uma pesquisa-ação com jovens da Maré

Transcrição

uma pesquisa-ação com jovens da Maré
JUVENTUDE, SAÚDE E CIDADANIA: UMA PESQUISA-AÇÃO COM JOVENS DA MARÉ1
Youth, health and citizenship: action research with young people from
the maré favelas
Regina Helena Simões Barbosa2, Karen Giffin3
RESUMO
O artigo baseou-se em pesquisa-ação que enfocou as questões de vida e saúde de
jovens que vivem no Complexo da Maré, extensa área favelada do Rio de Janeiro.
Pretendeu-se colocar em foco a juventude brasileira, particularmente aquela que vive
em contextos de pobreza, na perspectiva de conquista de direitos de cidadania. Assumiuse que esta é uma problemática emergente e prioritária para a produção de
conhecimentos em saúde, o desenvolvimento de metodologias educativas apropriadas
e que contribuam para a formulação de políticas públicas para, e com a participação
ativa, deste segmento populacional. A pesquisa-ação apresentada foi implementada
com jovens moradores da Maré de ambos os sexos e consistiu na formação de grupos
de reflexão-ação de gênero que, através de oficinas criativas, lúdicas e participativas,
identificavam e refletiam sobre temas de seu interesse, buscando construir e/ou fortalecer
ações coletivas transformadoras. O objetivo final foi a capacitação destes jovens enquanto
“facilitadores de reflexão-ação” entre outros jovens desta coletividade. A pesquisaação é apresentada enquanto proposta de construção de conhecimento crítico e
comprometido com uma ação política e social transformadora. Gênero é assumido
como categoria relacional e transversal, articulada às dimensões de classe social e
raça. Os resultados mostram que os temas de gênero, sexualidade e saúde reprodutiva
perpassaram todos os momentos do processo reflexivo. Porém, a discriminação social
sofrida pelos jovens moradores de favela surgiu como questão emergente e prioritária
para o enfrentamento do difícil cotidiano desses jovens. Associado a isto, a violência
social também é identificada como questão que os impede de conquistar uma vida
digna. Conclui-se pela necessidade e urgência dos jovens engajarem-se nos movimentos
e redes de jovens que ora se organizam para lutar por políticas públicas para a
juventude brasileira.
PALAVRAS-CHAVE
Juventude, saúde, pobreza, cidadania, pesquisa-ação
1
Este projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa do NESC/UFRJ e aprovado para execução.
2
Doutora em Ciências. Professora Adjunta do Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva/UFRJ - End.:
Av. N.S. de Copacabana, 2/701 - Leme - CEP: 22010-120 - Rio de Janeiro, RJ - Tel.: 21 2542-7446.
e-mail: [email protected]
3
Doutora em Sociologia. Professora Titular Escola Nacional de Saúde Pública/FIOCRUZ - e-mail:
[email protected]
CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO
DE
J A N E I R O , 13 (3): 649 - 672, 2005 –
649
REGINA HELENA SIMÕES BARBOSA, KAREN GIFFIN
ABSTRACT
This paper is based on an action-research project which focused on issues related to
the life and health of Brazilian young people who live in the Complexo da Maré, an
extended favela area of Rio de Janeiro. We focus on Brazilian youth, especially those
who live in contexts of poverty, in a perspective of conquering citizenship rights. This
problematic is taken as an emerging priority in the production of knowledge on health,
and in the development of appropriate educational methodologies that contribute to
the formulation of public policies directed to, and with the active participation of, this
segment of the population. This action research, implemented with young people of
both sexes from Maré communities, was based on discussion groups which reflected on
gender issues through participative, ludic and creative workshops which identified and
discussed themes of their interest, in an attempt to build and/or strengthen transformative
collective actions. The aim of the project was to prepare these youngsters as facilitators
of reflection/action among other young people from their communities. Action research
is considered as a means of critical knowledge building, committed to contributing to
transforming social and political action. Gender is taken as a transversal and relational
category, articulated with racial and social classes dimensions. While gender, sexuality
and health themes were present throughout the reflective process, the social
discrimination suffered by favela youth emerged as a priority issue in their harsh daily.
Associated with this, social violence is also identified as a problem that prevents them
from conquering a better life. We conclude for the urgent need for young people to
engage in the youth movements and networks that are being organized to struggle for
universal public policies directed at Brazilian youth.
KEY WORDS
Youth, health, poverty, citizenship, action-research
INTRODUÇÃO
O projeto de pesquisa-ação “Jovens, Saúde e Vida Cotidiana”1, que subsidia
as questões que serão aqui apresentadas e debatidas, resultou da integração de
duas instituições públicas de ensino e pesquisa com tradição de pesquisa e extensão
no campo de Gênero, Sexualidade e Saúde Reprodutiva e atuando na AP 3.1
- área programática da UFRJ e da FIOCRUZ que engloba o Complexo da Maré desde o início dos anos 1980.
Recentemente, o foco da pesquisa-ação por nós desenvolvida desde 19982
direcionou-se para os jovens que vivem no Complexo da Maré, uma extensa e
1
Projeto desenvolvido conjuntamente pelo Laboratório de Gênero e Saúde do NESC/
UFRJ e pelo Núcleo de Gênero e Saúde da ENSP/FIOCRUZ. A competente e
comprometida equipe de campo foi composta por: Lúcia Baptista, Cristina Cavalcanti,
Miriam Andrade Silva Afonso, Luiz dos Santos Costa, Baldinir Bezerra da Silva e Sinésio
Jefferson de Andrade.
2
Neste ano, iniciamos o Projeto de pesquisa-ação “Homens, Saúde e Vida Cotidiana”,
precursor do presente projeto.
650
– CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO
DE
J A N E I R O , 13 (3): 649 - 672, 2005
JUVENTUDE,
SAÚDE E CIDADANIA: UMA PESQUISA-AÇÃO COM JOVENS DA MARÉ
problemática região favelada da cidade do Rio de Janeiro3. Assumimos que a
juventude, particularmente a que vive em contextos de pobreza e violência nas
periferias dos centros urbanos, deve ser tomada enquanto questão emergente e
prioritária na perspectiva da produção de conhecimentos em saúde, do desenvolvimento
de metodologias educativas apropriadas para este segmento etário e que contribuam
para a formulação de políticas públicas voltadas para esse segmento populacional.
Assim, nossa principal motivação para esta pesquisa-ação foi a promoção de
direitos de cidadania que não estão efetivados para a população brasileira,
particularmente para sua parcela jovem. Ao mesmo tempo, assumimos, em acordo
com as recentes tendências de políticas públicas voltadas para a população jovem,
que estas precisam ser definidas pelos, e implementadas com, os jovens.
A experiência de dois anos da pesquisa-ação desenvolvida com jovens
– rapazes e moças – que vivem no Complexo da Maré subsidiará algumas questões
que serão aqui apontadas e discutidas e que julgamos relevantes para se pensar
em políticas voltadas para o imenso contingente de jovens que vive nas regiões
faveladas das periferias urbanas, a maioria sentindo-se socialmente discriminada,
excluída de direitos básicos, sem acesso aos bens culturais, sem perspectiva de
trabalho e de outras realizações pessoais. Porém, como pudemos constatar, os
jovens, mesmo em um contexto tão adverso, não se deixam desanimar e, com a
energia, a esperança e o otimismo característicos dessa fase da vida, buscam
oportunidades de inclusão, novos sentidos para suas vidas, de suas famílias e
coletividades. O nosso trabalho apostou nesse potencial rico e criativo da nossa
juventude que “não perde a mania de ter fé na vida”4.
Antes de iniciarmos a apresentação e discussão do processo desta pesquisaação, julgamos relevante reafirmar alguns princípios ético-políticos relacionados
com o papel das instituições públicas de ensino e pesquisa e que motivaram e
nortearam este trabalho.
A
PESQUISA / AÇÃO E A EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA ENQUANTO CONCEPÇÃO
DE
UNIVERSIDADE
Em acordo com o Plano Nacional de Extensão Universitária/PNE, assumimos
o princípio de que as instituições públicas de ensino e pesquisa devem estar
3
O Complexo da Maré, área situada entre as duas principais vias de entrada do Rio de Janeiro a Linha Vermelha e a Av. Brasil – possui, distribuídos por suas 16 localidades, uma população
estimada entre 113.000 e 133.000 habitantes, com um número de domicílios entre 33.073 e 38.273,
segundo dados dos censos realizados pelo IBGE (IBGE, 2004) e CEASM (CEASM, 2003). De
acordo com a Prefeitura, o número de jovens entre 16 e 24 anos (faixa contemplada por nosso
projeto) residentes no Complexo é de 20.665, dos quais aproximadamente 869 são analfabetos.
4
Referência à letra de uma canção de Milton Nascimento.
CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO
DE
J A N E I R O , 13 (3): 649 - 672, 2005 –
651
REGINA HELENA SIMÕES BARBOSA, KAREN GIFFIN
comprometidas com a transformação da sociedade brasileira na conquista de
justiça social, da solidariedade e da democracia, o que exige seu engajamento
ativo na discussão, elaboração e execução de políticas públicas que tenham a
cidadania como sua principal referência (PNE, 2001)
No sentido de gerar conhecimentos forjados nas reais necessidades da
população brasileira e formar profissionais capacitados e comprometidos com a
melhoria de suas condições de vida, a extensão constitui-se em importante elo de
ligação entre a academia e a sociedade. Nesta concepção, a produção do
conhecimento, via extensão, deve se fazer “na troca de saberes sistematizados, acadêmico
e popular, tendo como conseqüência a democratização do conhecimento, a participação efetiva da
comunidade na atuação da universidade e uma produção resultante do confronto com a realidade”
(PNE, 2001, p. 4). Isto implica no direcionamento da pesquisa, básica e aplicada,
para o estudo dos grandes problemas, preferencialmente adotando e desenvolvendo
“metodologias que propiciem a participação das populações na condição de sujeitos, e não de meros
expectadores” (PNE, 2001, p. 4).
Além de instrumentalizadora deste processo dialético de teoria/prática, a
Extensão pode propiciar um trabalho interdisciplinar que favoreça uma visão
integrada do social e que articule ciência, metodologia e compromisso político.
Sendo a metodologia da pesquisa-ação, tal como por nós proposta e
implementada, plenamente concordante com este ponto de vista, a consideramos
como contribuição ao debate sobre a urgente necessidade de sua implementação.
A extensão, nesta concepção, serviria, inclusive, para melhor articular e
potencializar os inúmeros projetos que atualmente ocorrem de forma isolada,
sem interfaces com o ensino e a pesquisa, sem recursos institucionais necessários
para incluir alunos, tais como bolsas e/ou créditos acadêmicos, como foi o caso
do nosso projeto.
O COMPROMISSO COM POLÍTICAS PÚBLICAS UNIVERSAIS, ABRANGENTES E INTEGRADAS
Considerando a necessidade inadiável de políticas públicas transversais e
articuladas entre si, tanto no nível macro-estrutural quanto nas dimensões
mais cotidianas dos processos formadores, e sem incorrer nos freqüentes
dualismos ‘economia’ versus ‘cultura’, que apartam as políticas de caráter mais
estrutural daquelas relacionadas à promoção de cidadania via práticas
culturais, o foco deste trabalho está centrado na compreensão da saúde
enquanto dimensão fundamental do processo de socialização dos jovens, que
favorece (ou não) as condições necessárias ao pleno desenvolvimento das suas
capacidades e potencialidades.
Especialistas em políticas públicas para a juventude advertem que um dos
problemas nas formulações correntes, exacerbado por quase duas décadas de
652
– CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO
DE
J A N E I R O , 13 (3): 649 - 672, 2005
JUVENTUDE,
SAÚDE E CIDADANIA: UMA PESQUISA-AÇÃO COM JOVENS DA MARÉ
políticas neo-liberais, tem sido o de se enfatizar políticas específicas, focalizadas
em determinados setores e/ou segmentos, e não se reivindicar uma “perspectiva
geracional” em políticas universais (Castro et al., 2001).
Historicamente, no Brasil, é recente e pouco consolidada a consideração da
juventude enquanto alvo de ação governamental e de formulação de políticas
públicas. Somente nos últimos anos iniciou-se, em nosso país, o debate público em
torno das principais questões que afetam os jovens, sobre os tipos de políticas e
programas que devem ser estruturados e de que modo os diferentes atores, juvenis
ou não, que se mobilizam em torno do tema, podem participar destas formulações
e definições (Instituto de Cidadania/IC, 2004)
Como veremos a seguir, a magnitude dos problemas vivenciados pela juventude
revela que estes não poderão ser resolvidos com políticas focalizadas em determinados
segmentos, regiões e/ou localidades, o que comprova a urgente necessidade de
políticas públicas de caráter universal, amplas, abrangentes e integradas, e que só
podem ser promovidas pelo Estado através das várias esferas governamentais e,
como aqui assumimos, com o envolvimento e participação dos jovens em todas as
etapas do processo, da formulação à implementação e avaliação.
O CENÁRIO DA JUVENTUDE BRASILEIRA
Segundo o Censo 2000, existem, no Brasil, 34.081.330 jovens entre 15 e 24
anos, sendo que 81% delas vivem em áreas urbanas (IBGE, 2000). Este contingente
representa cerca de 20% da população total. Isso significa que, mesmo com a
continuação da expressiva queda das taxas de fecundidade, a geração com 20
anos é uma das maiores da história brasileira, configurando o que os demógrafos
denominam “onda jovem”.
No entanto, na conjuntura atual, onde predominam baixos níveis de atividade
econômica conjugados ao aprofundamento das desigualdades sociais, o que resulta
na existência de imensas zonas de exclusão social, não tem ocorrido, na magnitude
necessária, processos de inserção social das novas gerações. O aumento do
desemprego, a informalidade e a concentração da ocupação nos baixos níveis
de renda não atingiu de maneira uniforme os variados segmentos
populacionais. Além das mulheres, dos negros e das pessoas com mais de 40 anos,
os jovens foram particularmente afetados pela perversa dinâmica do mercado de
trabalho (IC, 2004).
No plano nacional, o UNICEF (2002) chama a atenção para o aumento do
desemprego entre jovens de 14 a 24 anos, assinalando que, entre 1992 e 1998, a
taxa de desocupação entre jovens de 15 a 19 anos cresceu 47,4% e, entre jovens
de 20 a 24 anos, 38,5%. Este documento do UNICEF, preparado para recente
seminário nacional sobre cidadania dos adolescentes, constata que o crescimento
CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO
DE
J A N E I R O , 13 (3): 649 - 672, 2005 –
653
REGINA HELENA SIMÕES BARBOSA, KAREN GIFFIN
do desemprego juvenil na década de 90 foi da ordem de 194,8%, três vezes
maior que o desemprego que atingiu a população em geral: “Nesta faixa etária, a
quantidade de jovens que ingressaram no mercado de trabalho nos anos 90 é quase igual ao
acréscimo no número de jovens desempregados neste período.” (UNICEF, 2002)
O desemprego e as dificuldades de sobrevivência refletem-se, por outro lado,
em transformações importantes na organização da vida familiar e nos papéis de
gênero: dados do IBGE/PNAD de 1999 apontam para 17,1% de mulheres
chefes de família na faixa etária de 15 a 24 anos (UNICEF, 2002). Associado a
isto, o aprofundamento dos processos de fragmentação das relações e das redes
sócio-familiares, que contribuem para o processo que Castel (1994) denomina
desfiliação, pode ser evidenciado através de alguns dados: entre os indivíduos
abaixo de 15 anos, 21% das que vivem na Região Sul, e 34% das que vivem na
Região Nordeste, são de famílias em que pelo menos um dos genitores está ausente
(BEMFAM, 1996). A maternidade na adolescência, uma das faces deste cenário,
também expressa diferenças sócio-econômicas claras: no grupo de jovens de 15 a
19 anos, 54% das jovens sem escolaridade já tinham um filho, comparado com
34% daquelas que tinham até 3 anos de estudo, e 6,4% das que tinham entre 9 e
11 anos de estudo (Ferraz & Ferreira, 1998).
Assim, os processos de desfiliação se impõem como expressão da perversa dialética
entre a falta de oportunidades de trabalho (que garante a sobrevivência autônoma)
e a precarização dos vínculos mais próximos, familiares e sociais que, também
atingidos pelas dificuldades materiais, têm cada vez menos possibilidades de incluírem
os indivíduos em estratégias de sobrevivência do grupo (Jelin, 1994). Os jovens
nesta situação de vulnerabilidade à desfiliação social, com imensas dificuldades de
almejar um projeto de futuro, estão, em grande medida, ameaçados de terem suas
‘trajetórias cassadas’, a serem designados por um rótulo estigmatizante e a não
poderem traçar planos que ultrapassem o instante ou, no máximo, alguns dias,
como sinaliza Castel (1994).
Este cenário torna propício o enquadramento dos jovens no papel de
perpetradores e/ou vítimas da violência (Abramovay et al., 2002.). Segundo dados
recentes, o Brasil é, ao lado da Colômbia e El Salvador, um dos países com as
maiores taxas de mortalidade por causas externas no grupo de 15 a 24 anos,
sendo que a maioria das vítimas são homens, solteiros, de estratos socioeconômicos
e níveis de instrução baixos. A taxa de homicídios no país é hoje de 27/100 mil
habitantes por ano, sendo que, para os homens jovens entre 15 e 24 anos, é de
95,6/100 mil habitantes (IBGE, 2000). No Rio de Janeiro, em 2001, a taxa
de homicídios entre integrantes do sexo masculino na faixa etária entre 20 e
29 anos chegou a 214/100 mil habitantes, contra 8,1% no sexo feminino na
mesma faixa etária (IC, 2004).
654
– CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO
DE
J A N E I R O , 13 (3): 649 - 672, 2005
JUVENTUDE,
SAÚDE E CIDADANIA: UMA PESQUISA-AÇÃO COM JOVENS DA MARÉ
No período entre 1980 e 1995, a mortalidade de jovens masculinos entre 15
e 19 anos por armas de fogo no Brasil cresceu, em média, 9,1% ao ano; entre os
de 20 a 24 anos, o crescimento anual foi de 7% (Szwarcwald & Leal, 1998).
Como podemos constatar, este perverso cenário social, que entrelaça as
variadas faces da falta de acesso a direitos elementares de cidadania, assume
dimensões dramáticas que impactam profundamente sobre o cotidiano de
milhões de jovens das periferias dos grandes centros urbanos, como é o caso de
grande parcela dos jovens que vivem na Maré.
POLÍTICAS PÚBLICAS PARA - E COM - OS JOVENS
Como amplamente estudado, documentado e debatido em fóruns nacionais e
internacionais, os jovens que vivem em contextos de pobreza são extremamente
vulneráveis às múltiplas formas através das quais se expressa a violência social que
se manifesta desde a exclusão precoce da escola, a crescente dificuldade de inserção
no mercado de trabalho, até as questões de saúde, particularmente aquelas
relacionadas à violência e ao exercício da sexualidade, como atestam os
preocupantes indicadores de mortalidade e gravidez na adolescência e de DST/
AIDS entre a população jovem.
No campo das propostas educativas voltadas para a juventude, estudos e
projetos apontam para a necessidade de abordagens e linguagens que apelem
para os sentidos e o lúdico, que incluam os campos da cultura, da arte e das
expressões corporais, no sentido de se estabelecer pontes entre o saber formal e o
saber prático e nortear a elaboração coletiva de valores éticos que permitem
fortalecer a noção e o sentimento de pertencimento, em suma, de cidadania.
Como advogam Castro et al. (2001, p. 14), caminhos inovadores para se atuar com
os jovens devem necessariamente “..... escutar o que querem os jovens, aquilo que ocupa
suas mentes e desperta suas vontades; contrapor o belo à fera, reapropriando sentidos, cultivando
vidas e desarmando violências, [...]”
A “Declaração de Lisboa sobre Políticas e Programas de Juventude”, de
1998, também aponta para o investimento em políticas para “reforçar e criar novas
parcerias que permitam aos jovens de ambos os sexos aprender, criar e expressar-se através
de atividades culturais, físicas e desportivas, em benefício de um desenvolvimento físico,
intelectual, artístico, moral, emocional e espiritual equilibrado, assim como de sua integração social”
(Castro et al., 2001, p. 13 ).
Neste sentido, a pesquisa-ação estruturada em torno de grupos de reflexão
de gênero, tal como por nós proposta e desenvolvida (Giffin et al., 2000), constituise em enfoque conceitual e metodológico privilegiado para a expressão criativa
de vivências subjetivas e objetivas, de desejos, motivações e aspirações dos jovens
por uma vida e um futuro dignos. Como já demonstrado através de nossas
CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO
DE
J A N E I R O , 13 (3): 649 - 672, 2005 –
655
REGINA HELENA SIMÕES BARBOSA, KAREN GIFFIN
experiências anteriores5, os grupos de reflexão-ação, tendo o gênero como tema
gerador, favorecem o auto-conhecimento, o reconhecimento e a valorização do
saber prático e da criatividade popular, a elaboração coletiva e a re-afirmação de
valores éticos e solidários e, por fim, a construção de projetos de vida
compromissados com a melhoria das condições de vida das coletividades (Simões
Barbosa, 2001a).
Além disso, o tema da saúde reprodutiva abordado pela ótica de gênero abre
um fecundo espaço para a inclusão de questões sociais candentes, tanto aquelas
referidas ao espaço público – o Estado, as políticas públicas, a educação, a exclusão
e as variadas facetas da violência social – quanto ao privado – a família, os amigos,
as relações afetivas, a sexualidade, a sensibilidade estética e a expressão criativa.
A PESQUISA-AÇÃO COMO METODOLOGIA CRÍTICA E TRANSFORMADORA
A Pesquisa-Ação (PA), enquanto proposta de construção de um conhecimento
crítico e, portanto, comprometido com uma ação política e social transformadora,
surgiu, nos anos 1960, do compromisso de cientistas sociais, educadores, profissionais
de saúde e outros agentes sociais com os interesses e necessidades dos setores
populares. Embora existam muitas vertentes das chamadas pesquisas alternativas,
entre as quais se classificam as várias modalidades de pesquisa-ação, a questão
inicial que se colocava era: como pesquisar a realidade para, através de
conhecimentos críticos e de práxis engajada, transformá-la?
Segundo Hollanda (1993), o debate em torno da PA tem girado em torno de
questões filosóficas e teórico-metodológicas fundamentais: 1) a necessidade de
superação da dualidade sujeito e objeto de pesquisa, herdeira do paradigma
epistemológico do século XIX, e dos ideais positivistas de objetividade e neutralidade
na pesquisa científica; a PA propõe-se a transformar o objeto em sujeito do
conhecimento, rompendo com a tradicional relação saber-poder e suas pretensões
de um sujeito de conhecimento “objetivo” e “neutro”; 2) o estatuto da metodologia,
ou seja, a usual não explicitação dos referenciais epistemológicos que orientam as
pesquisas e justificam as metodologias, o que encobre posicionamentos filosóficos
e políticos; afinal, para que – e para quem - serve o conhecimento?; 3) ao estatuto
destas metodologias, ou seja, a indagação epistemológica: a PA é (apenas) uma
estratégia de pesquisa aplicável ao trabalho de campo ou constitui-se em novo
paradigma científico? (Hollanda, 1993, p. 29)
Em meio às polêmicas intermináveis que acompanham este debate, assumimos
aqui uma posição que advoga a PA como “pesquisa do novo paradigma” (Reason, 1994) e,
5
Relatório Final de Pesquisa “Homens, Saúde e Vida Cotidiana: uma proposta de pesquisaação”. Rio de Janeiro: NESC-UFRJ/ENSP-FIOCRUZ, 2001.
656
– CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO
DE
J A N E I R O , 13 (3): 649 - 672, 2005
JUVENTUDE,
SAÚDE E CIDADANIA: UMA PESQUISA-AÇÃO COM JOVENS DA MARÉ
enquanto tal, portadora de novas estratégias de produção de conhecimentos que
colocam em cena um “objeto”, antes subalterno, que se torna, através da
apropriação do processo de produção do saber, sujeito de conhecimento.
Segundo Reason (1994), esta postura de pesquisa incorpora uma emergente
visão de mundo onde os seres humanos são “co-criadores da sua realidade” e têm,
portanto, capacidade para desvendá-la, compreendê-la e, através da práxis –
conhecimento aliado à ação política - transformá-la. Paulo Freire, formulador da
Pedagogia do Oprimido, é identificado como uma das fontes inspiradoras deste
tipo de proposta (Reason, 1994).
Apesar da variação nas abordagens das PA, todas assumem que a experiência
vivida no cotidiano, quando re-significada através de processos reflexivos críticos,
é passível de transformação, assim como a inseparabilidade entre conhecimento e
ação, teoria e práxis. Como Coraggio apud Hollanda, (1993), postulamos que,
através da PA, é possível construir, a partir da problematização da vida cotidiana,
o alargamento da consciência crítica no sentido de compreender - o que implica
em des-ideologizar - uma sociedade que promove incessantemente a exploração
e opressão da maioria da população, e buscar alternativas.
Nossa proposta de pesquisa-ação é resultante da confluência entre a pedagogia
freireana e a metodologia educativa-reflexiva que emergiu do movimento de
mulheres, como será apresentado a seguir.
Freire (1996), educador brasileiro que se tornou referência mundial na
formulação de uma pedagogia libertadora, postula que a produção do conhecimento,
enquanto processo transformador, exige uma relação de igualdade entre
educador e educando, onde ambos ensinam e aprendem, e onde o saber popular,
forjado nas experiências práticas da vida cotidiana, sem perder de vista as dimensões
de classe, gênero e raça/etnia, é valorizado enquanto dimensão significativa de
conhecimento. Outro ponto fundamental nesta visão pedagógica é a
indissociabilidade entre idéia e experiência, entre palavra e vivência, entre teoria
e práxis. A educação é, então, um processo de reflexão, de consciência, de
sentimento e de ação. Agir sobre o mundo é uma necessidade decorrente do
compromisso ético do educador com o educando e com os excluídos dos bens e
riquezas – materiais e subjetivas – disponíveis no mundo mas inacessíveis para a
maioria. O processo educativo, sempre inacabado, deve ser guiado por uma
permanente reflexão crítica sobre a prática, onde teoria e práxis se alimentam
mutua e continuamente.
Embora esses princípios se relacionem com posturas de vida e valores, Freire
defende com vigor o rigor metodológico e a necessidade de pesquisa para o
direcionamento do processo. Portanto, não basta uma práxis educativa engajada
com os oprimidos e explorados.
CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO
DE
J A N E I R O , 13 (3): 649 - 672, 2005 –
657
REGINA HELENA SIMÕES BARBOSA, KAREN GIFFIN
Assim, na perspectiva freireana, educar não é transferir conhecimentos mas, acima de
tudo, uma relação baseada na troca – afetiva e cognitiva - e no permanente diálogo
entre educador e educando. Nesta concepção, a incorporação de informações é
fundamental, mas apenas uma das dimensões do processo educativo. A própria
apreensão de conhecimentos formais está conectada a processos que transcendem
a racionalidade, pois é profundamente imbricada em dimensões afetivas,
culturais, morais, coletivas e históricas.
Essa questão é central para o processo educativo relacionado à saúde e,
particularmente, à saúde sexual e reprodutiva, na medida em que a discussão
dessas questões remete necessariamente às dimensões subjetivas, emocionais,
relacionais e culturais que envolvem esferas da vida tais como a sexualidade, as
relações amorosas, o diálogo, a fidelidade e o companheirismo, entre outras tão
caras aos seres humanos (Simões Barbosa, 2001a).
Os estudos de gênero emergem historicamente com o propósito de compreender
e transformar as desiguais relações entre os sexos. Esta categoria, introduzida pelo
feminismo, se contrapõe à compreensão que explica o papel de inferioridade social
da mulher em função da sua biologia. Dessa forma, o enfoque de gênero postula
que a submissão das mulheres tem causas históricas e sociais definidas e que,
portanto, é possível e desejável um processo de emancipação que as situem em
um nível de igualdade em todas as esferas da vida.
Na perspectiva aqui proposta, o gênero, entendido como uma das dimensões
constitutivas das relações sociais e das identidades dos indivíduos, homens e
mulheres, está dialeticamente transversalizado na classe social e na raça/etnia
(Saffioti, 1992; Kergoat, 1996; Giffin, 2002; Brito, 2000; Simões Barbosa, 2001b).
Assim compreendido, podemos dialetizar as relações entre estruturas sociais,
incluídas as dimensões econômica, política e social - a divisão social/sexual do
trabalho - e as formas como essas estruturas se organizam na cultura, tal como na
família, no casamento, na sexualidade e na afetividade - a esfera da reprodução -,
essenciais para a compreensão dos papéis sociais de homens e mulheres.
Aí reside a originalidade de uma análise que emerge de uma experiência de
opressão para, a partir daí, elaborar uma teorização que se propõe a superar as
tradicionais dicotomias entre teoria e prática, razão e emoção e, enfim, entre
sujeito e objeto do conhecimento, já que são as próprias mulheres a teorizar sobre
seu estar no mundo almejando elaborar um conhecimento crítico que alavanque a
construção de relações igualitárias (Simões Barbosa, 2001 a). Assim, a trajetória
que vai do concreto para o abstrato, do corpo para a razão, do afeto para as
idéias, levou as mulheres a questionarem, entre outros cânones da ciência, a
própria epistemologia dualista do conhecimento ocidental, que dicotomiza razão
e emoção (Giffin, 1995; 1999).
658
– CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO
DE
J A N E I R O , 13 (3): 649 - 672, 2005
JUVENTUDE,
SAÚDE E CIDADANIA: UMA PESQUISA-AÇÃO COM JOVENS DA MARÉ
Portanto, a perspectiva de gênero e a concepção da pedagogia da libertação
possuem profundas afinidades epistemológicas, políticas e educativas: ambas apontam
para transformações nas relações sociais - o que inclui necessariamente as
relações homem-mulher - na direção de um mundo mais justo e solidário. E
ambas propõem um caminho pedagógico que perpassa, necessariamente, a
afetividade e o compromisso com transformações sociais (Simões Barbosa, 2001a).
A transformação da consciência e da auto-identidade é um primeiro passo,
necessário, mesmo se não suficiente.
OFICINAS / GRUPOS DE REFLEXÃO-AÇÃO DE JOVENS
Como já demonstrado através de experiências anteriores, as oficinas nos grupos
de reflexão-ação podem promover o auto-conhecimento, o reconhecimento e
valorização do saber prático e da criatividade popular, a elaboração coletiva, a
re-afirmação de valores éticos e solidários e, por fim, a construção de projetos de
vida compromissados com a melhoria das condições de vida das coletividades.
As oficinas, mais que um conjunto de atividades como jogos, dinâmicas e
outros exercícios grupais, fazem parte de um processo que promove o crescimento
do grupo, acompanhando as suas necessidades de forma coerente, integrada,
flexível e desenvolvendo a auto-estima, a habilidade comunicativa e a capacidade
de realização de ações, a curto e médio prazos, voltadas para a coletividade.
Para o trabalho com jovens nos grupos de reflexão, incorporamos técnicas
desenvolvidas pela arte-educação, visando abrir espaços para a manifestação de
diversas formas de expressão. Símbolos, metáforas e representações de toda
ordem, frutos da produção em grupo, facilitam a discussão franca e aberta de
assuntos delicados e silenciados, como a sexualidade e os preconceitos, dentre
outros, sem expor os jovens a situações constrangedoras. O exercício da criatividade,
nesta concepção, funciona como elemento desencadeador de transformações,
permitindo elaborar novos conhecimentos a respeito de si próprio e dos pares ao
redor, o que facilita a construção de uma nova identidade pessoal e social.
Esta metodologia, que estimula a expressão de percepções e sentimentos,
privilegia os conhecimentos que os grupos já dispõem, utilizando a informação
como apoio e valorizando a produção criativa dos grupos como sinalizadora da
expansão da percepção e dos sentidos que progressivamente tendem a se manifestar
durante o processo.
Além disso, favorece a comunicação no intercâmbio de experiências dentro
do grupo: saber ouvir, saber falar, defender posições e buscar consensos são
aprendizados que tendem a ser reproduzidos no convívio familiar e comunitário.
As reflexões coletivas em torno de diferentes pontos de vista, desencadeadas
através das vivências compartilhadas, promovem a auto-estima e o crescimento
CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO
DE
J A N E I R O , 13 (3): 649 - 672, 2005 –
659
REGINA HELENA SIMÕES BARBOSA, KAREN GIFFIN
pessoal, ajudando a encontrar novas e melhores soluções para superar os limites e
impasses que conformam o cotidiano de uma vida que não oferece caminhos
claros para a auto-realização.
OS LEVANTAMENTOS DOS GRUPOS: PROBLEMATIZANDO O COTIDIANO
Uma vez que, numa proposta de pesquisa-ação, o ato de conhecer está
radicalmente ligado à ação, a realização de levantamentos de informações sobre
um problema de interesse de um grupo de atores sociais consiste em uma importante
prática de produção de conhecimento e de mobilização (Giffin et al., 2000)
Mais do que uma fonte de dados para o pesquisador, os instrumentos de
pesquisa construídos e aplicados na forma de pequenos levantamentos possibilitam
aos grupos abordar seu campo social numa prática reflexiva e engajada. Ou seja,
o levantamento pode orientar os atores tanto no conhecimento sobre si mesmos
nas suas relações sociais, como no planejamento, desenvolvimento e avaliação de
ações importantes para o contexto da intervenção.
Estes levantamentos também envolvem a articulação entre atores sociais e
pesquisadores, sendo possível o emprego de uma ou várias técnicas combinadas,
tais como entrevistas, observação participante, grupos focais e questionários, entre
outras menos convencionais, tais como fotografias e recortes de jornal. É importante
destacar que a escolha da(s) técnica(s) visa atender aos interesses dos atores sociais
e dos pesquisadores na obtenção de informações consideradas necessárias para o
desdobramento do processo de pesquisa-ação, mais do que produzir ‘dados’.
Aliada às implicações metodológicas da pesquisa-ação, esta abordagem
sistemática da realidade favorece e propicia, através do “estranhamento” e da
problematização do cotidiano e, nele, das identidades ideologizadas, a
‘desnaturalização’ do mundo e o estabelecimento de novas relações entre os
atores e os problemas sociais de suas coletividades. Por isso, o propósito do levantamento é colocar as técnicas a serviço dos interesses destes atores, o que privilegia a
construção e aplicação de instrumentos de pesquisa orientados por suas questões.
Assim, os grupos de jovens definem e realizam levantamentos em torno de
temas de seu interesse. Esses temas são identificados nas oficinas de reflexão a partir
do processo de problematização e desnaturalização do cotidiano já mencionado.
Além da produção de informações estratégicas sobre os problemas e
potencialidades de transformação das situações-problema, a definição de temas
para os levantamentos é uma oportunidade dos jovens refletirem conjuntamente,
de forma coletiva e sistemática, sobre estas questões6.
6
Por fugir à proposta de discutir a metodologia, não estaremos apresentando aqui os “dados”
obtidos através dos levantamentos realizados pelos jovens nos diversos grupos do projeto.
660
– CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO
DE
J A N E I R O , 13 (3): 649 - 672, 2005
JUVENTUDE,
SAÚDE E CIDADANIA: UMA PESQUISA-AÇÃO COM JOVENS DA MARÉ
Uma vez em campo, iniciam o exercício de um novo papel – de agentes
sociais – junto a outros membros de suas comunidades, tais como professores,
pais, profissionais de saúde, outros jovens, educadores sociais, etc. Os levantamentos
realizados, além de proporcionarem um espaço de reflexão e expressão para os
próprios entrevistados, ajudam a mobilizá-los para futuras discussões, quando os
resultados serão apresentados e discutidos.
Neste sentido, o processo dos levantamentos é uma forma de construção do
conhecimento que engendra também relações de atuação, potencializando o
fortalecimento, na coletividade, de redes de ação e movimentos em prol de políticas
públicas adequadas às necessidades dos jovens das comunidades cobertas pelo projeto.
ALGUMAS QUESTÕES QUE EMERGIRAM DOS GRUPOS DE REFLEXÃO-AÇÃO
A pesquisa-ação procurou não somente problematizar e refletir sobre aspectos
relativos à identidade de gênero e à saúde reprodutiva dos jovens da Maré mas, a
partir desta experiência, formar novos facilitadores para trabalharem junto a outros
jovens, tendo em perspectiva a formação e/ou o fortalecimento de redes de jovens
na luta por políticas públicas e cidadania. Nesse sentido, procuramos atuar com
jovens que já estivessem envolvidos em atividades direcionadas para as questões
coletivas ou, no mínimo, interessados em desempenhar o papel de agentes sociais.
Adotamos uma perspectiva multiplicadora, isto é, investimos no sentido de que, ao
final do processo, esses jovens tivessem adquirido uma desenvoltura maior para, junto
com outros pares da mesma faixa etária, facilitarem a discussão dos mais diferentes
temas relacionados ao seu cotidiano e atuarem promovendo a conscientização de
outros jovens com relação à saúde, particularmente a saúde reprodutiva, e à cidadania.
Ao longo de 2 anos (de 2002 a 2004), formamos 7 grupos, alcançando, no
total, por volta de 80 jovens. A maioria deles já estivera (ou ainda estava) engajado
em algum trabalho comunitário, projeto ou programa social7, para onde levavam
os novos conhecimentos e práticas adquiridos. Em decorrência dos momentos de
tensão, especialmente quando se deflagravam conflitos armados na Maré, alguns
desses grupos desfizeram-se momentaneamente e/ou re-agruparam-se posteriormente
em outros grupos do próprio projeto. A eventual descontinuidade no trabalho
revela uma situação similar à de uma guerra declarada que, em muitos momentos,
impossibilita, para os moradores da Maré, o transcorrer da vida cotidiana.
Nestes momentos, instalam-se “toques de recolher”, suspensão de aulas, proibição
7
Há, na Maré, uma enorme gama de projetos financiados com recursos públicos (das
Secretarias de Saúde, Meio Ambiente, Esportes, Desenvolvimento Social e outras) e
administrados por entidades locais ou ONG’s que recrutam jovens para trabalharem em
determinadas ações educativas em troca de uma bolsa mensal; e também projetos financiados
por entidades privadas, nacionais e internacionais.
CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO
DE
J A N E I R O , 13 (3): 649 - 672, 2005 –
661
REGINA HELENA SIMÕES BARBOSA, KAREN GIFFIN
de circulação pelas ruas, etc. Houve semanas em que a equipe não pôde entrar
para realizar as oficinas; em alguns momentos, para não perder totalmente o
contato com os jovens, transferiu-as temporariamente para o campus da UFRJ.
Assim, nos deparamos, desde o início, com grandes desafios, tanto no plano da
reflexão quanto no da ação. O profissional que atua em espaços populares deve
não só assimilar e discutir as diversas maneiras de se entender esse espaço como agir
de forma o mais coerente possível no trabalho com uma população que tem singularidades que nem sempre são nítidas e visíveis. Nesse sentido, cabe uma
problematização acerca dos estereótipos construídos sobre a população que habita
as favelas, tendo em vista que noções discriminatórias pouco ajudam numa compreensão mais apurada sobre a dinâmica desses espaços e o cotidiano de seus habitantes.
Embora o conceito de ‘carência’ que predomina no discurso oficial esteja
circunscrito no contexto histórico, político e social da cidade do Rio de Janeiro,
assim como no cenário nacional, e embora atinja a todos os moradores de favelas
sob a forma de preconceito, não reflete inteiramente as representações de nossos
grupos. E é nesta inter-relação que trabalhamos: “...a realidade concreta é algo mais que
fatos ou dados tomados mais ou menos em si mesmos. Ela é todos esses fatos e todos esses dados e
mais a percepção que deles estejam tendo a população neles envolvida” (Freire, 1996).
Tanto na elaboração como na apropriação dos conhecimentos gerados,
buscamos sempre incluir os participantes jovens como sujeitos, e não meros
objetos, do processo de produção do saber. Coerente com a metodologia
proposta, além dos temas contidos no planejamento inicial, adotamos sempre o
princípio da flexibilidade e do acolhimento, reservando espaço para o surgimento
de outros temas de interesse dos participantes, emergentes dos processos de
reflexão e dos acontecimentos – às vezes, dramáticos – do cotidiano da Maré.
A maioria dos jovens que consegue chegar e se manter nos projetos sociais
estão cursando o segundo grau, vivem com a família, fazem cursos profissionalizantes
e gozam de boa saúde. Alguns revelaram um grande investimento familiar em sua
formação escolar e na participação em atividades que facilitam o domínio de
conhecimentos capazes de produzir mudanças em suas vidas. Entretanto, muitos
deles trouxeram para os grupos de reflexão as difíceis questões vivenciadas pela
maioria dos jovens da localidade, tais como a ausência paterna, conflitos familiares,
dificuldades materiais, crianças assumindo responsabilidades de adultos, entre outros.8
8
Embora tivéssemos consciência de que os jovens que viviam processos de desfiliação mais
intensos não chegavam ao projeto (justamente em função destes processos), apostamos na
possibilidade de nossos multiplicadores de reflexão chegarem a eles, sendo esta questão
constantemente problematizada nos grupos de reflexão promovidos. Posteriormente, também
a Rede Maré Jovem colou-se o desafio de trazer à participação os jovens que ficam
distantes deste tipo de rede social.
662
– CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO
DE
J A N E I R O , 13 (3): 649 - 672, 2005
JUVENTUDE,
SAÚDE E CIDADANIA: UMA PESQUISA-AÇÃO COM JOVENS DA MARÉ
Essa experiência nos sinalizou que, para além da sexualidade e da saúde
reprodutiva, existem prementes questões de vida que não podem ser
desconsideradas no processo reflexivo/educativo. Portanto, no segundo ano do
projeto, já imersos nessas questões a partir do processo desencadeado,
aprofundamos o trabalho na direção de uma “educação para a cidadania”.
Mesmo assim, os temas iniciais propostos - relacionados à identidade de gênero,
sexualidade e saúde reprodutiva - estiveram presentes nas oficinas, muitas vezes
como temas geradores de reflexões sobre a vida em geral.
A escolha desse caminho foi decorrente de uma demanda proveniente dos
próprios participantes, a partir da alegação de que já havia uma certa saturação
quanto às informações meramente técnicas a respeito de métodos de prevenção
de DST/AIDS e de gravidez na adolescência. Novas e ricas discussões surgiram
no desenrolar das oficinas, como aprofundamento ou desdobramento dos temas
básicos, tais como violência, barreiras invisíveis, preconceitos, valorização do olhar
dos jovens sobre a comunidade, novas formas de realizar a multiplicação, etc.
Os depoimentos de alguns jovens sobre as mudanças nas suas vidas decorrentes
de sua participação nas oficinas de reflexão ilustram alguns resultados deste
processo, desde as repercussões e conquistas no plano individual quanto no familiar
e no sócio-político:
“Eu mudei muito desde que comecei a freqüentar essas reuniões. Estou mais responsável.
Até as pessoas notam....”
“O que mudou foi a minha vida familiar. Antes eu só escutava, e eles falavam, falavam ...
Agora eu falo também. Descobri que minha opinião tem valor”
“Eu, como os outros colegas, aprendi a ouvir mais os outros, a fazer as pessoas pensar a
respeito dos problemas da sociedade: violência, tráfico, desigualdade social etc...Ver que se
cada um fizer a sua parte...o país, quem sabe o mundo, pode ser bem melhor”
Em determinado momento do processo, a equipe sentiu necessidade de
discutir e melhor elaborar nosso entendimento de ‘agente multiplicador’ dentro
desta perspectiva de pesquisa-ação:
“...É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem, que se pode melhorar a próxima
prática. O próprio discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser de tal modo
concreto que quase se confunda com a prática.... Quanto melhor faça esta operação, tanto
mais inteligência ganha da prática em análise, e maior comunicabilidade exerce em torno
da superação da ingenuidade pela rigorosidade” (Freire, 1996).
CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO
DE
J A N E I R O , 13 (3): 649 - 672, 2005 –
663
REGINA HELENA SIMÕES BARBOSA, KAREN GIFFIN
O conceito de ‘multiplicador’ já está incorporado pela maioria dos projetos
sociais. Nosso projeto também utiliza este termo mas, neste caso, para identificar
o/a participante do grupo como quem, mais que difundir um conhecimento
aprendido, é, ou será, facilitador de reflexões entre seus pares. Não há aqui
fórmulas ou receitas mas problematização, reflexão e busca coletiva e solidária de
caminhos/ações que visam transformar situações problemáticas para os jovens, como
exemplarmente demonstra a fala emocionada de uma jovem após uma oficina:
“naquela hora, durante o exercício de sensibilização, que você mandou levar a mão ao coração,
alguma coisa mexeu diferente dentro de mim. Veio na minha mente aquelas meninas que passam
grávidas na minha porta. Eu lembro como era a minha cabeça quando fiquei grávida. Eu não
sabia pensar. Só sentir. Era muita confusão. Eu sabia de tudo, mas o problema era as coisas
que eu sentia ( emoções ), que eu não entendia , não sabia nem como explicar. E como é que
eu ia falar disso? Falar disso com quem? Agora, quando a gente faz reflexão aqui no grupo, que
a gente fala e escuta as histórias dos outros, é que eu começo a entender melhor como eu era antes e
posso entender como essas meninas pensam... E aí aumenta a minha vontade de fazer alguma coisa”
Outra jovem participante de um dos grupos expressou um olhar crítico sobre
a multiplicação ao se posicionar sobre os ensinamentos recebidos através de
palestras em outro projeto de saúde reprodutiva do qual participou:
“ Em diversas oficinas em que participei, nenhuma delas foi apresentada ou ministrada por
pessoas da mesma faixa etária que eu, que entendesse e falasse a linguagem dos jovens
presentes. Apesar de expor muito bem as informações, eu não sentia que falavam
diretamente comigo, pois o assunto mais abordado, que é que temos que usar preservativo,
vinha sempre como imposição e não por uma opção de sexo seguro.”
No mesmo sentido, jovens que integraram nosso primeiro grupo e que
vinham de uma experiência anterior em outro projeto social (semi)governamental,
também reforçaram a importância desta visão de multiplicação quando fizeram
uma comparação entre a nossa metodologia e a do outro projeto:
“No Projeto X., o grupo foi capacitado para ser multiplicador. Nosso trabalho era repetir
o que tínhamos aprendido”
“Eu não quero dar aula, quero aprender a fazer oficinas”
No segundo ano de trabalho, foram os participantes que, em muitos sentidos,
determinaram o lugar de onde queriam partir e chegar, embora nem sempre isso
664
– CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO
DE
J A N E I R O , 13 (3): 649 - 672, 2005
JUVENTUDE,
SAÚDE E CIDADANIA: UMA PESQUISA-AÇÃO COM JOVENS DA MARÉ
tenha transcorrido facilmente. Alguns procuravam os grupos em busca do convívio,
mas a maioria vivenciou as capacitações como recurso para atuarem na comunidade.
As falas abaixo demonstram o quanto eles puderam decidir o que queriam
conhecer, pesquisar ou expor em/para suas comunidades:
“Aqui nesse projeto nós temos voz, e damos nossas idéias sobre o que queremos fazer na
comunidade” (ao discutirem propostas de atuação coletiva na comunidade)
“Construímos um mural fotográfico da Maré utilizando materiais de arquivo e fotos
atuais, para podermos fazer uma comparação” (estudo fotográfico comparativo entre as
condições de vida passadas e presentes na Maré)
“Decidimos pesquisar o trabalho de outros projetos que trabalham com crianças e
adolescentes” (para melhor conhecer e articular outras iniciativas locais)
Assim, buscamos fazer o necessário para que os grupos crescessem e adquirissem
autonomia, propiciando a cada participante a possibilidade de desenvolver cada
vez mais o seu potencial criador, seus projetos pessoais e a capacidade de pensar
e agir coletivamente. Na perspectiva freiriana:
“nós, mulheres e homens, somos os únicos seres para quem aprender é uma aventura
criadora, algo muito mais rico do que meramente repetir a lição dada. Aprender para nós
é construir, reconstruir, constatar para mudar.” (Freire, 1996)
A MARÉ EM CENA: UM COTIDIANO DE LUTAS, REVOLTA E ESPERANÇA
A Maré proporciona a seus moradores orgulhosas histórias de resistência e luta mas
também tristes relatos de um cotidiano de pobreza, preconceito e violência. Vivenciamos
intensamente este cenário no final do primeiro ano de trabalho nos grupos até então
formados. O tema “viver na Maré” mobilizou profundamente os 3 grupos, sendo assumido, pela equipe, como questão prioritária que demandava reflexão e re-significação9.
As falas abaixo expressam parte das visões conflituosas vivenciadas pelos jovens:
“existe beleza na maré assim como existe muito preconceito lá de fora. Precisamos ter
outra visão da favela”
9
Re-significação aqui quer dizer atribuição de um novo significado a uma determinada
visão e/ou experiência, resultante de processo reflexivo crítico coletivo. No caso em questão,
o grupo buscou superar o estigma do “favelado” através do resgate do que existe de
positivo na vida e na cultura da favela.
CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO
DE
J A N E I R O , 13 (3): 649 - 672, 2005 –
665
REGINA HELENA SIMÕES BARBOSA, KAREN GIFFIN
“o povo aqui é muito unido, mesmo assim, deveria haver mais união e prevenção”
“ fico triste com todas essas coisas que acontecem aqui. Aqui é muito bom, as pessoas são
legais. Pena é essa bandidagem.”
No segundo semestre de 2002, conflitos armados entre traficantes, ou entre
esses e a polícia, se intensificaram de tal modo que alguns jovens do Grupo 1,
moradores da Nova Holanda, temendo o clima de insegurança, decidiram não
mais freqüentar as oficinas, que se realizavam, então, no Posto de Saúde da Vila
do João. Essas duas localidades da Maré se encontravam, à época, sob o domínio
de grupos rivais de traficantes, evidenciando as chamadas ‘barreiras invisíveis’ que
interditam, sem ordens explícitas, o trânsito de pessoas de um bairro ao outro.
Diante das circunstâncias, e mesmo sendo um lugar estratégico para nós em função
do apoio institucional ao nosso trabalho, o posto de saúde deixou de ser o local
mais apropriado para os nossos encontros com este grupo.
Nesta situação, nos vimos obrigados a transferir para o campus da UFRJ as
reuniões com este grupo; concomitantemente, resgatamos os participantes dos
outros dois grupos (Grupo 2 e Grupo 3) que, pelas mesmas razões, estavam dispersos,
propondo a formação de um só grupo, batizado de Grupão. O mote para a
junção dos 3 grupos foi um convite para participarmos do evento “Espaço aberto
para a saúde”, promovido pelo Posto de Saúde da Vila do João.
Deste intercâmbio entre os grupos, resultou, elaborado e produzido pelos
jovens, uma dramatização teatral cujo tema gerador, eleito em oficinas reflexivas,
foi o preconceito sofrido pelos moradores de favela. Através desta
dramatização teatral, os jovens questionaram os preconceitos vindos tanto
de fora quanto de dentro da comunidade, no esforço por valorizar os aspectos
positivos da favela. O texto a seguir, retirado do roteiro da dramatização,
expressa vivamente os sentimentos e questionamentos gerados pelo/no processo
de reflexão:
“morar na maré, pra mim, é bom...”
“a maré não é uma comunidade qualquer”
“porque você diz que isso aqui é um lixo?
pense antes, porque o lixo pode ser você”
“maré, mostra o teu orgulho.
diz o que tu tem de bom”
“quando lhe perguntam onde você mora,
o que você diz: maré?
porque não?”
666
– CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO
DE
J A N E I R O , 13 (3): 649 - 672, 2005
JUVENTUDE,
SAÚDE E CIDADANIA: UMA PESQUISA-AÇÃO COM JOVENS DA MARÉ
O esquete “MARÉ, PORQUE NÃO?” foi um recurso pedagógico desenvolvido
pelos jovens que serviu como estímulo ao debate com várias platéias, tanto no
evento do Posto de Saúde, como na festa de encerramento dos dois primeiros
grupos, no fim de 2002. No início do ano seguinte, os jovens ainda se apresentaram
em um evento promovido pela Secretaria Municipal de Saúde.
Logo após esses eventos, a violência atingiu dramaticamente dois membros
do Grupo 3: foram “acidentalmente” baleados o líder do grupo, um exímio
bailarino de “dança de rua” (street dance), atingido na perna por ocasião de um
confronto entre policiais e traficantes na porta de sua casa, e a mãe de outro dos
integrantes deste grupo. Depois de passar por duas cirurgias, o ferimento deixou
neste jovem graves seqüelas que dificultavam, até recentemente, o seu caminhar,
o impedindo de novamente dançar.
Na oficina em que recebemos estas notícias, os jovens mais próximos dos
vitimados puderam externar, de forma dramática, sua emoção, chorando e
gritando a sua dor e sua raiva, enquanto os outros, em silêncio, abraçados e
emocionados, demonstraram sua solidariedade. Os facilitadores da equipe,
legitimando a indignação geral, conduziram uma reflexão com o grupo: o que
podemos fazer com esta raiva?
Depois dos debates, o grupo chegou a um consenso: “Desistir não é nossa
primeira opção”. Mas, não surpreendentemente, esta violência causou sério
impacto sobre o Grupão. De início, compartilhamos com os jovens (nos encontros
e fora desses) nossa dor por essas tragédias, dando apoio emocional e nos colocando
disponíveis e solidários. Ainda assim, os jovens entenderam que o momento era
de se resguardar, o que levou a uma desmobilização do Grupão, que não
encontrou forças, naquele momento, para levar adiante seus argumentos pela
positividade da Maré.
“ Está errada a educação que não reconhece na justa raiva, na raiva que protesta contra
as injustiças, contra o desamor, contra a exploração e a violência, um papel altamente
formador.” (Freire, 1996)
Os textos abaixo foram escritos por duas integrantes do Grupo 4, reproduzindo
o resultado de uma roda de reflexão:
A fala provocadora do debate:
“Aqui o descaso com os moradores é freqüente, ninguém está ligando para nós. Fico
indignada, quando vejo na TV pessoas que estão sofrendo a mesma violência, sendo que
elas são ouvidas , só porque tem um nível social mais alto. E nós aqui da favela? Será que
nunca ninguém vai olhar para nós?”
CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO
DE
J A N E I R O , 13 (3): 649 - 672, 2005 –
667
REGINA HELENA SIMÕES BARBOSA, KAREN GIFFIN
A discussão foi acalorada e, ao final desta oficina de reflexão, uma das jovens
expressou suas inquietações no seguinte texto:
“O homem tem um espaço de liberdade em sua vida, o qual ele deve construir ou conquistar.
O ser humano não nasce pronto, não é pré-programado, ele se torna pessoa, e o grande
desafio do homem, é justamente a construção desse ser.
A preocupação com a conseqüência futura de nossas ações individuais e coletivas muita
vezes nos assusta, pois nos faz pensar que o futuro da humanidade está em nossas mãos,
ou seja, depende somente de cada um de nós, jovens.
Por isso, às vezes, nos vemos tentados a passar a responsabilidade do que acontece em
nossas vidas ao destino, ou então, reproduzimos valores e normas vigentes em nossa
sociedade, simplesmente para estar inserido em uma certa normalidade.
Quando penso no homem conquistando seu espaço de liberdade, penso em responsabilidade,
na forma como ele se organiza, e no sentido que ele dá a sua existência. Penso
também no modo como soluciona os problemas que surgem em relação a ele e a outras
pessoas a sua volta, como faz a contecer a troca de experiência presente no cotidiano
das relações sociais”
REDES
DE JOVENS: DERRUBANDO BARREIRAS, VISÍVEIS E INVISÍVEIS
Como já sinalizado, uma das questões mais importantes e mobilizadoras
colocadas pelos jovens da Maré é o seu direito de ir e vir, tanto dentro de suas
comunidades quanto para outros espaços da cidade. Um nível desta questão está
referido aos preconceitos e limites simbólicos e materiais colocados para os jovens
desde fora das suas comunidades, na relação com a urbe maior, e que buscamos
trabalhar com a organização de passeios e na participação de eventos fora da
Maré. Essa foi uma forma de transpormos essas outras “barreiras invisíveis” que
não permitem o acesso desses jovens à cultura e ao lazer.
Igualmente, ou mais importante, é o constrangimento à circulação dentro da
Maré. Parte significativa dos jovens não circula livremente pelas comunidades, e
isto ocorre mesmo não sendo trabalhadores do tráfico. Essa questão foi trazida
para debate e reflexão por integrantes de diversos grupos, quando muitos jovens
demonstraram seu desconforto com a impossibilidade de se movimentarem na
localidade onde vivem.
A Rede Maré Jovem, descrita a seguir, acolheu esta questão com a intenção
de buscar estratégias coletivas que “derrubassem” as barreiras sem colocar em
risco a vida dos jovens.
668
– CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO
DE
J A N E I R O , 13 (3): 649 - 672, 2005
JUVENTUDE,
SAÚDE E CIDADANIA: UMA PESQUISA-AÇÃO COM JOVENS DA MARÉ
A REDE MARÉ JOVEM
A proposta central do nosso trabalho foi a formação de grupos de reflexãoação que estimulassem o auto-conhecimento, a auto-estima, a valorização do
saber prático, a criatividade e a construção de projetos de vida comprometidos
com a coletividade. A partir das vivências em grupos específicos, os membros
seriam, então, estimulados a formar e/ou participar de redes sociais de jovens.
Além disto, nossa função como educadores tem sido facilitar, aos jovens da
Maré, o reconhecimento e valorização das redes informais em que cada participante
se insere, tanto em seu contexto familiar como no âmbito comunitário, ajudandoos a descobrir como essas redes funcionam, como podem potencializar o
desenvolvimento de habilidades individuais e coletivas e, ainda, como cada um
pode trabalhar sua própria rede de influências.
No decorrer do projeto, ajudamos a constituir e integrar movimentos mais
amplos que estão, atualmente, proporcionando encontros, ações e reflexões de/
para/com os jovens “mareenses”. Esses movimentos estão se materializando como
redes sociais. A equipe do projeto engajou-se, juntamente com os jovens, na Rede
Jovens em Movimento10, que se propõe a articular os jovens do Rio de Janeiro
em torno da luta por políticas públicas para a juventude, e a Rede Maré Jovem
(sem Complexo11) que nasceu, em junho de 2003 , desta rede maior e com os
objetivos de:
•
•
•
•
criar ações mais colaborativas entre os diversos projetos voltados para os
jovens da Maré;
reunir profissionais de diversas áreas com os jovens para refletir e propor
ações coletivas na resolução de problemas locais;
incentivar a participação juvenil nos processos de decisão de políticas
públicas;
incentivar a circulação dos jovens entre as comunidades pertencentes ao
complexo da Maré e também na cidade como um todo.
Nosso projeto apoiou e investiu desde o início nesta iniciativa, entendendo
que este pode vir a ser um canal de fortalecimento da juventude mareense. Na
busca por direitos, percebemos que este é um dos caminhos possíveis que os
jovens da Maré estão construindo.
10
Criada a partir de uma articulação nascida no III Fórum Social Mundial, realizado em
Porto Alegre em janeiro de 2003.
11
O complemento “sem Complexo” estabelece um criativo e crítico jogo de palavras dos
jovens que ironiza a denominação oficial “Complexo da Maré”
CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO
DE
J A N E I R O , 13 (3): 649 - 672, 2005 –
669
REGINA HELENA SIMÕES BARBOSA, KAREN GIFFIN
Nas primeiras reuniões da Rede Maré Jovem, foi levantada uma indagação
que acolhemos para reflexão: até que ponto estamos transferindo para os jovens
as responsabilidades de modificar a sociedade? Diante do quadro gravíssimo de
exclusão social, recrutamos os jovens para fazer o que toda sociedade não está
conseguindo. Muitas vezes, parece que nos esquecemos que um dos direitos básicos
dos jovens é brincar, se divertir.
Neste espírito crítico, a rede atua envolvendo os jovens no trabalho coletivo,
mas também como um espaço lúdico e de prazer, onde os jovens apresentam suas
produções artísticas e culturais.
Pensamos que um movimento mais amplo de jovens é necessário para
transformações mais abrangentes e significativas na atual situação da
juventude brasileira.
Acreditamos, como Coraggio apud Hollanda, (1993, p. 50), que o
“.....sujeito participante seja múltiplo, não localizado, com capacidade de reconhecer
outros mas sobretudo de reconhecer em seu próprio interior a heterogeneidade, não como
‘alteridade’, mas como contradição e riqueza, não como debilidade, mas como força”
(grifos nossos)
O surgimento dessas redes, embora ainda embrionárias, pode estar prenunciando
um novo momento de organização da sociedade e, particularmente, de sua
parcela jovem. A consciência de que projetos sociais que atuam isolados, localizados
e focalizados em determinados temas, grupos e/ou localidades, não poderão
resolver de forma efetiva os graves e extensos problemas que afetam os jovens,
aponta para a necessidade inadiável de políticas públicas, o que pressupõe o
engajamento ativo de todos nós, educadores, profissionais e população.
Portanto, enquanto instituições públicas de ensino e pesquisa comprometidas
com a promoção da justiça social e da cidadania, reafirmamos, através deste
trabalho, nosso compromisso com a perspectiva de que “outro mundo – e um
outro país - é possível”, certamente com a participação dos jovens.
* Agradecimentos: Ao apoio da Fundação Ford e do CNPq, cujos recursos viabilizaram
a execução deste projeto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAMOVAY, M.; CASTRO, M. J.; PINHEIRO, L. C.; LIMA, F. S.; MATINELLI, C. C.
Juventude, violência e vulnerabilidade social na América Latina: desafios para as políticas
públicas. Brasília: UNESCO/BID, 2002. 184p.
670
– CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO
DE
J A N E I R O , 13 (3): 649 - 672, 2005
JUVENTUDE,
SAÚDE E CIDADANIA: UMA PESQUISA-AÇÃO COM JOVENS DA MARÉ
BEMFAM. Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde. Rio de Janeiro, 1996.
BRITO, J. C. Enfoque de gênero e relação saúde/trabalho no contexto de
reestruturação produtiva e precarização do trabalho. Cadernos de Saúde Pública.
Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 195 - 204, 2000.
CASTEL, R. Da indigência à exclusão, a desfiliação - precariedade do trabalho e
vulnerabilidade relacional. In: LANCETTI, A. (Org) Saúde e Loucura. São Paulo:
Hucitec, n. 4. 1994, p. 21 - 48.
CASTRO, M. G.; ABRAMOVAY, M.; RUA, E. G.; ANDRADE, E. R. (Org). Cultivando
vida, desarmando violências. Experiências em educação, cultura, lazer, esporte e cidadania com
jovens em situação de pobreza. Brasília, D.F. UNESCO, Brasil Telecom, Fundação
Kellogg, BID, 2001.
CEASM. Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré. A Maré em dados – Censo
2000. Rio de Janeiro: CEASM, 2003.
FERRAZ, A.; FERREIRA, I. Início da atividade sexual e características da população
adolescente que engravida. In: MELONI, E.; FERNANDES, M. E.; BAILEY, P.;
MCKAY, K. A. (Org). Seminário gravidez na adolescência. Rio de Janeiro: Associação
Saúde da Família, 1998. p. 47 – 54.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 19 ed. São
Paulo: Paz e Terra, 1996. 165p.
GIFFIN, K. Estudos de gênero e saúde coletiva: teoria e prática. Saúde em Debate.
Rio de Janeiro, v. 46, p. 29 – 33, 1995.
________. Corpo e conhecimento na saúde sexual: uma visão sociológica. In:
GIFFIN, K. M.; COSTA, S. H. (Org). Questões da Saúde Reprodutiva. Rio de Janeiro:
FIOCRUZ, 1999, p. 79 – 91.
________. Pobreza, desigualdade e equidade em saúde: considerações a partir
de uma perspectiva de gênero transversal. Cadernos de Saúde Pública. Rio de
Janeiro, v. 18, (Sup), p. 103 – 112, 2002.
GIFFIN, K.; BAUMGARTEN, W.; SIMÕES BARBOSA, R. H.; CAVALCANTI, C.;
LOEWENSTEIN, I.; BAPTISTA, L.; COSTA, L. S. Homens, saúde e vida cotidiana: uma
proposta de pesquisa/ação. Anais do VI Congresso de Saúde Coletiva/ABRASCO.
Salvador: ABRASCO, 2000.
HOLLANDA, E. Práticas alternativas de pesquisa: alguns questionamentos sobre as
potencialidades e limites da pesquisa-ação e pesquisa participante. In: VALLA,
CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO
DE
J A N E I R O , 13 (3): 649 - 672, 2005 –
671
REGINA HELENA SIMÕES BARBOSA, KAREN GIFFIN
V. V.; STOTZ, E. N. (Org). Participação popular, educação e saúde: teoria e prática. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 1993. p. 23 – 51.
IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2000. Rio de Janeiro:
IBGE. 2001. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br>. Acesso em: 20 ago. 2004.
INSTITUTO DE CIDADANIA/IC. Projeto Juventude. Documento de conclusão - versão
inicial. Disponível em: <http://www.projetojuventude.org.br/novo/index.php>
Acesso em: 19 set. 2004.
JELÍN, E. Las Familias en América Latina. In: ISIS Internacional. Familias. Siglo
XXI. Ediciones de las Mujeres, n° 20, nov/1994.
KERGOAT, D. Relações sociais de sexo e divisão sexual do trabalho. In: LOPES, M.;
MEYER, D.; WALDOW, V. (Org). Gênero e Saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. 156p.
PNE. PLANO NACIONAL DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA. Fórum de Pró-Reitores de
extensão das universidades públicas brasileiras e Secretaria de educação superior do Ministério
da Educação e do Desporto. SESu / MEC, 2001. Disponível em:
<http://www.sr5.ufrj.br/documentos/pne.doc>. Acesso em: 6 ago. 2004.
REASON, P. Three approaches to qualitative inquiry. In: DENZIN, N.; LINCOLN, Y.
(Org.). Handbook of qualitative research. Thousand Oaks: Sage, 1994.
SAFFIOTI, H. I. B. Rearticulando gênero e classe social. In: COSTA, A. O.;
BRUSCHINI, C. (Org.). Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos,/
São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992.
SIMÕES BARBOSA, R. H. Educação e saúde reprodutiva: análise preliminar de
uma experiência numa comunidade favelada do Rio de Janeiro. In: SILVA, D. P.
M. (Org). Sexualidade em diferentes enfoques. Uma experiência de capacitação no campo da
saúde reprodutiva. Rio de Janeiro:PEGGE/UERJ, 2001a. p. 123 – 131.
_______. Mulheres, reprodução e Aids: as tramas da ideologia na assistência à saúde de
gestantes Hiv-Positivas. 2001b. Tese (Doutorado em Saúde Pública) – Escola
Nacional de Saúde Pública. Fiocruz, Rio de Janeiro.
SZWARCWALD, C. L.; LEAL, M. C. Sobrevivência ameaçada dos jovens brasileiros:
a dimensão da mortalidade por armas de fogo. In: Jovens Acontecendo nos Trilhos
das Políticas Públicas. Brasília: CNPD, 1998. p. 363 – 393.
THIOLLENT, M. Metodologia da Pesquisa-Ação. São Paulo: Cortez, 1986.
UNICEF. Adolescentes pobres e de baixa escolaridade. Sujeitos de políticas
públicas. Documento preparado para o Seminário Nacional para a Cidadania dos Adolescentes
(Adolescentes, Renda e Escolaridade). Brasília, 17 e 18 setembro, 2002. Mimeo.
672
– CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO
DE
J A N E I R O , 13 (3): 649 - 672, 2005

Documentos relacionados