Entrevista com Carlos Sluzki1 Interview: Carlos Sluzki

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Entrevista com Carlos Sluzki1 Interview: Carlos Sluzki
Entrevista com Carlos Sluzki1
Interview: Carlos Sluzki
Carlos Sluzki é um dos precursores na área de Terapia Familiar. Recentemente, em abril de 2007, Sluzki esteve em Porto Alegre ministrando
workshop promovido pela AGATEF. Na ocasião, conversamos sobre o percurso trilhado em seus anos de estudo, pesquisa e atividade clínica. Nesta
entrevista, realizada pela Comissão Editorial da Pensando Famílias, contanos um pouco sobre isto.
Pensando Famílias: Como você se interessou pela Terapia Familiar?
Carlos Sluzki: No começo da década de 60, durante a minha formação como psiquiatra comunitário em Buenos Aires, participei de uma equipe
de pesquisa interdisciplinar dirigida por um talentoso sociólogo, Eliseo Veron,
com quem estávamos tentando decifrar os processos através dos quais as
variáveis macro-sociais traduziam-se em processos micro-sociais (incluindo
a psicopatologia). Na nossa busca por lentes sólidas e elegantes que nos
permitiriam explorar essa interface – lentes estruturais (como a de LeviStrauss), psicanalíticas (a de Fairbairn), comunicacionais (como a de Colin
Cherry) e semiológicas (a de Saussure) –, tropecei, folheando uma revista
profissional, com “Toward a theory of schizophrenia”. Este artigo, escrito por
Gregory Bateson, Don D. Jackson, Jay Haley e John H. Weakland, formulava uma proposta sobre os efeitos interpessoais, de longo prazo, de certo tipo
de contradições na comunicação familiar que tem potencial de facilitar o
desencadeamento de esquizofrenia nos filhos. O desvelar dessas tramas
patogênicas interacionais indicava também a possibilidade de que os sintomas não somente são produtos de processos familiares, mas que poderiam
ser modificados através de mudanças nos mesmos.
A proposta de que a psicopatologia poderia ter como raiz a interação
no ambiente familiar – idéia para aquela época radicalmente nova – não somente reorientou nossa investigação, mas mudou o curso da minha vida
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Carlos Sluzki é Professor no College of Health and Human Services e no Institute for Conflict
Analysis and Resolution, ambos em George Mason University, na Virginia (USA) e Professor
de Psiquiatria na Escola de Medicina da George Washington University, em Washington DC.
Foi Editor da Revista Family Process e do American Journal of Orthopsychiatry e Diretor
Geral do Mental Research Institute, em Palo Alto, Califórnia (USA).
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profissional. A elegância que a lente sistêmica propunha, com o foco de
atenção centrado nos processos interativos mais do que na “caixa preta” da
mente, abria novos caminhos para explorar as tremendas interrogações do
continuum psicossocial. Como é sabido, o modelo do “duplo vínculo” e, em
última instância, a terapia familiar em geral, que derivou em boa parte deste
modelo, não cumpriram sua promessa de reverter a esquizofrenia. Mas a
ponte interdisciplinar que esse artigo abria era clara – a família media processos centrais de socialização –, o modelo apresentava uma combinação
calibrada de conceitos cibernéticos, semânticos e comunicacionais, e a rota
que abriu é extraordinária. Como é sabido, esse artigo, e os que se seguiram
desta equipe, exerceu enorme influência no desenvolvimento da terapia familiar.
Atraído pela linha de investigação deste grupo, em 1965 obtive um auxílio financeiro que me permitiu passar três meses no Mental Research
Institute, imerso em cursos, trabalho em equipe e conversas com Don Jackson,
Virginia Satir, Paul Watzlawick, Jay Haley, Janet Beavin, John Weakland,
para não mencionar os inúmeros visitantes extraordinários que nessa época
aterrizavam no MRI para ver do que se tratava tudo isso. Nos anos seguintes,
passei um par de meses por ano com esse grupo – até que se desmembrou
em grande parte com a morte prematura de seu diretor, Don Jackson, e a
partida de Satir, Haley, Beavin e muitos outros. Mas aí já tinha tido oportunidade de conectar-me com boa parte do pequeno mundo dos pensadores
originais que constituíam o núcleo gerativo da terapia familiar, pelo que passei a fazer parte de uma espécie de “geração intermediária” nessa rede. Em
1970 organizei o primeiro congresso de terapia familiar que aconteceu na
Argentina, e no final do ano de 1971 emigrei para os Estados Unidos, onde
vivo desde então. Meu papel no campo da terapia familiar, além de meus
escritos, inclui ter sido, entre 1976 e 1983, Diretor da Formação e depois
Diretor do Mental Research Institute, e entre 1983 e 1990 Editor-Chefe da
revista pioneira e mais prestigiosa sobre o tema, Family Process. Além disso, durante muitos anos contribui para a introdução desta perspectiva tanto
nos departamentos de psiquiatria que dirigi como no mundo hispano-lusofalante através de cursos intensivos anuais sobre terapia sistêmica, assim
como inúmeros cursos e conferências. Finalmente, meu compromisso social me tem mantido ativo no mundo dos direitos humanos, dos refugiados e
dos exilados políticos.
P. F.: Quais as vantagens que a Terapia Familiar traz para o tratamento
clínico?
C. S.: Vantagens? “Terapia familiar” é um conjunto de tecnologias que
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geralmente (não sempre) derivam de uma epistemologia sistêmica e narrativa, com variações que se expressam de maneira diversa. A respeito, merece
recordar que, durante os seus períodos de gestação, o edifício conceitual e
pragmático das terapias familiares se nutriu de linguagens, modelos e experiências de muitos outros campos – a psicanálise, a teoria da comunicação,
a cibernética, a teoria geral dos sistemas, a retórica, a etologia, e tantos
outros. O caldo de cultivo foi amplo e variado. Talvez, à medida que temos
nos tornado mais disciplinados – no sentido clássico e no de Foucault –, a
fronteira entre o nosso campo (o da terapia familiar) e os territórios vizinhos
foram se tornando mais impermeáveis graças a nossa tendência inevitável
de outorgar centralidade a nossos modelos prediletos. Certa dose de paixão
era, certamente, necessária para poder desenvolver novas idéias e novos
campos (Eppur si muove!), mas nossa persistência imensa em nos apaixonarmos por nossos modelos somente preserva nossa tranqüilidade, enquanto secretamente lamentamos a perda da sensação de pioneirismo, quando
não inventamos novas palavras para nos dar a ilusão da novidade.
Uma vez dito tudo isso, creio que os modelos sistêmicos-narrativos
que estão na base da minha forma de pensar/fazer terapia são uma espécie
de cosmogonia que, tratada com humildade, sem arrogância, organizam uma
aproximação respeitosa e poderosa para introduzir mudança na vida das
pessoas.
P. F.: O que é recomendado para casos envolvendo doenças psiquiátricas? Como lidar com depressão, bipolaridade e esquizofrenia?
C. S.: Toda a evidência indica que os quadros psiquiátricos graves são
resultado de processos nos quais jogam nature et nurture – gens e meio
circundante –, e que afetam tanto como são afetados por seu meio microsocial. Tratar quadros psiquiátricos graves somente com terapia familiar é
tão sectário e insuficiente como tratá-los somente com medicação psicotrópica. Os tratamentos que incluem tanto medicação – quando indicada –
quanto terapia familiar são simplesmente mais eficazes. Há evidência clara
a esse respeito com quadros depressivos e bipolares severos. E em particular, em relação a pacientes com esquizofrenia, os enfoques psicoeducacionais
familiares são um complemento terapêutico que de maneira sem controvérsias reduz as recaídas.
Além disso, na atualidade estão se abrindo caminhos extraordinários
que incluem intervenções familiares sistêmicas para a prevenção primária
desses quadros psiquiátricos graves já que, uma vez desencadeados, têm
efeitos negativos em longo prazo tanto nos pacientes como nas famílias.
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P. F.: Que conceitos psicanalíticos te ajudam hoje na prática clínica, se
é que algum o faz? Como?
C. S.: Muitos dos conceitos psicanalíticos têm passado a constituir
parte da base de conhecimentos comumente aceitos na nossa cultura (por
exemplo, a noção de inconsciente, ou de repressão, ou de formação reativa,
ou os triângulos edipo/electra).
No meu trabalho clínico não me percebo usando modelos psicanalíticos, mas quando reviso minha linguagem, muitos conceitos e suposições
prévias a essas raízes aparecem uma ou outra vez, o que não é de estranhar
já que tenho no meu passado uma formação psicanalítica completa.
P. F.: Como você define a linha teórica que você usa hoje em seu trabalho clínico? Ao que você poderia compará-la?
C. S.: Desde os anos 60, a complexidade dos quebra-cabeças dos
níveis de análise relevantes para uma compreensão das normalidades
psicossociais do ser humano e seus inúmeros desvios, e para guiar nossa
tarefa clínica sobre um terreno sólido, tem aumentado enormemente. Minha
versão do que é “pensar sistemicamente” inclui interações bio-psico-sociais.
Não é de estranhar que atualmente ensine Epidemiologia Social na universidade, que esteja escrevendo atualmente sobre integração da genética e
modelos sistêmicos, que continue me interessando pelo tema das narrativas
e das redes sociais... e tantas outras coisas mais.
P. F.: Que autores mais influenciaram sua forma de ação? Quais são
suas referências e inspirações para trabalhar?
C. S.: Minuchin fala sobre suas “múltiplas vozes”. Em diferentes períodos de minha vida tenho tido diferentes vozes, às vezes vozes de professores, às vezes de colegas/amigos e às vezes de discípulos: Maurício
Goldenberg – meu professor e modelo de psiquiatria comunitária na Argentina –, Watzlawick e Don Jakson – meus anfitriões e apoio durante meu primeiro período no MRI –, Virginia Satir – minha primeira professora de terapia
familiar –, Lyman Wynne – investigador tenaz e generoso –, Mara Selvini –
mistura insólita de fanática entusiasta e capacidade autocrítica –, Heinz von
Foerster – ciberneticista com curiosidade infinita –, Gianfranco Cecchin –
camarada de muitas aventuras intelectuais (Agora que penso, estou mencionando primeiro quem já não está entre nós, o que me outorga uma certa
liberdade, já que posso reinventá-los a meu gosto). Outros constituem ecos
antigos (faz muito que não os vejo/leio) – tais como Michael White e Lynn
Hoffman. Por sorte, muitos outros seguem sendo parte do meu mundo atual
– Minuchin, Don Bloch, Marcelo Pakman, minha esposa Sara Cobb, além de
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muitos amigos e colegas de todo o mundo com os quais interajo com freqüência, e que me ajudam a manter uma cota razoável de pensamento crítico, compromisso social... e bom humor.
Endereço para correspondência
[email protected]
Tradução
Psic. Laíssa Eschiletti Prati – Terapeuta de família
Recebida em 06/06/2007
Aceita em 08/06/2007
Traduzida em 11/06/2007
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