Ruínas da Estância do 28 Uma perspectiva da Arqueologia
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Ruínas da Estância do 28 Uma perspectiva da Arqueologia
Ruínas da Estância do 28 Uma perspectiva da Arqueologia Histórica Vanessa dos Santos Soares Saul Eduardo Seiguer Milder A aproximadamente 60 km de Alegrete à margem esquerda do Rio Ibirapuitã no Rio Grande do Sul, localiza-se o sítio arqueológico RS: IBIRA/01 - Ruínas da Estância do 28, em uma Área de Proteção Ambiental pertencente a Fundação Maronna. Em maio de 2012, a equipe do Laboratório de Estudos e Pesquisas Arqueológicas (LEPA) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), realizou a primeira intervenção no sítio arqueológico RS:IBIRA-01, com o objetivo de localizar as áreas com maior concentração de material arqueológico, onde futuramente serão realizadas as escavações. Chama-se estância no Rio Grande do Sul, uma circunscrição dada das campinas do país,povoada de gado, cavalos e mulas e, em certas porções, partes de carneiros; tem ordinariamente a extensão de uma sesmaria, às vezes de duas, de três e mais; os animais multiplicam-se nelas na razão da quantidade inicial, da vastidão do território e da bondade dos pastos. E ainda segundo Osório, "a palavra 'estância' não designava grandes propriedades nem era sinônimo de grandes rebanhos. O vocábulo, originário do espanhol platino, significava apenas as unidades produtivas em que se criava gado, sem nenhuma conotação de tamanho". (DREYS, 1990:94) No século XIX, Antônio de Souza Cambraia recebeu uma sesmaria pelos serviços prestados ao Rei nas Conquistas das Missões. O irmão, José Luis de Souza Cambraia também recebeu sesmaria, porém este não tomou posse, ficando o seu irmão Antônio com a posse daquelas terras. A partir de 1811, Antônio Cambraia ficou de posse daquele lugar, que depois passou para seu filho Francisco Cambraia, e este para seu filho Vidal de Souza Cambraia. Conforme Dornelles e Correa, “ os campos que deram origem às estâncias do Rincão do 28 [...] tem sua origem [...]na sesmaria de José Luis de Souza Cambraia.” Este trabal ho tem como objetivo apresentar o sítio histórico “Ruínas da Estância do 28”. demonstrando ao mesmo tempo os resultados obtidos na primeira fase das pesquisas arqueológicas tanto em campo como em laboratório. As cerâmicas históricas ganham enfoque dentro da totalidade do sítio, assumindo importante lugar dentro do trabalho objetivado. Metodologia: A área limítrofe para abertura de sondagens foi definida entre as estruturas I, II e III. Através de um transect, referenciamos os poços testes, sendo estes num total de vinte e quatro ao longo de uma transversal de cinquenta metros entre dois extremos do sítio arqueológico. A média da distância de um poço teste para outro foi aproximadamente de dois metros. Além de utilizarmos esse método, contamos com a utilização de um magnetômetro, o qual nos auxiliou, detectando áreas com materiais metálicos. Foi possível ainda, a observação do registro arqueológico no solo, áreas compactadas, distribuição do material arqueológico, assim como as áreas onde ocorre uma maior concentração do mesmo. Foto 1. Área onde foi feito um transect para abertura dos poços testes/Foto2. O magnetômetro indicou áreas onde havia material metálico. Os materiais arqueológicos foram coletados e armazenados em embalagens identificadas com o número do poço teste e seus respectivos materiais. Para um melhor resultado, ao final de cada dia, foi feito um diário de campo para registrarmos as atividades, não perdendo assim nenhuma informação. No laboratório o material arqueológico, passou pelo processo de curadoria e foi separado conforme a sua natureza: cerâmicas históricas (louças), vidros, metais, ossos, material construtivo e material lítico. Além desse procedimento, o material foi catalogado, medido, pesado e fotografado, encerrando assim a curadoria do material. Para analisar a louça, utilizamos uma metodologia que consiste em uma classificação quanto à pasta, técnica decorativa, esmalte, cor, forma, motivo e superfície modificada. Uma grande concentração de material arqueológico foi encontrada no poço teste 06, entre eles, louças, vidros, ossos, metais e material construtivo (telhas). Observamos à ocorrência dessa deposição de materiais numa área que fica próximo a janela dois da estrutura I,o que possibilitou uma reflexão sobre costumes e hábitos das pessoas que lá viveram no que concerne ao descarte dos objetos quebrados ou inutilizados durante o século XIX. No poço teste 05 não encontramos nenhum material arqueológico, devido ao evidenciamento de basalto em decomposição a três centímetros de profundidade. O mesmo ocorreu nos poços testes 07 e 09. Registramos a ocorrência de carvão estruturado no poço teste 02, a uma profundidade de 8 cm. O sítio possui cinco estruturas dentro do pátio interno que podem ser evidenciadas. As estruturas sugerem uma casa principal- estrutura I, e duas casas secundáriasestrutura II e III, as quais poderiam funcionar como galpão, senzala, cozinha, depósito, quarto de fora, despensa, ou ainda com outro propósito. A dois metros da estrutura III, localiza-se uma estrutura em forma oval irregular com aproximadamente três metros de diâmetro- o qual se deduz ser um antigo forno. A partir dessa hipótese podemos inferir a possibilidade da parte esquerda da estrutura III funcionar como cozinha. Tal estrutura mede 18 m de comprimento e possui uma divisão, possivelmente, sem comunicação entre o lado esquerdo e o lado direito. A 6 m de distância do possível forno, atrás da estrutura III encontra-se o poço para água, com aproximadamente 2m de diâmetro. A estrutura I, que aparenta ser a casa principal, devido a sua posição em relação às demais estruturas formadoras da unidade doméstica, possui quatro janelas evidentes, das quais 3 obtivemos as medidas exatas de 1,60 x 1,15 metros. Quanto às portas, evidenciamos a existência de três,uma na posição que seria a frente da casa(P1), outra do lado direito(P2) e uma na parte traseira da casa(P3). Só foi possível identificar a porta 1 e 2, devido ao marco existente nessas aberturas, que consiste num acabento sincronizado dos blocos de rocha que formam a parede. A partir desta observação foi possível pensar à respeito do funcionamento e articulação das aberturas da casa, bem como inferir onde possivelmente poderiam haver divisões naquele ambiente, que possui 15,65 x 9,65 metros e um número total de sete aberturas entre janelas e portas evidenciada. Durante a realização das sondagens,foram retirados diversos fragmentos de louças, que são testemunhos deixados pelos habitantes daquela antiga estância. Através da louça, a arqueologia histórica procura refletir sobre importantes aspectos da sociedade. A louça funciona como um reflexo das relações sociais, mesmo não formando uma totalidade do universo social, além disso ela pode ser trabalhada de diferentes perspectivas. Segundo Carvalho, “a partir do estudo da louça, de suas permanências e mudanças no decorrer do tempo, podemos refletir sobre os comportamentos herdados na sociedade e de fenômenos de adaptação, resistência ou de invenção frente a novas intervenções.”(CARVALHO, 2003) No sítio Ruínas na Estância do 28, coletamos um total de 78 fragmentos de louça em faiança fina e 4 em grés. Segundo Tocchetto,a faiança fina foi a classe de louça doméstica mais popular no Brasil oitocentista,começando a ser importada principalmente da Inglaterra após a abertura dos portos em 1808. Devido a sua qualidade superior. A variedade de padrões decorativos vos, que iam do chinoiserie – louças com decorações de inspiração oriental - a cenas bucólicas de paisagens inglesas, e ao seu preço acessível, dominou rapidamente o mercado. (Lima et al., 1989ª apud Tocchetto) Louças Coletadas na 1ª intervenção arqueológica nas "Ruínas da Estância do 28" 5% Borrão Azul 17% 2% 3% Peasant Style Willow 4% 4% 64% Shell Edged T. P. Floral 1% T.P. linear Louça Branca Grês Gráfico 1. Percentual da quantidade de louças em faiança fina decoradas e não decoradas e de grés encontradas no sítio RS: IBIRA-01, em maio de 2012. Entre o material da coleta superficial, foram encontrados três fragmentos de faiança fina, que juntos formam o fundo de um recipiente de louça. Esse fundo, possui a marca do fabricante, o que nos possibilita inferir uma hipótese sobre o período em que esse utensílio doméstico foi utilizado. Sabemos que o sítio RS:IBIRA-01, teve seu período de ocupação a partir do início do século XIX, por volta de 1815.Até meados do século XX, ou talvez um pouco mais, a sede da antiga estância ainda servia como unidade doméstica. Vidal de Souza Cambraia, neto de Antônio de Souza Cambraia, herdou aquela porção de terras e possivelmente tenha residido naquele local a curto ou longo prazo.A marca, ou selo, que a louça encontrada possui é da fábrica nacional de louças I.R.S.C. Adelinas/ São Paulo, que foi fundada em 1929. O selo encontrado é o primeiro selo desta fábrica. Neste estabelecimento, a matéria prima utilizada era a faiança fina e o granito e eram produzidas louças para mesa, decoração e higiene. Foto3 .Coleta superficial (raiz de árvore)/ Foto4. Fragmentos em faiança fina /Foto5.No detalhe selo da fábrica I.R.S.C./ Adelinas /São Paulo As louças coletadas durante o full coverage survey, puderam ser identificadas devido à decoração que apresentam. São elas: Borrão azul: Foram encontrados 13 fragmentos desta louça, cuja pasta é a faiança fina. O borrão azul, caracteriza-se por um tipo de estampado azul, que pode ser floral, no qual a tintaescorre intencionalmente dentro do esmalte, produzindo um aspecto borrado. Este tipo de decoração foi popular até 1901, principalmente para exportação. O borrão azul foi introduzido na Inglaterra entre 1835 e 1845. A partir deste dado, podemos inferir a hipótese da louça encontrada na sede da Estância do 28, ser de procedência inglesa, devido ao período de ocupação do sítio e a data de fabricação dessa faiança fina. Sendo assim, a louça representa para o sítio um demarcador cronológico, além de possibilitar a reflexão e a imaginação histórica e arqueológica sobre o cotidiano das pessoas que utilizaram estas louças. O olhar pode se voltar desde pequenos detalhes, como por exemplo, como eram dispostas estas louças na mesa da família Cambraia e que valor era atribuído à estes objetos. Estas louças tinham uma função, que era a utilização para as refeições. Mas, além desta funcionalidade das louças,será que elas significavam para a família status e poder aquisitivo? A partir deste enfoque, a louça também possibilita a percepção do universo social, econômico e político. Estas questões que se colocam diante de nós, devem ser estudadas com cuidado e percepção dos demais materiais arqueológicos que coletamos na primeira intervenção. Foto 6.Coleta Superficial e poço teste/Fragmentos de louça em faiança fina, no padrão Borrão Azul Shell Edged: Deste padrão decorativo, foram encontrados 2 fragmentos, ambos puderam ser identificados, pelo fato de pertencerem a borda do artefato. É na borda das faianças finas, que o padrão Shell edged é aplicado e caracteriza-se as pelo aspecto de plumagem que este dá as cerâmicas. A borda deste tipo de louças pode ser reta ou ondulada e a superfície onde a tinta é aplicada pode ser lisa ou rugosa.O azul é a cor é a cor mais popular da Shell edged por ser a mais barata entre as louças decoradas. Esta louça parou de ser produzida em 1850, podendo ser um bom marcador cronológico para os sítios históricos. Foto 7. Fragmento de louça em faiança fina, no padrão Shell Edged, na cor azul. Louças Transfer Printing: Este tipo de louça caracteriza-se pela técnica decorativa, que consiste na transferência de um “desenho” para a louça. As transferências podem ser de variadas cenas: chinesa, exótica, romântica, etc. O motivo floral também também foi bem difundido, inclusive na técnica de pintado à mão. Foto 8.Coleta Superficial/Transfer Printing. Foto 9..Willow. Foto 10. Transfer Printing. Também encontramos 3 fragmentos de louça decorada por transferência que pertencem ao mesmo objeto e que possuem o motivo floral. O motivo floral que a louça possui é diferente dos motivos encontrados nos outros sitos pesquisados e seu esmalte que po de ser creamware ou pearlware. O esmalte creme começou a ser produzido e aplicado nas manufaturas a partir do século XVIII, por volta de 1780 na Inglaterra e França e a partir de 1810 o esmalte perolado começou a substituir o esmalte creme. A sua produção durou até meados do século XIX, sendo incorporado logo após um esmalte mais branco, o whiteware. Porém no Brasil, a fabricação de louças começou no início do século XX e o esmalte utilizado pelos fabricantes inicialmente era o pearlware. 11. Poço-teste 3/ Faiança Fina/ Transfer Printing/Motivo Floral Grês: Foram coletados 4 fragmentos de cerâmica do tipo grés, na tonalidade marron e areia. Esta cerâmica é caracterizada pela sua pasta dura e pela sua impermeabilidade a líquidos. Ela é parcialmente vitrificada e apresenta som metálico, além de não rachar sob a ação do fogo. Originalmente o grés foi desenvolvido na China e na Europa foi produzido na Alemanha e logo após na Inglaterra e em outros países. Os recipientes em grés armazenavam principalmente cerveja, genebra, água mineral e tinta nanquim. O grés obteve muito sucesso devido a sua alta resistência, o que permitiu a exportação de líquidos durante o século XIX. As formas dos recipientes variavam ,podendo ser garrafas, tinteiros, etc. Raramente encontra-se marcas dos fabricantes nessas cerâmicas. A B D C E Foto12ª.grês na coloração marron./Foto12 B.grês na coloração areia./Foto12 C. Parte interna do recipiente em grés, com detalhe da marca do torno.Foto12 D.Fragmentos remontados parte externa./Foto12 E. Fragmentos remontados parte interna. A partir da análise realizada em laboratório e do trabalho de campo, podemos começar a pensar o sítio Ruínas da Estância do 28 de um viés arqueológico, levando em consideração os documentos escritos e trajetória da família Cambraia. O estudo da cultura material, revela, desmistifica e proporciona uma maior aproximação com a realidade. Contamos ainda com um livro que foi escrito em 1928, pelo neto de Antônio Cambraia, que funciona como fonte e como referência para o trabalho pretendido no sítio arqueológico. O livro traz à luz o dia a dia de uma estância no século XIX. A Estância funcionava como domicílio e lugar de trabalho, conforme Tocchetto, as unidades domésticas são sítios que se caracterizam como espaços domiciliares que cumprem as funções de abrigo e repouso, onde o grupo doméstico se alimenta, se diverte,amadurece, procria(Laslett 1972 apud Beaudry, 1984 apud Tocchetto), e também trabalha, como no caso de vários domicílios urbanos e periféricos, cumprindo também funções de produção no Brasil oitocentista. Tratar a casa como suporte para a realização das práticas cotidianas e interação dos seus habitantes implica penetrar no espaço da vida doméstica e da intimidades (Lima, 1995apud Tocchetto). O trabalho ainda encontra-se em fase inicial, ainda assim já foi possível refletir sobre alguns hábitos dos antigos moradores da Estância, assim como o complexo que esta representava para a família. Através da reflexão histórica e arqueológica, podemos perceber que tipo de louçaria era utilizada a partir de uma dinâmica interna em uma Estância do século XIX no Rio Grande do Sul. A abordagem para analisar a louça, parte do pressuposto de que em um lugar tão afastado da Vila de Alegrete e da capital do Brasil, as louças não funcionem como sinônimo de status, mas sim como utilidade, se fundindo com os demais objetos que entram em cena, adaptando-se às necessidades diárias e aos recursos disponíveis. Além disso, a maneira como a louça chegava até a estância, passando por dificuldades quanto ao transporte antes de 1850 também são relevantes. Sendo assim, ainda não é possível ter uma conclusão sobre o meio social dos Cambraias, pois ainda não temos a totalidade do sítio. Porém, podemos começar a refletir sobre esses artefatos que nos são revelados, juntamente com a observação do sítio e seu complexo. As fontes escritas, documentos e inventários , são essenciais para essa análise, assim como fotos da família ou jornais da época. Referências Bibliográficas: - BOAS, Franz. Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010. -BRANCANTE, Eldino da F. O Brasil e a cerâmica antiga. São Paulo: Lithographia Ypiranga, 1981. - BRITO, Severino de Sá.Trabalhos e Costumes dos Gaúchos. Editora Erus, Porto Alegre, 1928. -BRONOWSKI, J. A escalada do homem. Martins Fontes. São Paulo, 1992. -CALDARELI, Solange Bezerra (coordenadora). Arqueologia no Vale do Paraíba Paulista: SP 070 rodovia Carvalho Pinto. São Paulo: DERSA desenvolvimento rodoviário S.A, 2003. - CARVALHO, Fábio. Porcelana Brasil- Guia de Marcas. All Print Editora.São Paulo, 2008. -CARVALHO, Marcos R. R. de. Pratos, xícaras e tigelas: um estudo de arqueologia histórica em São Paulo, séculos XVIII e XIX: os sítios Solar da Marquesa, Beco do Pinto e Casa nº 1. 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