nº 26 - Editorial Franciscana

Transcrição

nº 26 - Editorial Franciscana
I — Estudos
AS TRANSFORMAÇÕES DO
FRANCISCANISMO POSCONCILIAR
Thaddée Matura *
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Traduzida da Selecciones de Franciscanismo, 101, 2005.
5
AS TRANSFORMAÇÕES DO FRANCISCANISMO POSCONCILIAR
O título dado às reflexões que se seguem, pedem uma explicação. Trata-se de “transformações”, isto é, mudanças, modificações de uma realidade
que, permanecendo ela mesma, toma outro rosto, outra “forma”, passa por
uma “metamorfose”. Estas transformações afectam uma realidade designada,
na falta de outra melhor expressão, com o termo um pouco genérico de “franciscanismo”. Entendo por isso um grupo humano formado por cerca de um
milhão de pessoas e que tem como ponto de referência uma figura histórica
fundadora, Francisco de Assis, e que se apresenta como herdeira e continuadora do projecto cristão proposto e vivido por ele. Como todo o projecto que
se deseja coerente e completo, o projecto franciscano, cujo arranque caracteriza e define o “franciscanismo”, comporta, por sua vez, uma certa concepção ou condutas que dele derivam A palavra “posconciliar” refere-se ao
tempo, ao período iniciado pelo Concílio Vaticano II (1962-1965) que está
na origem e acompanha as transformações descritas no texto.
A GUISA DE INTRODUÇÃO
Antes de entrar no âmago do tema e de precisar o desenvolvimento,
acho útil indicar o ângulo de aproximação da minha apresentação, para a
justificar e a relativizar ao mesmo tempo. Trata-se de responder à questão
que legitimamente pode pôr todo o leitor: A partir de que perpectiva, de que
experiência e em nome de que autoridade fala o autor?
Sou frade menor há 64 anos, portanto membro da família, sou parte do
“franciscanismo”. A minha experiência da vida franciscana está ligada a um
dos ramos, a Ordem dos Frades Menores; está marcada pela raiz cultural
típica – a cultura francesa – que deu um rosto, produziu uma experiência e
uma reflexão franciscana com características próprias. Estas características
culturais particulares são normais, mas são também um limite: eu conheço
mal outras características culturais diferentes das minhas e posso ser levado a
considerar a minha experiência como normativa geral. No entanto, por razão
6
da minha itinerância, vivi certas experiências internacionais (Taizé durante
oito anos) e conheci, através de numerosos contactos, a vida franciscana sob
as mais variadas formas e na maior parte dos continentes.
Ao longo da minha vida franciscana, vivi, primeiramente, uns vinte anos
de formação no contexto conventual clássico e muito observante. De seguida
tive a ocasião e a possibilidade de participar activamente na criação de fraternidades (Taizé durante oito anos; Grambois, vinte anos), onde se nos deu a
liberdade de pôr em marcha o que nós acreditávamos ser o projecto franciscano autêntico, adaptado ao nosso tempo. Este empenho esteve acompanhado de uma reflexão constante, fundada sobre o estudo das fontes franciscanas, da história da Ordem, do fundamento evangélico do movimento e do
seu lugar no conjunto da vida religiosa. Estas reflexões e investigações foram
partilhadas com outros: frades em formação, público variado; fizeram-se cursos e sessões e publicou-se à volta de uma dezena de livros de temática franciscana, traduzidos em várias línguas 1 .
Quando a Ordem, seguindo as orientações do Concílio se empenhou no
seu “aggiornamento”, para “voltar às fontes”, fui chamado, com outros
irmãos, a colaborar como perito em três Capítulos gerais, trabalhando para
esta renovação (Assis, 1967; Madrid 1973; Assis 1976) e em trabalhos de
várias comissões que se seguiram. As transformações de que vamos falar,
foram vividas por mim como testemunha e actor, sem deixar de nelas participar até aos dias de hoje. Certamente que a minha maneira de as ver e descrever, está marcada por convicções e opções que não se impõem e que não
são forçosamente partilhadas por todos. A apresentação que se segue não
pretende uma objectividade perfeita, nem isso seria possível, e poderia ser
feita e interpretada de outra maneira. Só desejo contribuir na busca e reflexão
que é proposta a todos.
O que me moveu a empreender este trabalho de reflexão e de redacção,
foi a necessidade de fazer um balanço pessoal do meu compromisso franciscano, dos seus fundamentos, da sua evolução e de contribuir assim com um
ponto de vista, com um testemunho, no debate em curso sobre a identidade
franciscana hoje 2 . Começarei por apresentar o contexto geral: situação do
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1
Le project évangélique de François d’Assise aujourd’hui, Cerf, Paris 1977 ; Dieu le Père très
saint, Ed. Franciscaines, Paris 1990; Prier 15 jours avec François d’Assise, Nouvelle Cité, Paris,
1994 ; François d’Assise, « auteur spirituel », Cerf, Paris 1996 ; François d’Assise, maître de vie
spirituelle, Ed. Franciscaines, Paris 2000 ; Identità fracescana ieri i oggi, Pazzini, Ed., Verucchio
2002 ; Chiara et François d’Assise, Ecrits (Trésors du christianisme), Cerf, Paris 2003.
2
Que eu saiba, ainda não se tentou um estudo global das metamorfoses do projecto franciscano
ao longo da segunda metade do século XX. Para um ponto de vista crítico sobre a situação da vida
franciscana hoje, consulte-se os artigos de Lluis Oviedo, publicados nas Selecciones de
Franciscanismo: El declive del franciscnismo en Occidente, 29 (2000) 88-106; Misión
evangelizadora y carisma, 30 (2001) 249-265;
7
mundo e da Igreja nos anos conciliares. Depois uma descrição do estado da
família franciscana nos tempos do concílio; as investigações e as petições de
base; a etapa oficial da renovação. Na conclusão vamos fazer a valoração e
apresentar os desafios que sugerem as transformações realizadas.
1. O MUNDO E A IGREJA: CONTEXTO GERAL
O período em que se exprime o esforço de renovação e das transformações do mundo franciscano, coincide com o período conciliar que se estende
por uma vintena de anos: 1960-1980, São os anos do pós-guerra, no terceiro
quartel do século XX. Politicamente o mundo estava dividido em dois blocos:
dum lado os países comunistas, do outro o poder americano, associado à Europa
livre em plena reconstrução. É o tempo em que se difunde o poder da tecnologia e começo o reino dos meios de comunicação. É a modernidade triunfante
da democracia e do mercado livre que logo reconhecerá os seus limites. As
correntes filosóficas da época eram o marxismo e o existencialismo.
Se é verdade que a prática religiosa começa a baixar no Ocidente, sobretudo no âmbito da Igreja católica, também é verdade que figuras emblemáticas, como João XXIII, fazem com que o interesse pela religião permaneça
vivo. O Concílio, convocado por ele (1962-1965) tem o valor de conduzir a
bom porto uma reforma da Igreja, que poucos estados ousariam tentar nos
seus respectivos domínios. Por isso o acontecimento suscita o interesse, a
admiração e as esperanças da opinião mundial.
A convocação do Concílio acontece como resultado, como fruto de
múltiplas renovações, começadas muito antes: renovação bíblica, patrística,
litúrgica, ecuménica e suas incidências e influências sobre a vida da comunidade cristã. A Bíblia redescoberta, lida e interpretada como primeira referência, cuja compreensão plena requer a voz da tradição, sobretudo da
patrística; o testemunho vital e experiencial da liturgia, a mais completa
expressão da fé, que põe em marcha, ritualmente, a salvação, era o coração
da renovação. Esta era preconizada por exegetas, teólogos, patrologistas,
filósofos, como Lagrange, Guardini, Teilharde de Chardin, Danielou, de
Lubac, Congar, Bouyer, Rahner, von Baltasar, em obras publicadas cujo interesse não se discute. A tomada de consciência do escândalo da divisão dos
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Crisis y esperanza, 31 (2002) 265-288; assim como La sfida dei francescani nel mondo attuale,
em Vita Minorum 75 (2004) 121-136. Além disso, Giuseppe Bufón, apresenta como historiador, com
a ajuda duma chave sociológica e um quadro cronológico, uma visão crítica sobre as transformações
da auto-consciência da Ordem: “Os franciscanos confrontam-se com a própria história. Investigação
histórica e transformação institucional, em Sel. Fran. 95 (2003) 208-298; e Spectaculum facti sumus
mundo. Minoridad/pobreza como facto de mobilização nos processos de reforma (s.XVI-XIX), em
Sel. Fran. 97 (2004) 63-100.
8
cristãos, da responsabilidade de todos na sua superação, exprimia-se no
ecumenismo, representado pelo Abade Couturier e o Cardeal Bea, e abriu
caminhos de oração, de arrependimento, de contactos e de amizade. O
impacto destas correntes sobre a vida religiosa, colocava a esta múltiplas
questões e convidava-a a verificar os seus fundamentos e as sua práticas.
Esta rápida e incompleta apresentação do que preparou e produziu o
Concílio está esboçado como pano de fundo de renovação que afectará a
família franciscana formada de homens e mulheres que, mesmo involuntariamente, não se podiam ignorar as interpelações que eram colocadas a todos
os cristãos católicos. Não sendo uma ilha, mas parte de um corpo, devia
abrir-se ao que era uma graça de “metanoia”, de conversão e mudança.
2. ESTADO DA FAMÍLIA FRANCISCANA
Qual era nos anos de 1960 o estatuto, a situação da “família franciscana”, este vasto corpo que, pouco a pouco, se sentiu convidado e empurrado
pelo concílio para entrar no movimento geral de renovação?
A nível estatístico, era, naquele tempo, um grupo muito importante.
Alcançou então o cume numérico. A Ordem secular, “os terceiros” seriam à
volta de dois milhões de membros; as religiosas franciscanas, incluindo as
clarissas, seriam mais de 200.000; os irmãos da Primeira Ordem eram
48000 3 . Estavam presentes sobretudo na Europa, com boa presença nas
Américas e com reduzida presença na Ásia e na África.
A Primeira Ordem, objecto principal destes reflexões, tem uma presença, sobretudo conventual, adjectivo que aponta para os edifícios chamados conventos, para o número de irmãos em cada casa, para um estilo de vida
regido por numerosas observâncias regulares, para a austeridade, o hábito,
etc. A maioria dos frades, sendo sacerdotes, dedicavam-se a actividades
sobretudo pastorais: pregação, confissões, animação de santuários. Naquela
época, o encargo de paróquias, salvo nos Estados Unidos, não era actividade
muito comum. Pelo contrário, os irmãos estavam muito empenhados na educação e no ensino: colégios “seráficos”, casas de estudo filosófico-teológicas
em cada uma das Províncias; colégios de bacharelato e universitários em
certos países.
Mas o que nos interessa aqui é a compreensão que a Ordem tem da sua
identidade e da sua vocação. Esta exprimia-se oficialmente nas Constituições: vontade de observar a regra “pura e simplesmente”, segundo as Declarações Pontifícias dos Papas Nicolau III (Exiit qui seminat, 1279), Clemente
V (Exhivi de paradiso, 1312) e Inocêncio XI (Solicitudo, 1679). Estes textos
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3
Números dados por L. IRIARTE, Historia Franciscana, Ed. Asís, Valencia 1079, pp. 451-452; 539.
9
canónicos concibiavam e buscavam apaziguar, naquele tempo, os conflitos
entre os espirituais e a comunidade, respeitando a letra da regra e traçando as
linhas condutoras, precisando as observações morais da observância: 25 preceitos da regra obrigavam os irmãos “sub gravi”. No concreto, as prescrições
mais importantes eram relativas à pobreza comunitária e individual. Procuravam exprimir a originalidade da vida franciscana ao afirmar que não era a
Ordem a proprietária dos conventos, mas a Santa Sé; os irmãos não podiam
usar dinheiro e estavam obrigados a observar estritamente as prescrições
referentes ao vestuário.
Há que admirar tal fidelidade a uma tradição longa de sete séculos,
objecto de tantos combates, ponto de partida e referência de todas as reformas que marcaram a história da Ordem. Mas, quando esta base jurídica,
sempre válida em princípio e obrigatória, se ensinava e era proposta na formação, na prática não correspondia à verdade. Com efeito, mais ou menos
depois da revolução francesa, vivia-se de regimes, de expedientes e dispensas, tais eram as mudanças das condições socioeconómicas e culturais. A
Regra, professada quando se entrava na Ordem, já não era observada com
sentido literal, permanecendo um ponto de referência inatingível, um apelo,
uma espécie de má consciência. A primeira formação construía-se sempre,
ou quase exclusivamente, sobre comentários que mal saíam do quadro jurídico e casuístico das Declarações que nunca eram discutidas.
A tomada de consciência do problema não era experimentado por todos
da mesma maneira. A valorosa intervenção de H. Holzapfel no Capítulo
geral de 1915 não teve qualquer eco 4 . A Ordem, em pleno vigor numérico,
sentia-se forte, sem que fossem clarificados os fundamentos do seu carisma e
a relação com o projecto de vida das origens. Sem ser demasiado medíocre
ou decadente, a vida continuava, levada por uma referência geral à figura do
fundador e ao seu carisma, na expectativa, mais ou menos consciente, de
uma graça, de um despertar.
3. INVESTIGAÇÕES E PETIÇÕES DA BASE
Nos anos do pós-guerra, anteriores ao Concílio (1950-1962) as fortes
correntes bíblica, teológica, litúrgica, influenciavam, pela sua novidade e
pelas propostas de transformações concretas, todos os componentes da
Igreja. A vida religiosa, de onde provinham a maior parte dos protagonistas
da renovação, foi particularmente afectada. O Concílio, nas suas Declarações
sobre a vida religiosa (Lumen gentium, 6; Perfectae caritatis), convidava
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4
ESSER, K., Vergessene Texte zur “accomodata renovatio” des Ordens der Minderbrüder, em
Vita Minorum, 1967, 1.
10
explicitamente os religiosos a uma renovação bem fundamentada, em primeiro lugar sobre “o retorno constante às fontes de toda a vida cristã e à inspiração originária dos institutos e a uma adaptação destes às novas condições
do tempo” (Perfectae caritatis, 6). O “retorno às fontes de toda a vida cristã”
era o objectivo central proposto a todos os membros da Igreja pelas correntes
de renovação antes mencionadas. Grupo religioso e espiritual particular, herdeiro de uma grande tradição, os franciscanos de todas as categorias eram
convidados a interrogar-se sobre a inspiração original do seu movimento e
sobre a maneira de exprimi-lo no mundo actual.
Ora bem “esta inspiração das origens” era objecto, depois de mais de
meio século, de numerosas e importantes investigações históricas. A figura
de Francisco, as origens e o projecto de fraternidade que se formou à volta
dele, foram estudados segundo os métodos históricos modernos, sobretudo,
sob a pressão dos estudos de Paul Sabatier, sem esquecer o livro do P. Gratien de Paris sobre o franciscanismo do primeiro século 5 . Ao mesmo tempo
para além da imagem, cada vez mais precisa de Francisco e de sua obra que
deu origem a inumeráveis biografias, o interesse foi transferido gradualmente
para os escritos de Francisco, que conheceram, no princípio no século XX,
duas edições críticas (Boehmer e Lemmens).
Reconhecendo a importância capital destes escritos para compreender o
teor do projecto evangélico de Francisco, durante muitos anos, os historiadores centraram as suas investigações sobretudo nos relatos biográficos, nas
relações entre eles e no contraste que eles ofereciam da imagem de Francisco. Esta era a problemática da chamada “a questão franciscana”. Nos anos
40 do século passado os estudos começam a concentrar-se lentamente nos
escritos. Apareciam, então, em França, as primeiras edições bilingues, latino-francês, dos “opúsculos de S. Francisco” (1945), publicados pelo D. Vorreux. Utilizando as fontes biográficas, a partir de então, os estudos darão
cada vez mais relevo à visão de Francisco que os seus diversos escritos,
fragmentários mas ricos, sugerem. A revista dos irmãos menores franceses,
Cahiers de Vie Franciscaine, depois Evangile aujourd’hui, assim como a
revista de vanguarda, Frères du monde, serão as porta-vozes desta corrente,
representada por figuras como Eloi Leclerc, (autor da Sabedoria dum pobre,
que se tornou um clássico espiritual), T. Desbonnets, D.Vorreux, I.E. Motte,
F. De Beer, Hervé Chaigne. Este mesmo grupo está nas origens dos Documents, a primeira colecção das Fontes Franciscanas do século XIII (1968) e
modelo para as edições que se seguiram noutras línguas. Em relação à vida
franciscana, fundada na observância escrupulosa da Regra, os seus promoto—————
5
Histoire de la fontation et de l’evolution de l’Ordre des Frères Mineurs au XIII siécle, 1921,
reédition, Roma 1982.
11
res superavam o aspecto jurídico e casuístico e proponham uma leitura global
das intenções e propostas de Francisco. A publicação de uma colecção de
livros, Presença de São Francisco, que será aproveitada por outros países,
como Itália e Espanha, abria à família franciscana e a um público mais vasto,
perspectivas novas e estimulantes para a sua actualização.
De facto, a renovação teórica será acompanhada, a partir dos anos 60,
pouco mais ou menos, por um movimento de “pequenas fraternidades”. Inspiradas nos padres operários e pelos irmãos de Carlos de Foucauld, grupos de
três ou quatro irmãos buscavam, numa inserção humilde e pobre no mundo
do trabalho assalariado, viver o ideal franciscano das origens. Esta experiência, sobretudo francófona (França, Bélgica, Québec), terá também as suas
repercussões na Holanda, Itália e Espanha. Segundo as estatísticas da época,
cerca de 750 frades fizeram esta experiência 6 . Mesmo se este movimento se
apagou passado uma vintena de anos sem criar estruturas novas, marcou, nos
países onde floresceu, o conjunto da vida franciscana, tanto masculina como
feminina. Deixou marcas, em primeiro lugar, pelo lugar privilegiado concedido à vida fraterna, pela opção de um trabalho assalariado como primeiro
modo de subsistência, pela forma de presença humilde e fraterna no meio do
mundo e também por uma certa desclericalização.
O que se passava em França, tinha um paralelo na Alemanha à volta da
figura do P. Caetan Esser (1913-1978), um pioneiro franciscano, o primeiro a
apresentar um tese de doutoramento sobre um escrito de S. Francisco, o
Testamento (1998) 7 . Este homem soube conciliar o trabalho universitário
com o interesse e empenho pela renovação franciscana. Disso dão testemunho as numerosas publicações, entre elas uma nova aproximação à leitura e
interpretação da Regra 8 , que é uma espécie de manifesto sobre a natureza e
missão da Ordem 9 . Mais tarde publicou um estudo profundo sobre “As origens e os objectivos” da primeira fraternidade 10 . Com os colaboradores
Engelbert Grau e Lothar Hardick, será autor de muitos livros, traduzidos nas
principais línguas europeias. Mais tarde vai receber da Ordem o encargo de
publicar uma edição crítica dos escritos de Francisco, realizada em 1976.
Se nesta minha descrição privilegiei os dois centros de renovação teórica e prática, França e Alemanha, é porque eu estive muito próximo deles e
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6
MATURA, Th, Une évaluation théologique de l’ experience des nouvelles fraternités del’Ordre,
em Vie des Communautés religieuses 37 (1979) 343-359.
7
Sobre a vida e obra de Kaetan Esser, cf. SCHNEIDER, H., Kaetan Esser OFM – Leben und Wirken, Mönchengladbach, 1998.
8
La Règle défifintive des Frères Mineurs à la lumière des récentes recherches, Metz, 1965.
9
L’Ordre de Saint François, son esprit, sa mission (Présence de St. François), Ed. Franciscaines,
Paris, 1957.
10
Origines et objectifs primitifs de l’Ordre des Frères Mineurs, Ed. Franciscaines, Paris,1983.
12
me marcaram muito mais. Mas é justo mencionar outras personalidades que
se empenharam sobretudo no ensino em Roma (no Centro de espiritualidade
do Antoniano) e noutras faculdades e que contribuíram com seus trabalhos
para um conhecimento do projecto franciscano e proporcionaram uma base
sólida ao seu renovamento. Menciono os nomes de Optatus van Asseldonk,
Octaviano Schmuki, Lázaro Iriarte, a equipa espanhola das Selecciones de
Franciscanismo, S. López, J. Garrido, G. Boccali, G. Lauriola, M. Conti,
assim como outras revistas internacionais 11 .
No tempo do pós-guerra até aos dias do Concílio, houve uma efervescência, primeiro intelectual, que deu origem a uma leitura renovada das fontes franciscanas, seguido pela descoberta do valor central dos escritos de
Francisco, convertidos, pouco a pouco, em critério de interpretação de outros
textos. Aos irmãos que se interessavam por esta problemática colocavam-se
questões concretas sobre a identidade franciscana e sobre a sua expressão no
mundo moderno. O quadro habitual das observâncias, muitas das quais já
não eram praticadas, já não interessavam, quando se procurava o essencial da
vocação. Mas, qual era o essencial? Os responsáveis, Ministros gerais e
Capítulos, estavam conscientes disso e deram passos, nos quais todos foram
convidados a tomar parte.
4. ETAPA FINAL
Para falar sobretudo da OFM – as outras famílias deram passos
semelhantes –, dois ministros gerais exerceram o seu cargo nestes anos:
Agostinho Sépinski (1951-1965) e Constantino Koser (1965-1979). O primeiro convidou toda a Ordem (22 de Fevereiro de 1965) a reflectir, a fazer
propostas, a preparar o “aggiornamento” da legislação, para responder aos
convites do Concílio. O segundo suscita um processo que, em três capítulos
gerais (Assis 1967; Medellin 1971; Madrid 1973) pôs em marcha, de uma
maneira oficial, a obra de renovação.
O Capítulo geral de 1963 criou uma comissão encarregada de reflectir
sobre as relações entre “a vida regular e o apostolado”. A presidência desta
comissão foi confiada a J.F. Motte, então Ministro provincial da Província de
Paris. Os seus membros, oriundos das províncias francesas e alemãs, quiseram organizar em 1965 (de 17 a 25 de Agosto) em Nordwijkerhout
(Holanda) um congresso “pastoral” para os quais foram convidados não só os
irmãos destes dois países, mas também de outras partes e também capuchi—————
11
Antonianum; Archivum Franciscanum Historicum; Collectanea Franciscana; Etudes
Franciscaines; Franciscan Studies; Laurentianum; Miscellanea Franciscana; Wissenschaft und
Weisheit, etc.
13
nhos e conventuais. Além duma intervenção de R. Etchegaray, então secretário do episcopado francês, foi, sobretudo, a conferência de C. Koser sobre “a
regra dos frades menores à luz das recentes investigações”, que mais chamou
a atenção de todos e suscitou numerosos debates e trabalhos de grupos. As 17
Províncias presentes no congresso (francesas e alemãs) decidiram convocar
um congresso, que prepararia um “documento espiritual sobre a vida dos frades menores”. Este documento apresentaria os traços fundamentais do projecto franciscano primitivo, dos quais resultariam textos fundamentais e proporia pistas para a sua actualização no mundo contemporâneo. A comissão
reuniu-se um ano depois (1-15 de Agosto de 1966) em Exaten (Holanda). C.
Koser, então Vigário geral, esteve presente com dois dos seus definidores.
Foram apresentados, estudados e discutidos, três projectos de “documento”,
elaborados antes por Francis de Beer, Thaddée Matura e Sigismundo Verhey.
Os três tinham a mesma perspectiva fundamental e a mesma estrutura.
Tinham como base um conjunto de textos de Francisco e os apelos do século
XX, para apresentar um testemunho e uma resposta franciscana. O grupo
presente escolheu como instrumentum laboris o texto de Matura que, sob a
forma de um manifesto, mais que de um estudo, respondia melhor ao objectivo examinado. Reelaborado pela comissão, este documento foi enviado à
comissão central da Ordem, que preparava o Capítulo geral de 1967 12 .
Este Capítulo que teve uma duração excepcional (de 4 de Maio a 17 de
Julho), teve como tarefa principal a redacção das novas Constituições Gerais,
que deviam responder à exigências do Concílio: “retorno às fontes de toda a
vida cristã e à inspiração original, adaptada aos tempos modernos”. Este
retorno, como vimos, estava na base das investigações e das variadas experiências dos irmãos. O texto de Exaten não foi tomado como texto espiritual
considerado para preceder aos artigos mais jurídicos das Constituições, mas
vamos encontrá-lo no Capítulo de Madrid. A redacção das Constituições foi,
em certo sentido, uma verdadeira revolução legislativa. Abandonando a
longa tradição de se referir às Declarações Pontifícias para interpretar a
Regra (Paulo VI tinha dado o seu acordo a 2 de Fevereiro de 1970), elas
declaram que “nenhum elemento da regra está abrogado… todos devem ser
compreendidos em relação ao conjunto da nossa vida e postos em prática
segundo o espírito de S. Francisco” (art. 1, 3). É iniciada uma certa desclericalização no art. 206, que declara, em termos gerais, que “todos os irmãos
solenemente professos são aptos para os ofícios e cargos da Ordem”. Pela
primeira vez, a versão 37 das Constituições na história da Ordem, abandonou
o esquema dos doze capítulos (os da regra), para propor um articulado por
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12
A história e os trabalhos desta comissão foram apresentados em: KOSER, K. E GRAU, em
Franziskanisches leben, Gesammelte Dokumente, D. Coelde, Werl 1968.
14
temas: Fundamentos da Ordem; Vida de Oração; Vida fraterna; Pobreza;
Vida apostólica. A redacção 38 (1985), vai conservar a mesma disposição,
integrando os textos chamados espirituais no interior dos diversos artigos.
Em relação às anteriores Constituições, respira-se outro ar. A parte jurídica
está impregnada de múltiplas citações de textos de Francisco; o vocabulário
também muda: o termo “religioso” cede o lugar, em todas as partes, ao de
“irmão”. No que se refere à pobreza, persiste, no entanto, uma certa ambiguidade. Isto é compreensível, quando se relaciona com o passado da Ordem,
no qual a renúncia de toda a propriedade e ao uso do dinheiro era considerado como a característica principal da vida franciscana. Se o art. 89 reconhecia que o uso do dinheiro já estava permitido, o art. 81 expremia o desejo
de que a propriedade dos edifícios e dos bens necessários aos frades “permaneçam realmente sob o poder… dos benfeitores, da Igreja ou da Santa Sé”, o
que parecia algo muito teórico. As Constituições de 1967, promulgadas em
1973 (Madrid), serão revistas de novo em 1985, revisão que conserva o
essencial do texto precedente, acentuando o seu carácter franciscano. Promulgadas em 1987, constituem, actualmente, a carta oficial da Ordem e a
interpretação autorizada de sua identidade.
Mas um texto legislativo, pela razão do seu carácter, da sua preocupação
em disposições práticas, da sua extensão, não respondia ao desejo de ter uma
palavra estruturada, resumida, centrada no essencial. Também no Capítulo de
Medellin (1971) se desejava a elaboração de uma “declaração”, uma espécie
de manifesto, que expressasse, em linguagem clara, a “vocação da Ordem
hoje”, isto é a sua identidade. Uma comissão formada por cinco Ministros
provinciais (dois franceses, um holandês, um italiano e um espanhol) e por
três peritos (Espanha, Bélgica, Canadá) redigiu, em Agosto de 1972, em
Voreppe (França), um “Projecto de declaração do Capítulo de 1973”.
Enviado a todas as conferências da Ordem, o texto foi, com a aprovação do
Definitório geral, inscrito na ordem de dia deste Capítulo. Amplamente inspirado no documento de Exaten, foi discutido e adoptado quase à letra no
Capítulo de Madrid (1973) e promulgado com o título “A vocação da Ordem
hoje”. Pela primeira vez na história, um documento oficial da Ordem não era
redigido em latim, mas numa língua viva, o francês 13 .
Estes dois acontecimentos, o Capítulo de Assis (1967) e o de Madrid
(1973), resumem e exprimem, a nível oficial, as transformações e as adaptações pos-conciliares da identidade franciscana. A reestruturação das Constituições gerais (em 1967 e 1985) fazem-no a nível legislativo-canónico. A
Declaração de Madrid proclama-a num texto de futuro, em relação com a
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As “Acta Capituli Generalis Ordinarii” de Madrid (Roma 1973) contém o material relativo a
esta Declaração.
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situação da Igreja e do mundo, redigido numa linguagem de hoje. No último
quarto do século, outros textos se seguiram, provenientes dos Capítulos
gerais e dos Conselhos plenários que se realizaram, assim como de várias
Comissões que foram criadas (vida contemplativa, missão, formação). Todos
apontam essencialmente para a aplicação prática de muitas propostas concretas. A evolução da Igreja e do mundo fazem aparecer novas perspectivas:
questões da justiça, paz, salvaguarda da criação, inserção nos meios de verdadeira pobreza e nos espaços de grandes rupturas. Mas o projecto de Francisco, visto em todas as suas dimensões, tal como está apresentado nas
Constituições e Declaração de Madrid, permanece como referência de base.
Os passos descritos até agora, estão centrados sobre a Ordem dos Frades
Menores, mas está subentendido que todos os ramos da família franciscana
fizeram o mesmo caminho de renovação. A Ordem Franciscana Secular
recebeu uma nova redacção da Regra em 1978; a Terceira Ordem Regular,
cerca de 200.000 religiosos, recebeu a sua em 1982; Os Conventuais aprovaram as suas Constituições Gerais em 1984, os Capuchinhos em 1986 e as
Clarissas em 1988. Estas expressões legislativas foram sempre precedidas
por um esforço de assimilação do projecto evangélico de Francisco e Clara.
5. AVALIAÇÃO E DESAFIOS
Ao terminar esta apresentação, onde se deu mais importância ao passos
que aos conteúdos, três questões se colocam. O movimento de renovação
conduziu a uma transformação da identidade franciscana? Qual a relação
com a longa tradição de oito séculos? Quais os desafios que se nos colocam
no presente e no futuro?
- Uma autoconsciência renovada
Houve nesta revisão do projecto franciscano uma verdadeira metamorfose e ruptura?
Se se considera a dimensão canónica, não se pode falar de uma transformação institucional radical. A Ordem conserva as suas estruturas tradicionais de divisão em províncias, de governo, de formação, e continua a referir-se à regra como a sua base eclesial e jurídica. No entanto, uma vez abandonada a força de obrigatoriedade das Declarações Pontifícias, propõe-se outra
leitura da Regra e, em virtude dos artigos 3 e 182 das Constituições de 1987,
abre-se caminho à desclericalização. A nível do direito, há, pois, uma certa
novidade, mas também uma certa falta de clareza, pelo menos no que respeita à propriedade de bens, desafio capital na história da Ordem.
16
Quanto a uma visão nova da identidade, é necessário reconhecer que
está marcada por uma ampliação e por uma renivelação. A sua principal referência não é só a “Regra Bulada”, mas à proposta evangélica global, expressa
pelo conjunto de escritos de S. Francisco e ilustrada pela sua vida. Esta é
uma visão estruturada, equilibrada. As Constituições e a Declaração de
Madrid apresentam-na centrada à volta de quatro pontos principais: evangelho, vida de fé, fraternidade, pobreza e menoridade. A missão dos irmãos,
seu “apostolado” principal, consiste fundamentalmente na realização comunitária destes valores, na Igreja e no mundo. Todos os textos oficiais que se
seguiram, até chegar ao Capítulo de 2003 14 , repetem estes pontos, quase na
mesma ordem. Em resumo, trata-se de um sistema, um conjunto, que não é,
no entanto, um todo autónomo, nem muito menos um acrescento, mas um
meio humilde para aceder melhor à sua plenitude.. Hoje, sobretudo, neste
debate do século XXI, onde o que se põe em causa não são os aspectos
secundários do dado cristão, mas a própria fé em Deus e na sua vinda ao
mundo, o projecto franciscano, concebido desta maneira, apresenta-se como
um convite à experiência de fé, sem a qual não nem significado nem qualquer forma de realização.
- Relação com o passado
Como o cristianismo, do qual é uma das experiências, o Franciscanismo
vive da memória e não pode compreender, nem afirmar ou construir a sua
identidade, sem uma referência às suas origens e à evolução histórica que se
seguiu.
Para ter direito à etiqueta “franciscano”, é preciso uma referência, em
primeiro lugar, ao acontecimento inicial: como surgiu, a sua figura carismática, o primeiro grupo, a primeira experiência e o projecto evangélico e eclesial. Utilizando os instrumentos históricos, teológicos e espirituais ao nosso
alcance, devemos procurar alcançar, de qualquer maneira, este acontecimento – sem termos ilusões em relação à objectividade das nossas compreensões e das nossas interpretações – para, de seguida, ver até que ponto
este pode inspirar a nossa vida e os nossos comportamentos. Isto não é simples nem fácil, uma vez que este projecto passou por evoluções e metamorfoses, já em vida de Francisco, e muito mais depois, ao longo de oito séculos
de história. A Ordem conheceu reformas e rupturas em cada século que passou. Do século XVI ao século XIX, a Ordem esteve dividida em nove ramos
autónomos, dos quais três subsistem até hoje. O que se depreende deste
recorrido histórico é uma vontade renovada de fidelidade que nos trouxe
sempre preocupações, recuperações e rupturas. Fidelidade que, salvo raras
—————
14
Cf. Documento saído do Capítulo com as prioridades para 2003-2009.
17
excepções, se viveu num quadro traçado pelas Declarações Pontifícias, às
quais as reformas mais radicais acabaram sempre por respeitar. Estas Declarações, dificilmente compreensíveis nos dias de hoje por causa da sua linguagem e de suas perspectivas puramente jurídicas, não ofereciam, contudo, um
caminho moderado que impedia cair na utopia. A modernidade que começa com
o iluminismo, esvaziou-as pouco apouco do seu significado, obrigando a
Ordem a deixá-las, depois de dois séculos de contínuas dispensas.
Na verdade, seríamos culpados de nos quedar exclusivamente nas
peripécias ideológicas e práticas, ligadas, sobretudo, à questão da pobreza, de
suas interpretações e de suas práticas. O dinamismo evangélico que marcou a
vida de Francisco e que é testemunhado nos seus escritos, tinha um conteúdo
muito mais amplo e profundo. Recolhia e expressava o que há de mais central na Boa Nova de salvação: exigência inesgotável e universal do amor
mútuo, conhecimento de si como um ser de grandeza e de pobreza radical.
Estes valores centrais foram transmitidos e vividos na e pela família franciscana através dos séculos. Disso são testemunha tantas figuras admiráveis de
homens e mulheres, de místicos, de teólogos, de filósofos, de homens de
acção, como também o fascínio que exerce sempre o caminho franciscano
sobre os homens de todos os tempos. Difuso, pouco estruturado, um pouco
apagado e quase medíocre, o movimento franciscano não tem hoje uma presença espectacular, não figura nos primeiros planos da actualidade religiosa,
mas continua em todo o lado “menor e sujeito a todos…”.
Para concluir este ponto, acrescentemos que a insistência, quase exclusiva, sobre as origens e, sobretudo, sobre os escritos de Francisco, relegou
para segundo plano o estudo e o conhecimento da tradição franciscana posterior: as correntes e as figuras do período escolástico assim como a história do
movimento, o que realmente é de lamentar. Esta história que é verdadeira,
rica, complexa e diversificada, não é de fácil acesso. Mas, depois da descoberta da fonte do primeiro manancial – as origens –, é necessário embarcar
no caudal que se lhe seguiu, para estudar as riquezas e as pobrezas desta
longa corrente e tirar daí as lições para a nossa conduta e nossos projectos
actuais.
- Desafios do presente e do futuro
Tal como o mundo de hoje com todas as suas instituições, a Igreja
incluída, está em crise – exposta às interpelações e desafios de situações concretas – também, como movimento e como indivíduos, estamos submetidos
às mesmas condições.
O nosso presente está marcado por forças e debididades. Segundo a boa
tradição evangélica e franciscana, devemos começar por considerar e ale18
grarmo-nos pelas primeiras. A nossa força principal, a graça deste tempo, é,
segundo a minha opinião, a visão renovada, completa e harmoniosa que
temos da identidade franciscana. Aproveitando a renovação trazida pelos
estudos históricos e espirituais sobre as origens franciscanas e sobre as variações e interpretações do carisma ao longo dos séculos, creio que agora percebemos melhor o conjunto do projecto, tal como foi concebido e o expressou Francisco. Há um paralelo que devemos fazer entre os estudos e as propostas do Concílio no âmbito da fé cristã e a visão renovada da nossa vocação, que não é abandono duma tradição, mas construção duma tradição mais
profunda. Agora situamos o projecto de Francisco numa perspectiva muito
mais ampla, mais próximo de toda a riqueza do evangelho e não só de algum
ponto da sua mensagem. Sobretudo reconhecemos que este projecto, por
muito rico e equilibrado que seja, não é um super-evangelho que nos eleva
acima da perfeição cristã. O que faz é introduzir-nos na aventura da fé, sempre dispostos a recomeçar. Jamais, no decurso da nossa história, tivemos uma
luz tão clara sobre a nossa identidade evangélica. Pode ser que neste
momento difícil que todos estamos chamados a viver, este seja uma espécie
de viático, de pão para o caminho, para nos comprometermos, com força e
determinação, nos caminhos desconhecidos que se abrem no horizonte.
Na medida em que a mensagem evangélica, transmitida por este projecto, nos tenha reunido, convertido e transformado interiormente, e tenha
feito de nós “servidores de Deus”, irmãos de todos, pequenos e pobres, procuraremos, com imaginação e perseverança, como exprimir e encarnar estes
valores de uma forma visível, a nível individual e comunitário, neste mundo
a iniciar o terceiro milénio. É necessário confessar que a descoberta teórica
da nossa identidade ainda não foi correspondida com aquilo a que poderíamos chamar uma recuperação, uma “reforma”. Não que faltassem as tentativas: as “pequenas comunidades” dos anos 60-80 do século passado; o movimento mais ou menos acertado do retorno aos eremitérios; nestes últimos
anos, a busca pelos irmãos mais jovens de uma inserção nos meios pobres e
da “itinerância”. Também houve algum retorno à observância literal da regra
segundo o estilo antigo, como reacção à evolução geral, mas sem muitos
seguidores. Não será isso sinal de que a renovação concreta não se deve procurar no retorno às observâncias do passado, mas em expressões e atitudes
interiores propostas pelo projecto, em formas mais adequadas ao mundo de
hoje? É um problema complexo, quando se trata, sobretudo, da propriedade,
do dinheiro, das casas, do modo de vestir, dos meios de subsistência, da vida
comunitária e da missão.
Levamos a nossa força – o formoso projecto evangélico – em “vasos de
barro”. A vivência de fé no mundo de hoje, não é brilhante e nós sofremos os
19
contragolpes dessa situação. Desde que foi reelaborado o nosso projecto de
vida, apesar de ter sido bem acolhido e vivido, o grupo não mais deixou de
diminuir, pelo menos no mundo ocidental. O envelhecimento, a diminuição
do número de candidatos, as numerosas saídas, o encerramento de casas, o
desaparecimento de províncias, provoca a perda de visibilidade e enfraquecimento, se não mesmo o desmoronamento do que ainda restava das observâncias indispensáveis à vida comunitária e sua visibilidade. A nossa presença e a inserção inevitável nas estruturas da sociedade, “mundanizaram-nos” no sentido mais prejurativo, provocando o individualismo.
- Que futuro nos espera
Sem querer fazer profecia, devemos esperar que continue a diminuir o
número de irmãos nos países da Europa, América do Norte e, sem dúvida, na
América do Sul. Pelo contrário, pode-se prever, com certa confiança, que a
vitalidade franciscana se transfira para o mundo afro-asiático. Estaríamos,
então, em presença de dois pólos: o do Norte, pouco numeroso e envelhecido, e o do Sul em crescimento. Estas linhas foram escritas, sobretudo, a
pensar nos frades da velha Europa.
Penso que a presença franciscana não vai desaparecer de certas regiões.
Seremos muito menos. Vamos ter alguns irmãos ou irmãs a viver em comunidades pouco numerosos (entre 6 e 10), vivendo intensamente o aprofundamento da fé, a busca de Deus, o amor mútuo, a abertura a todos num espírito de amizade e de serviço, excluindo toda a forma de superioridade e
domínio, vivendo do seu trabalho e dos dons recebidos, sem cargos de autoridade nem na Igreja nem no sociedade. Pode parecer um sonho e uma utopia. Mas não foi isto que viveu a primeira fraternidade? Não será que as
transformações do franciscanismo posconciliar, as condições que a sociedade
nos impõe e a situação da própria Igreja, nos oferecem uma oportunidade
única de reviver a frescura da aventura franciscana? Ser pequenos, sem poder
nem prestígio, pacíficos e amigos, servidores de todos, não é isto mesmo o
coração da vocação franciscana 15 ? Ora bem, o número, a quantidade à qual a
história nos habituou, é uma riqueza que confere poder. Conhece-se pouco
este desejo de Francisco, próximo do texto paulino: “a força manifesta-se na
fraqueza” (2Cor 12, 9; 1Cor 1, 25). “Pudesse chegar o dia (e venha ele!) em
que o mundo, vendo raramente os irmãos, se admire de serem tão poucos”
(2C 70,6).
—————
15
Este é o tema do conjunto de estudos publicados pelo Instituto Franciscano de espiritualidade
do Antoniano de Roma, sob o título Minores et subditi omnibus. Tratti caratterizzanti dell’identitá
francescana, Roma, 2003.
20
PRINCÍPIOS TEOLÓGICOS FRANCISCANOS
PARA O DIÁLOGO
Luís Pérez Simón, ofm *
—————
*
Conferência proferida na Semana Interprovincial, Madrid, 2004.
21
PRINCÍPIOS TEOLÓGICOS FRANCISCANOS PARA O DIÁLOGO
O Vaticano II produziu uma mudança de mentalidade a respeito do
mundo, trocando a sua condenação por uma “simpatia crítica”. João XXIII
disse em 11 de Outubro de 1962 no acto de inauguração do concílio: “No
nosso tempo, a Esposa de Cristo prefere usar a medicina da misericórdia
mais do que a severidade, mostrando a validez da sua doutrina sagrada, mais
do que condenando” 1 . Paulo VI, no discurso de 21 de Novembro de 1964:
“Queríamos que a doutrina da Igreja irradiasse também o mundo profano no
seu caminho para a verdade e vida…A Igreja é para o mundo” 2 .
A esta actualidade e consciência do valor do diálogo chegou-se pela
reflexão e pela experiência que nos deram os acontecimentos do último
século, os quais nos capacitaram para viver hoje uma vida de diálogo, renunciando à ideia do domínio de uns sobre os outros. Aprendemos a discernir
confrontando promessas e resultados. A ciência e o pensamento dos homens
ajudam-nos a perceber que viver o diálogo é condição própria dos seres
humanos (estar em harmonia com a realidade que muitas vezes é imperfeita).
A frustração perante a impossibilidade de se conseguir o ideal do “eterno
progresso” só pode ser superada mediante a mudança dessa ideia pelo ideal
de diálogo. O ideal dialógico oferece chaves para descobrir uma série de
valores, como o encontro, o diálogo, o amor, a unidade, e a criatividade,
capazes de potenciar as possibilidades individuais e comunitárias. Com
efeito, a relação é algo constitutivo do nosso ser pessoal; viver o diálogo é
uma urgência do nosso ser, que nos exige fé, entrega, confiança e fidelidade.
“O eu é real pela sua participação na realidade. Faz-se mais real quanto
mais perfeita é a participação” (Ebner). Com efeito, trata-se dum “diálogo
como busca cooperativa da verdade”(Olegario G. Cardeal, ABC, 19-5-04).
Por outro lado, a Ordem dos Frades Menores está comprometida
desde o início com o diálogo que S. Francisco praticou e nos deixou como
—————
1
Discurso inaugural no Concílio Vaticano II. Constituciones, Decretos, Declaraciones. BAC,
Madrid 1965, p. 749.
2
Ibid p. 792
22
herança. As Constituições Gerais vigentes recuperam este tema no Título II
do capítulo dedicado à evangelização (cf. art. 89,1). Desde o Concílio Vaticano II que se intensificou a atenção dada a este tema e se assumiram formas
concretas e institucionalizadas, que vale a pena recordar: desde 1986 que
celebramos o assim chamado “espírito de Assis” e se abriram caminhos de
diálogo e colaboração com iniciativas locais para responder a situações concretas (Comunidade de Santo Egídio, Focolorini, contactos com monges
induístas – Bangalore – e budistas – Tailândia – … etc). A queda do muro de
Berlim (1989) alentou a convicção de que devemos centrar a atenção no
diálogo ecuménico, particularmente com o mundo ortodoxo, tendo havido
contactos com o monaquismo russo para um conhecimento mútuo, de
maneira especial a través do testemunho de santidade que nos deixaram pessoas relevantes tanto ortodoxos como católicos. Além disso surgiram outros
projectos como Rússia-Kasaquistão (1994), Istambul (1995 com uma comunidade desde 2003), Belgrado (1997), Bucareste (1999)… E não se devem
omitir as iniciativas de diálogo que fazem Congregações franciscanas, masculinas e femininas, de diversas confissões cristãs (anglicanas e luteranas…).
Recordamos o Instituto de estudos Ecuménicos S. Bernardino, em Veneza,
que funciona desde 1981 e o “Serviço para o Diálogo” que a Cúria Geral
instituiu em 1996 com a finalidade de suscitar e fomentar uma nova mentalidade e sensibilidade entre os irmãos, e que funciona com três comissões para
os sectores ecuménico, interreligioso e das culturas.
O diálogo é uma necessidade para o cristão, em vista à sua abertura ao
mundo sem preconceitos. Impõe-se pela sua própria dignidade e vocação. É a
sua capacidade de reflexão, a razoabilidade e o pluralismo que pede abertura
aos contributos dos outros. O diálogo é um serviço ao mundo e, por isso,
deve ter uma base teológica (fontes de teologia), uma base antropológica
(ciências, como mediação teológica), sem confundir nem pôr de parte as suas
próprias perspectivas: realismo, sensatez, capacidade de abertura, autenticidade… O diálogo realiza-se entre a busca humana e a revelação cristã, que
oferece, entre outras, estas dimensões:
- antropológica, pois que a teologia passa necessariamente pela
humanidade. Em virtude da Encarnação, abre-se às culturas e religiões, reconhecendo-as como irmãs, para criar um espaço em que
todas caibam, em vista à plenitude do reino, cujo o testemunho e
porta-voz é Jesus Cristo. Tudo são dons da bondade de Deus, que os
distribui a todos por igual segundo a sua vontade e reflexo e participação da sua Pessoa, pois Jesus Cristo é origem, caminho e meta. Por
isso trata-se mais de teologia que de antropologia, relação de amor que
Deus estabeleceu com todos pelo Espírito Santo;
23
- evangélica: o centro da experiência cristã é Jesus Cristo morto e
ressuscitado; o mais urgente na actualidade é recuperar o centro de fé,
que é a cruz e a ressurreição de Jesus Cristo e iniciar um caminho
novo de diálogo sem perder o sentido da pertença cristã e a sua identidade; a base da paixão cristã tem como absoluto a fé em Deus e como
relativo todas as mediações culturais e religiosas.
- comunitária: o cristianismo é comunidade de vida em redor da Palavra
e da Eucaristia;
- dinâmica: pois o amor é compromisso e esperança;
- profética: o cristão é testemunho da transcendência;
- espiritual: pretende a conversão do coração;
- ética: testemunhando a verdade que tem sua própria força, nos campos
como a causa da justiça, a defesa da vida, os direitos humanos e valores que nos trazem as várias culturas, pondo o testemunho de Jesus
Cristo no interior da consciência moral;
- escatológica: vivendo o presente como caminho de libertação orientada para a plenitude.
Todas estas visões são limitadas, mas necessárias e todas contribuem
para o conhecimento da pessoa, que é uma realidade pluridimensional, como
imagem do mistério de Deus. A verdadeira identidade cristã nasce da consciência do amor de Deus nas nossas relações. A identidade vai unida ao diálogo, pois só começa um diálogo alguém que possui algo para comunicar e
procura o outro com estima e respeito na busca da verdade cada vez mais
completa. O diálogo é abertura à catolicidade, dimensão essencial do Reino
Deixando de parte outras considerações à volta do diálogo em si, prestemos atenção às motivações teológicas franciscanas do mesmo, que são:
fidelidade ao Evangelho de Cristo que anuncia a conversão para entrar no
Reino de Deus; fidelidade às origens e espiritualidade da nossa vida; fidelidade ao caminho percorrido pela Igreja católica, consubstanciado em alguns
documentos (Unitatis Redintegratio, Nostra Aetate, Dignitatis Humanae, Ut
Unum sint, Tercio Millenium Ineunte).
1 - A centralidade de Cristo. Ninguém pode conhecer a Pai sem o
Verbo de Deus, isto é, se o Filho não o revelar, nem conhecer o Filho sem o
beneplácito do Pai… O Filho, manifestando-se, revela-nos o conhecimento
do Pai… O Pai manifestou-se a si mesmo, fez-se visível e palpável na pessoa
do Verbo, mesmo que nem todos acreditaram n’Ele; no entanto, todos viram
o Pai na pessoa do Filho, pois a realidade invisível que se via no Filho era o
Pai, e a realidade visível em que viam o Pai, era o Filho 3 “.
—————
3
Santo Ireneu, em Contra os heresias, SC 1000, 442-454.
24
Esta é uma das primeiras expressões do cristocentrismo, o que significa
que o Verbo está na base, centro e vértice de todo o projecto salvador de
Deus. Todo o homem está submetido a um plano salvador de Deus, que está
orientado para Cristo, por quem tudo foi feito e é vida e luz para todos os
homens (cf. Jo 1, 3-4), começo, fundamento e meta de toda a criação. Esta
centralidade de Cristo é o fundamento de que todas as coisas, em especial o
homem, estão relacionadas com Ele. Tudo – também as religiões – estão
orientadas para Cristo, isto é, buscam a salvação, o pleno sentido da existência, a vida eterna e a comunhão com o Tu absoluto. Para todos Jesus Cristo é
plenitude, resposta e interrogante ao mesmo tempo. O cristianismo não vive
da destruição de outras formas de fé, mas da sua mudança interior, em profundidade e plenitude, da sua superação na fidelidade a Jesus Cristo.
Por isso, o anúncio de Jesus Cristo constitui o primeiro acto de caridade
para com o homem, para além de qualquer gesto generoso de solidariedade e
o primeiro serviço que a Igreja pode prestar a cada homem no mundo actual,
recordando-lhe as realidades últimas do ser humano. Cristo revela plenamente o mistério do homem a si mesmo.
Mesmo reconhecendo tudo o que há de verdadeiro e santo noutras religiões – reflexo daquela verdade que ilumina todos os homens – continua em
pé o dever da Igreja de proclamar sem hisitação a Jesus Cristo, que é o caminho, verdade e vida. À Igreja exige-se acolhimento, diálogo, fraternidade. É
o que significa quando se diz “compartilhar o dom da revelação de Deus
Amor” (cf. 1 Jo 1, 1-4), que tanto amou os homens, que lhes deu o seu Filho
único (Jo 3,16). Aqui tem lugar privilegiado o diálogo de integração, para
que se cumpra o desígnio de Deus: fazer de todos as nações um só povo, derrubando muros e barreiras (cf. Ef 2, 11 ss.).
Francisco teve a intuição ou a graça de entender a Deus como Amor que
se revela e se dá no Filho encarnado, que por amor desce até nós, se humilha
e se faz pobre 4 . Jesus cristo é a razão do seu viver, a fonte donde brota a sua
conduta, as actividades que o caracterizam e as suas relações para com todos.
Jesus Cristo é o mediador entre Deus e os homens, criador, redentor, guia e
caminho 5 . Quando descobre Jesus Cristo como revelador do Pai, da sua
divindade e do caminho que leva a Ele, centro da existência cristã, nasce o
homem novo, partícipe da ressurreição e enxertado na vida trinitária. Por
isso, depois de O conhecer, segue-O radicalmente com determinação 6 e do
seguimento de Jesus Cristo, Deus e homem, nasce a sua cristologia. Esta
experiência de fé exprime-a Francisco quando diz: Para viver segundo Jesus
—————
4
Cf. CO 26-37; Ex 1, 22; 1R 23, 7.
Cf. 1R 23, 1-4; CO 50-52.
6
Cf. 1R 1, 1-6; 2R 1, 2; 12, 5.
5
25
Cristo e conhecê-lo como é, pessoa divina, deve-se contemplar no Espírito,
com olhos espirituais, pois ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor, a não
ser no Espírito Santo (1Cor 12, 3), e, seguindo as suas pegadas poderemos
chegar à comunhão com o Pai, que vive e reina em Trindade perfeita e em
simples unidade 7 .Quando aceitamos na fé a Palavra de Deus “construímos
em nós uma habitação e uma morada para Ele, pois que é o Senhor omnipotente”, e o Espírito do Senhor, morando em nós, estabelece relações filiais,
esponsais, fraternais e maternais com as três pessoas divinas 8 . O seguimento
das pegadas de Jesus leva-nos ao Pai, de forma que, imersos no mistério da
Trindade, os discípulos poderão ser “perfeitos na caridade” 9 . A Palavra dá
fruto em boa terra segundo a qualidade e a capacidade de acolhimento que se
lhe dá, e, sendo “espírito e vida”, cria em nós um coração puro e novo, que é
o começo do diálogo ecuménico.
Os seguidores de Francisco, reflectindo sobre esta experiência de vida e
sobre a pessoa de Jesus Cristo, caracterizam-se pela mesma visão cristocêntrica do mundo. Na sua reflexão sobre a encarnação do Verbo (amor,
pobreza, humildade, debilidade) viram os teólogos franciscanos a comunicação “ad extra” do Sumo Bem, que chama os seres à vida para que sejam
capazes de se unir amorosamente a Ele. Cristo é o primogénito de Deus e
n’Ele são amados todos como filhos adoptivos 10 .
A teologia, para a escola franciscana, não é simples especulação ou
mero pragmatismo, mas verdade que se faz vida, arrasta à contemplação e
leva a Deus. Foi a experiência de Cristo que transformou Francisco, desde a
mensagem que escutou na pequena igreja de S. Damião, até receber as chagas no Monte Alverne. Esta transfiguração em Cristo e por Cristo é o que
torna particularmente atraente a figura de Francisco:
—————
7
Cf. Ex 1, 1-7; CO 52.
Cf. 1R 22, 27-40; 2CF 48-56.
9
Cf. Jo 17, 23; 1R 22, 53.
10
Santo António de Lisboa escreve: “O lugar próprio de Jesus é o centro: no céu, no ventre de
Maria, no presépio de Belém, no patíbulo da cruz.” Está no centro de cada coração. Está no meio para
que d’Ele, como centro, saiam todos os raios de graça para nós, que estamos em círculo e nos
movemos à sua volta” (Sermões).
S. Boaventura, meditando sobre o mistério de Cristo, que por condescendência do seu amor
desceu até nós e se fez pobre, humilde, paciente, mistério perante o qual a razão humana se perde, diz
que Cristo é a “pessoa do meio”, na dinâmica da vida trinitária. Une o Pai com o Espírito e o Espírito
com o Pai. Na sua actividade “ad extra”, o Pai cria no e pelo Verbo e reconduz o homem e o mundo
ao seu princípio divino. Além disso, Jesus Homem, é caminho de exemplaridade, isto é, modelo de
vida nova para o homem.
Para Escoto, “Jesus Cristo é o primeiro, centro e fim do desígnio de amor de Deus Trindade a
ninguém subordinado”…”Deus quer de modo ordenado”. Depois de Cristo entram os predestinados
nos desígnios de Deus. Cristo é a obra suprema de Deus (Summum opus Dei).
8
26
- A oração de Francisco (cf. 2R 23) é a expressão de uma fé sentida e
gozosa: Deus Pai criador, todo-poderoso, o Filho encarnado e redentor, o Espírito que habita e leva à acção de graças. Francisco vê-se a si
mesmo como a parte de um todo, que tanto é a Igreja como a humanidade, não um ser isolado;
- A sua relação com a palavra converte-o em ouvinte atento do Evangelho. A palavra transforma-o de tal maneira que será o seu guia para
momentos difíceis ou importantes, tais como a opção de vida que fez
por “viver o santo evangelho”, também a vocação e vida dos seus
discípulos se fará à luz do evangelho 11 que Francisco lê de forma
sapiencial, evitando a observância literal, procurando antes a mensagem do Espírito, que lhe sugere gestos proféticos de abertura e diálogo…;
- O discernimento de Deus como Pai na Escritura, sugere a Francisco o
modelo de vida para os irmãos; estes formarão uma fraternidade, onde
todos se sintam verdadeiramente irmãos 12 , rejeitando as formas de
vida até então aprovadas pela Igreja 13 . A comunidade franciscana é
uma fraternidade, uma comunhão de irmãos, reunidos à volta de Jesus
que os convida, como aos discípulos, a seguir o exemplo do lava-pés 14 , estabelecendo que “nenhum irmão tenha poder ou domínio
sobre os outros…; que por caridade de espírito sirvam e obedeçam
voluntariamente uns aos outros…”; que nenhum se chame prior, mas
que todos se tratem simplesmente por irmãos” 15 . Isso significa que
não há uma hierarquia dentro da comunidade, mas que tudo está ao
serviço da comunhão. O testemunho deste estilo de vida impressiona
membros de outras igrejas quando são acolhidos como hóspedes em
nossas fraternidades. È este estilo de vida que pode oferecer ao mundo
um modelo de igreja mais humano, mais próximo do homem, mais
fraterno, como pedem os novos movimentos religiosos que se afastam
da nossa Igreja. Este modelo pode contribuir para uma comunhão
mais plena entre as igrejas, ao mesmo tempo que nos põe alerta contra
certas formas de relações marcadas pelo estilo de relacionamento
herdado das estruturas hierárquicas das dioceses ou de outras ordens e
que obscurecem as estruturas de tipo fraterno e horizontal e que
impedem a subsidiariedade. A autoridade cristã, que é serviço (Mt 20,
24), tomou as características de domínio, próprias da sociedade civil
—————
11
2C 15; 1C 24; TC 27-29; LM 3,3.
Cf. 1R 4.5.6.
13
LP 114.
14
Cf. 1R 6, 4; Jo 13, 14.
15
Cf. 1R 4.5.6.
12
27
ocidental; hierarquizou-se, dando origem a relações que não são de
ajuda e serviço, (Mc 10, 35), nem de autoridade e obediência filiais
segundo o evangelho (Fl 2, 8). Transformaram-se em relações entre
superior e súbdito.
Tudo isto viveu Francisco:
- na sua relação com a Igreja, à qual prometeu “obediência e reverência na pessoa do papa e seus sucessores”; solicitou o seu apoio
mediante o Cardeal protector; quis que os seus fossem súbditos e
sujeitos à santa Igreja, firmes na fé católica, guardando a pobreza, a
humildade e o santo Evangelho de Jesus Cristo 16 , venerando os sacerdote “não tanto por eles mesmo, mas pelo ofício e porque administram
o corpo e sangue de Cristo” 17 .
- nas atitudes que tomou para com os homens e os hereges. Sentindo-se
irmão de todos, pede aos irmãos que “vivam e falem catolicamente”,
que perseverem na verdadeira fé e na penitência, pois ninguém pode
ser salvo de outra maneira 18 . Exorta a todos para que vivam a plena
comunhão de fé e obras com a Igreja católica e apostólica, mostra-se
particularmente severo para com os que se desviam da verdadeira fé e
pede que evitem disputas com os hereges e que respondam com santidade de vida 19 . Nisto inspira-se nas bem-aventuranças: “Quando vão
pelo mundo, não litiguem, nem questionem, nem censurem os demais;
mas sejam mansos, pacíficos e modestos, sossegados e humildes, e a
todos falem honestamente, como convém” 20 . E sobre os
comportamentos que devem ter entre si quando andam pelo mundo:
“Primeiro é não abrirem debates nem discussões, mas mostrarem-se
submissos a toda a humana criatura por amor de Deus e confessarem
que são cristãos. O outro modo é que, quando julgarem ser de agrado
do Senhor, anunciem a palavra de Deus, para que creiam no Deus
omnipotente…” 21 .
Esta experiência afecta e diz respeito à própria mensagem de reconciliação que propõe. Convertido pela graça de Deus, preparado pelo encontro
de S. Damião, guiado pela palavra do Evangelho, Francisco apela à conversão 22 . Expressou-o no abraço e serviço aos leprosos, quando abandonou o
—————
16
Cf. 2R 1, 2; 12, 3-4; T 30-33.
2CF 33-335.
18
1R 19, 1; 23, 7;2R 2, 3, 12, 4.
19
Cf. 2R 2,2-3; 12, 4; T 30-33;1R 11, 1; 2C 103.
20
2R 3, 10-11; 1R 14.
21
1R 16, 6-7.
22
1C 22.
17
28
mundo. Foi a resposta ao convite para reparar a casa de Deus. A sua conversão é reconciliação com Deus, Pai e Criador e com todas as criaturas, irmãs,
em cujo seio os irmãos são “menores”, com o clero e os infiéis… Por isso,
promove a paz entre o falcão e o lobo 23 ; os irmãos são enviados a anunciar a
paz e a penitência, até como saudação 24 , essa paz que é Cristo (Ef 2, 14). A
saudação da paz, recebida do Senhor, era comunicação do que recebeu (paz,
reconciliação, conversão). Anúncio de paz e salvação, não só com a palavra,
mas tornando visível o rosto de Deus com o seu comportamento 25 . As duas
maneiras de ir pelo mundo 26 ; que as sua spalavras sejam prudentes e
simples, para edificar o povo 27 . Foi assim até ao fim da vida, quando nos
disse: “Comecemos, irmãos” 28 .
Estas atitudes realizam-se no acolhimento do outro. Para acolher
devemo-nos converter ao amor e ter um coração aberto à misericórdia 29 , e
praticar a regra de ouro evangélica: “Não faças o que não queres que te
façam” 30 , que aplicou aos ministros 31 e a todos os irmãos, falando-lhes de
amor materno, em sentido de oblatividade e de obediência recíproca ou serviço da caridade, acolhendo com bondade, sem esperar recompensa, sem
rejeitar, antes tomando a iniciativa, ajudando com paciência.
Esta atitude e espírito marcaram as relações e o modelo de evangelização. Francisco propõe um modelo de aproximação aos homens, que revela
atitudes que tocam o âmago do espírito ecuménico: nem disputa nem polémica, mas silêncio que escuta, submissão, ao mesmo tempo que afirmam a
sua identidade de cristãos; disposição interior que se consegue com a benevolência 32 . Francisco dirige-se ao Sultão com a cruz e o diálogo, sem armas,
confiante na força do Evangelho e no nome do Deus Altíssimo, para lhe
mostrar o caminho de salvação 33 . O Sultão olhava-o como um homem diferente dos outros 34 .
Da centralidade de Cristo em nossa vida e de uma relação viva com Ele
segue-se:
—————
23
LM 8, 10; F 21.
T 23.
25
NMI 16.
26
1R 14; 16, 6-7; 2R 3, 10-11.
27
2R 9,3.
28
!C 103.
29
T 1-3.
30
Lc 6, 31.
31
2R 6, 1-2: CM 17; 1R 6,7,8; 7, 14.
32
1R 16. 17; 11, 1-3.8.9; 2R 3, 10. 11.
33
LM 9, 8.
34
1C 57.
24
29
- Um novo olhar, adorar a Deus com coração limpo e o espírito puro e
ter o Espírito do Senhor e a sua santa operação 35 .
- Viver reconciliados connosco mesmos e com os outros, como alternativa à paz fundada na racionalidade e ao domínio da violência herdada
da modernidade e da cultura dominante, pondo como centro a Palavra
e a Eucaristia. O diálogo mantido com Deus tem continuação na
relação com os outros, assim como o amor a Deus leva ao amor pelo
homem, até encontrar o ponto onde tudo se transforma em doçura de
alma e corpo 36 ;
- Acolhendo com respeito o outro, como sacramento de Cristo, com atitudes que superam o egoísmo e o individualismo, e evitando formas
de domínio, de servilismo e de aproveitamento,
- Estando atentos e disponíveis para todos, pois “o Senhor muitas vezes
é ao mais pequeno que revela o que é melhor” 37 .
- Praticando a misericórdia 38 , como o Senhor é misericordioso,
- Guardando a esperança e a certeza, sem temor teológico nem espiritual, pois o primado de Cristo fundamenta a mediação única e universal 39 : Não temeis. Eu venci o mundo…
A centralidade de Cristo foi a base do movimento ecuménico, o que permitiu às igrejas sair de si, das suas defesas, para centrar a atenção na fonte de
unidade. Não se confrontam umas com outras, mas cada uma com Cristo. Da
contemplação de Jesus Cristo nasceu a convicção da Igreja sobre a necessidade da sua renovação. Não se trata de alinhar com a moda, mas de se
actualizar e de se tornar presente no mundo de hoje. A isso a obriga a referência às suas origens, a consciência do seu ser, a disponibilidade de se deixar renovar por Cristo para percorrer o seu caminho, pois trata-se de acreditar em Cristo e imitá-lo. “Quanto mais claro é o testemunho de Cristo, mais
se aproximam as partes separadas da cristandade”. Foi da sua referência a
Jesus Cristo que saiu o sentimento de dor pela divisão, a convicção sobre a
necessidade da conversão e o desejo de unidade através da reconciliação. A
divisão “é um escândalo para o mundo e fere a santíssima causa da pregação
do evangelho a todos os homens” (UR 1). Por isso, o ecumenismo não é fundamentalmente uma doutrina, nem uma prática e muito menos uma táctica,
mas uma profunda experiência de fé. Paulo VI desejou que os historiadores
—————
35
1R 22, 26.
T 3.
37
RCL 4-18.
38
Cf. Cm 9-11.
39
Cf. Dominus Jesus, 13-14.
36
30
reconhecessem no futuro o facto, de que “no Vaticano II se tornou patente
que a Igreja ama os homens”.
2. O diálogo, prerrogativa do carisma franciscano. Francisco é visto
por todos como um homem ecuménico. A sua experiência religiosa é reconhecida por todos como experiência radicalmente evangélica, baseada na
escuta e amor à Palavra e à Igreja. Varão reconciliador, fez de Cristo o centro
da sua vida. A missão dialogante parece ser uma prerrogativa do carisma
franciscano. Com efeito, S. Francisco é-nos apresentado como homem reconciliador e reconciliado consigo mesmo, com os homens e com todas as criaturas. É como que o protótipo de toda a pessoa que se sente em harmonia
com toda a realidade. Francisco sente-se vinculado a todos os seres, e a todos
trata por irmão; exprime o sentimento de piedade que é inclinação afectiva e
compassiva por alguém ou algo, de ternura e simpatia nas relações com todos
os seres; a sua disponibilidade para a escuta é permanente; convida ao diálogo universal, e sente-se livre de qualquer constrangimento, sinal da pobreza
evangélica 40 . Por tudo isso ele aparece sempre como homem novo, equilibrado e harmónico. Assim o descreve S. Boaventura, apresentando a razão
teológica para o facto, que não é outra que a de ver a criação inteira como
criatura de Deus, de modo que todos os seres que a integram (estrelas, sol,
lua, animais, aves, plantas) devem viver em harmonia, pois quanto existe tem
uma relação de irmão entre si e de filho em relação a Deus e deve exprimir-se em amor fraterno. Via a presença de Deus em todos os seres que, como
espelhos contêm o vestígio de Deus origem de todos os seres 41 .
Viveu a experiência cristã dentro da Igreja com espírito universal, motivado pela comunhão e não com espírito de domínio ou de oposição 42 . Assim
se tornou em modelo para todos os cristãos. “As referências do Papa e doutros líderes religiosos a S. Francisco, promotor de reconciliação, de paz e de
diálogo, fazem do diálogo uma das prerrogativas do carisma franciscano” 43 .
S. Francisco é uma das figuras ecuménicas mais relevantes, querido por
todas as igrejas e religiões e por todos os homens. Aproximou-se e escutou a
todos: sujeito a toda a criatura, escutava a todos 44 .
Os franciscanos, seguidores dos seus passos e do seu espírito, têm algo a
dizer no campo ecuménico. E têm algo a oferecer: exemplo e testemunho.
Francisco foi modelo graças à experiência evangélica radical, ao amor e adesão à palavra de Deus, que o colocou no caminho da conversão permanente,
—————
40
Cf. MERINO, J.A.; De la crisis ecológica a la paz con la naturaleza, CPVA 2, Publicaciones
Claretianas, Madrid 1994.
41
Cf. LM 8. 1, 1-3; 8.6, 1-2.
42
Cf. 1R 23, 16.
43
Estatutos do serviço para o diálogo, Cúria geral OFM, art.5.
44
Cf. LM 12. 2, 1-3
31
à adesão à Igreja, à capacidade de reconciliar e pacificar, e pela maneira
como se relacionou com toda a criação.
Os documentos da Igreja oferecem-nos pistas para continuarmos o
exemplo de Francisco. Falam-nos de como devemos cuidar da atitude mental: de como evitar sentimento de desprezo, hostilidade e ideologia obstinada;
de como reeducar as nossas mentes; da conversão do coração e de como
olhar todo o mundo, mantendo a esperança 45 . Entre as culpas cometidos ao
longo da história, a Igreja sublinha as que foram contra o serviço da verdade,
contra a caridade fraterna, reconhecendo que só uma Igreja purificada e
voltada para o Evangelho pode ser ecuménica e que o diálogo, como escuta
amorosa, é caminho obrigatório para conhecer em profundidade a doutrina
do outros, permanecendo fiéis à própria doutrina 46 .
3. A Consciência alcançada pela Ordem nos últimos tempos acerca da
evangelização como elemento essencial da vocação franciscana. Francisco
resolveu a dúvida de se devia dedicar-se à oração ou ao apostolado depois de
escutar os seus e de rezar, buscando a vontade divina até se convencer da sua
missão evangelizadora 47 . Paulo VI diz: “A Igreja existe para evangelizar. É
sua identidade, sua vocação e destino profundo” 48 . Assim o entendeu também a Ordem, sobretudo nos capítulos gerais de 1991 e 1997, nos quais
chega a dizer: a evangelização é a nossa razão de ser. Seguindo o espírito
missionário de Francisco, que emana do seu amor aos redimidos pelo sangue
do Senhor, e da Ordem, a visão de Jesus Cristo da teologia franciscana oferece-nos perspectivas para o diálogo com as religiões e com as culturas do
nosso tempo. Trata-se de actualizar o acontecimento salvífico de Jesus
Cristo, tanto quando se trata do primeiro anúncio como na segunda evangelização. “Evangelização é aquela actividade pastoral que se dirige directa e
expressamente a suscitar a fé entre os que não acreditam ou a reavivar e fortalecer os que têm uma fé débil, exortando-os e ajudando-os a converter-se
de coração ao chamamento de Deus para a vida eterna” 49 . Trata-se de levar o
evangelho vivido aos homens, sem omitir que Cristo é a verdade e que n’Ele
está a plenitude, mas reconhecendo as sementes de verdade que podem existir fora da Igreja, pelo que a atitude não pode ser de oposição e beligerância,
mas de complementaridade. Dizia Guardini que “o contraste – não a oposição – é a estrutura de todo o ser vivo”. Por isso, o diálogo não é sempre “uniforme, mas adaptado à índole do interlocutor e às circunstâncias reais” (ES
—————
45
Cf. GS 82-83.
Ut unum sint, 43
47
LM 4. 2, 1-4.
48
14.
49
Cf. Fernando Sebastián, em o Congresso sobre Jesuscristo. La Buena Nototia, EDICE, 2000, p.
46
57.
32
72). “É um meio ao serviço do anúncio do Evangelho. Devemos anunciar o
kerigma: “Ide e ensinai”. Os meios subordinam-se aos fins. A Igreja não é
evangelizada pelo mundo, mas por Cristo e seu Evangelho. É necessário que
a identidade seja transparente; transparente e inteligível, pois não partimos
do zero. Por isso se exige respeito à pessoa, fidelidade ao homem e à nossa
vocação, convencidos de que o Evangelho é que leva o homem à sua plenitude e à verdade salvífica. Devemos ter claro que a Igreja é sacramento de
unidade e sacramento universal de salvação (cf. GS 45; LG 48), é interpelação sobre a forma como encarnamos o amor de Deus pelo mundo. Não bastam gestos de acolhimento, quando o amor é afirmação e desenvolvimento
do outro em sua dignidade e liberdade. O amor busca reciprocidade e comunhão, unidade e fraternidade.
A evangelização passa pela promoção do homem. Obriga-nos a evitar
certas posições de cepticismo frente aos valores. É confessar que Deus veio
ao encontro do homem, que é seu companheiro e seu caminho (pobre,
humilde, paciente), e que nos livra das angústias, do temor e do terror. É
afirmar que a resignação, a tristeza ou a vaidade podem ser superadas pela
esperança na vida. Em definitivo, confissão e proposta, pois “o diálogo
eterno – o falar em monólogos – substitui o esforço por conhecer”.
Para evangelizar fazem falta os meios: preparação, estudos, formação…,
pois trata-se de estabelecer contacto com os homens, as culturas, as religiões.
Exige-se respeito ao Evangelho, à sua verdade e o reconhecimento das
sementes de verdade e de valores que elas encarnam. O diálogo é o caminho
real que devemos percorrer e a Igreja convida a seguir por este caminho para
passar da desconfiança ao respeito, da rejeição ao acolhimento. Não é fácil,
mas a busca paciente e confiante constitui para os cristãos um esforço que há
que realizar sempre. Com a graça do Senhor, que ilumina as mentes e os
corações, os cristãos devem permanecer abertos para acolher os que professam outras religiões. Além disso, devemos ter presente que, para dialogar, é
indispensável um testemunho claro da própria fé. Este esforço supõe também
a aceitação recíproca das diferenças, e, às vezes, das contradições, assim
como o respeito pelas decisões livres que as pessoas tomam, seguindo a sua
consciência 50 .
Estes esforços permitem-nos apresentar uma imagem da Igreja que seja
sinal de fraternidade que permite e consolida o diálogo, que promove a
estima, o respeito e a concórdia., segundo o famoso ditado: unidade no
necessário, liberdade no duvidoso, caridade em tudo, que se ajusta ao Evangelho e coopera no serviço à família humana em nome de Deus Pai, princípio
e fim de todas as coisas e que nos chama a ser irmãos.
—————
50
João Paulo II, Jornada Mundial da Paz 2001.
33
A teologia cristã descobre o fundamento da solidariedade na Encarnação
do Verbo, em Deus que fazendo-se homem, entrou na nossa história. Isto significa que o cristianismo deve apresentar-se como “uma cultura solidária e
receptiva aos valores de outras religiões”, tal como a patrística se desenvolveu na abertura e diálogo com a cultura pagã, no meio de dificuldades e oposições, servindo-se dela para propagar a mensagem cristã. O diálogo é uma
necessidade prática para o serviço à Igreja e à sociedade.
4. Exigência da vida fraterna. Escrevemos tudo isto para que a nossa
alegria seja completa (1Jo 1, 4). Esta alegria não está senão no partilhar com
os outros o Deus que é Amor. A vida fraterna deve ser lugar de comunhão e
diálogo. A fraternidade realiza-se essencialmente nas formas de encontro e
diálogo. Funda-se sobre uma base comum: somos irmãos porque Deus é o
nosso Pai comum, porque temos uma origem comum, são semelhantes no
nosso ser e na nossa vida. Também é comum a missão que somos chamados
a realizar no mundo e temos um fim comum, que nos faz regressar à origem,
Deus. Para que a convivência entre pessoas seja fecunda deve alicerçar-se na
comunhão mútua dos que foram chamados e se uniram para fundar uma
comunidade. O mandamento novo associa o amor a Deus, ao próximo e o
amor a si mesmo. Desta forma a caridade de Deus envolve a totalidade do ser
(pessoa e mundo). Isto deve ter expressão no diálogo que cada um realiza no
seu interior, aquela habitação secreta do Evangelho (Deus e o mundo). A isto
se opõe a separação e a inimizade.
O pensamento franciscano conduz ao respeito. S. Boaventura, recolhendo os elementos válidos da tradição, oferece-nos uma definição muito
actual de pessoa. A frase do Génesis 1, 26 “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança” foi interpretado já por S. Gregório de Nisa como imagem
da Trindade e foi recolhido por S. Boaventura para pôr em relevo a dimensão
relacional. A definição de pessoa dada por Boécio como uma substância
individual de natureza racional 51 , passou à filosofia medieval como um
axioma definitivo. Pois bem, o Doutor Seráfico acrescenta à definição de
Boécio a dimensão da relação como constitutivo da essência da pessoa: A
pessoa define-se pela substância e pela relação; se se define pela relação,
pessoa e relação são conceitos idênticos. A relação não é, pois, algo acidental, mas ôntico e estrutural, significando receptividade, referência de uma
pessoa a outra pessoa ou a uma coisa. O homem, enquanto ser relacional,
implica abertura e orientação a outras realidades (Deus, mundo e os outros),
que o situam e condicionam numa incessante simbiose. Assim “ partindo a
sua singularidade, incomunicabilidade, e suprema dignidade”, vive com as
—————
51
Boecio. De Consolatione, liber de persona et duabus naturis, cIII: personae est natura rationalis
individua sustantia.
34
coisas, com os outros e na abertura radical ao Criador. Isto faz do homem um
processo inacabado.
Podemos, pois, compreender o interesse pela comunicação e pelo diálogo que existe actualmente. A pessoa procura a relação e o encontro, a
escuta e partilha, sente necessidade de complementaridade. Só o egoísta se
fecha em si mesmo O diálogo, antes de ser meio de comunicação de algo, é
veículo do encontro, e o encontro dá fruto, como o filho é fruto do encontro
com os pais; a palavra é o meio pelo qual se criam ambientes de convivência
e encontro. Por isso, o diálogo, não é meio para um fim, mas meta em si
mesmo, não é conversa superficial, mas gerador de encontro. O homem,
chamado à vida por amor, tem capacidade de responder livremente à chamada, fundando assim uma relação de encontro. Nessa relação eu-tu com
Deus para o qual tende por essência é onde se alicerça a vida de comunhão
que o salva. “Só mediante a capacidade de relação pode o homem viver em
espírito”. Só o homem é porta-voz das realidades criadas. Tudo isto se torna
hoje mais sensível, pela necessidade que a pessoa sente de unidade frente a
um mundo fragmentado. Por isso, a vida do irmão deve ser unitária, isto é,
deve fazer a síntese entre a contemplação/evangelização, formação/missão,
testemunho/anúncio, deve ser um sinal de integração frente à diversidade
cultural e relacional, frente a blocos estanques.
Opõem-se ao encontro os monólogos alternativos, que pretendem
arrastar o outro para a minha posição, porque impedem a comunhão, sem a
qual não é possível a verdadeira comunicação, ou conversações institucionais
nas quais não se comunicam os espíritos. Diálogo supõe intercâmbio, atitude
de escuta, generosidade, partilha e aceitação, apelo e resposta, vocação e
missão. Um diálogo comunicativo fora da comunicação dos espíritos, é
banal 52 . Por isso é necessário a interioridade e que as relações fraternas
sejam de verdade de autêntico diálogo. Isso implica aprender a comunicar e a
comunicar-se: saber falar e saber escutar, cuidando dos momentos de silêncio, os gestos, o comportamento.
Mas a comunhão fraterna da Vida Consagrada, é muito mais que comunhão verbal, uma vez que está chamada a testemunhar o diálogo que Jesus
manteve com o Pai e com os homens. Por isso, a comunicação de fé é um dos
eixos da coesão comunitária que é comunicação de bens espirituais e materiais e o apoio mútuo. Aqui deve-se distinguir a profundidade da comunhão
(confidência) e a amplitude da mesma (consenso, desacordo, conversão,
resistência, evangelização, maneiras de expressão que usamos para que o
diálogo reforce as relações entre os membros convocados à vida fraterna em
—————
52
Cf. LÓPEZ QUINTAS, Alfonso: Diccionario Teológico de la Vida Consagrada, voz Diálogo,
Publicaciones Claretianas
35
comunidade) 53 . Enquanto se fala, em geral, de como potenciar a vida fraterna, os franciscanos têm o ponto de referência na própria Regra, que nos
fala do modo de se comportar entre si e com os outros 54 .
Tradução dos Cadernos de Franciscanismo
—————
53
Cf. La vida fraterna en comunidad. Congregavit nos in unum Christi amor CIVCSVA, Roma
1994. nn. 29-34.
54
1R 5-17; 2C 155.
36
A REALIZAÇÃO DA PESSOA NA VIDA
CONSAGRADA
NO 4º CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DA
IRMÃ MARIA DO LADO / MARIA DE BRITO
Fr. Henrique Pinto Rema, OFM *
—————
*
Conferência proferida no Mosteiro do Loutiçal em 23 de Julho de 2005.
37
BREVE BIOGRAFIA DA DE MARIA DE BRITO
/ IR. MARIA DO LADO
Todos quantos nos reunimos neste lugar e nesta hora estamos em festa,
pois amanhã perfaz 400 anos que nasceu, exactamente neste lugar, uma
criança a quem deram o nome de Maria de Brito e que desde a infância mostrou ser uma alma privilegiada do céu.
Como as grandes solenidades litúrgicas começam na vigília e como na
antiguidade, em alguns povos, incluindo Israel, começavam no dia seguinte
ao pôr do sol, eis mais duas razões para na véspera de 24 de Junho, à noite,
estarmos a iniciar a festa de aniversário daquela que ao fazer-se recolhida na
Ordem Terceira Franciscana tomou o nome de Irmã Maria do Lado.
Maria de Brito foi a filha primogénita de António do Rego, pertencente
à nobreza do Louriçal, que do Rei D. Manuel I obteve o foral de vila a 22 de
Agosto de 1514, e de Maria de Brito, da nobreza de Torres Vedras. Conheceram-se em Lisboa e lá casaram na igreja de Santa Apolónia da Paróquia de
Santa Engrácia de Lisboa. À nobreza de sangue juntavam os pais de Maria de
Brito a nobreza das virtudes cristãs, que pela palavra e exemplo inculcaram à
primeira filha.
A reverência para com o Sacramento da Eucaristia revelou-se a Maria
de Brito sobretudo a partir dos nove anos, quando recebeu a primeira comunhão. Não obstante a sua pouca idade, percebeu então que Jesus era tudo
para a humanidade e tinha de O amar, louvar, adorar e reparar.
Dá-se uma grande viragem na vida desta Serva de Deus quando lhe
morre a mãe. Contava apenas 16 anos e vê-se na contingência de fazer de
mãe dos seus irmãos mais novos, um deles o Francisco da Cruz, o mais
novo, que se tornará sacerdote jesuíta e sobreviveu à irmã mais velha. Tendo
posto em execução muito do que ela intuiu e não teve tempo de realizar na
vida presente.
A Ordem Terceira da Penitência, criada por São Francisco de Assis para
as pessoas do mundo viverem mais fielmente o Evangelho de Jesus Cristo,
chegara à vila do Louriçal por intermédio dos Frades do Convento de Santo
38
António da Figueira da Foz. Maria de Brito entusiasmou-se com o projecto
de vida evangélica, proposto pelos franciscanos. Como filha da nobreza, no
primeiro quarto do século XVII, não lhe foi fácil obter do pai a autorização
para se filiar na Ordem Terceira. O hábito que então usavam os terceiros
franciscanos não se coadunava com os trajes duma jovem nobre.
Maria de Brito não se fez logo franciscana de corpo inteiro pela profissão. No entanto, abraçou o ideal da pobreza evangélica que se lhe oferecia.
Percebeu rapidamente que a pobreza anda ligada à liberdade, à alegria, à felicidade; disponibiliza as pessoas para melhor servir o próximo, a começar
pelos mais carentes: os enfermos e os moribundos.
Como São Francisco de Assis e Santo António de Lisboa, nascidos em
famílias ricas e distintas, escolheram a pobreza para enriquecer o mundo,
também a Maria de Brito escolheu a pobreza evangélica para enriquecer a
sua jovialidade, simpatia, afabilidade e disponibilidade. Foi feliz e deu felicidade aos outros, realizando-se como pessoa e realizando quem se lhe juntou
na profissão do mesmo ideal.
Maria do Lado dedicava horas longas à oração, comungava muitas
vezes espiritualmente (e corporalmente quando lhe era possível). Fora do
tempo dedicado aos deveres religiosos e familiares, trabalhava de costura.
Em tudo mostrava ser uma pessoa predestinada, a quem faltava só a oportunidade para pôr em acto a missão para que Deus a preparava desde a tenra
infância.
Na hora escolhida por Deus, exactamente na noite de 15 para 16 de
Janeiro de 1630, quando ocorreu na igreja de Santa Engrácia de Lisboa um
horrível desacato, é que a sua MISSÃO na terra se lhe revelou. Gente perversa – talvez judeus inimigos de Cristo – arromba o sacrário, parte o cibório, rasga as toalhas do altar e leva as hóstias consagradas para as pregar em
madeiros e lançar em lugares imundos.
No Louriçal, Maria de Brito teve, de alguma forma, a VISÃO do que
acontecera em Lisboa, confirmada mais tarde pelo seu Director, P. Fr. Bernardino das Chagas. Nessa noite, em êxtase presenciara a Paixão e Morte de
Cristo, simbolizada pela maneira blasfema como esses energúmenos sem fé e
sem sentimentos humanos trataram o Santíssimo Corpo do Senhor presente
na Eucaristia. Concluiu então que a sua missão era assumir em si a dor da
lança que abriu o Sagrado Lado de Jesus.
Maria de Brito refugiara-se na Chaga do Lado até à morte. Por esse
motivo, o seu Director Espiritual muda-lhe o nome de baptismo para Maria
do Lado, o novo nome com que se imortalizará. A devoção do Desagravo
toma a sua origem no propósito de Maria do Lado passar o resto dos seus
dias a adorar o Senhor na Eucaristia.
39
Outras visões complementares se lhe seguiram. Numa dela vira a sua
casa transformada em mosteiro de 33 freiras de véu azul e de custódia no
escapulário. Tirando nove para o serviço da casa, restavam 24, que alternadamente, duas a duas, fariam as 24 horas do dia de adoração ao Santíssimo.
Cada uma das 24 tinha apenas uma hora de adoração por dia, de joelhos.
Maria do Lado nunca tinha visto freiras e, por não saber ler nem escrever, teve de ser industriada pelo seu Director Espiritual acerca do significado
da visão.
Em face da explicação dada pelo P. Fr. Bernardino das Chagas, Maria
do Lado decide formar Comunidade com mais cinco amigas e parentes.
Como eram apenas meia dúzia, a Adoração ao Santíssima far-se-ia durante as
12 horas do dia (prescindindo das 12 horas da noite), tocando a cada uma
duas horas. Tornavam-se, desta forma, Servas ou Escravas do Santíssimo.
Em meados de Dezembro de 1630, dentro da oitava da solenidade da
Imaculada Conceição, ou seja, uns 11 meses depois do desacato ao Santíssimo na igreja de Santa Engrácia de Lisboa, Maria do Lado, ao fixar a atenção na Chaga do Lado do grande Crucifixo existente na igreja da Misericórdia do Louriçal, colhe a sensação de que partilha todas as dores de Jesus
Cristo na Cruz. Desde esta data até meados de Março do ano seguinte, padeceu autêntico calvário, em sucessivos êxtases, visões, raptos. Sempre de
cama, em constante agonia, viu-se impossibilitada de se deslocar à igreja
para comungar, o que lhe aumentava o martírio.
Finalmente, julgando todos que Maria do Lado estava no fim, trouxeram-lhe o Senhor sob forma de Viático, ministraram-lhe a Santa Unção dos
enfermos e o P. Fr. Bernardino das Chagas deu-lhe um hábito franciscano
para a amortalhar.
Neste rapto ou “excesso”, como se exprime o cronista Fr. Fernando da
Soledade, citando o relato do seu confrade Fr. Bernardino, Maria do Lado
experimentava as lancinantes dores do Lado de Cristo. Quando saiu desse
“excesso”, predisse sucessos futuros.
O rapto de 15 de Março de 1631, um sábado, demorou cinco a seis
horas. Desta vez, na versão de Fr. Bernardino, testemunha ocular, o rosto de
Maria do Lado era beleza e resplendor. O êxtase assemelhava-se a agonia.
No dia 16 de Março, por ordem do Director espiritual, Maria do Lado
comeu caldo. As reacções imediatas foram violentas e preocupantes. Mas
bem depressa se mostrou curada, ao ponto de querer deslocar-se à igreja para
agradecer o milagre. Fr. Bernardino não deixou, e só lhe deu licença no dia
seguinte, 17 de Março, acompanhando-a pessoalmente. Como tivesse entrado
na normalidade, Maria do Lado foi continuar o trabalho na almofada, inter-
40
rompido desde Dezembro último, quando adoecera. Agora retomara a bela
presença e tinha excelentes cores.
Na 4ª feira, dia 19 de Março de 1631, dia de São José, foi à igreja com
as cinco amigas e familiares, e as seis comungaram em missa de acção de
graças. O pai e os parentes trocaram então os lutos em galas.
A serva de Deus, na igreja, veste o hábito franciscano de burel, em tempos “acutilado pelos hebreus”, bem como as cinco companheiras. Puseram na
cabeça véu azul e no peito a insígnia do Santíssimo Sacramento. Todas vestidas com o hábito de Terceiras Franciscanas, fizeram a profissão da Regra
nas mãos do P. Fr. Bernardino das Chagas, dando assim começo ao Recolhimento, que funcionou na casa de Maria do Lado. Esta casa sofreria obras
de ampliação, inauguradas a 28 de Abril de 1640, exactamente oito anos
depois da sua gloriosa morte.
A 1ª Madre da Comunidade de Recolhidas Franciscanas Escravas do
Santíssimo Sacramento foi a Ir. Maria do Lado, sendo depois substituída pela
tia Ana Cordeira. As outras quatro chamavam-se Maria Soares, Filipa das
Chagas, Apolónia da Natividade e Maria Baptista.
Obtidas licenças do Bispo de Coimbra, do pároco do Louriçal e do confessor, as citadas seis “Recolhidas” iniciaram o LAUSPERENE no dia de
Ramos de 1631, 13 de Abril. Desde então para cá, dia e noite, as Irmãs louvam, veneram e exaltam Jesus Eucaristia.
Repartiram entre si as 24 horas do dia: enquanto havia claridade adoravam o Senhor na igreja; durante a noite, faziam-no, de alguma forma, em
casa.
Com a instituição do Lausperene, a Madre Maria do Lado pôde pôr em
prático o sonho da sua vida, concretizado na três palavras: Louvar, Venerar,
Exaltar.
A Madre Maria do Lado morreu com suavidade e paz a 28 de Abril de
1632 e sepultaram o seu corpo na capela de Nossa Senhora da Graça da
igreja paroquial, donde o trasladaram, vinte anos depois, para debaixo do
altar-mor da igreja do Recolhimento. Finalmente veio a repousar na capela-mor da igreja do convento.
Santidade da Maria do Lado
Consumatus in brevi, explevit tempora multa, lemos no livro da Sabedoria (4, 13). O justo, por pouco tempo que viva na terra, enche os tempos com
o cheiro das suas virtudes. Maria do Lado confirma a sentença da Escritura.
O Bispo de Coimbra, a 8 de Abril de 1634, publica uma pastoral sobre o
fenómeno criado à volta de Maria do Lado, exaltando-lhe a caridade para
com os pobres e as almas do purgatório, as penitências e aspereza de vida,
41
mas prevenindo os devotos da serva de Deus acerca das determinações pontifícias relativamente ao culto só devido aos santos reconhecidos oficialmente
pela Igreja.
Falecida aos 27 anos de idade incompletos, passados agora quatro
séculos após o seu nascimento nesta terra do Louriçal, estamos ainda aqui a
recordar o perfume da sua existência.
Mulher da oração, Maria do Lado entrou na verdadeira escola dos Santos. Da santidade depende a eficácia da missão, a operosidade apostólica.
Lembremos Santa Teresa do Menino Jesus, uma carmelita de clausura e
padroeira das Missões. A santidade dá credibilidade e eficácia à palavra. Nós
somos mais sensíveis aos factos do que às palavras. Verba movent: exempla
trahunt. As palavras movem, mas os exemplos arrastam. Como diria o Papa
Paulo VI, nós precisamos mais de testemunhas do que de Mestres, e estes
apenas serão escutados quando também são testemunhas (Evangelii nuntiandi, n. 41).
Maria do Lado foi essa testemunha de Jesus Cristo, luz e farol para a
humanidade. Ela foi porta-voz de Deus. Por ela Deus nos fala, nos interroga,
nos interpela. Desta forma, Maria do Lado realiza-se pessoalmente como
mulher, como cristã e como religiosa.
Quem segue a radicalidade evangélica, à maneira de São Francisco de
Assis e de Santa Clara, por exemplo, e como o tentou fazer Maria do Lado,
essa pessoa é feliz e livre já neste mundo, preparando a felicidade e liberdade
sem mistura no Além. O escritor inglês Chesterton, por 1936, escreveu que
se o sol, nas suas múltiplas revoluções, poisou os seus raios num homem
encantado com tudo e com todos, esse homem chama-se Francisco de Assis.
Na verdade, ele passou a vida a cantar e morreu a cantar. Era um optimista,
porque tentou, de todos os modos, identificar-se com Jesus Cristo, o paradigma da humanidade.
A santidade, porém, não é privilégio de poucos, mas um dever que a
todos empenha. Santo Agostinho, nas Confissões, começa por “confessar”:
“Fizeste-nos para Vós, Senhor, e o nosso coração não encontra a paz,
enquanto não repousa em Vós”. A aspiração ao bem absoluto satisfaz-se
mediante a fé em Jesus Cristo, o único que é capaz de manifestar o homem
ao próprio homem, como lemos na Constituição Gaudium et spes do Concílio Vaticano II (n. 22).
Neste ano de 2005, dedicado especialmente à Eucaristia, ainda por iniciativa do grande Servo de Deus o Papa João Paulo II, vem a propósito frisar
o facto de a Ir. Maria do Lado e o seu primeiro grupo de Recolhidas ter dado
início à Adoração Perpétua do Santíssimo Sacramento em 1631.
42
A EUCARISTIA – afirma-o a Consituição Lumen gentium, do Concílio
Vaticano II – É O CENTRO E A FONTE DE TODA A VIDA CRISTÂ. Na
despedida deste mundo, Jesus Cristo garante aos Apóstolos: “Eu estarei
sempre convosco”, não da mesma forma como os catequizou ao longo de três
anos, mas oculto sob as formas sacramentais do pão e do vinho, transubstanciados no santo sacrifício da missa, chamada “fracção do pão” na Igreja primitiva (Actos 2, 42). Esse é o grande mistério da nossa Fé. Jesus Cristo faz-Se alimento, mediante o ministério do sacerdote, colocando “a sua boca e a
sua voz à disposição d’Aquele que as pronunciou no Cenáculo e quis que se
repetissem de geração em geração (Enc. Ecclesia de Eucharistia, n. 5, de 17
de Abril de 2003).
Todas as grandes almas cristãs tiram a sua força de JESUS
EUCARÍSTICO. A Serva de Deus Maria do Lado mostrou ser um modelo,
na sequência das exposições doutrinais dos decretos sobre a Missa, promulgados pelo Concílio de Trento (meados do séc. XVI). As discípulas de Maria
do Lado, do século XVII ao século XXI, fiéis a Jesus Cristo e à Sua Igreja,
continuaram a alimentar a fé eucarística nos grandes documentos da Sé
Apostólica, com especial relevância para as encíclicas Mirae caritatis de
Leão XIII (28 de Maio de 1902), Mediator Dei de Pio XII (10 de Novembro
de 1947), Mysterium fidei de Paulo VI (3 de Setembro de 1965 e Ecclesia de
Eucharistia de João Paulo II (17 de Abril de Abril de 2003). Todas as almas
santas são testemunhas de vida eucarística. Não pode haver santidade que
não esteja encarnada na vida eucarística.
Na história da ORDEM FRANCISCANA abundam os santos que centraram a sua vida na EUCARISTIA. O Pai São Francisco, um dia, justificou
a escolha da França para destino de viagem, “porque a gente é ali católica e
sobretudo porque tem uma grande devoção ao Santíssimo Corpo de Cristo”
(Espelho de Perfeição, n. 65, e 2 Celano, 201). Procurava ouvir missa todos
os dias e comungava com frequência.
Por sua vez, Santa Clara notabilizou-se por afastar, em 1240, os assaltantes do mosteiro de São Damião, colocando-se em frente deles, “precedida
do cibório de prata contendo o Corpo do Santo dos Santos”, ou seja, a
Sagrada Eucaristia (Legenda de Santa Clara, nn. 21-22).
A São Pascoal Bailão (1540-1592), humilde irmão leigo espanhol, o
Papa Leão XIII declara Padroeiro dos Congressos Eucarísticos, tal era a sua
devoção à Eucaristia.
Em suma, a serva de Deus Maria do Ladoestava bem acompanhada,
como fervorosa do culto eucarístico, que implantou no Recolhimento montado em sua casa paterna e se veio a transformar, com o tempo, em convento
ou mosteiro.
43
Nos anos de 1726 e 1727 procedeu-se ao RECONHECIMENTO DAS
VIRTUDES DA MADRE MARIA DO LADO, em ordem à beatificação. O
ponto de partida foi a cura do Príncipe herdeiro D. João (o futuro rei D.
João V) por intercessão da Ir. Maria do Lado. O milagre levou o Príncipe a
fazer voto, a 18 de Janeiro de 1702, de terminar as obras do convento. Nesse
sentido tinha sido solicitado pelo P. Francisco da Cruz, irmão da serva de
Deus e confessor do Príncipe e dos Infantes. No Arquivo das Congregações
do Instituto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo restam quilos de
documentos sobre este processo da Irmã Maria do Lado e, ao que me informaram, também na Biblioteca Nacional de Lisboa, Arquivo da Univerfsidade
de Coimbra e até neste Mosteiro do Louriçal subsistem alguns documentos
sobre o mesmo processo.
Presença da Ir. Maria do Lado após a morte corporal
À morte do pai de Maria do Lado, o filho jesuíta P. Francisco da Cruz e
suas irmãs construíram mais espaçoso RECOLHIMENTO para as Terceiras
Franciscanas mantelatas do Louriçal.
Depois de terem um Recolhimento mais amplo, aspiraram a possuir uma
IGREJA própria. Também ela se arranjou. A 28 de Abril de 1640, data da
inauguração do novo Recolhimento, o Bispo de Coimbra lança a pedra fundamental da igreja, que pôde benzer em 1652. Vinte e um anos depois, a 19
de Maio de 1673, o Sumo Pontífice autorizava as Recolhidas a terem o Santíssimo Sacramento exposto na sua igreja. Até então, a adoração ao Santíssimo era feita no Sacrário. Só agora passa a ser em EXPOSIÇÃO SOLENE.
Como sucedeu outras vezes em Portugal, uma simples
FRATERNIDADE de terceiras franciscanas seculares evoluiu para
RECOLHIMENTO, de Recolhimento para CONVENTO OU MOSTEIRO
de Terceiras Regulares e deste para Convento ou Mosteiro da II ORDEM ou
Clarissas.
Note-se que as Clarissas utilizam tanto a palavra Convento como Mosteiro para designar as suas moradas. Relativamente ao Louriçal, primitivamente fala-se em convento e modernamente em mosteiro. Na prática actual,
o convento será moradia de frades; o mosteiro moradia de freiras.
O CONVENTO do Louriçal, da iniciativa do irmão sacerdote jesuíta da
Madre Maria do Lado, começa a concretizar-se quando o Bispo de Coimbra
autoriza, a 6 de Janeiro de 1688, a sua fundação. Por seu lado, o nosso rei D.
Pedro II, por alvará de 16 de Agosto de 1688, dá licença a D. Fernando de
Meneses para transformar o Recolhimento em Convento de Capuchas (Freiras da I Regra de Santa Clara). Em face destas licenças, foi lançada a 1ª
pedra a 9 de Março de 1690. Chegariam depois a Patente do Ministro Geral
44
de 29 de Abril de 1692 e o Breve de Inocêncio IX de 24 de Maio de 1692.
Por este se dão poderes ao Núncio Apostólico em Lisboa para nomear as
Fundadoras.
A casa dos pais da Madre Maria do Lado, incluindo o quarto onde nascera a bem-aventurada, ficara integrada no convento.
O P. Francisco da Cruz morrera a 29 de Janeiro de 1706, antes de terminado o Convento.
Assim, o RECOLHIMENMTO, em 1709, após 78 anos de existência
(de 1631 a 1709), sobe à categoria de CONVENTO ou Mosteiro, e as suas
Recolhidas Terceiras Franciscanas transformam-se em Religiosas clarissas
da 1ª Regra das Damas ou Senhoras Pobres de São Damião (ou II Ordem
Franciscana). Para responder a uma das visões da Ir. Maria do Lado, o Convento do Louriçal foi construído para receber 33 Religiosas de coro e mais
algumas conversas.
Terminadas as obras, o Núncio Apostólico Miguel Ângelo Conti (1692-1709) nomeou como FUNDADORAS quatro Capuchas do Real Convento
de Santa Helena do Calvário de Évora, indicando o Rei como primeira Abadessa a Madre Arcângela dos Serafins Evangelista. Partiram de Évora a 20
de Janeiro de 1709; na passagem por Lisboa hospedaram-se no mosteiro da
Esperança (perto da actual Assembleia da República); a 8 de Maio chegaram
ao Louriçal. Recebidas com muita honra pelas autoridades civis e religiosas e
pelo bom povo da terra, iniciaram a Comunidade de Franciscanas Capuchas,
às quais se juntaram no dia seguinte seis Recolhidas, que a Madre Arcângela,
na presença do Bispo de Coimbra, admitiu ao Noviciado. Regiam-se pela 1ª
Regra de Santa Clara e por Estatutos redigidos pelo Bispo de Coimbra.
Todas ali eram praticamente iguais nos trabalhos do serviço interno. Para o
serviço externo do mosteiro é que existiam senhoras ou criadas.
Para o dito serviço externo havia a hospedaria, a casa dos padres confessores, um colégio, a casa do capelão, a casa do hortelão, um palheiro e as
cavalariças.
A 8 de Dezembro de 1720 o Mosteiro do Louriçal contava 36 Religiosas.
Construído e inaugurado o convento, as Religiosos continuaram a servir-se da igreja do Recolhimento, até que D. João V tratou de lhes erguer
IGREJA própria. A 19 de Outubro de 1734 celebrou-se um protocolo com a
Câmara do Louriçal e a igreja pôde ser inaugurada a 27 de Outubro de 1739.
Em 1810/1911, com a 3ª INVASÃO FRANCESA, a Comunidade teve
de abandonar o convento. João Carlos Mendes de Barbosa, em manuscrito de
39 pp., conservado pelas pupilas do antigo mosteiro do Santíssimo Sacramento de Lisboa, legou-nos uma Breve e fiel narração dos sucessos e tra45
balhos que padeceram as Religiosas do Louriçal na ocasião da saída do seu
convento, causada pela bárbara irrupção, fereza e tirania dos franceses,
inimigos comuns da religião e humanidade, ordenada por quem acompanhou sempre as mesmas Religiosas, e oferecido à R. Madre Abadessa e à sua
muito respeitável Comunidade. Felizmente, puderam regressar ilesas de
todos os perigos.
Com os bens doados e o trabalho da Comunidade puderam viver com
certo desafogo durante mais de um século, até que em 1834 os LIBERAIS o
privam de doações e legados. Sem se puderem renovar, por as impedirem de
emitir os votos da religião, continuaram a admitir candidatas, que viviam
como autênticas Religiosas, mas sem votos perpétuos. Chamavam-lhes
“PUPILAS”.
A ÚLTIMA RELIGIOSA PROFESSA morreu a 11 de Março de 1878.
Na época, residiam no Convento do Louriçal 21 pupilas. O Bispo, a 23 de
Março imediato, solicitou ao rei licença para não encerrar o convento, como
era legal, o que foi concedido.
Puderam, assim, sobreviver estas meias Religiosas, com o nome de
“pupilas” até Outubro de 1910, quando a REVOLUÇÃO REPUBLICANA
as expulsou e ocupou o convento. Na hora da chegada dos encarregados da
expulsão, estavam a tomar uma refeição, que não puderam terminar. Obrigaram-nas a deixar o convento sem hábito. Porque não possuíam roupas seculares, valeu-lhes D. Luísa Rosa da Silva, que lhes emprestou roupas para se
apresentarem decentemente na rua. Uma Religiosa, porém, recusou-se a sair
e no convento permaneceu até à morte.
A 27 de Julho de 1915, o convento foi incorporado nos Bens Próprios
da Fazenda e transformado em POSTO DA GUARDA NACIONAL REPUBLICANA, que nele esteve até 1925. Com a “Revolução Nacional” de Maio
de 1926, a Igreja pôde começar a respirar. Em 1927, o convento do Louriçal
foi a leilão e comprado com dinheiro da Madre Nazaré e mais quatro Irmãs e
a ele REGRESSARAM A 14 DE JANEIRO DE 1928 as sobreviventes do
cataclismo de Outubro de 1910. Na primeira oportunidade restauraram a
clausura, a pobreza, o Lausperene e a vida litúrgica.
Em 1932, ao celebrarem o terceiro centenário da morte da Fundadora,
Madre Maria do Lado, tomou hábito a Ir. Maria de Santa Teresinha do
Menino Jesus, conhecida por Madre Teresa, que em 1940 é eleita Madre
Abadessa, depois de emitir votos nas mãos do Bispo de Coimbra. Obras de
profunda restauração iniciaram-se em 1940, graças à coragem da Madre
Teresa.
46
Veio depois o RECONHECIMENTO CANÓNICO da Comunidade pela
Santa Sé, o que aconteceu em 1956 pelo Núncio Apostólico através do Padre
Manuel Taveira da Silva.
A 21 DE MARÇO DE 1958, 19 Irmãs emitiram votos solenes em cerimónia presidida pelo Bispo de Coimbra, ficando assim restabelecida a
Ordem das Clarissas no Louriçal.
No dia seguinte, D. Ernesto Sena de Oliveira fez a Exposição do Santíssimo Sacramento e até hoje, dia e noite, continua exposto e adorado pelas
Religiosas do Desagravo.
Entretanto, jovens candidatas à vida religiosa aparecem, e, em 1968, a
Madre Ana Maria do Bom Pastor transformou a enfermaria em casa de trabalho, onde foram montados grandes teares e mandou construir dois aviários
para 10 mil aves. Desta forma saldou dívidas e reparou edifícios.
O eco da vida santa desta Comunidade atraiu sempre muitas
DONZELAS PARA O CLAUSTRO. No século XVIII eram por demais.
Tinham de fazer rigorosa selecção em votação do Capítulo conventual, aos
cinco e aos dez meses de Noviciado.
A Comunidade do Louriçal, no passado, em 1780, deu origem ao Mosteiro do Sacramento de Montemor-o-Novo; em 1782, ao convento do Desagravo ou “Conventinho”, no Campo de Santa Clara, junto à igreja de Santa
Engrácia, onde se dera o desacato atrás referido; em 1870, ao mosteiro de
Vila Pouca da Beira. Depois da restauração, em 1965, o Mosteiro do Louriçal intervém na fundação do Mosteiro de Monte Real; em 1967, no das Clarissas de Fátima; em 1980, no de Montalvo (diocese de Portalegre e Castelo
Branco).
Nesta hora, 23 de Junho de 2005, a Comunidade das Clarissas do Desagravo do Louriçal contam 17 Irmãs. Têm o Santíssimo Sacramento exposto
dia e noite, observam a 1ª Regra de Santa Clara, as Constituições da Ordem
das Clarissas e o Estatuto da Federação de Clarissas Portuguesas (de 21 de
Novembro de 2003). Celebram a Liturgia integral da Igreja e dedicam várias
horas à oração pessoal.
Para fazer face às despesas comunitárias, trabalham em bordados e
doces, que vendem para fora.
CONCLUSÃO
A Irmã Maria do Lado, nascida há 400 anos neste espaço da vila do
Louriçal, neste Ano da Eucaristia, continua a interpelar-nos, na medida em
que foi a mulher forte da Escritura Sagrada e se colocou totalmente no Lado
de Jesus Cristo, procurando identificar-se com Ele quanto é possível às
47
débeis forças humanas, vivendo com a máxima intensidade o Mistério do
Corpo e do Sangue do Senhor, no meio de nós até a consumação dos séculos.
BIBLIOGRAFIA
Ir. Fernanda Ferreira, O. S. C., Convento do Louriçal – Da Profecia à Actualidade, Edição de Autor, 2001.
P. Manuel Monteiro, da Congregação do Oratório, História da Fundação do Real Convento do Louriçal de Religiosas Capuchas, Escravas do Santíssimo Sacramento e
vida da Venerável Maria do Lado, sua primeira instituidora e de algumas Religiosas…, Lisboa MDCCL.
Fr. Bernardino das Chagas, Maria do Lado / Relação e Testemunho do padre espiritual
da serva de Deus Maria de Brito… Ms de 94 ff, incompleto, na BNL. nº 90 FG e
publicado em nova redacção com o título: Compêndio da Admirável Vida da Venerável Madre Maria do Lado… pela Abadessa e Religiosas do convento do Santíssimo Sacramento do Louriçal, Lisboa, M.DCC.LXII.
Jorge Cardoso, Agiológio Lusitano, tomo II, Lisboa, 1657, p. 757g.
A Ordem de Santa Clara em Portugal, ed. do Mosteiro de São José, de Clarissas Adoradoras, Vila das Aves, Braga, 1976.
João Carlos Mendes de Barbosa, Breve, fiel narração dos sucessos e trabalhos que
padeceram as Religiosas do Louriçal na ocasião da saída do seu convento, causada pela bárbara irrupção, fereza e tirania dos franceses, inimigos comuns da
religião e humanidade, ordenada por quem acompanhou sempre as mesmas Religiosas e oferecido à R. Madre Abadessa e à sua muito respeitável Comunidade,
manuscrito de 39 pp. conservado pelas pupilas do antigo mosteiro do Santíssimo
Sacramento de Lisboa.
Fr. Fernando da Soledade, História Seráfica…, V parte, Lisboa, M.DCC.XXI, pp. 568-589 ou nn. 832-863, com a “Prodigiosa vida e morte da grande serva de Deus
Maria do Lado, primeira fundadora do mosteiro do Louriçal”, citando o Agiológio
Lusitano e sobretudo o P. Fr. Bernardino das Chagas, “cuja relação escrita e assinada por ele temos em nosso poder” (p. 589 e n. 863).
Cardeal José Maria Saraiva, O mistério da santidade na experiência cristã, conferência
pronunciada no Porto a 1 de Março de 2004 (na Internet: www.vatican.va).
48
II — Documentos
INSTRUMENTOS DE PAZ
Carta da Conferência da Família Franciscana, Pentecostes 2005 *
1. “O Senhor te dê a paz”. Com esta saudação, deixada por São Francisco, dirigimo-nos a todas as irmãs e irmãos da grande Família franciscana e a todos os homens e mulheres que Deus ama (cf. Lc 2,14).
O nosso pai são Francisco, no seu Testamento, nos confirmou que foi o próprio Altíssimo a revelar-lhe esta saudação particular: “O Senhor revelou-me que disséssemos esta
saudação: “O Senhor te dê a paz” (T 23). Unidos e obedientes a ele, também nós hoje a
apresentamos a todos vós enquanto vivemos num mundo lacerado por tantas guerras,
pelo terrorismo, pela injustiça social, pela fome e por catástrofes naturais de dimensões
quase apocalípticas.
Apresentamos esta saudação sobretudo aos homens e às mulheres que vivem freqüentemente também situações de laceração na própria pessoa, na família, nas fraternidade ou comunidades e no ambiente de trabalho. Reconhecemos, de fato, no mundo e
nos homens e mulheres de hoje a urgente exigência da paz no sentido mais amplo do
termo, no seu significado mais antigo de “Shalom” (cf Is 9,5s; 48,18.19; 54,13; Mi 5,1-4;
Lev 26,6; Pr 12,20): paz entre os povos e Países, paz entre as diversas culturas e religiões; uma paz que garanta uma habitação digna e segura, o necessário para comer e se
vestir, o respeito à dignidade da pessoa, a harmonia com toda a criação, a felicidade no
coração e com Deus mesmo, doador de toda vida.
—————
*
Tradução da Cúria Geral da Ordem dos Frades Menores.
49
Nossa missão: anunciar a paz
2. Fiéis à revelação divina, em qualquer parte onde andassem e a cada vez que falavam às pessoas com algum sermão (cf EP 26; LP 67; 1C 23; TC 26), Francisco e a primitiva família franciscana anunciavam esta nova, e até então desconhecida saudação de
paz num mundo dividido por grandes e pequenas guerras, juntando a esta a mesma saudação de Jesus ressuscitado: “Paz a Vos” (cf Lc 24,36; Gv 20,19.21.26). Este augúrio de
paz seguidamente se transformava em uma verdadeira e própria iniciativa em favor de
uma paz concreta, como nos testemunham os extraordinários eventos da reconciliação
entre a Potestade e o Bispo de Assis (cf LP 84), da pacificação da cidade Arezzo e outras
cidades (cf 2C 108; Fior 11), da visita de Francisco ao Sultão (cf 1C 57) e do episódio
do lobo de Gubio (cf Fl 21). A saudação de paz e as iniciativas em favor da paz eram
parte integrante da auto-compreensão, do estilo de vida e da missão dos primeiros Frades
e isto os levava a ser reconhecidos como um verdadeiro movimento de paz, tanto que o
próprio Tomás de Celano nos apresenta a fraternidade primitiva como uma “Pacis legationem”, uma verdadeira embaixada de paz (cf 1C 24).
3. Esta missão em favor da paz anunciada pela sua particular saudação, encontra o
próprio fundamento em alguns elementos constitutivos da vida e da espiritualidade de
Francisco, dos seus irmãos e das suas irmãs. A missão de paz nasce de um coração pacificado, fruto de uma experiência de perdão, de misericórdia e de gratuidade. Sobre ela
Francisco fundamenta também o caráter fraterno do seu movimento (cf LM) e a esta responde com a escolha de uma vida de penitência que, no seguimento de Jesus Cristo, é
completamente voltada aos valores escatológicos do Reino de Deus: a justiça e a paz.
Estes valores são acolhidos cada vez como um dom de Deus que faz re-encontrar a paz
do coração (cf 1C 26). Um dom, aquele da paz, que em Jesus Cristo se realizou em uma
história da salvação e se encarnou na realidade de um mundo necessitado de redenção
(cf 1R 23,1-4). É por isto que, contemplando as maravilhas que Deus realiza na criação e
opera através de seu Filho, Francisco descobre o nexo entre paz, salvação e redenção do
homem, sentindo-se intimamente unido à criação e à suma bondade de Deus. Sobre esta
descoberta se baseia a nossa saudação franciscana de hoje: Pax et Bonum.
Escrevendo a sua Regra, Francisco dava origem a um estilo de vida que, através de
atitudes concretas e quotidianas, era capaz de promover a paz. A pobreza e a simplicidade que nascem da ilimitada confiança em Deus, levam aqueles que acolhem este estilo
de vida a não quererem se apropriar de nada, nem de lugares, nem de casas e nem
mesmo da própria vontade (cf 1R 7,13; Ex 2). Com as mãos livres para abraçar e servir
os leprosos (cf T 1-3), para Francisco e seus frades não era necessário procurar algum
instrumento de defesa ou arma para defender dos outros quanto possuíam (cf.TC35).
Livre de qualquer pretensão e de qualquer reivindicação, a primeira geração franciscana
não via mais no outro um concorrente, um inimigo, mas reconhecia em cada pessoa um
irmão e uma irmã em Jesus Cristo.
Com o trabalho (cf 1R 7,1-9), com a vontade de inserir-se entre os pobres e os excluídos (cf 1R 9,2), com a recusa do dinheiro (1R 8,1-12), nova e brutal forma de capitalismo de então, Francisco e os seus davam um testemunho profético da possibilidade de
um modo diverso para viver juntos e de uma sociedade civil e eclesial iluminada pelo
Evangelho de Jesus.
Esta nova vida evangélica levava consigo também uma nova maneira de exprimir-se.
O vocabulário de Francisco toma distância das expressões belicosas das heróicas empre50
sas de conquista de seu tempo, para introduzir e re-propor, à partir da Bíblia, conceitos
como aquele da não apropriação (cf 1R7,13), do não julgar (cf, 1R 11,1.10), do modo de
comportar-se espiritualmente (R 16,5 ss.) e outros, que promoviam a paz também através
da linguagem. Desta maneira, este próprio estilo de vida torna-se uma verdadeira e própria
via de reconciliação com Deus, com o próximo, consigo mesmo e com toda a criação.
Um itinerário para a paz
4. Uma leitura atenta de nossas fontes não só nos apresenta o primitivo movimento dos
“minori” como uma verdadeira e própria embaixada de paz e de reconciliação, mas nos
permite de individuar alguns comportamentos essenciais também hoje para atuar um processo de paz e de reconciliação numa situação esclerosada na discórdia e nas lutas (cf l21):
• manter Deus no centro da ação;
• proceder sempre em comunhão com firmeza e sabedoria;
• identificar as verdadeiras causas da violência e chamá-las com o seu verdadeiro
nome;
• promover a conversão e a reconciliação de todas as partes;
• procurar melhorar e restaurar as relações mais do que resolver as disputas;
• restabelecer a justiça como base da verdadeira paz;
• reconhecer que todas as relações sociais são assimétricas e que cada situação de
conflito implica um desequilíbrio e um mau uso do poder;
• manter-se desarmados (cf Memoriale Propositi, 16);
• rejeitar a demonização de uma das partes e reconhecer em todos irmãos e irmãs;
• afrontar os conflitos ativamente, expondo-se em primeira pessoa e deixando-se
co-envolver.
Estes comportamentos nos apresentam um verdadeiro e próprio caminho para promover a paz e exigem um agir sem prepotência e força. Um semelhante comportamento é
porém possível somente a partir de uma confiança incondicional em Deus. Somente
mantendo o seu Espírito e a sua Senhoria ao centro da própria ação a tentativa de uma
reconciliação e de uma pacificação pode ter alguma esperança. Aceitar um tal serviço em
favor da paz não é sem perigos ou sem dificuldades. Por isto o franciscano e a franciscana não caminham sozinhos mas em comunhão vital e recíproca com a fraternidade
universal e a Igreja, uma comunhão que apóia e encoraja. Procedendo unidos, os irmãos
e as irmãs podem e devem reconhecer, com coragem profética, as verdadeiras causas de
cada forma de violência e chamá-las com o próprio nome. Não se pode esconder ou minimizar a violência. Somente sabendo reconhecer e aceitando de curar o mal, pode-se
iniciar um caminho que leve à conversão e à reconciliação de todas as partes envolvidas
e, no fim, se deverá procurar restabelecer a justiça como base para a construção da verdadeira paz, porque somente assim as mediações usadas para atingir a reconciliação poderão ter um fruto duradouro.
51
Purificar a memória
5. A memória dos inícios da Família franciscana como movimento de penitência e
como embaixada de paz, nos leva inevitavelmente a reconhecer com humildade que a
nossa história não correspondeu sempre a esta vocação e que não sempre os franciscanos
e as franciscanas testemunharam com a própria vida a saudação de paz revelada a Francisco. Seguidamente se mostraram ambíguos ou parciais diante de situações injustas e
violentas. Não podemos esconder que diversas vezes eles mesmos foram a causa ou até
os promotores da injustiça e da violência. A lembrança desta sombra na nossa história é
necessária para uma verdadeira e própria purificação da memória em vista de um autêntico caminho evangélico.
Com o nosso saudoso papa João Paulo II afirmamos que uma tal memória dos fatos
“é muito útil para uma correta compreensão e atualização do autêntico pedido de perdão,
fundado sobre a responsabilidade objetiva que reúne os cristãos enquanto membros do
Corpo místico, e que estimula os fiéis de hoje a reconhecer, junto com as próprias, as
culpas dos cristãos de ontem, à luz de um acurado discernimento histórico e teológico.
De fato, por aquele liame que, no Corpo místico, nos une uns aos outros, todos nós,
mesmo não tendo responsabilidade pessoal e sem nos substituir-nos ao juízo de Deus, o
único que conhece os corações, levamos o peso dos erros e das culpas de quem nos precedeu. Reconhecer os desvios do passado serve a despertar as nossas consciências diante
dos compromissos do presente, abrindo a cada um a estrada da conversão” (Homilia, dia
do Perdão, 12 março 2000). Somente através de uma verdadeira conversão e pela fé no
Evangelho (Mc 1,15) podemos re-encontrar a paz do coração e ser verdadeiros mensageiros de paz para este nosso mundo.
A conversão do coração é condição para não deixar-se vencer pelo mal, mas vencê-lo
com o Bem (cf João Paulo II, Mensagem para o dia da Paz, 1 de janeiro 2005). Dado que
a paz é um bem a promover com o bem (cf o.c. 1), os franciscanos e as franciscanas renunciam a toda forma de violência para sair do círculo vicioso do mal pelo mal (o.c. 1).
O difícil caminho da paz
6. Após o “século escuro” das guerras ferozes, das ditaduras brutais, da grave e injusta disparidade social entre o norte e o sul do mundo e da guerra fria, o início do novo
milênio apareceu cheio de esperanças e também de entusiasmo por um mundo mais pacífico e mais justo. Mas já os primeiros anos deste novo século nos mostraram a fragilidade da convivência da humanidade e abriram-se novas brechas, que ameaçam a paz
mundial e a reconstrução do justo equilíbrio entre as nações. Uma catástrofe quase apocalíptica nos demonstrou, com toda a sua violência, que o homem perdeu também a
harmonia com a criação. Encontramo-nos hoje diante de uma série de problemas que, em
nosso mundo global estão, em certo sentido, todos conexos: aqueles ecológicos, como a
extinção de algumas espécies, as mudanças climáticas e a poluição do ambiente, facilmente ligados a graves problemas sociais, como o endividamento de tantos Países, por
sua vez causa de ulteriores problemas como a pobreza, a fome, a desocupação e a imigração. Existem ainda estruturas de pecado que aumentam a espiral da violência. Entre
estas, aquela institucional e militar, que freqüentemente oprime cidadãos indefesos,
quando não leva a se precipitar sobre outros povos, criando vítimas inocentes e susci52
tando muitas vezes, como reação, incontroláveis formas de terrorismo. Recordamos,
pois, os vários fundamentalismos, os nacionalismos e um novo imperialismo que hoje
estão à origem do confronto entre culturas e religiões.
Além disto, a criminalidade internacional, nutrindo-se do comércio da droga e de armas, leva a morte em tantas partes do nosso mundo. Enfim, as impiedosas regras de um
mercado que, em nome da liberdade, subordina os valores da vida ao da economia, privilegiando poucos e marginalizando muitos, seguidamente condena a um futuro sem
esperanças sobretudo os mais frágeis: as mulheres, as crianças, os anciãos e os doentes.
Às vezes parece mesmo que as sementes da paz sejam sufocadas pelos interesses do poder político e econômico destas estruturas de injustiça e pecado pessoal.
O que significa então a paz neste mundo selvagem e militarizado? O que significa a
paz em um mundo onde reina um sistema consumo e de apropriação? O que quer dizer
paz para os homens e as mulheres que vivem em zona de guerra? O que quer dizer paz
para quem tudo perdeu? No espírito franciscano, diante de todas estas situações, não
podemos permanecer passivos ou somente como expectadores comovidos, mas devemos
sentir-nos chamados a seguir as pegadas de Jesus Cristo que veio “para anunciar aos
pobres uma alegre mensagem, para proclamar aos prisioneiros a libertação e aos cegos a
vista, para libertar os oprimidos e pregar um ano de graça do Senhor” (Lc 4,18).
Francisco abraçou o plano de Deus pelas suas criaturas, considerando-as como uma
família de irmãs e irmãos (cf Cant). Ele nunca se chamou simplesmente “Francisco”,
mas sempre “irmão Francisco”. Ser “irmão” revelava o seu sentir-se em relação com
cada criatura e a sua missão de restabelecer as relações com dócil humildade (cf Cant
10-11; TC 14,58). A ação da paz é ligada a este anúncio da boa nova do Evangelho (cf Ef
6,15) e endereçada a todos os homens independentemente do seu estado social e do sexo,
da raça e da religião. Permanecendo fiel ao próprio Senhor, para a Igreja a promoção da
paz no mundo é parte integrante da missão com a qual esta continua a obra redentora de
Cristo sobre a terra (cf. Compêndio da doutrina social da Igreja, n. 516). Como missionários e missionárias do Evangelho, e fiéis à Igreja, queremos renovar a nossa tradição
de sermos hoje mensageiros da paz evangélica.
Promover o bem
7. Uma vez que a paz começa a ser vivida como valor profundo no íntimo de cada
pessoa para, em seguida, estender-se às famílias, às nossas fraternidades e comunidades até
co-envolver todos os ambientes em que vivemos, para criar uma verdadeira e própria cultura da paz (cf Compêndio da doutrina social da Igreja, n. 495) será necessária a nossa
pessoal reconciliação com Deus, conosco mesmos, com os irmãos, as irmãs e toda a criação. Embora se trate de um momento muito pessoal e íntimo, tal reconciliação deve abranger também as estruturas, o nosso estilo de vida, o nosso trabalho e a nossa missão, a fim
que tudo sirva verdadeiramente para a construção da paz, da justiça e do amor. Somente
através de uma sincera conversão do nosso coração, das nossas estruturas pessoais, do
nosso estilo de vida, da nossa maneira de programar, pensar e trabalhar, nos tornaremos
frutuosos operadores de paz. O nosso empenho pela paz requer, pois, um modo particular
de proceder com aquele espírito fraterno que caracteriza de modo especial a nossa forma
de vida e de não deixar que alguns irmãos e irmãs com particular vocação profética se
empenhem sozinhos em favor da paz, da justiça e da preservação da criação.
53
8. A partir desta pessoal conversão propomos uma visão da paz como superação do
pecado pessoal e estrutural, superação do sofrimento, da dor, da ira, das profundas feridas da reconciliação. Como testemunhos da boa nova queremos empenhar-nos na nossa
missão no mundo em favor deste caminho de reconciliação, que exige distinguir uma
ação contra o mal, a violência, a injustiça, de um agir em favor da paz e da justiça, excluindo toda forma de violência para tornar possível uma verdadeira reconciliação. A
nossa missão de paz não pode basear-se sobre uma atitude caracterizada pelo ser “contra”, mas deve nutrir-se da procura incessante do bem e da vida. Este agir em favor do
bem comporta o desmascaramento das causas do mal e a condenação corajosa de toda
forma de violência injustificada, porque falar de paz e de justiça sem desmascarar as
instituições, os sistemas e os pecados responsáveis da injustiça, da violência e do mal é
mais que hipócrita. Somente quando as causas da discórdia, das guerras, da injustiça, e
dos pequenos e grandes pecados humanos serão profeticamente individuados, será possível uma profunda cura de todas as feridas. Sem uma tal cura o caminho em direção à
reconciliação será difícil. Nós, franciscanos e franciscanas, queremos atingir esta cura
das feridas através do diálogo fraterno e caridoso. Um diálogo respeitoso que saiba valorizar cada pessoa, cada cultura, e cada religião promovendo o bem, o belo, e o verdadeiro no outro. Queremos iniciar este diálogo nas nossas fraternidades e comunidades,
nas nossas famílias, entre os nossos institutos franciscanos, na Igreja, entre as diversas
culturas e religiões, nos diversos países onde estamos presentes, expondo-nos nós mesmos, assumindo todas as eventuais conseqüências e participando da missão e da paixão
de Cristo (cf 1R 16,10-11). De modo particular queremos iniciar este diálogo nos lugares
de conflito, de tensão, de desesperança e de discórdia, de intolerância e de marginalização. Com o nosso dialogar queremos dar testemunho aquele diálogo salvífico que o
próprio Deus leva adiante com a humanidade no seu Filho Jesus Cristo e no poder do
Espírito Santo.
A serviço do amor
9. Sobre a base da nossa rica tradição queremos, com nossa disponibilidade ao diálogo, voltar às fontes da espiritualidade do perdão, da misericórdia e da gratidão, para
superar, com a verdadeira paz, que somente Jesus Cristo nos pode dar (cf Gv 14,27), as
pequenas guerras da vida quotidiana e as grandes guerras do mundo, e voltar às fontes da
espiritualidade da fraternidade e da igualdade para superar, com a lei do amor, (cf Gv
15,9-17 ), a intolerância e tantas formas de criminalização e de marginalização, refazer-nos na espiritualidade da simplicidade para superar, com a estima e a benevolência para
com cada forma de vida, o consumismo e tantas formas de abuso contra a vida da criação. Encontrando as nossas raízes profundas na nossa vocação franciscana não somente
podemos encontrar a paz em nossos corações, nas nossas fraternidades, comunidades e
famílias, mas podemos ainda tornar-nos frutuosos operadores da paz e da reconciliação
neste mundo.
Recordando a nossa particular vocação de franciscanos e franciscanas de sermos
mensageiros da paz neste mundo, encorajamos e estimulamos o dom de ser profetas de
um novo estilo de convivência baseado sobre o amor e sobre a familiaridade e portanto
sobre a não violência, sobre a justiça e sobre o cuidado integral da nossa mãe terra (cf
Cant); defendemos o direito à vida em todos os níveis e a possibilidade de acesso aos
54
recursos essenciais para todos; de modo particular compadecemos e queremos ser próximos às inumeráveis vítimas deste mundo. A partir desta dimensão profética da nossa
vocação elevamos a nossa voz em favor do desarmamento em todos os níveis (cf Compêndio da doutrina social da Igreja, n. 508s); denunciando a utilização de crianças e
adolescentes como soldados em conflitos armados (cf o.c. 512) e toda a forma de discriminação e especulação das mulheres, condenamos toda forma de terrorismo: protestamos contra toda forma de colonialismo ou imperialismo militar e econômico; rejeitamos os fundamentalismos e as tendências ao integralismo; lutamos com meios pacíficos
contra as estruturas e os autores de qualquer forma de escravidão e de opressão.
Enfim suplicamos o nosso pai são Francisco e a nossa mãe santa Clara, grandes promotores da paz e do bem, e Maria, Rainha da Paz, a fim que nos concedam de viver
neste mundo como fiéis servos do Espírito de Jesus, nossa paz (Ef 2,14).
Roma, 15 maio 2005
Solenidade de Pentecostes
Fr. José Rodríguez Carballo – Minister generalis OFM
Fr. Joachim Giermek – Minister generalis OFMConv
Fr. John Corriveau -Minister generalis OFMCap
Fr. Ilija Živkovič -Minister generalis TOR
Encarnación Del Pozo-Ministra generalis OFS
Sr. M. Carola Thomann FCJM-Praeses CFI-TOR
ABREVIAÇÕES
Sagrada escritura
Lev Levítico
Pr Provérbios
Is Isaias
Mi Miquéias
Mc Marcos
Lc Lucas
Jo João
Ef Efésios
Fontes franciscana
1R Regra não bulada
T Testamento de são Francisco
Ex Exortações
CM Carta a um Ministro
Cant
Cântico do irmão Sol
1C Vida primeira de Tomas de Celano
2C Vida segunda de Tomas de Celano
TC Legenda dos 3 Companheiros
LP Legenda perugina
EP Espelho de perfeição
Fl Florinhas
55
O SABOR DA PALAVRA
- A vocação intelectual dos Frades menores hoje
CARTA DO MINISTRO GERAL OFM SOBRE OS ESTUDOS
Roma 2005 *
—————
*
Tradução da Cúria Geral da Ordem aos Frades Menores.
57
PREMISSA
Vivemos um tempo complexo, dramático e magnífico, marcado a fundo por mudanças totalmente novas. Um tempo que nos desafia para uma renovada capacidade de encontro, de escuta e de diálogo. Certamente não de forma funcional, mas simplesmente
porque amamos o homem, criado à imagem e semelhança de Deus em Cristo, Verbo
encarnado. Esta carta a toda a Ordem, elaborada em coincidência com a elevação do
Antoniano a Universidade Pontifícia, nasceu em mim pela urgência de recordar a nós
todos a importância de, neste tempo, vivermos cheios de paixão pelo homem, ao qual
anunciar, com palavras saborosas, a boa nova do ilimitado amor de Deus. Procuramos
palavras cheias de sabor, de espírito e de vida para cultivar essa paixão por Cristo e pelo
homem. A atividade intelectual pode ajudar-nos nessa busca.
Por isso, julgo urgente continuar a reflexão sobre o valor e o lugar próprio dos estudos e da pesquisa científica na Ordem, em continuidade com os documentos dos últimos
quarenta anos, tempo profundamente marcado pela graça do Concílio Ecumênico Vaticano II 1 . Em seus textos, aparece nitidamente o nexo entre os estudos e a evangelização,
que é uma das essenciais razões de ser da Ordem. A caminhada foi retomada e aprofundada pelo Capítulo geral de 1991, pelo Conselho Plenário de 2002 e pelo Capítulo geral
de 2003. Com efeito, – conforme decididamente nos disse João Paulo II, em 1991, – “é
preciso considerar a formação intelectual uma exigência fundamental da evangelização” 2 .
Sinto fortemente que este percurso está de acordo com a caminhada de nossa Ordem
rumo ao VIII Centenário de sua fundação. Também hoje, “o edifício da Ordem se constrói com duas paredes, a saber, com os bons costumes e com a ciência” 3 . Proponhamo-nos a responder ao dom de nossa vocação cultivando uma qualidade melhor de nossa
vida – é o caminho da santidade – e, ao mesmo tempo, percebamos que “hoje é especialmente necessário promover em nossa Ordem a formação intelectual” 4 .
Com efeito, no seio da vocação para viver e anunciar o Evangelho como irmãos, na
“graça das origens”, encontramos também a graça de anunciar a Palavra de Deus na
—————
1
Em breve síntese tenham presentes: A Formação na Ordem dos Frades Menores, Capítulo geral
extraordinário OFM, Medellin, 1971, nn.62-81; Documento sobre a Formação, Conselho Plenário
OFM, 1981, nn.59-93; Estudos e Missão da Ordem dos Frades menores hoje, Carta do Ministro
geral, 1981; Formação franciscana e cientifica dos frades, Carta do Ministro geral, 1987; Mensagem
de João Paulo II ao Capítulo geral OFM, 1991; A Ordem e a evangelização hoje, Capítulo geral
OFM, 1991, S. Diego, 1991, nn.10-11. 26-28; A Promoção dos Estudos na nossa Ordem, Relatório
do Ministro geral, 1994; Encher a terra com o evangelho de Cristo, Carta do Ministro geral, 1996,
nn. 127-132; Ratio Studiorum OFM, Roma 2001; Ratio Formationis Franciscanae OFM; 2003. A
estes documentos, acrescentem-se outros textos que, diferentes no género e nos destinatários, acompanham a caminha destes anos.
2
Mensagem de João Paulo II ao Capítulo geral OFM 1991, nn. 5-6; RS, 28-30.
3
ECCLESTON, T., De Adventum fratrum minorum in Anglia, em Fontes Franciscanas e clarianas,
Ed. Vozes/FFB, Petrópolis 2004, n. 90, p.1341.” Dixit autem idem pater, quod cume x duobus parietibus construatur aedificium ordinis, scilicet moribus bonis et scientiam”.
4
Capítulo geral de 1991, n. 10; cf. VC 98.
58
escuta e no diálogo, em comunhão com a Igreja. O percurso de São Francisco torna-se
exemplar (Primeira parte).
Esse esforço acompanhou a história de nossa Família, expressando-se, sobretudo, na
urgência missionária, caracterizada pelo encontro com as culturas, isto é, pela escuta e
pela preparação severa exigida aos anunciadores da Palavra que salva, em vista do diálogo! (Segunda parte).
Sobre esses temas estamos bastante preparados. Creio que ainda nos falte um bom
caminho a fazer para o encontro da Palavra com as múltiplas palavras do homem. Em
poucas palavras, trata-se do diálogo com a cultura, ou melhor, com as culturas, tornando-nos artesãos humildes e corajosos da escuta e do diálogo, mais discípulos do que mestres (Terceira parte).
Não se trata de estudar somente em vista dos desafios da evangelização. Está em jogo
algo mais, mais exigente. Trata-se de adquirir o hábito de refletir, a arte do pensar como
arte sapiencial de vida, de fé e de caridade. Assim, será possível falar de uma vocação
intelectual dos Frades menores? Sim, sempre em união com nossa forma vitae, para a
qual “o estudo, como todas as outras coisas de nossa vida em fraternidade, deve ser
enxertado no vigor espiritual de São Francisco” 5 , de tal maneira que se torne uma base
necessária para a formação franciscana.
Eis a caminhada que, nestas páginas, desejo fazer com todos, caros Irmãos. Dirijo
particular atenção aos Irmãos que consagram a vida à pesquisa, ao ensino e à publicação.
Aprecio seu serviço, que considero importante para a Fraternidade, para o desenvolvimento e a adequada compreensão de nosso carisma e para o desempenho da evangelização, múnus específico de nossa vocação.
Com tais sentimentos, inicio minha reflexão, confortado pela presença e pelos rostos
de muitos Irmãos, assíduos e apaixonados pesquisadores da Vida, da Verdade e do Bem,
que resplendem no rosto de Cristo e que não nos cansamos de procurar nos rostos de
muitos homens e mulheres de nosso extraordinário e dramático tempo e nos sinais dos
tempos.
I – PALAVRA,VIDA FRATERNAE ANÚNCIO EM SÃO FRANCISCO
1. A graça das origens
No conjunto das fontes escritas que explicitam os componentes essenciais do carisma
franciscano não existe uma síntese comparável, em completude e lucidez, às poucas linhas com as quais Frei Francisco, em seu Testamento, descreve o nascimento da primeira
Fraternidade: E depois que o Senhor me deu irmãos, ninguém me mostrou o que deveria
fazer, mas o Altíssimo mesmo me revelou que eu deveria viver segundo a forma do
santo Evangelho. E eu o fiz escrever com poucas palavras e de modo simples, e o senhor
Papa mo confirmou” (T 14-15).
Eis porque é correto falar de “graça das origens”: graça é a chegada dos irmãos, na
qual se renova o dom dos discípulos ao Senhor Jesus: “Eram teus e tu os deste a mim”
(Jo 17,6; RnB XXII, 42-43); graça é a revelação do Evangelho como “forma” de vida
—————
T
5
Schalück, Fr. H., La promozione degli studi nel nostro Ordine, in Acta Congressus
Repraesentantium Sedum Studiorum OFM, Roma 1994, 60
59
para a Fraternidade-em-missão, ocorrida na tríplice abertura dos Evangelhos, onde às
duas passagens sobre o chamado: “Se queres ser perfeito, vai e vende tudo que tens e dá
aos pobres e terás um tesouro no céu; e vem e segue-me” (1R I, 2; cf. Mt 19,21;
Lc 18,22); “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e me
siga” (1R 1, 3; cf. Mt 16,24), acrescenta-se o envio em missão dos setenta e dois discípulos: “Quando os irmãos vão pelo mundo, nada levem pelo caminho, nem bolsa nem
sacola… E, em qualquer casa em que entrarem, digam primeiramente: Paz a esta casa
(1R 14, 1-2; cf. AP 11 e TC 29).
Graça é a confirmação que o “senhor Papa” dá à norma escrita de vida evangélica, na
qual Francisco e os primeiros companheiros sentem continuar o mandato conferido a
Pedro de “confirmar” seus irmãos: “Eu orei por ti, para que tua fé não falhe; e tu, uma
vez convertido, confirma os irmãos” (Lc 22,32).
Todas as perguntas sobre o carisma das origens, feitas para terem indicações de resposta aos problemas e às perguntas do nosso tempo, deverão mover-se dentro deste triângulo de graça:
• o chamado de Francisco e dos primeiros companheiros a viver o seguimento e o
anúncio em fraternidade;
• o Evangelho e a palavra de Deus, que se traduzem em normas de vida;
• a indestrutível comunhão de fé e de obras com a Igreja.
2. Francisco homem “sem cultura”?
A indicação de método é especialmente necessária em setores problemáticos como o
dos estudos, já que uma renovada linha de pensamento, que remonta às próprias fontes
biográficas, insistiu na autodenominação de Francisco como homem “sem cultura” (CO
39; T 19) e nas idéias polêmicas contra a “sabedoria do mundo” (1R 17, 10), para contrapor busca amorosa de Deus e busca de “ciência” e conhecimento, simplicidade de vida e
dedicação ao estudo.
Uma leitura atenta e serena dos Escritos de Francisco, com particular atenção aos
textos normativos, ajuda a superar aquelas contraposições. A tensão pelo conhecimento e
o amor à Palavra de Deus entrelaçam-se entre si por todo o tempo da experiência evangélica de Francisco, a partir da invocação que abre o mais antigo de seus escritos, “Altíssimo, glorioso Deus/ ilumina as trevas do meu coração”, baseada no verso do salmo
“Senhor, meu Deus, ilumina minhas trevas” (Sl 18,29), até a iluminante conclusão da
Admoestação VII: “E são vivificados pelo espírito da divina escritura aqueles que não
atribuem a seu eu (corpori) toda letra que conhecem e desejam conhecer (omnem litteram quam sciunt et cupiunt scire), mas, pela palavra e pelo exemplo, a restituem ao altíssimo Senhor Deus, a quem pertence todo o bem”. Note-se a força da afirmação: também
o conhecimento da “cultura escrita” (littera implica sempre esse sentido) e o “desejo de
saber” são plenamente conformes à vida no Espírito, contanto que visem ao louvor divino e se traduzam em vida exemplar.
Portanto, a “ciência” é um lugar teológico de revelação no qual o Espírito, através da
Palavra, desce para encontrar-se com o homem. Vivido nesse espírito, o estudo só pode
suscitar a ação de graças, que se exprime na restituição a Deus (reddunt ea Deo cuius est
omne bonum) através de palavras e exemplos (verba et exemplo).
É um pensamento que não só confirma o amor extraordinário de Francisco pelas
“divinas palavras escritas”, por ele insistentemente recomendadas, mas explica também
T
60
porque a Escritura tem tanto espaço em seus Escritos, literalmente tecidos de citações,
reminiscências, aplicações vitais da Palavra de Deus. Conseqüentemente, não surpreende
que, para Francisco, a “rainha” das virtudes não seja a pobreza, como por muito tempo
se afirmou, mas a sabedoria, reflexo da luz perene do Verbo encarnado: “Ave, rainha
sabedoria, o Senhor te salve com tua irmã, a santa e pura simplicidade” (SV 1). No louvor franciscano, as virtudes estão dispostas numa sucessão que responde ao dinamismo
da vida cristã segundo o Espírito: a rainha sabedoria deve ser traduzida em palavras e
obras pela santa e pura simplicidade; e viver a sabedoria significa seguir a humildade e a
pobreza de nosso Senhor Jesus Cristo, que, para nós, é o modelo de caridade e obediência ao Pai e aos irmãos.
3. Os livros e a pregação
Na Fraternidade das origens, a primeira forma escrita de vida, aprovada por Inocêncio III (1209), desenvolve-se progressivamente até constituir a Regra não bulada (1221),
um texto em que cada norma sobre a vida comunitária e sobre as formas da missão nasce
constantemente por interferência da palavra do Evangelho, das expectativas dos tempos
e das indicações da Igreja. As Constituições do IV Concílio do Latrão (1215) haviam
disposto que os bispos assumissem “homens idôneos, poderosos em obras e palavras,
para exercer salutarmente o serviço da santa pregação” (art. 1), e que todas as igrejas
metropolitanas tivessem “um teólogo, que instruísse os sacerdotes e os outros na sagrada
Escritura” (art. 11).
As disposições se refletem, sobretudo, no texto da Regra de 1221, que não só procura
fixar as normas e o “espírito” da pregação (cap. 17), mas dispõe também que os clérigos
“possam ter somente os livros necessários para desempenhar seu ofício” (possint habere
tantum libros necessarios ad implendum eorum officium) (1R 3, 7). Uma recente pesquisa, estendendo as fontes franciscanas para a literatura cristã medieval 6 , mostrou, sem
sombra de dúvida, que a expressão ad implendum eorum officium não se refere somente
ao ofício litúrgico, mas a todo o “ofício” dos clérigos, aos quais, portanto, são concedidos os livros indispensáveis para a Liturgia das horas, para a Eucaristia e para a pregação.
A mesma pesquisa mostrou também que a tão discutida proibição “et non curent nescientes litteras litteras discere” (2R 10, 8) não significa “e os que não conhecem as letras,
não se preocupem em aprendê-las”, mas precisamente “e os que não sabem ler, não se
preocupem em aprender”, em atenção à norma paulina de que “cada um permaneça no
estado em que estava quando foi chamado” (1Cor 7,20; cf. 1R 7, 6), resolvendo-se de
fato numa disposição ligada à situação cultural do tempo e dificilmente aplicável a uma
sociedade como a do terceiro milênio, em que, em muitíssimos países, a alfabetização
atingiu a quase totalidade dos cidadãos.
Espelhando ao mesmo tempo a centralidade da Palavra e as disposições da Igreja, as
severas normas para os pregadores inseridas na Regra bulada (1223), ordenando que
“absolutamente nenhum dos irmãos ouse pregar ao povo, se não tiver sido examinado e
aprovado pelo Ministro geral desta fraternidade e se não lhe tiver sido concedido pelo
—————
6
Cf. PAOLAZZI, CARLO, OFM, I frati Minori e i libri: per l’esegesi di “ad implendum eorum officium” (1R 3, 7); e “nescientes litteras” (1R 3, 9); 1R 19, 7); in Archivum Franciscanum Historicum
1-2/2004, pp. 3-59.
61
mesmo o ofício da pregação” (2R 10, 3), e já que todo exame exige uma adequada preparação, esta não podia ser feita senão através da escuta orante, da leitura e, naturalmente, do estudo da Palavra de Deus, porque “a pouquíssimos o espírito de sabedoria é
dado miraculosamente, sem o estudo das letras” (São João Capistrano). Baseada num
versículo do Salmo – “Eloquia Domini, eloquia casta; argentum igne examinatum” (Sl
12,7) –, a exortação que a seguir se faz aos pregadores, no sentido de que “na pregação
que fazem, suas palavras sejam examinadas e castas” (2R 9,4), é um angustiado convite
a anunciar somente a palavra de Deus, livre de impurezas humanas e purificada pelo
fogo do Espírito. Segundo a intuição de meu predecessor Fr. John Vaughn, “é exatamente a consciência do “mandato” recebido da Igreja de pregar a penitência entre os
fiéis e entre os infiéis e a obediência à Igreja que convenceu São Francisco da necessidade dos estudos e o levou a fundar uma “Escola Teológica” 7 .
Com efeito, esse conjunto de disposições, concessões e exortações constitui o antecedente legislativo da importante Carta a Frei Antônio, na qual o apelativo “bispo” alude
provavelmente ao mandato episcopal da pregação, ao qual o fundador da Ordem acrescenta o mandado do ensino: Eu, Frei Francisco, [desejo] saúde a Frei Antônio, meu
bispo. Apraz-me que ensines a sagrada teologia aos irmãos, contanto que, nesse estudo,
não extingas o espírito de oração e devoção, como está contido na Regra”. Seguindo as
Constituições lateranenses, o ensino de Frei Antônio, certamente, era dirigido aos frades
“que são, aos que serão e aos que desejam ser sacerdotes do Altíssimo” (CO14), e o
verbo desejam só pode referir-se a clérigos à espera de serem promovidos ao sacerdócio
e, portanto, à pregação, enquanto a toda a Fraternidade é dirigida uma recomendação
paralela no Testamento, que parece uma espécie de selo de autenticidade da própria carta
a Frei Antônio: “E devemos honrar e venerar a todos os teólogos e aos que ministram as
santíssimas palavras divinas como a quem nos ministra espírito e vida” (T13).
Nas entrelinhas, Francisco parece dizer que a “santa e pura simplicidade” não é a virtude de quem ignora a Palavra de Deus, mas de quem a ouve e a estuda com fé, medita-a
assiduamente com espírito orante e, pela força do Espírito, vive-a e a anuncia com o
exemplo e com as palavras.
Portanto, o Doutor Seráfico São Boaventura, nem sempre corretamente julgado pelos
estudiosos do nosso tempo, seguia o pensamento do fundador e a legislação primitiva
quando, em polêmica com os mestres seculares, reafirmava resolutamente o dever dos
Frades menores de se dedicarem ao estudo da Palavra e seu direito de disporem dos
livros indispensáveis: “A Regra ergue a voz e impõe expressamente aos frades a autoridade e o ofício da pregação (cf.2R 9), coisa que não creio se encontre em outras Regras.
Portanto, se não devem pregar fábulas, mas as palavras divinas, não podem conhecê-las
se não as lerem; nem lê-las se não tiverem os textos escritos; é, pois, evidentíssimo que é
conforme a perfeição da Regra ter livros como também pregar. E não sendo contrário à
pobreza da Ordem ter missais para cantar a Missa e breviários para recitar as Horas,
assim não é contrário ter livros e Bíblias para pregar as palavras divinas” 8 .
Se é verdade que no decorrer dos séculos os movimentos de reforma da Ordem partiram normalmente com tendências à vida solitária e contemplativa, é também verdade
T
—————
7
VAUGHN, FR. JOHN, Studi e Missione dell’Ordine dei Frati Minori oggi, Carta do Ministro geral,
1981, in AO 100 (1981), 261-262.
8
Boaventura, Epistola de tribus quaestionibus, in Opera Omnia, ed. Quaracchi, vol. VIII, p.332-333.
62
que depois de algum tempo sempre redescobriram a dimensão “pastoral” do carisma 9 ,
em consideração à palavra de Francisco: “Proclamai-o, pois ele é bom, e exaltai-o em
vossas obras; pois, com este intuito ele vos enviou por todo o mundo, para que, por palavras e obras, deis testemunho de sua voz” (CO 8-9).
Já se discorreu sobre a insistência com que Francisco exorta a venerar “as divinas
palavras escritas…, honrando o Senhor nas palavras que ele falou” (CO 35-36). Será
importante acrescentar que o santo de Assis, verdadeiro puro de coração, capaz de ver
em cada ser o Deus de suma Beleza, Luz eterna, Bondade original, tinha grande respeito
por cada texto escrito, sagrado ou profano, como aparece num emblemático episódio
narrado por Tomás de Celano: “Certo dia, um irmão perguntou-lhe para que recolhia
também tão cuidadosamente os escritos dos pagãos e onde não havia o nome do Senhor.
Ele respondeu dizendo: Filho, porque aí há letras com as quais se compõe o gloriosíssimo nome do Senhor Deus. Também o que aí há de bom não pertence nem aos pagãos
nem a homem algum, mas somente a Deus, de quem provém todo o bem” (1C 82).
O “dito” de Francisco não retorna nos biógrafos posteriores, talvez por medo de sua
extraordinária abertura religiosa e cultural; mas certamente aplica-se bem à atividade dos
Frades menores que, no decurso dos séculos, pregaram, traduziram e comentaram os
textos sacros em outras línguas, convencidos de que todas as línguas e culturas têm em si
a possibilidade de acolher e de repropor o “bem” das Escrituras 10 .
2 – A PALAVRANA HISTÓRIA DO CARISMA
1. O encontro com as culturas
João de Pian Del Carpine, João de Montecorvino, Odorico de Pordenone e João de
Marignolli, evangelizadores da China, andavam descalços, vestiam o hábito da penitência como os mais pobres espirituais, mas eram pessoas de boa formação intelectual e,
através do estudo, souberam colocar-se na escuta de culturas diferentes daquelas das
quais provinham: sabemos que falavam línguas como o armênio ou o tártaro; que João
de Montecorvino (1247-1328) celebrou a Missa segundo o rito romano, mas pronunciando em língua tártara “tanto as palavras do cânon como as do prefácio (tam verba
canonis tam prefationis)”; que escreveu para o grupo mongol dos Ongut trinta e dois
hinos e que traduziu para a língua deles o Novo Testamento e o Saltério.
A extrema confiança na possibilidade da palavra, ou da linguagem, por parte de Raimundo Lulio (1235-1316), foi determinante para a superação da idéia da cruzada de
estilo medieval. A profecia de Lulio sobre a educação religiosa e a preparação lingüística
e cultural dos missionários parece encontrar resposta três séculos mais tarde nos conselhos dados pelo capuchinho Jerônimo de Narni ao Papa Gregório XV, em vista da instituição da Congregação da Propaganda Fide (1622).
Cultor da língua bíblica mostrou-se o humanista e reformador Francisco Ximenes de
Cisneros com a fundação da Universidade de Alcalá (1499), graças à qual foi realizada a
—————
9
Cf. P. MARANESI, Nescientes litteras. L’ammonizione della Regola francescana e la questione
degli studi nell’Ordine (sec. XIII-XVI), Instituto Storico dei Cappucini, Roma 2000
10
Cf. VAUGHN, FR. JOHN, La Formazione francescana e scientifica dei frati, in Acta Ordinis,
106(1987).
63
prestigiosa Bíblia Poliglota. Beberam de sua reforma dos estudos, centrada sobre a volta
às fontes e às línguas originais, também os missionários que deixaram a pátria para
evangelizar as Américas: André de Olmos, Turíbio Motolinia, Jerônimo Mendieta, Juan
de Torquemada, Jan Bautista Viseo e outros. Um deles, Bernardino de Sahagún (1500-1590), fascinado pela língua e pela cultura local, empregou bem trinta anos de sua vida
na busca de dados sobre as sociedades pré-colombianas (Codex Florentinus). Assim,
utilizando o idioma dos indígenas, chegou a compor hinos e, recorrendo à sabedoria de
seus provérbios, tentou traduzir o cristianismo segundo os cânones da cultura asteca. A
fim de superar as distâncias culturais, ele sonhava uma república indiana e espanhola
baseada no princípio da unidade da fé.
Defensor do estudo da cultura local para a evangelização foi também Luis Bolaños,
redator do primeiro catecismo em guarani – e fundador das primeiras reduções do Paraguai –, tendo sido um dos protagonistas do sínodo de Assunção, convocado pelo co-irmão Martin Ignácio de Loyola, Bispo de Rio da Prata (1601). A fama deste último é
devida, particularmente, a seu Itinerário: um diário de viagem à China que, graças a uma
extensa e fulminante difusão, contribuiu muito para acender o interesse do Ocidente pelo
Império celeste. Martin Ignácio de Loyola, que deu a volta ao mundo por bem três vezes,
reduziu as distâncias geográficas e alargou os espaços da comunicação. Seu concorrente
na concepção da globalização cultural pode ser considerado também o Frade menor conventual veneziano Vincenzo Coronelli (165-1718), o primeiro a realizar globos de grandes dimensões, pedidos exatamente pelo rei Luís XIV para o palácio de Versailles.
2. A escuta se faz diálogo
Assim, o mundo diferente do outro, ouvido, amado, estudado, compreendido nas suas
expressões culturais e lingüísticas mais variadas, para nossos Frades, tornou-se o lugar
próprio do diálogo e do anúncio: lugar que acolhe a Palavra, enriquece-a com as ressonâncias típicas de cada povo e de cada cultura, torna-a acessível a todos.
Compreende-se, então, porque o catecismo de Pedro de la Piñuela, em língua chinesa, Ch’u hui wên-ta, publicado pela primeira vez em 1680, foi utilizado por mais de
dois séculos, com numerosíssimas edições, a última das quais em 1929. Pedro é um
mestiço, expressão corpórea da interculturalidade e produto cultural do México, país que
se tornou ponte entre Oriente e Ocidente e novo centro do mundo missionário franciscano. Todavia, Pedro não é apenas um divulgador, mas também um lingüista. Prova-o o
fato de ter re-elaborado, por necessidades ligadas à evangelização, a gramática do co-irmão Basílio Brollo, célebre por ter redigido o primeiro dicionário completo chinês-latim (1694).
Figuras excepcionais são também os franciscanos, como, por exemplo, João Wild,
que no confronto com os reformadores protestantes preferiam deixar de lado o método
da controvérsia, para insistir na “parte verdadeira, afirmativa, católica” 11 . Uma forma
particular de pregação foi também a adotada pela diplomacia capuchinha francesa,
encarnada de forma excepcional por José le Clerc de Tremblay, conhecido como “la
petite eminence grise” de Richelieu, ou, por assim dizer, pela política espanhola da Imaculada, à qual, de algum modo, está ligado o renascimento escotista, promovido por
Lucas Wadding e por outros franciscanos italianos da família conventual.
—————
11
BAGLIONI, LUCA, Arte del predicare, Veneza 1592 (cp. 6).
64
A figura de Leonardo de Porto Maurício (1676-1751), escolhida pela Igreja como
padroeiro das missões populares, merece algum destaque. Escotista convicto, ele é
defensor da doutrina da Imaculada – a ponto de sugerir ao Papa uma maneira de proclamar o dogma sem reunir um Concílio –, sutil diplomata na mediação de facções políticas
contrárias, representa bem o espírito franciscano no século culturalmente mais adverso à
figura do Santo de Assis. Confidente de Bento XIV – um dos poucos, se não o único
Papa a ser louvado por Voltaire –, Leonardo foi enviado a pregar o Jubileu de 1750,
durante o qual foi inaugurada a praxe da Via Sacra no Coliseu. A originalidade de sua
pregação consiste, como ele próprio explica, em pôr-se a meio caminho entre a teatralidade dos jesuítas e o intelectualismo dos filhos de São Vicente. A devoção, centrada na
representação do mistério da Paixão, reproduz o apego dos franciscanos aos lugares
santos da Palestina, reproposto durante os séculos através de diferentes formas, das quais
a de Monte Sacro de Varallo não é a última.
Em tempos a nós mais próximos, um autêntico tradutor da Palavra, no sentido literal
do termo, pode ser visto em Gabriel M. Allegra (1907-1976). Sua tradução dos textos
originais da Bíblia para o chinês reproduz a visão franciscana da missão como obra de
propagação da Palavra. Intérprete do pensamento escotista, ele parece transferir para o
campo bíblico a doutrina do primado de Cristo, defendida pelo Doutor Sutil, ao realçar o
primado da Palavra.
3. Uma fraternidade que anuncia
A obra destes geniais homens não teria podido tornar-se patrimônio comum nem
assumir continuidade no seio de uma tradição se não fosse dotada de estruturas organizadas.
Um dos mais notáveis organizadores do saber franciscano é, sem dúvida, Lucas
Wadding (1588-1657). Ele concebeu a atividade cultural em termos colegiais, a ponto de
fundar, em Roma, um colégio de estudiosos para a publicação dos escritos de São Francisco. Fomentou a promoção do renascimento escotista e da historiografia religiosa e
literária da Ordem. Seus Annales (1625), inspirados nos anais de Barônio, querem propor a caminhada feita pela Ordem na sua história e constituem uma impressionante operação de autoconsciência religiosa e comunitária.
Depois dele, outro estudioso, Jerônimo De Gubernatis, teria tentado oferecer uma
visão mais universal da Ordem. No Capítulo geral de 1688, num opúsculo intitulado Idea
Orbis Seraphici, ele havia exposto um projeto de história da Ordem, dividida em 4 partes, num total de 35 volumes. Tratou-se de uma empresa colossal, realizada em parte
apenas, mas nem por isso menos admirável se considerarmos o esforço ideológico
/organizativo.
Para o aprendizado das línguas árabe e chinesa e para a preparação dos missionários
destinados ao Oriente Médio e à China, foram fundados dois colégios missionários em
Roma: São Bartolomeu, na Ilha Tiberina, e São Pedro, em Montório. Para a América
Latina, porém, foram ativados os assim chamados Colégios de Propaganda Fide em Querétaro, Guatemala, Zacatecas, México, Pachuca e outros lugares. Ali, através do estudo e
de uma intensa vida espiritual, preparavam-se os missionários enviados a evangelizar os
povos que ainda não haviam conhecido o anúncio cristão.
Em época contemporânea, com o fim dos jurisdicionalismos e após séculos de divisão, a Ordem encontrava uma certa unidade, da qual Roma tornou-se quase um símbolo.
65
O Ministro geral Frei Bernardino de Portogruaro, que havia empregado grande parte de
seus vinte anos de serviço visitando incansavelmente as Províncias da Europa, julgou
oportuno criar um centro de estudos que pudesse ser uma base cultural para toda a
Ordem; assim surgiu o Antonianum. Antes ainda havia fundado o periódico Acta Ordinis, órgão de união entre as várias Entidades da Ordem dos Frades Menores, demonstrando assim sua fé na força da comunicação. Ele quis reafirmar seu propósito instituindo um Centro de estudos tal que, em termos didáticos, pudesse achegar-se às fontes
já pesquisadas pelos estudiosos do colégio de Quaracchi, fundado por ele mesmo alguns
anos antes, e que hoje continua sua ação no Colégio São Boaventura de Grottaferrata
(Roma).
Na Europa, com o propósito de recrutar novas vocações, a Ordem havia criado os
conhecidos Colégios Seráficos e ia assumindo um caminho didático, graças também à
benéfica influência e colaboração das modernas Congregações femininas franciscanas.
Essa orientação tornou-se mais evidente na missão norte-americana, onde estava bastante difuso o serviço pastoral desenvolvido através das escolas. De fato, Panfilo de
Magliano, fundador das duas Províncias do Leste, instituiu o centro de estudos superiores que, mais tarde, tornou-se a célebre Universidade São Boaventura.
No século XX, em várias Províncias da Ordem, vemos presentes e atuantes diversas
Universidades mantidas por elas, além de Colégios e Centros de Estudo de natureza
variada. Após um período de relativa contratura, atualmente assistimos a um novo florescimento destas realidades, que nos obrigam a refletir e a fazer opções mais decididas em
vista da qualificação intelectual da Ordem, superando a baixa cultural que, claramente,
apareceu nos últimos decênios.
A história, brevemente resumida, dá-nos um precioso testemunho e nos estimula a
procurar respostas criativas para o nosso tempo.
III – A PALAVRANO ENCONTRO COM A CULTURA
1. Estudar, como busca da vida e da verdade
É incômodo passar da história para o presente. Mas é necessário. À base da caminhada feita até agora, convosco me pergunto se existe uma vocação intelectual do Frade
menor, como dimensão própria de nossa forma de vida e, portanto, válida para todos os
Frades e, de modo especial, para os que se dedicam prioritariamente ao estudo, à pesquisa e ao ensino.
Devemos admitir que o trabalho intelectual não aparece totalmente integrado em
nossa vida franciscana. Com freqüência, é visto em sua utilidade prática, mas sem ser
considerado um elemento necessário: ao contrário, seria algo à margem. Creio que
podemos repensar um modelo franciscano de vida intelectual porque, por um lado, a
vida franciscana pode nutrir-se do trabalho intelectual e, por outro, ilumina-o e o sustenta. O que entendemos por “vocação intelectual”? Com esta expressão entendo, primeiramente, o gosto pela busca da Vida, da Verdade e do Bem 12 . Ouso proferir esta
palavra. Gostaria de pronunciá-la não como afirmação de uma verdade que possuímos
—————
12
Cf. SCHALÜCK, H. La promozione degli studi nel ostro Ordine, 75.
66
para, depois, passá-la aos outros, mas como caminho nunca terminado de busca e de
desejo (cf. RS, art. 9. 13. 15).
a. Caminhada de expropriação
A busca da Vida, da Verdade e do Bem, ilimitado oceano de luz, exige uma inteligência apaixonada e, também, atenta e respeitosa, porque, dado que a manifestação da
verdade jamais é imediata, a busca só pode ser incansável hermenêutica. Se não somos
nós que vamos à verdade, mas é a verdade que, de formas variadas, vem a nós, a atitude
preliminar e especial para acolhê-la é a abertura à escuta, à qual seguirá um interrogar
inquieto.
Estou convencido de que temos urgente necessidade desse dinamismo, para não
pararmos na repetição cansativa e estéril de palavras e de fórmulas já esgotadas (FP 1.3;
Sdp 6) e, portanto, para ouvir e encontrar-nos com o homem de hoje numa atitude forte
de simpatia e de interesse (CCGG art. 162). Creio que para nós, franciscanos, o problema não deve ser tanto estudar para encontrar pontos de contacto entre a Palavra e a
cultura, mas desejar ouvir e conhecer (estudo) o mundo e o homem para “re-conhecer”
nele as “pegadas de Cristo” – tanto na forma de presença, quanto, especialmente hoje, da
ausência – e, portanto, poder louvar a Deus (cf. RFF 32. 90). Será que o Cântico das
criaturas não pode ser lido como uma expressão da forma sapiencial franciscana de ir
para e pelo mundo?
Nesse sentido, o mundo não é um desafio a ser vencido, mas uma ocasião a ser aproveitada, um kairós (FP 2). Diante da aceleração da história e do confronto, muitas vezes
tenso e violento, entre culturas e religiões, perguntamo-nos inquietos em que caminhos
ainda são possível descobrir os traços de Cristo no mundo. Confrontamo-nos com muitos
“sinais dos tempos” que não são imediatamente inteligíveis e interpretáveis (Sdp 7-9).
Com freqüência somos obrigados a parar num silêncio inconformado, mas respeitoso e
denso de busca. Então, o estudo é um itinerário colocado para não apagar essa busca. É
um exercício de humanidade e de fé, de diálogo e de confronto com quem é diferente de
nós, de inteligência e de contemplação do maior mistério que habita o mundo e a pessoa
humana.
Assim, o estudo é, sobretudo, “dom” e “busca de Deus”, “ação de graças”, ato de
“reconduzir” tudo a Ele; numa palavra, caminho para a santidade. Com São Boaventura
falamos de esforço “para nos tornarmos bons (ut boni fiamus)” 13 .
Nesse sentido, percebo uma profunda afinidade entre a pobreza franciscana e a
humildade de uma busca desinteressada da verdade, em continuidade com a real determinação de não se apropriar de nada e sermos humildes. O estudo e a pesquisa são
expropriação permanente do saber. Em certo sentido, significa libertar-se, purificar-se
das próprias pré-compreensões para acolher a realidade em sua diversidade e lê-la criticamente (RS 26). É uma versão daquilo que Francisco chama “ficar submisso a todas as
criaturas” 14 . É a necessária consciência da própria “docta ignorantia” 15 , do socrático
“não-saber”. Os limites do conhecimento impõem-se a qualquer prometéica pretensão de
—————
13
14
-19.
15
Cf. BOAVENTURA, Sententiarum I, q. 3, in Opera omnia, ed. Quaracchi, Thomus, pg. 12.
Cf. A Caminho, rumo ao Capítulo geral extraordinário, A vocação da Ordem hoje, 2005, 18BOAVENTURA, Breviloquium, pars V, cap. 6, in Opera omnia, ed. Quaracchi, Tomus V, 260.
67
possuir a realidade, também nas ciências. Uma verdadeira caminhada de estudo e de
pesquisa transforma essa presunção em desejo e despojamento: é uma forte experiência
existencial de pobreza que nos faz mendicantes.
b. Sem morada fixa
A busca da Vida, da Verdade e do Bem é um movimento permanente, que nos torna
itinerantes, sem nada de próprio. A pesquisa científica procura fixar os resultados obtidos, enquanto põe em evidência seu caráter relativo e impele a avançar sempre mais.
Não podemos parar naquilo que já é conhecido. Aquele que procura não tem onde pousar a cabeça. Enfim, quem procura é tomado pela mão pelo objeto que estuda e conduzido a novos horizontes da vida e da verdade. O Bem-aventurado Duns Scotus nos diz:
“Na caminhada do gênero humano, o conhecimento da verdade cresce sempre” 16 .
Nessa caminhada, compreendemos a liberdade. Em meio aos contrastes econômicos,
sociais, institucionais e às diferentes e, muitas vezes, contrárias visões antropológicas,
quem busca a verdade vai além de suas idéias preconcebidas, de seus interesses pessoais,
para submeter-se àquilo que à inteligência se impõe como verdadeiro, empenhando-se na
busca e aceitando ser por ela transformado. É ato de uma liberdade responsável. Essa atitude nos é muito necessária em nosso tempo: entre nós, no diálogo com o homem contemporâneo e no confronto eclesial.
c. A alegria da verdade
Mas há outro aspecto que gostaria de destacar e que julgo muito importante em nossa
tradição. O gosto e a gratuidade da caminhada para a verdade agem de forma tal que
quem estuda, gradualmente, torna-se um humilde, paciente e devoto servidor da vida.
Isso não tira do estudo a seriedade e o cansaço científico, mas é capaz também de dar
satisfação e alegria, pois, por meio do estudo, encontra-se a verdadeira fonte da vida.
É o gaudium de veritate típico da tradição agostiniana, à qual devemos tanto17. É belo
aprofundar-se no estudo como um lugar no qual experimentar uma alegria particular: a
que vem da busca e da descoberta da Vida, da Verdade e do Bem, capaz de dar mais
profunda unidade interior entre vida e pensamento.
Essa alegria é também fruto do desejo, como escreve nossa Ratio Studiorum no art.
3: “O estudo, como expressão do desejo insaciável de conhecer mais profundamente a
Deus, abismo de luz e fonte de toda a verdade humana (VC 98), é fundamental na vida e
na formação, permanente e inicial, de todo o Frade menor”. Na perspectiva bonaventuriana do “desejo”, o estudo não pode ser entendido como posse, riqueza, “status”, como
um desejar “conhecer as palavras e interpretá-las aos outros” (Ex 8, 3); mais do que
posse, o estudo é “deixar-se possuir pela Verdade e pelo Bem, para amar e louvar o
Senhor, ao qual pertence todo o bem, e para servir os irmãos na caridade de Cristo” (RS
4). Dessa forma, o estudo pode tornar-se exercício profundo de busca como desejo e
desapropriação, que tem como fruto a alegria.
—————
16
SCOTUS, J. Duns, Ordinatio IV, d. 1. q. 3, n. 8 (ed. Parisien, vol XVI p. 136a: “In processu
generationis humanae eimper crevit notiti veritatis”. Aqui, Scotus acena inderectamente para a
afirmação de S. Gregório Magno: “Per incrementa temporum crevit scientia spiritualium patrum
(Testamenti Veteris et Novi”: in Ezechielem II, hom 4, n. 12 (PL 76, 980).
68
d. Antecipação do futuro
Creio que temos urgente necessidade dessa inquieta interrogação, entendida como
caminho de liberdade e de alegria, para não limitar-nos a voltar para a “graça das origens” quase satisfeitos ou saudosos de nosso passado. Queremos realmente viver a graça
das origens “não somente como memória do passado, mas como profecia de futuro” (cf.
NMI 3; VC 110). O pensamento deve alimentar-se na fonte da Verdade, da Vida e do
Bem e, ao mesmo tempo, projetar-se para horizontes abertos. Uma filosofia e uma teologia críticas impedirão que o olhar retrospectivo caia num puro tradicionalismo ou numa
nostalgia sentimental em relação às nossas origens. Ao mesmo tempo, a exatidão do
pensamento ajudará a superar todas as ideologias futuristas e utópicas. O pensamento
franciscano foi capaz de discernir os sinais dos tempos e de encontrar sempre de novo a
corajosa força de uma palavra profética sobre o mundo e a sociedade e, se necessário,
também no seio da própria Igreja, para fazer recordar a ordo divina, que é a única que
pode prometer a salvação e a felicidade do homem.
É o Espírito que nos projeta para o futuro (cf. VC 110). Por isso, a busca não pode
parar. Significaria que nossa proposta carismática deixou de ser vital. A busca, da qual o
estudo é uma dimensão, não pode parar, se quisermos “descobrir criativamente novos
caminhos para promover e difundir os valores evangélicos” (RFF 34).
e. Como irmãos
O estudo não é somente uma ocupação privada e solitária. A busca da verdade
impõe-se a nós como Fraternidade, por força de nosso próprio carisma. No contexto da
vida fraterna, podemos ser educados e educar progressivamente para o gosto pela pesquisa e pelo pensamento, para o confronto e para o diálogo entre posições diferentes.
Assim, “os estudos contribuem para a construção da Fraternidade” (cf. RS 24) e a abrem
para a Fraternidade mais ampla da comunidade eclesial e dos homens de boa vontade.
Essa disposição fraterna constitui também um poderoso antídoto contra as tendências à
concorrência e à auto-afirmação nos estudos e na pesquisa e, ao mesmo tempo, um
incentivo para a colaboração ao diálogo entre as disciplinas.
Se a busca da Verdade, da Vida e do Bem é animada pelos pressupostos que procurei
recordar em sintonia com nossa tradição, teremos a base para um diálogo fecundo e simpático com a cultura, sem fechamentos nem exclusivismos (cf. EN 20). A Igreja tem
necessidade dessa profecia num tempo em que o diálogo é sempre mais o novo nome da
caridade, a garantia de paz e de justiça (cf. NMI 55-56). Por isso, é importante e urgente
promover na Ordem o estudo da filosofia, das religiões e das culturas, para podermos
abrir-nos de forma rigorosa e qualificada ao diálogo e ao confronto, em continuidade
com o espírito e a prática da fraternidade que nos é própria.
Descobrimos uma particular relação entre os Frades que têm vocação para a atividade intelectual e todos os outros. É importante que todas as Entidades tenham alguns
Frades que se dedicam aos estudos de forma prioritária e, por vezes, exclusiva. Sua pesquisa deve estimular todos os outros irmãos à escuta e ao diálogo, assim como o trabalho
e a evangelização dos demais deve abrir e iluminar quem se dedica ao estudo. Existe tal
reciprocidade em nossa Fraternidade? Quando Francisco quer falar de todos os seus Frades na ótica de suas atividades, utiliza três palavras: “suplico a todos os meus irmãos que
pregam, que rezam e que trabalham…” (1R 17, 5): pregadores, trabalhadores e rezado69
res. Quem se dedica ao trabalho intelectual “com fidelidade e devoção”, não sufocando
em si a ação do Espírito, exatamente no trabalho e por seu trabalho, sem justaposições
artificiais, pode tornar-se ao mesmo tempo “laborator, praedicator et orator”.
Esta unidade de nossa forma vitae é um apelo urgente a todos nós. Abre a análise
também sobre o papel que o trabalho tem em nossa vida. O trabalho é uma necessidade
ligada à nossa profissão de pobreza e de minoridade. Torna-nos mais solidários a muitos
homens e mulheres para os quais o trabalho já não é fonte de dignidade. Obriga-nos a
optar novamente por uma hierarquia de valores que nos sustenta 17 .
Tudo isso me faz pensar também nos Frades e nos candidatos que, talvez, são menos
atraídos pelo estudo, no sentido estrito da palavra. Também hoje devemos reconhecer
que as capacidades intelectuais não podem ser discriminantes para a vocação franciscana. Todavia, todos nós temos o dever de garantir a todos os Frades, sem distinções, um
nível de preparação tal que permita que cada um se integre na vida da Fraternidade.
Sejamos vigilantes, para que, por causa de um conceito de cultura demasiadamente acadêmico e, portanto, reduzido, não aconteça que excluamos alguns Frades, ferindo assim
a igualdade entre nós. Interroguemo-nos sobre os níveis de acessibilidade aos estudos
nos diversos contextos em que vivemos e sobre as conseqüências para o discernimento
vocacional e para os serviços na Fraternidade.
2. O estudo como escuta e acolhida do outro
a. Ouvir e ver
Vivemos numa civilização da imagem. Talvez a realidade nos ultrapassou e ainda
não nos sentimos bem numa situação tão nova que transforma até o próprio modo de
perceber a realidade. A possibilidade de ver pessoas, coisas e fatos em tempo real está a
nos modificar. Por vezes, essa realidade gera em nós medo e autodefesa. Tememos que
esta civilização da imagem produza uma enorme redução da dimensão de escuta. Não
conseguimos explicar a insensata necessidade humana de aparecer. É tudo negativo? Ou
podemos entrar nessa virada para também nela encontrar um valor? Como unir escuta e
cultura da imagem?
Recordo a dimensão bíblica da escuta, tendo presente que, na própria Escritura, o
“ver” tem uma grande importância, especialmente quando indica o encontro com o Deus
vivo e com o homem criado à sua imagem. É certo que, na fé bíblica, Deus é audível,
mas não visível. A autêntica resposta e a atitude fundamental é ouvir: “Ouve, Israel”,
“ouvi hoje a palavra do Senhor”, “bem-aventurados os que ouvem a palavra de Deus e a
observam”. A última bem-aventurança de João é reservada àqueles que crêem sem ver
(Jo 20,29). Mas essa escuta atinge seu ponto mais alto e se completa no encontro com o
Verbo feito carne. Através da humanidade de Jesus Cristo e, portanto, de cada homem,
podemos “ouvir e ver”: “O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com
os nossos olhos, o que contemplamos e o que nossas mãos apalparam a respeito da Palavra da vida…” (1Jo 1,1).
—————
17
Cf. A Caminho, rumo ao capítulo geral extraordinário, “A vocação da Ordem hoje”, Roma,
26-30.
70
A experiência integral da fé nos salva daquela escuta que se perde no “diz-se” das
conversas diárias e daquele “ver” que é consumo de informações e de imagens. Dessa
forma, rompe-se a inautenticidade na qual estamos mergulhados para acordarmos na
verdade. Portanto, a escuta e o ver são um ato de verdadeira e própria interpretação da
realidade, que não deve ser agredida, possuída e dominada, mas, ao contrário, deve ser
acolhida, reconhecida e promovida.
Esse percurso implica num deixar-se expropriar, num êxodo de si. Por isso, é uma
verdadeira experiência, no sentido etimológico de experior, uma passagem através de um
perigo mortal, onde se realiza uma real mudança de si. A escuta de uma palavra verdadeira gera um novo modo de ver e opera sempre uma profunda transformação. Santo
Agostinho fala em “dar à luz uma nova vida (parturitio novae vitae)” 18 , onde a escuta é
“memória de si, memória de Deus (memória mei, memoria Dei)”. O espanto é o fruto
dessa nova capacidade de escuta.
O estudo é uma das estradas para esta nova escuta do homem e do mundo. Com
efeito, ele nos liberta do medo do nobre cansaço do pensar, enquanto, muitas vezes, nós
nos contentamos em repetir fórmulas e idéias dos outros. Liberta-nos, também do medo
do silêncio, para tomar uma certa distância da realidade. Daqui nascem palavras novas
para gerar uma nova vida, além de palavras tomadas pelo hábito e pela obviedade. Semelhante percurso traz consigo o sofrimento de todo o novo nascimento, inclusive a alegria da descoberta.
b. Ouvir e ver hoje
Vivemos um tempo como o de Samuel, do qual se diz que “naquele tempo a palavra
do Senhor era rara” (1Sm 3,1). Parece que Deus se cala ou esteja quase eclipsado de
nosso horizonte. O sacerdote Eli – instituição – não reconhece logo a voz do Senhor. É
um exercício que exige uma vigília constante, uma interpretação incansável. Deus chama
o pequeno Samuel no silêncio da noite e das palavras humanas. Chama-o por seu próprio
nome: é o despertar da consciência e a assunção de um novo destino, dos quais nasce o
profeta.
Esse itinerário bíblico pode tornar-se modelo para quem busca novos caminhos para
viver este difícil tempo. O estudo é um desses caminhos se se tornar um exercício de
escuta obediente, de recepção do outro enquanto diferente de nós, de olhar novo sobre
ele. A isso somos provocados pelas culturas que hoje se apresentam no cenário do
mundo, pelas muitas crenças e religiões com as quais somos chamados a dialogar, pelos
desafios éticos, os do mundo da comunicação, pela tecnologia, pela engenharia genética
e por muitos outros quadros de confronto. Nos diversos continentes e países nos quais
estamos presentes, estes desafios nos provocam de muitas formas. Indicar uma única
estrada é difícil, ou até impossível. Trata-se de tornar-nos sempre mais conscientes da
necessidade de educar-nos para a escuta e para o diálogo, a fim de aprender a arte do
encontro com as culturas.
Sem dúvida, é urgente encarnar nosso carisma nas diversas culturas em que estamos
presentes e descobrir nelas os germens da intuição evangélica de São Francisco, que tem
condições de revelar também suas novas profundezas (cf. RS 16. 26. 72. 74). “Pensar a
fé” é, então, exercício profético dos crentes a serviço da libertação do homem e do dis—————
18
Agostinho, Confissões VIII, c.6 Petrópolis; Ed. Vozes 2001, pg. 177.
71
cernimento das formas culturais em que vivemos. Por isso, temos necessidade de consolidar tanto a opção vocacional quanto nossa preparação. Com efeito, como disse meu
predecessor Fr. Hermann Schalück, “A presunção, a superficialidade, a indiferença pelas ciências humanas e sacras devem ser consideradas uma ofensa ao dom da vida, ao
homem e à Verdade… Considero um abuso e uma falta de respeito o fato de apresentar-se para servir a uma causa nobre como o Evangelho e o homem sem a devida preparação, ou sem a capacidade de diálogo e de leitura dos sinais dos tempos. Por isso,
deve-se considerar um dever fundamental de cada frade, cada um segundo seus dons, a
dedicação ao estudo. Pois o estudo, se bem fundamentado nos valores franciscanos,
pode realmente ajudar-nos a amadurecer humana, intelectual e espiritualmente e tornar-nos capazes de perceber, com inteligência evangélica, os valores cristãos e franciscanos da cultura contemporânea” 19 .
Nesse contexto, olho convosco para os diferentes meios e culturas nas quais vivemos.
Penso, particularmente, na exigência de escuta e de diálogo na Ásia, continente no
qual o diálogo inter-religioso assume um lugar especial. Nossa presença na Ásia é pequena; no entanto, desafia-nos a preparar-nos adequadamente para aquele que é, certamente, o continente do futuro, graças à juventude de sua população e às enormes potencialidades nela contidas, em todos os níveis.
Penso na Oceania, onde a história da evangelização nos faz sentir como primária a
urgência da aculturação da fé cristã, em vista da qual é necessária uma sólida e adequada
preparação. A esse respeito, o Papa Paulo VI, ao visitar a Oceania, insistiu no fato que o
catolicismo “não só não sufoca o que existe de bom e de original em cada forma de cultura humana, mas acolhe, respeita e valoriza o gênio de cada povo e reveste de variedade
e de beleza a única e inconsútil veste da Igreja de Cristo” 20 . Nesse imenso continente,
somos fortemente convidados a agir em harmonia com os cristãos indígenas para garantir que a fé e a vida da Igreja sejam expressas em formas apropriadas a cada cultura 21 .
Penso na África, infindo continente que grita por paz e justiça, esquecido que é pela
comunidade internacional. A esse propósito, é muito atual a afirmação de Paulo VI na
Encíclica Populorum Progressio: “O desenvolvimento é o novo nome da paz” 22 . João
Paulo II, na Exortação Apostólica “Novo Millennio Ineunte”, atualizou o grito, recordando que apostar na caridade é questão de fidelidade ao Evangelho 23 . A África é rica
em culturas e tradições; nelas o cristianismo e o franciscanismo esperam, sem dúvida,
tornar-se mais africanos; ora, isso exige um qualificado investimento de reflexão e de
estudo, para respondermos à nossa vocação de “guardiães da esperança” 24 .
Penso na África do Norte e no Oriente Médio, onde a presença franciscana, num contexto muçulmano, continua a pedir-nos o esforço de conhecer e de encontrar-nos com
aquele mundo particular, e hoje em convulsão, no espírito do encontro de Francisco com
o Sultão: isso não será possível sem o estudo rigoroso do mundo islâmico e da língua
—————
19
SCHLALÜCK, H. A promozione degli studi nel nostro Ordine, in Acta Congressus
Repraesenrantium Sedem Studiorum OFM, Roma 1994, 70.
20
PAULO VI, Discurso aos Bispos da Oceânia, Sidney, 1970, in AAS 63 (1971), 56.
21
Cf. JOÃO PAULO II, Exortação Apostólica Ecclesia in Oceânia, 2001, 17.
22
PAULO VI, Populorum Progressio, 76-80.
23
Cf. JOÃO PAULO II, Novo Milenium Ineunte, nn. 49-50.
24
Cf. RS 27; JOÃO PAULO II, Discurso no Pontifício Ateneu Antoniano, 1982, n. 4: “Como S.
Francisco, sede também vós no mundo de hoje os guardiães da esperança.
72
árabe, na partilha, como menores, da vida de muita gente, aceitando e aprendendo a
viver como minoria.
Penso na América Central e do Sul, áreas de forte maioria cristã, com sua criatividade pastoral e teológica. Nelas, o crescimento do confronto com outras comunidades
cristãs e com as seitas nos desafia a renovar nossa presença e nosso anúncio. Nesse subcontinente, a situação de pobreza e de injustiça constitui ainda um enorme estímulo para
pensar os fundamentos da paz, da justiça e da integridade da criação. Isso nos desafia a
conhecer melhor os mecanismos causadores de tão escandalosa miséria e a pensar no
tempo da globalização a partir da cátedra dos excluídos e dos mais pobres (cf. EN 31;
RS 27).
Penso no mundo ocidental, da velha Europa à América do Norte, onde é preciso
repensar a própria possibilidade de falar de Deus num mundo secularizado, onde o
sagrado re-emerge, mas a fé parece se eclipsar. Após o desaparecimento das grandes e
loucas ideologias do século XX, o destino do Ocidente parece particularmente incerto e
necessitado de um suplemento de alma para olhar para o futuro; especialmente através
de uma radical reflexão ética acerca dos limites da vida e da morte e de uma antropologia que respeite a integralidade da pessoa humana, sujeito de direitos inalienáveis e jamais redutíveis ao domínio da economia e da esfera privada do indivíduo.
c. Ouvir e ver para anunciar o Evangelho
Em contextos tão diferentes, a evangelização exige um rigoroso trabalho da inteligência. A Palavra de Deus deve ser anunciada em palavras compreensíveis ao homem
de cada época. Nesse sentido, a escola franciscana é chamada a dar hoje à Igreja sua
valiosa contribuição, cultivando um “pensar a fé” de maneira franciscana, capaz de oferecer razões para crer, esperar e amar no contexto atual.
Somos chamados a não nos fecharmos em nós mesmos, como que assustados pela
complexidade, mas a considerarmos o mundo como nosso lugar ordinário e bendito de
vida e de pensamento. Assim aprendemos a dialogar com todos em pé de igualdade, sem
pretender posições privilegiadas, mas tornando-nos interlocutores críveis. Os grandes
mestres da Escola franciscana sempre amaram o confronto com sistemas de pensamento
diferentes, contanto que sempre ricos de sementes daquele que é o Bem. Estas sementes
não estão, por acaso, espalhadas em toda a parte?
Em nossa história, sempre estivemos abertos e sensíveis às situações concretas da
história e da cultura. O franciscanismo encontrou-se e influenciou as artes figurativas, a
poesia e a literatura, a arquitetura e as outras expressões do espírito humano. Fiéis à lógica da Encarnação, somos chamados a continuar por esta estrada. Hoje mais do que
nunca, não queremos estudar para ocupar posições influentes e de poder na sociedade ou
na Igreja. Nossa vocação de menores indica-nos o caminho da escuta obediente e da
hospitalidade ao outro como coisa típica dos pobres. O itinerário que o estudo inicia é
próprio de quem se descobre pobre porque mendicante de sentido, apaixonado pesquisador da verdade em cada manifestação do homem e do mundo, em meio a tantas pessoas
de boa vontade.
Com poucas e simples palavras, São Francisco nos pede que sejamos “submissos a
toda criatura humana por causa de Deus” (1R XVI, 6). Trata-se da humilde submissão à
realidade histórica e humana que se estuda para amá-la, para acolhê-la com respeito e
para restituí-la como dom de Deus (por amor de Deus). A minoridade não admite a rei73
vindicação de direito algum sobre os outros, pois somos chamados a servi-los também
com nossa pesquisa intelectual. O que se aprendeu deve ser partilhado como uma riqueza
comum que vem do Altíssimo. Caminhada exigente numa sociedade e em instituições
culturais que tendem a fazer dos especialistas os depositários privilegiados de um saber
que os distingue dos outros.
Parece-me, pois, que, como Frades menores, por força de nosso próprio nome, somos
chamados a desempenhar uma disposição de vida que devolva ao estudo sua qualidade
de humilde serviço. Estamos diante de uma verdadeira e própria convergência entre a
espiritualidade franciscana e o trabalho intelectual.
d. Ouvir o Espírito do Senhor
A escuta do homem e da realidade na perspectiva franciscana nutre-se de uma escuta
mais profunda. Recordemos a exortação de São Francisco a propósito do trabalho em
geral: “de modo que… não extingam o espírito da santa oração e devoção, ao qual
devem servir as demais coisas temporais” (2R V, 3). Aqui se trata do Espírito do Senhor
e de sua “santa operação”. Se for profunda e verdadeira, a atividade do espírito humano
encontra-se com a do Espírito de Deus no homem, mas não a substitui. Quem respira o
sopro do Espírito permanece livre e não se enrijece numa atividade. São Paulo expressa
isso muito bem: “No presente, vemos por um espelho e obscuramente; então veremos
face a face. No presente, conheço só em parte; então conhecerei como sou conhecido.
No presente, permanecem estas três coisas: fé, esperança e caridade; mas a maior delas é
a caridade” (1Cor 13,12-13).
Na busca humana do conhecimento e da verdade, existe uma parábola e uma realização parcial da busca de Deus. É o desejo que o Espírito desperta e alimenta em nós e que
nos torna pobres, nos ajuda a manter a justa consideração do trabalho autônomo do espírito humano. Na verdade, “pensar a fé” é um exercício altamente espiritual e cristão:
unifica a pessoa e ajuda a permanecer com “o coração voltado para o Senhor”, transformando-se em caridade que pensa amando e ama pensando. Estimula a profundeza da
visão que consente perceber o fio vermelho nos fenômenos e fatos retalhados e, à primeira vista, desconexos. Permite que o crente reconheça o plano salvífico de Deus operante na história e a ele aderir com a vida.
Como bem dizia nosso irmão Giacomo Bini, “a longa história das diversas expressões
nas quais se encarnou o carisma franciscano mostra, com evidência, a fecundidade da
relação entre esforço intelectual e seriedade da experiência espiritual: a partir da experiência de Deus, a inteligência recebe nova força para a busca da verdade; e a verdade
encontrada exige que seja partilhada, anunciada. Não existe autêntica experiência de
Deus que não se transforme em nova luz para a inteligência e em novo estímulo para o
anúncio” 25 .
Estas amplas perspectivas abrem-nos novamente para a vocação missionária, que percebemos ainda atual depois de 800 anos. Enquanto se abrem novos campos para o anúncio
de Jesus Cristo, único Salvador do mundo, e para a implantatio Ordinis, especialmente
na Ásia e na África, convido todos os Frades a se sentirem diretamente responsáveis e
—————
25
BINI, G. Saluto desl Gran Cancelliere per l’inaugurazione dell’Anno Academico 2000-2001,
no Pontifício Ateneu Antonianum, in Liber Trienalis 1999-2002, Roma 2003, 47; cf. RS 15
74
também a terem a audácia de partir novamente para viver e anunciar o Evangelho
quando e como virem que isso agrada ao Senhor (cf. 1R 16, 7-8).
3. Estruturas e meios a serviço dos estudos, da pesquisa e do ensino
a. As Universidades, os Centros de Estudo e de Pesquisa
Nossa Ordem conta com 14 Universidades, eclesiásticas e civis; dois Centros de
Pesquisa, a Comissão Escotista e o Colégio de São Boaventura em Grottaferrata; a
Pontifícia Academia Mariana Internacional e outros 32 Centros de Estudo; a 11 de
Janeiro passado, o falecido João Paulo II concedeu ao Antonianum o título de Universidade Pontifícia.
A partir do distante 1887, ano da inauguração do Colégio Santo Antônio, a caminhada foi longa, muitas vezes cansativa, mas sempre de crescimento. A intuição do
Ministro geral Frei Bernardino Dal Vago de Portogruaro revelou-se muito profética.
Hoje, como no fim do século XIX, a Ordem precisa de um “Studium geral”, certamente
não exclusivo, mas posto a serviço de todos, na cidade de Roma, a fim de promover uma
visão franciscana caracterizada por um zelo universal dirigido a todo o mundo e a todas
as pessoas, de todas as nações, línguas, cor ou sexo, aberto à visão de uma fraternidade
universal dos filhos de Deus, reconhecendo a dignidade e o valor de cada um. O respeito
pelo indivíduo e a integração numa grande família humana e cristã são as características
deste universalismo franciscano. Um universalismo que se constrói por meio da comunicação, da partilha, do diálogo e da solidariedade. Se este universalismo é pedido a todas
as nossas Universidades e Centros de Estudo e de Pesquisa, muito mais deve ele caracterizar as Universidades e os Centros que estão em Roma.
O lugar especial que a Pontifícia Universidade “Antonianum” ocupa na Ordem
(EEGG 112-114) e minha pessoal convicção sobre a importância do estudo para garantir
aos Frades uma qualidade de vida e de testemunho em vista de uma profunda e autêntica
“refundação” de nossa Ordem levaram-me a escrever esta carta. Agora sou estimulado a
refletir brevemente sobre o valor e as tarefas não só do Antonianum, mas também de
todas as nossas outras Universidades, Centros de Estudo e de Pesquisa, nos quais queremos comprometer-nos como Frades menores, não apenas para mantê-los, mas para
aumentá-los em número e, sobretudo, em qualidade (cf. RS 119).
O estudo, a pesquisa e o ensino, entendidos como caminhada para a Vida, a Verdade
e o Bem, como escuta e diálogo com o outro, encontram na Universidade e nos Centros
de Estudo e de Pesquisa lugares especiais de elaboração e de promoção. Os Centros são
animados essencialmente pelo espírito do estudo, da busca metódica da Vida, da Verdade e do Bem, presentes em todos os infinitos âmbitos da realidade e de sua transmissão através do ensino. É por isso que o Frade menor procura encontrar-se com Deus na
complexidade da experiência humana e, nessa busca, descobre como seus aliados todas
as disciplinas que tentam dar sentido à nossa vida e missão.
Em nossas Universidades e Centros, desejo estimular o estudo, a pesquisa e o ensino
de todas as disciplinas. Entre as sagradas, recordo para nós, Frades menores, a importância de ouvir, conhecer, amar e estudar especialmente a Palavra de Deus contida nas
Sagradas Escrituras. Contudo, não nos limitemos às Ciências sagradas. Somos chamados
a abrir-nos também às disciplinas que se referem ao homem: Psicologia, Pedagogia,
Economia, Ciências políticas, Sociologia, Antropologia, Comunicações sociais, Litera75
tura, Artes, Filosofia e História; e as que se referem à criação: Ciências exatas, naturais e
ambientais (cf. RS 48-69), pois “nada daquilo que existe é estranho ao interesse e ao
amor do Frade menor” (RS 48). Se vividos como “itinerário e caminho para sermos iluminados por Deus na mente e no coração” (RS 13), o estudo, a pesquisa e o ensino hão
de conduzir-nos a Ele.
Por essa razão, o estudo, a pesquisa e o ensino, finalidade de cada Universidade e
Centro de Estudo, são essencialmente experiência de vida. Para um Frade menor – estudante, professor ou pesquisador – nenhuma dessas atividades é um distintivo para
embelezar o próprio eu. É antes cansaço e paixão para o verdadeiro, o bom e o belo, que
dão forma à nossa interioridade, sentido à existência humana e religiosa, razão às nossas
opções vocacionais (cf. RS 11). O objetivo último do estudo, da pesquisa e do ensino em
nossas Universidades e Centros de Estudo, e dos Frades menores que se dedicam a isso,
não é, pois, o de adquirir e oferecer informações, menos ainda o de ter um título. Mas de
estimular a busca da Vida, da Verdade e do Bem, em nós e nos outros. Certamente, não
basta estar bem informado. Só a transformação da mente e do coração levará a um
estudo, a uma pesquisa, a um ensino verdadeiramente fecundos.
Nossas Universidades e Centros de Estudo e de Pesquisa são chamados a dar sua
colaboração para se elaborar uma cultura a serviço integral do homem, capaz de ir além
dos critérios de praticidade, de rendimento e de concorrência, não estranhos às próprias
Universidades. Seguindo a secular tradição dos grandes representantes da Escola franciscana, nossas Universidades devem apostar na “diaconia” do saber a serviço do
homem, superando assim o poder da ciência que explora o homem.
Por outro lado, todos os Centros de Estudo e de Pesquisa franciscanos são chamados
a transmitir de forma atualizada o patrimônio cultural, filosófico e teológico da Escola
franciscana, na convicção de que “do grande depósito da teologia e da sabedoria franciscana podem ser tiradas respostas adequadas também para as dramáticas interrogações da humanidade” 26 . Isso exige, sem dúvida, um estudo crítico e aprofundado da
tradição cultural franciscana. Estudá-la por curiosidade é estéril, estudá-la de forma
apologética é triunfalismo prejudicial. É necessário aprofundá-la criticamente, para iluminar com um verdadeiro e próprio ato de esperança as grandes questões que nosso
tempo nos apresenta.
Abertas ao diálogo fecundo com as culturas, nossas Universidades e Centros de
Estudo e de Pesquisa têm a importante tarefa de criar pontes entre elas e o Evangelho.
João Paulo II nos disse: “É tarefa das vossas Universidades e Centros de Pesquisa realizar um encontro fecundo entre o Evangelho e as diversas expressões culturais de nosso
tempo para ir ao encontro do homem de hoje… Segundo o exemplo de São Francisco e a
grande tradição cultural da Ordem franciscana, tende o cuidado de colocar o Evangelho no coração da cultura e da história contemporânea” 27 .
A abertura para a complexidade do saber humano induz à escuta e ao diálogo, como
procurei lembrar nesta Carta. O verdadeiro intelectual é sempre capaz de perguntas; é
humilde e corajoso ao prestar atenção sincera aos argumentos de quem tem posições
diferentes. Essa disposição nos impede de cair em várias formas de ideologia que pre—————
26
JOÃO PAULO II, Mensagem aos participantes do Congresso Internacional das Universidades,
Centros de Estudos e de Pesquisa OFM, 2001, in Atti del Congresso Internazionale delle Universitá,
Roma 2002, 25.
27
Id., ibid, 25.
76
tendem tornar exclusiva uma idéia ou parte dela e são fruto da falsa segurança de uma fé
que tem medo de pensar e pensa poder ignorar as perguntas e as ambigüidades presentes
na realidade. Eis uma importante missão que fica aberta às nossas Universidades e Centros de Estudo e de Pesquisa 28 .
b. Outros âmbitos de conservação e de desenvolvimento cultural
A par das Universidades e dos Centros de Estudo e de Pesquisa, temos na Ordem
outras preciosas Instituições culturais, que devem ser protegidas e promovidas nas Províncias mais antigas e devem ser desenvolvidas nas mais recentes. Convido a ler esta
parte com a atenção dirigida para os artigos 118-141 de nossa Ratio Studiorum, que
decididamente recomendo.
As bibliotecas e os arquivos estão em primeiro lugar. Não se trata de museus, mas de
lugares onde o patrimônio literário e escrito deve ser guardado, tornado acessível e reconhecido como motor de pesquisa e de desenvolvimento intelectual em ligação com as
perguntas de nosso tempo. Em muitas Províncias, o necessário redimensionamento das
Casas faz correr o risco de perder ou de não salvaguardar suficientemente um notável
patrimônio cultural. Lembro aos Ministros e aos Custódios que o cuidado por estas instituições atinge o interesse e o futuro de toda a Ordem e não é apenas assunto particular
da Entidade. É necessário zelar, também em colaboração com entidades civis e sociais,
pelas bibliotecas e pelos arquivos, evitando o abandono, o descuido, a dispersão e o
esquecimento do patrimônio livreiro, fomentando sua guarda ou transferência para as
casas da Ordem, particularmente para os Centros de Estudo.
O mesmo vale para o patrimônio cultural constituído por muitas de nossas Casas,
pelas Igrejas e pelas obras de arte que ali são conservadas. Precisa-se de um pouco mais
de fantasia e de atenção para encontrar maneiras de conservar e de atualizar este patrimônio, sem transformar-nos em imóveis guardas de museus. Sem dúvida, a arte é um
lugar privilegiado de diálogo com a cultura contemporânea e, por caminhos a serem totalmente descobertos, de evangelização.
Para promover semelhante atenção é ainda necessário cuidar dos estudos literários,
artísticos e técnicos. Trata-se de uma real necessidade, para que a pesquisa não se torne
instrumento de posse e de domínio, mas de humilde aproximação ao grande mistério
escondido em cada coisa. A experiência franciscana do estudo e da atividade artística
não nos apresenta a figura do Frade menor como alguém que quer conquistar para poder
aumentar o lucro técnico ou econômico, mas como um ser tocado, sacudido e fascinado,
um ser tomado pela admiração do Verdadeiro, do Bem e do Belo que é inerente às coisas. Através da via pulchritudinis poderemos desenvolver elementos essenciais da visão
franciscana do mundo e do mistério de Deus e, ao mesmo tempo, encontrar-nos com
muitos homens e mulheres de nosso tempo.
Outro campo que gostaria de lembrar é o das comunicações sociais. Trata-se já de um
verdadeiro e próprio “lugar”, uma “ágora” única na qual os homens de hoje se encontram entre si de forma nova e com desenvolvimentos imprevisíveis. Portanto, convido os
Ministros, os Custódios e todos os Frades, sobretudo os mais jovens, a conhecer, a estu—————
28
Sobrea s áreas do Estudo, cf. OPPES, STEFANO OFM, Formazione e studi nella Ratio Studiorum
sell’Ordine dei Fratri Minori LXXVII 1 (2002), 13-23.
77
dar e a entrar nesse mundo, não como intrusos, mas como quem sabe que está em casa
onde existe algo que é plenamente humano.
Não posso deixar de destacar aqui a necessidade de garantir pesquisadores e estudiosos da história, da literatura, da filosofia, da teologia e da tradição franciscana. Não só no
que se refere diretamente às origens, mas por todo o espaço de oitocentos anos durante
os quais nossa tradição se mantém viva. Particularmente, instituições como a Comissão
Escotista, o Colégio São Boaventura dos Frades Editores de Quaracchi e a Pontifícia
Academia Mariana Internacional, para terem continuidade, pedem Frades seriamente
preparados e abertos a colaborações externas.
CONCLUSÃO
Chegando ao fim desta Carta, desejo comunicar-vos com simplicidade que, neste
momento, considero fundamental uma aproximação maior entre os Frades que se dedicam à evangelização e os que se entregam ao estudo, à pesquisa e ao ensino. Sua recíproca presença no decorrer da história franciscana não pode ser considerada uma desgraça, mas uma riqueza. É antes o divórcio e a oposição entre as duas que constituem
uma desgraça, segundo vemos muitas vezes em nossa história. Dessa forma foram penalizados o estudo, a pesquisa e a pregação.
Muitos Frades dedicados à evangelização consideraram-se dispensados do estudo e
muitos estudiosos julgaram-se isentos da evangelização. Chegou a hora da reconciliação.
Se parece que os Frades se deixam absorver completamente pelos ministérios e serviços,
é necessário recordar-lhes a necessidade do estudo: uma adequada preparação intelectual
é fundamental em qualquer atividade apostólica. Ao mesmo tempo, aos que se dedicam
ao estudo, à pesquisa e ao ensino de forma prioritária, sinto a necessidade de lembrar que
estas atividades não podem ser separadas do dom e do esforço de viver com alegria as
exigências de nossa forma vitae.
Gostaria que com esta Carta tivesse início um diálogo sobre os temas que apresentei.
Estimo, sobretudo, que tal diálogo continue em vários níveis e nos diferentes contextos
culturais, nas Entidades, nas Fraternidades locais, nas Casas de formação, em nossas
Universidades e nos Centros de Estudo. Um diálogo que nos leve a progredir, para podermos olhar com confiança e lucidez o futuro que nos espera e que já se inicia entre
nós. Certamente, não tenho a pretensão de ter dito tudo e bem. O diálogo entre nós poderá completar o texto.
Sobre os que estão à busca da Verdade, da Vida e do Bem e sobre os que estão em
atitude de encontro, de escuta e de diálogo invoco a bênção do Senhor e do Seráfico Pai.
Roma, da Cúria geral da Ordem,
13 de Junho de 2005.
FR. JOSÉ RODRÍGUEZ CARBALLO, OFM
Ministro peral
78
ABREVIATURAS
Sagrada Escritura
Sl
Salmos
1Sm
Primeiro livro de Samuel
Mt
Evangelho de São Mateus
Lc
Evangelho de São Lucas
Jo
Evangelho de São João
1Cor
Primeira Carta aos Coríntios
1Jo
Primeira Carta de João
Escritos de São Francisco de Assis
Ex
Exortações
CO
Carta a toda a Ordem
2R
Regra Bulada
2R
Regra não Bulada
SV
Saudação às Virtudes
T
Testamento
Outras abreviações
1C
Vida primeira de Tomás de Celano
AP
Anónimo Perusino
TC
Legenda dos Três Companheiros
AAS
Acta Apostolicae Sedis
EN
Paulo VI, Evangelii nuntiandi, Carta apostólica, Roma 1975.
VC
João Paulo II, Vida consagrada, Exortação apostólica, 1996.
NMI
João Paulo II, Novo Millennio Ineunte, Carta apostólica, 2001.
CCGG
Constituições gerais da Ordem dos Frades Menores, Roma 2004.
EEGG
Estatutos gerais da Ordem dos Frades Menores, Roma 2004.
AO
Acta Ordinis Fratrum Minorum
FP
A formação permanente na Ordem dos Frades Menores, Roma 1995.
Ratio Studiorum, Roma 2001.
RS
RFF
Ratio Formationis Franciscanae, Roma 2003.
O Senhor vos dê a paz, Documento do Capítulo geral 2003, Roma 2003.
Sdp
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