A era dos narradores virtuais

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A era dos narradores virtuais
A era dos narradores virtuais
Escolha de crianças, adolescentes e jovens pelo conhecimento encontrado nos buscadores
da internet expulsa, paulatinamente, pais e até professores do processo escolar
Numa de suas célebres entrevistas, o semiólogo italiano Umberto Eco se saiu com essa:
não pode haver mais de 18 anos de diferença entre o professor e o aluno. Motivos para
tamanho rigor estatístico ele mostrou ter a rodo. Quanto mais distantes no tempo, mais
mestre e pupilos tendem a não falar a mesma língua. Estranham-se ao tratar de fatos
históricos ou mesmo de amenidades da cultura pop. Para um, Jane Fonda é a Barbarella.
Para os demais, uma senhorinha que recentemente voltou ao cinema, num filme esquecível
estrelado por Jennifer Lopez.
Faz sentido – para os alunos, o impeachment e a ação dos caras-pintadas fazem parte de
um passado remoto, aquele dos celulares gigantes. Já o professor estava lá, pedindo que o
presidente desse o fora, vivendo o mais luminoso de seus dias de juventude. É justo ele, a
testemunha ocular, quem mais padece com a distância entre seus fatos e valores e o dos
alunos.
É evidente que Umberto Eco pode ser contrariado. Difícil imaginar que um aluno, por
exemplo, não gostaria de ter aulas com alguém que esteve no Comício da Central do
Brasil, em 1964, para citar uma possibilidade. Mas é o que parece estar acontecendo. Difícil
explicar. Mas vale arriscar.
Tempos atrás, o jornalista Álvaro Pereira Júnior, em texto bem azeitado, afirmou que o
YouTube matou o passado. É questão curiosa. O professor pode falar com entusiasmo de
Woodstock – do que representou para a música, para os costumes e para as butiques
elegantes que passaram a faturar alto com a moda riponga. Ou tratar da Guerra das
Malvinas. Ele, ali, faz o sagrado papel de narrador – aquele que conta, assim como
acontecia nas culturas mais antigas. Mas os tempos mudaram. Está tudo lá no YouTube,
como uma imagem tosca. Ora um bando de pelados correndo no meio do mato. Ora a
tomada de posse das gélidas Falklands. Álvaro tem razão – o YouTube matou o passado, e
com ele a figura daquele que conta e dá sentido aos grandes fatos.
Esse raciocínio explica o desinteresse de muitos alunos quando o professor “põe para
rodar” no DVD o trecho de um filme – que tal Fahrenheit 451? – que sonhava poder
discutir em sala de aula, e agora pode. Em troca, recebe o tédio. Há trechos selecionados
da obra maluca de Truffaut na rede, e podem ser assistidas na cama, comendo um pacote
de bolachas, e não no desconforto da sala de aula. A única vantagem que leva o mestre –
esse peça tão antiga do mobiliário – é a de promover a exibição para um grupo, que
poderá ali formar seu olhar coletivo sobre os fatos.
Duro é convencer de que “ao vivo e em cores” é sempre melhor. Será preciso gastar muita
saliva com teorias pedagógicas e treinamentos até chegar lá, de modo a desconstruir o
culto ao conhecimento solitário, utilitário e, que ironia, desconectado. E a batalha, como se
dizia, começa em casa, onde a situação não é muito diferente. Pelo menos a contar de
pesquisa recente realizada no Reino Unido com 500 crianças e adolescentes.
Mais da metade dos entrevistados prefere “perguntar” ao Google que a seus pais, abrindo
mão dos dois narradores por excelência, presume-se, desde Adão e Eva. A pesquisa
também mostrou que 34% dos consultados não acreditam que os pais sejam capazes de
ajudá-los a resolver a lição de casa; e 14% não os julgam inteligentes o bastante para isso.
Pena. No ato de fazer tarefa junto com os pais contam menos os acertos e mais a
oportunidade de estarem unidos em torno do estudo.
A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, edição de 2012, trouxe informação próxima à
garimpada na terra da rainha. A depender do levantamento, a situação ainda está melhor
para o professor que para os pais – 45% apontam a professora como o maior
influenciador; 43% indicam a mãe; e apenas 17%, o pai. Na edição de 2008 da pesquisa, a
mãe ainda era a maior influenciadora. Quanto à internet, é usada todos os dias por 20%
das crianças e adolescentes brasileiros e por 30% dos jovens e jovens adultos. O que
procuram é que são elas – 58% estão à cata de entretenimento; 40%, de informações para
trabalhos escolares. A diversão virtual e solitária da internet leva vantagem até sobre o
estudo individual, via rede. Devem, na prática, se confundir. Resta entender por que isso
acontece, fazendo-se pais e professores, mesmo que a rede insista em retirar essas
pessoas da sala.
(editorial Gazeta do Povo, 14/10/2012)