língua franca - os trabalhos e os dias

Transcrição

língua franca - os trabalhos e os dias
José Lopes Moreira
LÍNGUA FRANCA
Who is the god of the dead?
Where doth he make his
dwelling? What sacrifices
are acceptable unto him?
Sete, nove e morte, os jogadores não tombam
aos gritos de fim; roda
entre os homens a sorte, como uma pressa.
O autor respira fundo, sobre si
a água do mundo, uma torre de luz
no chão gira a lama das vagas, surge a lava,
mata, mostra-se e arrefece.
Grande Alexandre da Macedónia depois da Índia numa espada
teu nome guarda o poder da vida, a de um povo
da morte, a dos homens, nos homens
teu nome caminha para oriente contra a cegueira da história
-- o que não se fez.
Uma montanha, um tesouro, uma lâmina cerrada
seu nome timor, lâmina no mar.
É coisa pequena, embora bela
a morte de um homem
que guarda a noite
quem derrama o sangue.
Chora, homem, o teu irmão se é morto:
espalharás na terra a inquietude,
nos corações dos vivos, curvados ao medo.
Próximo de ti, mortal que choras,
treme a vida, atingida de violências;
o desejo obsceno e brutal da morte
lúbrica sombra a cada homem inexistente.
Prata do Minho
Menos santo, mas mais sábio
de Deus
que o seu tempo
seu conforto maior que fogo.
Preciosa a língua de Diogo Bernardes
na minha como uma jóia de orgulho
fala líquida de olhos nos olhos os esquecimentos
são o rio que creio só
Prata do Minho, embriaguês, o branco calor, a luz.
Franca ou encarcerada
dada como um beijo, como meretriz
comprada.
Águas-más
que a sede nunca contempla
as pérolas inclementes vêm devagar ao rio do verão
nele se mantêem
as correntes do tempo as congregam
cada saco cerrado uma promessa de dor.
Vem, ultrapassa as margens de lodo, de engano
ingressa no campo da água o corpo de fogo.
vagas do rio branco nos olhos cerrados
Nadadora, recolhe as sementes, que não fique rasto de vida.
Lanterna errante na estrada da serra
estas são as noites de verão, anómalas
em que loucos de amor voam os escaravelhos.
As noites em que sem dor se demoram os caminhos.
No vale há olhos que adivinham, lanterna,
quem és; ladram os cães -- existes,
definitivamente, e se as curvas te ocultam,
sabe o verão que cumprirás teu caminho.
Como o ano a estrada renova-se
-- como gerações. Passos e dias que forçam à vida,
ladram os cães.
supermercado
Blue gin, White Satin; um medo
na verdade; decerto é castelo
de espanto.
Bombay Saphire, torre
as gargantas frias, amotinadas, as lâminas
claras.
Pálida e seca, a Espanha espera
em terra vermelha a Índia simula
se sacrifica à embriaguês divina
os inimigos que ao seu solo se aventuram.
para casa
É em nuvens assim que se costumam ver
cavalos; nem ouso olhar, mas já sei,
são os dias assim que vêem morrer
os sonhos; e calam o seu segredo;
cegos dias que seguem outros dias
que voz são essas sucessivas fábulas?
Trabalhos insuperáveis, doenças
de sofrer e calar, dúbios embustes?
Eu, que vou descendo a Casal Ribeiro
ouço no vento o tempo sobre mim,
sobre a cidade e todos os seus fados.
Que tempo é este insincero de dádivas?
caçadores na neve
acabou esse inverno e a neve
escorre agora em água suja, lenta como vinho
olho firmemente a lenda no teu rosto
e já não lembro vales e rios atrás de ti,
onde voam os corvos e a casca
das bétulas se rasga
de um sorriso meridional, devorador
e público como pranto.
Acabou esse inverno para um outono
recuado; de branco se dissolveram
cores de madeira e pele e pedras
para dentro dos silvados se escondeu o mundo
para o tempo que resistiu à neve.
Aqui os olhos já não conhecem os lugares,
a garça da virgem, o leão de jerónimo nunca vieram;
a pureza do branco, a ferocidade da luz, indubitável
não as suporta esperança alguma.
Caçadores furtivos na noite
figurada e dizem entre si a lua estrangulada,
os, se moventes,
pequenos olhos dos bosques de abril
(que por erro se vêem ao longe):
o acaso tem garras e perpassa os homens.
há uma doença que em nuvens de espuma
vem do mar, subtil, tocando os telhados;
com ela um ritmo que junta as casas
e espalha no chão mantas de caruma.
Há quem durma com olhos mal fechados
se a noite os toca e revela suas asas
exilados no vôo que os exuma
caindo com o sangue derramado.
Há uma memórias nas linhas rasas
onde foram paredes que derruba
o cruel vento, dorido e salgado
que vegetal se ergue das marés vazas.
Corre branco, branco esse sopro altivo
e revolta os mares e apaga as cores.
se, nos inflamáveis dias,
ao atropelo da censura julgares o teu coração
lembra que as palavras que contra ti disseres
são o invernoso rio que cobre as feridas
com a lâmina com que as abriu.
Perecíveis se figuram ao sono as fortalezas que o dia ergueu
perecíveis numa ordem imprópria ao desejo
e à linha das falas;
longe da tua boca a história vacila
repete-se e é outra
uma filha perdida.
chave de ouro
existe o tempo, os gatos correm na erva
e à noite vejo luzes de outras cidades.
provo da vida como de uma maçã cheia de fumo.
deus
nascido
ou criado
na ausência de memória
na ausência de memória
nascido
ou morto
doce, eu sei, noutras terras, aqui ausente
doce, de esperada apenas memória
se guarda a chuva cláudia, hesitante
de interromper o calor sobre a terra
de se dividir, se o corpo dos cumes
esconde do mar o hálito do funcho
que em núpcias de água respirava a serra.
Doce água do céu é ninho e conforto
e sono de certezas tão constantes
que em anos nocturnos já nos cansaram.
Da chuva o som assegura o silêncio
irrequieto gentil lume da chuva
revolto vôo de passado e amor
-- agora se cala o sofrer das nuvens
reguengos
Dona Maria II, Nossa Senhora de Fátima, Mário Soares
partilham os caminhos deste povo sujo
por cios encardidos de que ressumam as pedras;
a terra baixa dos Macedo Papança e de mulheres feias,
a terra velha que eu passo como uma santa ou rainha morta
que passo levado por pensamento e desejo:
acreditem só no que jurar por Deus ou Inês, meus filhos
que regressa a casa vosso pai
como se ao cume de uma montanha sagrada
que o trazem nú, sem flores, notas de conto, mãos de pálida cera
sem sequer sacudir o pó espezinhado
com que ainda serei por vós coroado.
o senhor dos livros
renúncia, a pobreza, depois a renúncia
não mais conquista que a esteira de um navio
nem definitiva a morte. Mais segura
a terra que o mar, daqui não podem náufragos voltar.
Pode, pesa mais o discurso indeciso de um velho
que a canção que anuncia o corpo
submerso em coral, que grito de um nada
no estreito pinheiro encarcerado
a crescer numa história zen.
Que esteja vivo o corpo de ti, usurpador
ressuscitado e de sempre morto
esperando o sol, que seja o espírito livre
é uma mentira, uma Itália fantástica?
é uma revolta?
para "índice"
dor cíclica, a lua assombra
de luz e medo, de punhos cerrados
um branco que queima, rosto oculto
em que para morrer se esconde um deus
como o dedo anelar de um gigante, grotesco
que aponte em mim o lugar de expiação
encontros no ar de estrelas incandescentes
de dor suave; de dor suave se esfacelam
hora enorme de imprecisa busca
em que os solitários olham o mar
o mar azul vazio de conforto
uma alma singular, um navio suave
recolhe o sigelo por dobrado
redobrado de si nas águas do mundo.
até cair, horto de seios e jade
a dança é irreversa agora
serpêntea rota na face da terra
até. As mãos batem no ar, na carne
no frio, na saliva já perto, aqui
na pele lisuras procuram e batem
simples. Um vinho que regressa
e adeja, não sabe a boca se vomita
ou bebe, o vinho roto que regressa
regressa. Do pé para a mão altura
de memória, esperança, visão que recebe
a pedra brilhante do amor, econdida
em pó. Os braços se enlaçam de raiva
e cresce a morte como cabelos; e dizem:
Luna Montis
podes, como o tempo, fazer saltar o seixo na água
ou para ocidente quebrá-lo, se sobre as rochas reflui a onda;
vai passar o verão e não irás a mântua,
no inverno a cidade que visitares te fará prisioneiro,
cumpre tua vontade, não serás feliz:
atiraste a pedra e foi testemunha o Oceano.
A casa que construíres abrigará o medo.
porque vais fugindo na noite
como um ladrão?
Fugindo da montanha da lua
onde a tua sorte foi revelada
para a noite em que nada aquecerá o teu coração.
Escutaste no escuro as rumorosas vozes do futuro
e é um lugar onde já estiveste
a casa construída e abandonada
habitação de medo
Giancarlo Cardini
porta da voz imperfeita
em impaciência oculta
testemunha do mistério
tão afastado do mundo
dos seus recantos
Lisboa, E. Sussex
Um recife pálido, perigoso
uma jóia de dor e orgulho
se eu chorar brilhará;
então nunca poderei regressar,
varrido como uma nuvem de primavera.
A paz; perto do passado
"and not a sesame seed in sight";
catarata voadora, tumescente
e chama, farol, luz, dusk,
as cinzas do dia, sussurrantes:
(subimos a rua, é verão, a noite fala
em português):
acordo os olhos ao cheiro do bolo, do
calor do forno, do chá, longe o cabelo
em lisboa;
das tuas mãos o cheiro fechado. E
a memória respira, pesadamente,
"as a sleeping horse". (Ainda dorme a bela! Que fazer?) Ainda
no forno se vai queimando o açucar castanho.
Bebedor de sonhos, os dentes cravados
no barro amargo da taça que se volta agora
bebedor de grandes tragos, a boca cravejada
de pérolas
a taça voltada no mármore
és tu agora
quem derrama o vinho
navio emborcado na lama da foz
não renoves a mão, todo o gesto de erguer a taça
Aprende a traição dos dias, ondas
percorrendo um corpo magoado de
areia e sol, mar: acorda -- marinheiro, não há praia
a dor não se repete, repassa-te e parte
para que outra chegue; marinheiro não as queiras
conhecer, não
as aprendas marinheiro, fecha agora a tua janela
e sonha. Aprende a traição dos dias.
da mobília antiga
esta é a caixa de música
pousada do mesmo pó que a cómoda
nos espelhos erguidos ela mesma ou os seus géneros
precisa e vária em ângulos negros
e flores
doces traçadas no que chamam dourado,
do mesmo pó que cómoda
seu corpo suavemente toldado.
É frio o quarto, doçura do verão
benigna a música, como um bisturi.
Falemos de poesia, o peso da tampa que aguarda a repetida mão:
é curta a viagem dos dedos
consecutivos se afastando da palma
exposta agora à madeira fria,
não sabe a pele se preciosa.
O gesto soberano que o olhar ignora
enlouquecido nos espelhos, no veludo vermelho;
o olhar, não a mão, sabe
que o coração da caixa nunca dorme,
fechados num deserto são a voz
que nenhuma medida compreende.
countrey pleasures, childishly
(para a Lídia)
galo, galinha ou pintainho
a terra nos apressa, colhamos flores
em desafio adivinhemos-lhe os ocultos segredos
galo, galinha ou pintainho
ao tocá-lo o caule vacila, ergue uma cabeça inquieta
ao abrir a sépala se revela a vermelha crista
as mãos por um momento guardam a jóia
que a seguir revelam, é a tua vez de mostrar
o rosa das pétalas fechadas, modesto
nas minhas mãos, nas tuas, se repete o jogo
no teu regaço o branco irrompe
no botão que as tuas mãos destroçam, é a minha vitória
colhamos flores, só o sol espreita
quando se levanta o vento, o ar toca
a papoila aberta, ensanguentada
corre um rio, qual de nós se deitou primeiro
primeiro morre no rio que sustenta esta terra
de flores e corpos, da suavidade da vida
o aço azul do olhar, atlântico e funesto
corpo esquivo em incessante deriva
a presença da vida é quase brutal:
que seja outra de mim e me olhe
que se mova e não a tome
invencível e estranhamente impõe o mundo como uma fronteira
a grandes golpes o desejo cria grades
no ar que medeia os lugares
onde vamos permanecer -- assim o sabemos
Senta-te
se ao veres a rosa, rapaz,
tão claramente guardares o teu segredo
como lhe ouves o chamamento
(como as lâminas pressentes que te o querem arrancar)
se na multidão dos sentidos apenas o desejo
sem o revelar, recolhe essa aparição
senta-te, rapaz.
portuguesas
andamos e a noitinha e a lenta maresia
confirmam o enlace das mãos em que o sol morre;
barcos e os seus destinos - Leixões, Hull, Brasil, Grécia de nós são testemunhas, mas tão irrefutáveis
que assim sermos de espanto apaga medo e dúvida.
Ao mar o mar, ao mar o alvor do sol, a pele
e conchas, as medusas, a espuma, o amanhecer:
e sobre o amor outro amor maior no mundo
o sussurro que corre toda a terra de beijos
e o ar, a água invade de memória, de pranto
de doce; na areia se revela a firmeza
do mundo, já só ela suporta os corpos brandos.
Essa carne que, mútua, se esquece de ser carne
viva, voz, saber, livre, veloz, envolta em vento.
presépio
Existe um tigre ou outra fera ignota
que buscam pastores para adorar
em núpcias de fogo, sangue, olvido
que estrelas perdidas anunciaram.
Eles, que fazem aqui? Sobre o chão
pousam oferendas, no mesmo chão
onde os seus joelhos ímpios se humilham
celebrando o apagar do remorso.
Aqui os vejo à minha volta erguidos
ou erguido somente o seu orgulho;
os anos passaram e a fera oculta
guarda-se em mim de aceitar seu destino.
O tempo não é sono nem descanso
a memória muito mais que engano.
Num ângulo doce
o pescador
não quebra a água, o dedo atento
o olhar vasto;
e existem surpresas, emergências
e aconteceres, minutos, tantos no seu lugar:
esperançoso o mundo esconde sob a água
a fome (no frio
duro)
a ver o que acontece
a projectar um largo desejo aberto na pele tensa do rio
onde ressoa o passado
de outros dias de pescador.
realia/cabana
(silêncio agora que pousem as aves.
Bia, os pardais levam o chumbo e vão morrer longe;
aponta ao peito, tira primeiro
a folga do gatilho.) Não fora
a escassa luz, não fora este tecto
e a ausência, a violência do mundo, apenas o esquecimento, apagaria
até as pequenas mortes, não foram
os sinais de vida, os testemunhos do nosso sangue; aponta
um pouco à esquerda, levanta-se o vento, se for longe.
Olho nos olhos dos animais empalhados:
o mocho, o cartaxo, uma abibe
na parede pregados os escuros cepos, as armadilhas
a corrente de bicicleta, os cromos
imagens de santas, o sagrado
coração (avança o cano pela janela, espreita
os ramos da oliveira).
Avé Maria
cheia de traça
o pó é convosco
sumida a cor do teu rosto
como o teu nome
perdida sois vós entre as alfaias
perdidas entre as passas e as maçãs do ano passado.
Realia
a pele de ovelha salgada
o cheiro das azeitonas novas da silenciosa talha, também as rações dos
bacorinhos
as colunas de luz que descem do tecto
tocando o teu joelho na palha, vê-se
onde está quebrada a auréola
a tua mão acaricia a coronha.
Um florir súbito de inverno
a surpresa de um canto de morte;
no chão molhado sementes são testemunhas
do amor derramado, da terra
à água
dos rios onde bebem touros loucos
afastando os nenúfares;
a água púrpura onde as ninfas esperam Hylas.
Ou Phlebas, não sei.
e se o propiciam os astros, uma rima
rapariga brilhante e citadina
como o assento de metal dos tractores antigos
há boas razões
além do desejo
para a elegível partilha da noite
nem só os corpos fogem
de nos tempos cair em esquecimento
desabrigados de ser
serenas a luz e a escuridão
se uma certeza se reuniu
ilusão breve e mútua que guarda a noite
tenso papel, a música do lápis
a fala do combóio, alentejana
a manhã que já não passa
estilo ou crime, treme a mão ao traçar o M
os não fumadores não se privam da escrita
olha as mulheres, as mãos caídas no colo
deseja-lhes o sexo, ignora-as ao frio
juntas correm água e lama, como na mentira
olha as mãos, os tecidos, o calor indesmentível
a casa da insónia
Sobre o rio que cai para longe ou dentro
de recuado mistério me deito; estendi-me
sobre o centro do olhar que livre me redime
diante de palácios secos de insónia.
E é rodando em círculos que se queda a água
rodeada de pedras; duras, feras, esmagam
o fogo interior que abençoa, senão
que hoje a guia, na noite, sempre até Babilónia.
Na noite, que não se dorme, e pelo mundo
onde nunca acaba, a branca água sóbria
cresce, romeira, quando, pagã, perversa, cobre-a
a sombra nua na estrada de Babilónia.
Que rios navegar até tocar ao sono
esperado Sião depois de fria prova.
City of Liverpool
Navio vermelho que a ferrugem persegue entre Felixstowe e Walvis Bay
deixa o Tejo ao tempo e aos obscenos pombos
aos dias impotentes que não deixam a foz
deixa as águas que levam corpos
cansados até à morte
perseguidos e imóveis como Cristo
O rio esconde-se numa capa mole
escura como o dorso de um tubarão -- viste-o?
deixa atrás só a água que se abre
como o baralho de cartas atirado sobre a mesa
agora que todo o dinheiro e sono foi perdido
navio, levanta-te e anda, é noite ainda.
rio: tempestade
Na pele que veda o fundo do medo
é certa a queda, hoje obscura e lisa;
inútil esperar que nos conduza
estrada que a noite possa gerar.
Não se alcança outra sorte que em segredo
sonhar com a mais próxima viagem;
desejos mortos; da negra voragem
poupa-lhes o sono o ventre lunar.
Viajamos este intocável trapézio
sofregamente, com os nossos passos
desenhando cegos labirintos lassos.
E ódio algum corrompe o naufrágio
que enfim nos desce a sereno refúgio
leito esperado de antigos cansaços.
o Caminho
aqueles olhos, uma pressa anónima, como eram?
erram agora pelo lado da rua que escolhi já não passar
(a rua cede à lógica de andar, abandonada de mim).
Cegos ou inquiridores, desafectos ou magoados
marcam existir o mundo nas palavras do caminho:
norte, o topo e as outras partes, o direito e a esquerda, dali
aqui em baixo, lá ao fundo, aqui ao lado, ao pé de mim
os olhos passam a rua, não podem deixar de ser.
O olhar prende as palavras, não a razão do passo, inexprimível:
a queda sucessiva e adiada que um desejo perverso insufla de gozo
até rebentar o mundo, esvaindo-se de sentidos
como uma concha aberta e vazia, abandonada na praia,
o mundo morto em que remexemos como numa ferida.
Ergâmo-lo pois, será o nosso brasão
de caminhantes do Caminho
nobreza antiga de armas cinzeladas nos olhos
na mais preciosa das pedras, digna do calcar de todos os pés descalços;
ergâmo-la com nossos bastões que vibram na pedra dos dias.
lisboa, o espectro do inverno
já não cabe na garra aberta do vento
sobre nós, os desta cidade, timoratos
precipitadamente se deita a chuva
o frio caiu, com amor e violência
empurrado do céu: escondes-te agora
água de fevereiro, muda de medos;
rápido como granizo se destrói todo pensamento
Na esquina da Loja das Meias
Andrea del Sarto dirá a sua amada (se um galeão viesse
desposar o rio oculto e as cidades das colinas): darjeeling,
faz-se a morte, a glória, a perfeição de domésticos espíritos
hospedes incómodos e evasivos, persistentes como dinheiro.
Memórias para perder -- a mão do Sassoferrato a morte e a doença
do azul corrompem, como a tinta dos Maersk liners;
lembro agora a tinta de ferro, o casco dos navios; a tinta esmaecida.
Chamaram aqui um pintor, as cores tenebrosas por aplicar
a tela esticada, extensa de espera -- um lugar no céu.
Um sono a guarda, sabe o corpo que o traço da vida,
infiel à verdade do mundo, chegará,
cada toque uma multidão.
No hi havia a València dos amants com nosaltres
em todas as rápidas ruas, nas pontes
diante dos rostos explícitos, tão parecidos com os de Bosch.
Vim só e a nós submeti esta terra
diante do rosto campesino que espera os viajantes (Andrea
del Sarto o pintou, de Lucrécia seria o rosto que ainda espera?)
Só o rio ardeu como perfeita falla, petrificado de nostalgias
como se com modéstia pelos amantes tivesse sido bebida
toda a água doce do amor desta cidade.
Dias inavegáveis correm este lugar, no hi havia
a València dos amants com nosaltres
os corpos milagrosos encalhados na terra seca como peixes,
ao vento levantino, nos caminhos manchegos de pó
no chão inexistente de portugal.
Como nós, sereias esquecidas, como quem sabe que morreste.
For I have offered and I
have not been received .