinou a rendição do país em 14 de agosto de 1945, pondo fim às
hostilidades da Segunda Guerra Mundial. Com o final dos conflitos iniciou-se a ocupação
unilateral do Japão pelos EUA, sendo este processo liderado pelo General Douglas MacArthur
(1880-1964), um processo que inicialmente teria o objetivo de “tratar do nascimento de um
Japão pequeno, democrático e pacifista, sem exército nem poder econômico, para que nunca
mais causasse problemas” (KIKUCHI, 1993, p. 108), no entanto os rumos da Guerra Fria
acabaram levando o Japão, com a ajuda dos EUA, a renascer não apenas culturalmente e
politicamente, como também economicamente, vindo a tornar-se uma das maiores potências
econômicas mundiais da segunda metade do século XX.
Durante a ocupação norte-americana, que foi de 1945 a 1952, os americanos iniciaram uma
série de reformas e restrições, que buscavam não apenas recuperar o Japão, como também
apagar da memória do povo todo o aparato ideológico militarista do passado recente, valendose de medidas como a promoção cultural de obras que “mostravam o sucesso dos
empreendimentos individuais, o amor romântico, o direito e a justiça de tipo ocidental como
valores universais” (SAKURAI, 2008, p. 202) enquanto obras contrárias a essa linha eram
censuradas, sendo que novas diretrizes educacionais também foram estabelecidas, dando
ênfase a valores individualistas ao invés dos comunitários, sendo substituído todo o material
didático utilizado nas escolas (SAKURAI, 2008, p. 202).
As demais reformas que os americanos levaram a cabo no Japão foram com os objetivos de
desmilitarização, democratização, reforma agrária, reforma constitucional e reforma
trabalhista (KIKUCHI, 1993, p. 111-122).
Assim o Japão renunciou às suas forças armadas, reformou o sistema imperial (a instituição
imperial continuou existindo como símbolo, mas o Imperador negou publicamente sua
divindade em 1946), redistribuiu as terras do país desmantelando os latifundiários como grupo
social de influência (e que de fato foram uma das forças principais durante o período
militarista), reformou os direitos dos trabalhadores (sendo o direito de se organizarem em
sindicatos a maior mudança) (KIKICHI, 1993, p. 111-122), e também passou a ter uma
constituição liberal, e um governo totalmente eleito pelo povo sob o sistema de sufrágio
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universal, que tinha justamente o voto feminino como novidade, uma vez que o sufrágio
masculino universal era preexistente.
Neste meio período o Japão também iniciou sua recuperação econômica, mas foram
acontecimentos ligados ao cenário político da Guerra Fria que fizeram os americanos
reconsiderar a posição de manter o Japão economicamente minoritário. Neste período além
das agitações comunistas em solo japonês, os americanos ainda levaram em consideração a
vitória da revolução vermelha na China em 1949, e a possível influência que esta poderia ter
sobre os japoneses (SAKURAI, 2008, p. 203). Somando-se a isso se iniciou a Guerra da
Coréia em 1950, e a necessidade de apoio e de uma colocação estratégica na Ásia, assim:
O Japão, que teria que ser um pequeno país pacifista [...] se converteu em
uma importante base militar norte-americana. O Quartel Militar de
Ocupação suspendeu a proibição de se fabricar no Japão grandes barcos,
veículos, aviões e demais maquinarias estratégicas.
A indústria japonesa recebeu dos Estados Unidos a ordem de fabricar bens
bélicos de consumo em grande quantidade. As exportações japonesas
cresceram 300% em um ano e a economia japonesa recuperou seu nível do
[período] pré-guerra (KIKUCHI, 1993, p. 123-124).
Somando-se a isso, ainda houve o Tratado de São Francisco de 1951, que poupou o Japão de
pagar em dinheiro as indenizações aos países asiáticos que invadiu durante a Segunda Guerra,
tendo que pagá-las em serviços de produção, recuperação e outros trabalhos, sendo que, essas
indenizações pagas entre 1955 e 1959 foram na verdade uma oportunidade de investimento da
economia japonesa em territórios estrangeiros (SAKURAI, 2008, p. 203).
Assim a economia japonesa recuperou-se de maneira vigorosa, e em 1964 o país estava apto a
sediar com sucesso os jogos olímpicos em Tóquio, evento este que definiu para o mundo e
para os próprios japoneses, a nova face do Japão.
A Reumanização do Japão
Entre o final de 1941 e agosto de 1945, EUA e Japão travaram uma feroz guerra que teve
principalmente as ilhas do Oceano Pacífico como palco de suas batalhas, esta guerra foi
definida por John W. Dower (1986) como um conflito mais selvagem do que aquele que
estava sendo travado na Europa no mesmo período. A Guerra do Pacífico foi uma guerra sem
misericórdia, onde retroceder ou se render tornou-se impensável para ambos os lados, e aos
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soldados dos dois exércitos era ordenado que não fizessem prisioneiros, e que lutassem até o
amargo fim (DOWER, 1986, p. 10). Este conflito foi marcado por um forte componente racial
na propaganda de ambos os lados, com a desumanização do inimigo sendo usada como
ferramenta para tornar a matança mais fácil para os soldados (DOWER, 1986, p. 11). No caso
específico dos japoneses, estes eram definidos como uma população de fanáticos dispostos a
sacrificar suas vidas por seu imperador, fanatismo este que no ano de 1945 ganhou sua
imagem máxima com os kamikaze, os pilotos suicidas que sacrificavam suas vidas em ataques
corporais com seus aviões para destruir os porta-aviões e outras grandes embarcações dos
americanos. Além disso, também eram retratados como subumanos, resgatando preconceitos
que nos EUA eram originalmente direcionados aos chineses desde o século XIX, dando assim
aos japoneses a imagem de simiescos, primitivos e loucos (DOWER, 1986, p. 10).
Estas imagens foram reforçadas midiaticamente nos EUA e no resto do ocidente, mas uma
vez que a Segunda Guerra terminou, e principalmente após o início da Guerra da Coréia, ficou
claro para os norte-americanos que seria necessário ter um Japão não apenas pacificado, mas
também como aliado estratégico na Ásia. Para isso foi preciso investir não apenas na
recuperação econômica, como também na recuperação da imagem dos japoneses frente à
opinião pública mundial, em um processo de reumanização, como aponta Shibusawa Naoko
(2006, p. 289) que foi considerado terminado com as bem sucedidas Olimpíadas de Tóquio,
em 1964, as primeiras Olimpíadas realizadas fora do mundo ocidental e que mostraram ao
mundo a face do novo Japão.
Assim a lembrança do Japão militarista deveria ser apagada da memória do grande público, as
recordações da máquina militar japonesa e de suas atrocidades cometidas durante seus 15
anos de conflitos na Ásia deveriam ser substituídas pela imagem de um povo trabalhador,
ordeiro, pacífico e de uma cultura refinada, cultura essa que teve como seus principais
embaixadores no ocidente escritores como o romancista Kawabata Yasunari (1899-1972), o
romancista, ator, cineasta e teatrólogo Mishima Yukio (1925-1970), e os romancistas
Tanizaki Jun’ichiro (1886-1965) além dos cineastas Kurosawa Akira (1910-1988), Mizoguchi
Kenji e Ozu Yasujiro (1903-1963) (JANSEN, 2000, p. 710-712).
O maior símbolo dessa transformação talvez seja a imagem do próprio Imperador do Japão,
Hirohito, que anos antes era visto com o uniforme militar de comandante-em-chefe das forças
armadas japonesas, passando no pós-guerra a ser visto com os trajes formais de um bom
empresário, pacífico, ordeiro e trabalhador.
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A má imagem do povo japonês frente à opinião pública norte-americana foi algo construído, o
povo foi educado a odiar, e para reverter isso, como o próprio General Douglas MacArthur
disse ao Imperador Hirohito, “com reeducação a opinião pública americana pode ser
melhorada” (BIX, 2001, p. 623) e é dentro desse processo de reeducação orquestrado dentre
outros meios, pela mídia que se insere o objeto de pesquisa desse texto, ou seja, as
reportagens sobre o Japão nas páginas da revista Life entre os anos de 1945 e 1964.
Nas primeiras reportagens sobre o Japão pós-guerra, nas edições de 10 de setembro de 1945 e
17 de setembro de 1945, a revista Life expôs reportagens sobre a assinatura da rendição
japonesa, o estado de destruição em que se encontravam as cidades japonesas ao final da
guerra, além do início da ocupação americana, não deixando de notar a forma ordeira como se
deu esse processo. Na edição de 17 de setembro de 1945 também foram feitas reportagens
informativas sobre o funcionamento da sociedade japonesa, concentrando-se em aspectos
como o papel do Imperador na política; sendo este descrito como um monarca considerado
divino e com poderes absolutos, mas que em sua prática de poder não fazia mais do que dar
seu aval às decisões de seus ministros (1945, p. 110); as famílias que detinham o poder
financeiro no Japão (1945, p.111), além de textos explicando o funcionamento da sociedade
japonesa, descrita como uma “sociedade de castas” (1945, p. 112-113), a organização da vida
familiar, dando ênfase ao seu aspecto patriarcal (1945, p. 114), uma breve exposição da
religiosidade japonesa, destacando a convivência entre budismo e xintoísmo (1945, p. 115) e
por fim um texto sobre os costumes japoneses destacando seu consumo de “estranhas
comidas” e a tendência a cultivar o impersonalismo em sociedade (1945, p. 116), sendo este
último aspecto certamente destacado para se manter em mente o contraste dessa característica
social japonesa com o individualismo valorizado na cultura americana, contraste que já era
enfatizado na propaganda de guerra ainda recente (DOWER, 1986, p. 30-32).
Após o início da Guerra da Coréia em 1950 a imagem do Japão já estava pendendo para um
aspecto mais positivo, por exemplo, na edição da revista Life de 10 de setembro de 1951 foi
feita uma reportagem (intitulada “The Birth of a New Japan”) o Japão reconstruído, seus
avanços e sobretudo o sucesso do novo sistema democrático do país e em uma edição especial
com o continente asiático como tema publicada em 31 de dezembro de 1951, em uma
reportagem intitulada “The Example of Japan” mais uma vez é lembrada a bem sucedida
recuperação do Japão e é feita uma exposição das qualidades artísticas da cultura japonesa,
descrita como também apta a influenciar o ocidente, e na edição de 2 de dezembro de 1957
são relembrados os bens sucedidos relacionamentos amorosos entre soldados americanos e
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mulheres japonesas no período de ocupação, em uma reportagem sobre o filme Sayonara
(intitulada “Warriors on Leave in a Lovely Land”), do diretor Joshua Logan (1908-1988), com
Marlon Brando (1924-2004) no papel principal; filme este que tinha justamente estes
relacionamentos como tema só que desta vez no contexto da Guerra da Coreia.
A arte japonesa foi o foco de reportagens de extensões variáveis sendo que além da
reportagem mais generalista que já citamos ao comentar a edição de 31 de dezembro de 1951,
também podemos destacar uma reportagem sobre a arte abstrata japonesa publicada na edição
de 23 de junho de 1952, e uma reportagem sobre o cinema japonês, publicada na edição de 15
de novembro de 1954, todas exaltando as singulares qualidades estéticas da arte japonesa.
A simpatia pelo Japão também começou a aparecer sob outros aspectos, como a exposição
dos horrores dos ataques nucleares a Hiroshima e Nagasaki em uma reportagem da edição de
29 de setembro de 1952. Contudo, tratando-se do processo de reumanização da imagem
japonesa, gostaríamos de nos ater aqui a duas reportagens, publicadas respectivamente nas
edições de 4 de outubro de 1948 e 29 de março de 1954.
A primeira reportagem, intitulada “Kamikaze goes to College” nos mostra uma abordagem de
reumanização de um contraste extremo com a imagem dos japoneses apresentada durante o
período de guerra. Nessa reportagem o público é apresentado a Robert Yukimasa Nishiyama
de 19 anos, um ex-piloto kamikaze que acaba de chegar ao EUA para cursar a universidade da
Louisiana, graças a uma bolsa de estudos concedida pela família de
Robert Stansbury
Johnstone, um soldado americano morto na Batalha de Luzon (1945), que havia deixado a sua
família as instruções de que no caso de sua morte, o dinheiro da indenização do governo (dez
mil dólares) deveria ser usado para a concessão de bolsas de estudo para japoneses, a fim de
que estes pudessem aprender o modo de vida americano (LIFE, 1948, p. 125).
Com o dinheiro da indenização a família Johnstone conseguiu conceder 20 bolsas de estudos
a japoneses, dentre os quais Nishiyama foi selecionado, em função de seu inglês fluente e das
impecáveis cartas de requisição que enviou a mesa de seleção para as bolsas (LIFE, 1948, p.
125).
Nesta reportagem Nishiyama, outrora um piloto kamikaze, ou seja, aquilo que antes era
descrito como o representante máximo do fanatismo e barbárie do povo japonês, é mostrado
de maneira totalmente humanizada, como um bom marido e pai de família, com sonhos
compreensíveis para o futuro (ser um professor de relações internacionais), e capaz de
conviver pacificamente com os americanos e seus costumes, tendo inclusive dividido seu
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dormitório no campus com um ex-soldado americano, combatente da guerra do pacífico assim
como ele, e participado do trote aos calouros da Universidade da Louisiana (LIFE, 1948, p.
125-128). Nesta reportagem fica claramente entendido que mesmo um japonês membro de
uma organização movida pelo fanatismo extremo (nenhuma menção ao que levou Nishiyama
a tornar-se kamikaze é feita nessa reportagem) é capaz de regenerar-se plenamente e viver
pacificamente na sociedade, inclusive na sociedade americana.
Por sua vez a outra reportagem, intitulada Japan’s Young Dreams trata do impacto do final da
guerra e da ocupação americana sobre as crianças japonesas. A reportagem aborda uma
pesquisa realizada pelo autor e ilustrador de livros infantis Theodor Seuss Geisel [o Dr. Seuss]
(1904-1991) em sua visita ao Japão em 1954. Nesta pesquisa (apoiada por mais de 100
professores) Seuss busca saber quais são as expectativas de futuro das crianças japonesas,
constatando uma grande mudança em relação ao que era no período pré-guerra (LIFE, 1954,
p. 90). Primeiramente o que se constata entre as crianças é o desejo de paz no futuro, sendo
que entre os sonhos dos garotos, que no período militarista comumente desejariam ser
generais, aparecem não apenas a adesão a trabalhos previsíveis (professores, médicos, juízes,
etc.) como também o desejo de amizade para com o resto do mundo, ou como teria dito um
garoto: [uma década atrás] “a missão sagrada do Japão era expandir-se e conquistar o
mundo”, [e hoje uma nova geração escreve] “Eu desejo trabalhar contra a guerra, a coisa que
eu mais odeio” (LIFE, 1954, p. 90). Já entre as garotas, segundo a reportagem, as novas
perspectivas eram ainda mais surpreendentes, pois a expectativa de independência
profissional e financeira mostrava-se maior do que no período pré-guerra, sendo que essas não
apenas desejavam ingressar em setores profissionais que já ocupavam as mulheres
habitualmente (professores, secretárias, etc.), como também demonstravam a esperança de
seguir carreiras antes impensáveis para as mulheres japonesas (dando, contudo apenas o
emprego de cientistas como exemplo) (LIFE, 1954, p. 92). Nesta reportagem podemos ver as
possíveis expectativas para o futuro do Japão, uma vez que as crianças daquele momento já
demonstravam uma visão de mundo muito diferente da dominante no Japão no período préguerra, podendo assim antever-se um futuro plenamente compatível com a democracia, como
se esperava ser o resultado das reformas realizadas no Japão ocupado até dois anos antes.
Finalmente no ano de 1964, o ano das Olimpíadas de Tóquio, foi lançada no dia 11 de
setembro uma edição especial sobre o Japão, buscando trazer em suas reportagens uma síntese
informativa do que o público geral deveria saber sobre o novo Japão, mas não apenas isso,
também mostrava a imagem consolidada de um país reconstruído, muito diferente do Japão
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que os americanos aprenderam a odiar a pouco mais de vinte anos antes. Essa edição especial
traz não apenas reportagens escritas pela redação da revista Life como costumeiramente, mas
ao contrário é em sua maior parte composta de artigos e ensaios fotográficos (além de também
um conto literário) autorais, sendo os artigos escritos pelo historiador e naquele momento
embaixador americano no Japão Edwin O. Reischauer (1910-1990), pelo intelectual nômade
Arthur Koestler (1905-1983), pelo crítico de teatro Tom Prideaux (1908-1993) e pelo escritor
James Mills (1932), além de também haver um ensaio escrito pelo romancista, cineasta e
teatrólogo Mishima Yukio e um conto literário escrito pelo romancista Yamakawa Masao
(1930-1965). Os ensaios fotográficos por sua vez foram de autoria de Brian Brake (19271988), Larry Burrows (1926-1971), Bradley Smith (1910-1997), Michael Rougier (19252012) e Bill Ray (1936).
Entre os textos da redação da revista Life destacam-se uma reportagem com uma síntese da
história japonesa que, no entanto passa apenas rapidamente por sua participação na Segunda
Guerra Mundial, omitindo suas atrocidades (LIFE, 1964, p. 50-62); uma reportagem sobre o
Imperador Hirohito, consolidando sua nova imagem, e não fazendo qualquer menção a sua
atuação durante a guerra ou aos crimes de guerra dos quais foi acusado (LIFE, 1964, p. 4549), além de também uma reportagem sobre a rebeldia da juventude japonesa, dissociando-a
da imagem de conformidade que tradicionalmente se passava dos japoneses em geral (LIFE,
1964, p. 86-93).
Em meio aos artigos autorais podemos ver muitos contrastes em relação ao discurso que
existia sobre o Japão nas edições de 1945. Se antes destacavam-se as diferenças entre os
japoneses e americanos, nesta edição é dada atenção a similaridades que são expostas de
maneira mais ou menos explícita, e mesmo quando as diferenças são elencadas, são colocadas
sob uma luz positiva. Por exemplo, no artigo escrito por Edwin O. Reischauer intitulado
“Inevitable Partners” o autor escreve a seguinte passagem sobre as diferentes expectativas de
americanos e japoneses a respeito dos estrangeiros:
Nós americanos reagimos muito diferentemente, em nosso orgulho assumimos que
todos os estrangeiros deveriam seguir nossos passos [...] e a atitude japonesa no
entanto por vezes ataca-nos com a rejeição. Mas eu pessoalmente acho uma atitude
confortável com a qual conviver. Os japoneses não esperam que fiquemos
emocionalmente envolvidos com seus problemas. Eles podem aceitar nossa amizade
e admiração sem esperar que nos igualemos a eles (REISCHAUER, 1964, p. 27).
Por sua vez nos artigos de Mishima Yukio, James Mills e no conto escrito por Yamakawa
Masao são abordadas similaridades de valores entre os americanos e japoneses, sendo que no
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artigo de Mishima, intitulado “Judging The U.S Giant” o autor escreve sobre as semelhanças
morais entre o ethos confucionista dos japoneses e o ethos puritano dos norte-americanos
(MISHIMA, 1964, p. 81-85). O artigo de James Mills (intitulado “Meet Mr. Matsushita”) e o
conto de Yamakawa Masao (intitulado “The Talisman”)
em conjunto demonstram os
japoneses dando importância a valores caros aos norte americanos, sendo que o texto de Mills
aborda a trajetória de sucesso do empresário Matsushita Konosuke (1894-1989), o fundador
da Panasonic e um dos indivíduos mais bem sucedidos do capitalismo japonês na década de
1960, apresentando sua história de vida como a de alguém que sai da pobreza e construiu um
império a partir de nada além de seu próprio esforço (MILLS, 1964, 107-114), ou seja, um
self-made man bem ao gosto dos americanos, bem diferente do industrial membro de uma
tradicional família zaibatsu, como foram apresentados os principais empresários japoneses em
uma reportagem de 1945. O conto de Yamakawa por sua vez contém uma crítica à
uniformização imposta pelo consumismo capitalista aos habitantes de Tóquio, assim como do
restante das grandes cidades no mundo moderno terminado ao seu final com uma afirmação
de individualismo de seu protagonista, ao rebelar-se contra essa uniformização
(YAMAKAWA, 1964, p. 94-97), também uma atitude bem ao gosto dos valores americanos,
e mais do que isso, uma contradição total dos valores antes atribuídos aos japoneses, como o
cultivo do impersonalismo atribuído à cultura japonesa em um artigo de 1945.
De forma geral os artigos apresentados nessa edição especial são elogiosos ao Japão, fazendo
uma exposição positiva de sua cultura e sociedade, mostrando uma sociedade não como parte
de um oriente exótico; ou pelo menos não nos textos, embora os ensaios fotográficos deem
muita atenção a ambientes considerados exóticos aos olhos ocidentais, sobretudo o ensaio de
Brian Brake intitulado “The Modern Paradoxes” (BRAKE, 1964, p. 10-26); mas como uma
sociedade moderna (que foi capaz de conduzir uma olimpíada bem sucedida) (LIFE, 1964, p.
34-44), democrática e embora com muitas diferenças, também com muitas similaridades com
a sociedade americana.
Dessa forma podemos concluir que o processo de reumanização dos japoneses nas páginas da
revista Life demonstrou, sobretudo um processo de transformação de valores na sociedade
japonesa, como a valorização do individualismo e da livre iniciativa, valores que segundo a
imagem antes construída sobre os japoneses, seriam totalmente contrários às suas tendências
tradicionais, em outras palavras essa reumanização foi no fim a construção de uma imagem
dos japoneses, dentro do possível, similar à que os americanos fazem de si mesmos, uma
cultura familiar construída por eles em um continente exótico. De fato como lembrou
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traumas e rupturas. Vitória: LHPL/UFES, 2013, p. 1-14.
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Referências
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