No início, o encontro entre o clássico e o popular

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No início, o encontro entre o clássico e o popular
Sexta-feira, 30 de abril de 1999
O GLOBO
2 SEGUNDO CADERNO
l
.
UMA ODE AO MESTRE • Continuação da página 1
No início, o encontro entre o clássico e o popular
Na feliz convivência com a mulher Stella e os filhos Dori, Danilo e Nana, reside o segredo da eterna juventude de Caymmi
ORIGENS: “Tanto do lado paterno quanto materno havia tendência pela música. Na música da
sala de visitas quem mandava era
o piano. Todo mundo tinha piano,
tinha aquela estante com partituras de Chopin e peças clássicas
mais populares, como as de
Strauss. Isso do lado paterno, por
causa da origem italiana. A música materna era a popular, do violão, do bandolim. Na sala lá de casa tinha um bandolim à maneira
napolitana, com um laço, que ficava em cima de uma almofada,
era chique”.
SEDE
l
l VOCAÇÃO: “O que eu aprendia
de ouvido não tinha nada a ver
com o que se executava. Era tudo
na base da intuição. Então, instintivamente, a música foi nascendo. Fui observando os acordes,
aprendi muito com os que sabiam
violão. Eu ficava fascinado com
as regras básicas de harmonia.
Acho que tinha vocação para investigação, para saber se algum
acompanhamento estava ‘de
bem’ com a melodia. Eu estudava
nos métodos de violão e sentia
que podia alterar alguma coisa,
não sei explicar por quê. Talvez
uma necessidade de fugir do lugar comum. Meu pai dizia, às vezes, que os acordes que eu fazia
estavam ‘desentoando’ e eu não
sabia dizer nada, apenas fazia por
puro instinto. Mas continuava
usando os métodos para exercitar ritmos como a valsa, que eu
chamava de ‘besta é tu, besta é
tu’ para marcar o tempo, os sambas, o maxixe com aquele remelexo gostoso que costumava ver
nas festas de família. A minha música veio da rua, da palma, do pé,
a música popular”.
l RÁDIO: Quando surgiu o rádio
foi uma sensação, as famílias se
juntavam para ouvir, começou o
sucesso da música e também dos
locutores. Surgiram as primeiras
estações da Bahia, a Rádio Sociedade, a Rádio Comercial e a Rádio
Clube. Uma vez estava com um
Leny Andrade é a
homenageada do
Troféu Eletrobrás
Cantora vai receber o
prêmio hoje, com show
ao meio-dia no Rival
oje é um dia festivo para
a longa carreira da cantora Leny Andrade. Logo
mais, às 12h30m, ela receberá o Troféu Eletrobrás de
MPB, no Teatro Rival. Em sua sexta edição, o troféu foi instituído
para valorizar os artistas que enriquecem a música popular brasileira, já tendo premiado anteriormente Paulinho da Viola, Dona
Ivone Lara, João Bosco, Elza Soares e Jorge Benjor.
— Me dá muita alegria ser reconhecida em meu país — diz a
cantora que, comemorando 42
anos de carreira, vive há seis
anos entre os EUA e o Brasil.
H
Cantora está com agenda
cheia no exterior
Conhecida como “a primeira
dama da música brasileira” nos
EUA, ela tem agendados novos
compromissos no exterior:
— Vou terminar meu disco de
boleros em Caracas, na Venezuela, com arranjos de Chucho Sanoja, que tem estilo parecido com o
de Gil Evans. Em junho, cantarei
em Washington, com Charlie
Byrd e Herbie Mann.
Hoje, durante a cerimônia da
entrega do troféu, a cantora também será entrevistada.
— Mas tudo vai acabar em música. Vou cantar oito ou dez canções do meu repertório num contexto mais intimista que o habitual. (José Domingos Raffaelli) n
l RIO DE JANEIRO: “Em 1937 pedi licença a papai para vir ao Rio
de Janeiro. Há muito tempo eu tinha vontade de vir para cá. Imaginei que poderia sobreviver de
bico em jornal, que eu já conhecia, havia trabalhado durante um
período no ‘Imparcial’, de Salvador. Vim com o troco dos 500 mil
réis que papai me deu com muito
sacrifício, tirando a passagem e a
mala. A primeira pessoa do meio
de música que conheci aqui me
foi apresentado por um contraparente que costumava me orientar
na cidade.
— Sabe quem era? Assis Valente.
Foi um susto !
Ele era dentista, protético, tinha
um laboratório com muitos empregados na Rua da Carioca. Fui
lá pegar uma capa de violão emprestada porque o meu eu trouxe
da Bahia sem capa. Eu ia na Rádio
Tupi para uma entrevista com
Teófilo de Barros Filho. Ele gostou do meu canto e disse que não
podia me contratar mas me pagaria um cachê a cada vez que eu
cantasse. Uma vez ele chamou
um senhor para me ouvir, eu toquei e ele perguntou: ‘--A música
é sua ?’
Eu disse que sim. Foi outro susto.
Era Assis Chateaubriand, dono
daquilo tudo ali...”
O QUE É QUE A BAIANA TEM:
“Um dia chegou um grupo baiano
para tocar na Rádio Transmissora. Resolveram me convidar e me
tiraram da Tupi me oferecendo
um salário maior. Quando cantei
uma música que tinha feito na
pensão, chamada ‘O que é que a
baiana tem’ foi uma sensação. À
medida que cantava nos programas, meus cachês eram maiores
e comecei a ver nomes conhecidos no auditório, olhando pelo
vidro, interessados em saber
quem era que cantava essa música da Bahia. Tinha o Braguinha,
Orlando Silva, entre outros”.
l
DORIVAL CAYMMI delimita sua origem: “A minha música veio da rua, da palma, do pé, a música popular”
amigo de infância muito querido,
Zezinho, tínhamos a mesma idade, 16 anos, vimos os letreiros da
Rádio Clube da Bahia e resolvemos entrar para ‘ver por dentro’.
Entramos numa sala com um piano, um microfone num pedestal e
umas cadeiras postas de uma maneira formal. Então chegou um
moço dizendo se chamar Viví e
que era diretor da rádio. Perguntou se estávamos gostando e nos
levou para conhecer as instalações. Depois quis saber se um de
nós sabia cantar e eu, timidamente, disse que sim. Como não havia
um violão por perto, o tal do Viví
chamou um pianista estrangeiro
que estava de passagem pela cidade para me acompanhar no
teste. Escolhi uma canção famosa
de Francisco Alves, que não me
lembro agora, e Zezinho foi lá para a cabine me escutar. Quando
acabei de cantar ele veio na minha direção impressionado, dizendo que eu cantava igualzinho
a Francisco Alves. Pena que não
tinha ainda gravação para registrar. Passei a gostar do rádio”.
l MARACANGALHA: “Era o nome
de um lugar de porto, de rio, na
zona canavieira do Recôncavo
Baiano. Era onde chegava a cana
que vinha do interior para ser
moída na usina. Quando os burros chegavam com a carga de cana, os operários tiravam aquelas
‘cangalhas’, aqueles canteiros
elegantes que os burros carregavam para descarregar a cana e
preparar os burros para uma nova viagem de volta para o inte-
Saramago critica falta de amor ao próximo
Escritor, homenageado em SP, diz que ser humano é amputado espiritualmente
Sergio Andrade
Adriana Blak
nários” do livro “A bagagem do
viajante”. O compositor fez o público gargalhar, ao contar como
escolheu o que iria ler:
— Dei mil voltas para chegar
até aqui. Estou procurando o que
ler desde o mês passado, o que
me deu o prazer de reler vários
romances de Saramago. A minha
tendência era ler o romance inteiro. Porém, reconhecendo as minhas limitações de leitor, acho
que fiz bem em escolher uma crônica, que é mais simples, com começo, meio e fim.
SÃO PAULO
erca de 750 pessoas lotaram o auditório do SescVila Mariana, na noite de
anteontem, para o evento
“Encontro com Saramago”. Além
da leitura da peça “O evangelho
segundo Jesus Cristo” — baseada
no livro homônimo do escritor e
que deve estrear em outubro na
capital paulista — e de uma leitura de um texto do Nobel de Literatura feita pelo cantor e compositor Chico Buarque, o destaque
da noite foi mesmo o homenageado. Em seu longo discurso, que
durou uma hora, José Saramago
emocionou a platéia — que teve
na primeira fila uma sorridente
Pilar del Rio, sua mulher — falando sobre o homem e a falta de respeito com o próximo, criticando
duramente a Declaração dos Direitos Humanos — “Só sobrou um
documento que, na prática, não
vale nada” — e as guerras:
— O ser humano é amputado
espiritualmente. Nosso grande
drama está na incapacidade que
temos mostrado de cultivar o
simples respeito humano. As religiões não deveriam ser, como
são, obstáculos para que as pessoas se entendessem.
C
Elogios à interpretação
de Mamberti para Deus
Sentado ao lado de Chico, o escritor português assistiu depois à
atuação dos atores Sérgio Mamberti, Odilon Wagner, Tuca Andrada, Júlia Catelli e Ricardo Taui. A
CHICO BUARQUE e José Saramago durante a homenagem no Sesc: emoção
montagem, que terá direção de
José Possi Neto, será a primeira
adaptação teatral de uma obra do
escritor no mundo.
— Foi uma honra ter feito a leitura para ele — disse Odilon, intérprete do Diabo.
No final do evento, já nos bastidores do teatro, Saramago foi
elogiar Sérgio Mamberti pela sua
forma de interpretar Deus.
— Ela me surpreendeu, seu
Deus é de um cinismo atroz. E
olha que eu coloquei cinismo,
mas não pensei que chegasse a
tanto — disse Saramago a um
emocionado Mamberti.
Depois da leitura teatral, Chico
Buarque subiu ao palco para ler
crônica “A velha senhora dos ca-
Escritor diz ter menos interesse
em falar de literatura
Apesar do tom contundente
que marcou seu discurso sobre
humanidade e respeito, Saramago também proporcionou momentos divertidos, como quando
disse estar cada vez menos interessado em falar de literatura:
— Parece até conversa de pregador (risos), mas sendo eu escritor, cada vez me interesso menos
em falar do que eu faço.
E foi um sinceramente emocionado Saramago que agradeceu a
homenagem recebida na noite.
— Devo ter surpreendido por
não ter falado de livros, mas falei
de algo onde a literatura está, e
ela está dentro das nossas vidas.
A literatura passou por aqui através da crônica lida pelo Chico e
do trecho lido pelos atores, que
me deram a alegria de ouvir aqui
palavras que são minhas. Este foi
um encontro com uma pessoa
chamada José Saramago e não
com o escritor. n
rior. Então a cangalha é o nome
mais aproximado. Me explicaram
na época que havia um inglês que
mandava na usina e que dava ordens aos empregados para amarrarem as cangalhas nos burros. O
samba ‘Maracangalha’ nasceu de
uma história engraçada que se
passava com o meu amigo de infância e compadre Zezinho. Às
vezes ele dormia fora de casa e eu
ficava curioso para saber qual
justificativa ele dava à Damiana,
sua mulher. Ele dizia:
‘ Eu tenho! Digo que vou para Maracangalha.’
E eu perguntei:
‘Mas o que é Maracangalha ?’
‘É um lugar que tem aí onde eu faço negócios com sacos de açúcar.
Quando ela pergunta, digo que
vou para lá negociar. Maracangalha nasceu de Zezinho, dessa conversa dele de enganar minha comadre”.
l OS FILHOS E A MÚSICA: “Dori
é sempre da pesquisa, da experiência, do acorde. Não é sofisticado, ele é técnico. Procura fazer
o certo, os ritmos. É um ourives
do negócio. Fica ali cuidadosamente polindo, burilando, arrumando... Isso é o Dori. Já Danilo é
mais espontâneo não só quando
faz uma canção, uma melodia
com letra ou pura. No cantar mesmo aparecem nuances na voz que
nem ele espera. Às vezes ele coloca a voz onde pensa que não vai
conseguir. É o feitio do Danilo...
Nana tem disso também e tem a
vantagem de ter herdado muito
da mãe, a nossa Stella, o rigor
com a melodia, o compasso, a dinâmica da canção. Ela pode cantar pensando na letra mas tem
um cuidado todo especial com a
linha melódica. A cada vez que
desabrochava num filho esse toque de entender o que eu estava
fazendo em termos de música,
para mim foi um dos pontos de felicidade nesses 59 anos de casado. Lembro-me do Danilo rapazinho sentado na porta da cozinha
do apartamento, tocando uma
música diferente que ele estava
compondo, e Stella perto, de costas, debruçada sobre a pia (nesse
momento Dorival pega o violão e
toca ‘Andança’). De repente Stella
se virou pra mim, que estava do
outro lado e me deu aquele sorriso de cumplicidade. n
MARIO ADNET é compositor e
ar ranjador
Artistas plásticas
vão pedir embargo
de obra de Holzer
Projeção de textos em
pedras do Rio é tida
como poluição visual
s projeções que Jenny Holzer pretende fazer nas pedras do Rio já estão causando polêmica. A artista
plástica americana chega hoje à
cidade e já pode encontrar uma
ação judicial pedindo o embargo
de suas frases luminosas, que seriam projetadas em lugares como
a pedra do Arpoador e o Morro
Dois Irmãos entre os dias 7 e 9 de
maio. As artistas plásticas Claudete Caparó, diretora do Centro
Cultural Retiro das Artes, e Dorée
Camargo, da Associação Brasileira de Defesa Ecológica, anunciaram ontem que pretendem pedir
o embargo judicial do evento, que
já teve versões semelhantes em
cidades como Florença, Sidney e
Nova York.
— Isso é prejudicial à ecologia
e causa poluição visual — diz
Claudete.
A
Artista também inaugura
exposição no CCBB
Jenny Holzer também vai montar a exposição “Proteja-me do
que eu quero” no Centro Cultural
Banco do Brasil. O curador da
mostra, Marcello Dantas, reagiu
com bom humor à ameaça de embargo (“As pedras estão caladas
há muito tempo, querem falar”) e
garantiu que a obra não causa danos à natureza:
— Tanto que Secretaria municipal do Meio Ambiente apóia o
evento. n
PARQUE GRÁFICO
Leonardo Aversa
Desvendar a origem da obra de
Dorival Caymmi é entrar fundo na
história da MPB. Percorrer encontros memoráveis com Braguinha e Orlando Silva na época áurea do rádio, notar sua afinidade
com os filhos e mergulhar na semente de suas canções são tópicos profundos na vida do compositor de “Maracangalha”.

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