a cidade que devora - UFC Virtual

Transcrição

a cidade que devora - UFC Virtual
Francisco José Pereira de Lima (Preto Zezé)
Geovani Jacó de Freitas
Luiz Fábio Silva Paiva
Rosemary de Oliveira Almeida
RESPEITAR AS DIVERSIDADES
E COMBATER AS DESIGUALDADES
Fascículo 4
A CIDADE
QUE DEVORA
Expressão Gráfica e Editora
Fortaleza,
2009
Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva
Ministro da Educação
Fernando Haddad
Secretária de Educação Básica
Maria do Pilar Lacerda Almeida e Silva
Diretor de Políticas de Formação, Materiais Didáticos
e de Tecnologias para a Educação Básica
Marcelo Soares Pereira da Silva
Coordenadora Geral de Formação de Professores
Helena Costa Lopes de Freitas
Coordenadora do Humanas
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada
Maria Neyara de Oliveira Araújo
Universidade Federal do Ceará (UFC)
Reitor
Jesualdo Pereira Farias
Comitê Gestor Humanas
Profa. Dra. Maria Neyara de Oliveira Araújo
[email protected]
Prof. Dr. José Aires de Castro Filho
[email protected]
Projeto Gráfico
Rubens Martins
Capa
Rubens Martins
Ficha Catalográfica
Francisca Danielle Guedes
Gráfica e Editora
Expressão Gráfica e Editora
L732r
Respeitar as diversidades e combater as desigualdades. Fascículo 4 – A
cidade que devora. / Francisco José Pereira de Lima, Geovani Jacó de Freitas,
Luiz Fábio Silva Paiva, Rosemary de Oliveira Almeida. – Fortaleza: Expressão
Gráfica e Editora Ltda, 2009.
10p. 21 x 29,7 cm.
Inclui bibliografia.
1. Cidades contemporâneas – violência e conflitos 2. Conflitos urbanos e violência
– cotidiano escolar 3. Conflitos urbanos – poder e autoridade 4. Formação
Continuada de Professores I - Título
CDD 307.76
Apresentação......................................................................................................................5
1 AS CIDADES CONTEMPORÂNEAS,
SEUS PROBLEMAS E CONTRADIÇÕES....................................................................15
1.1 Considerações preliminares sobre as cidades das quais falamos.......................15
1.2 Desigualdades: das cidades de vidro às cidades de restos..................................17
1.3 Violência urbana em uma “sociedade democrática”............................................21
1.4 Considerações finais..................................................................................................25
Bibliografia........................................................................................................................26
Para Saber Mais................................................................................................................27
Filmes Para Assistir..........................................................................................................27
Para Refletir.......................................................................................................................27
2 CIDADE EM CONFLITO: VIOLÊNCIA, PODER E AUTORIDADE....................29
2.1 Um conflito na cidade...............................................................................................29
2.2 Autoridade, Poder e Violência: algumas distinções..............................................30
2.3 Conclusão....................................................................................................................36
Referências bibliográficas...............................................................................................38
Para Saber Mais................................................................................................................38
Filmes.................................................................................................................................38
Para Refletir.......................................................................................................................38
3 A CIDADE APARTADA: UMA ESTÓRIA NÃO CONTADA................................39
3.1 Introdução...................................................................................................................39
3.2 O Racismo como estratégia estruturante
do sistema de dominação brasileiro..............................................................................40
3.3 Fortaleza: a cidade apartada.....................................................................................40
3.4 Por um novo fazer e pensar político nas favelas: a periferia é o centro.............42
APRESENTAÇÃO
Geovani Jacó de Freitas1
Este Fascículo com título A Cidade que Devora nos leva ao debate de um tema
provocador e atual. Remete-nos a uma das faces mais visíveis dos problemas contemporâneos da humanidade: a vida na cidade e suas contradições: um mundo
que nos fascina e nos assusta, simultaneamente.
A cidade como fenômeno social e histórico, se tem o seu significado primordial
relacionado à proteção e à segurança coletivas, hoje se nos revela em sua complexidade e antagonismos, tanto por significar território possível de amplas sociabilidades quanto pela impessoalidade de suas relações, traduzido como um campo de
desterritorialização, de “não lugares” geradores de inseguranças e incertezas.
Assim compreendida, a cidade é um lugar de vivências e significados diversificados. Ecoa como síntese do processo histórico de produção, distribuição
e apropriação de riquezas materiais e simbólicas acumuladas no jogo social das
classes fundamentais de cada período histórico. Deste modo, a cidade exige, para
compreendê-la em sua complexidade, um olhar reflexivo sobre os seus processos
sócio-antropológico, histórico-cultural e político-econômico.
A cidade é, portanto, este conjunto de relações fundado na integração e no
conflito responsável tanto pela constituição de seus espaços físicos quanto pelo
modo como seus agentes sociais ocupam esses espaços, criam relações sociais diversas para a produção e reprodução da vida, e emprestam-lhes sentidos individuais e coletivos sem os quais a experiência societária não teria sentido.
Este quarto Fascículo, de um conjunto de cinco que compõe o curso Respeitar
as Diversidades e combater as Desigualdades, nos convida, mais uma vez, a mergulhar
nas tramas da história das sociedades e, especificamente, no lugar que as cidades
ocupam no atual processo civilizatório da humanidade e os desafios e possibilidades que elas expõem para repensar este mesmo processo civilizador.
Em todo o mundo, sobretudo no periférico ao capitalismo mundial, as cidades sofreram, no limiar do século XIX, uma explosão demográfica decorrente do
êxodo rural em virtude, dentre outros motivos, do rápido processo de industrialização das cidades e de uma supervalorização do padrão urbano de se viver em
detrimento do valor do trabalho e da vida rurais.
No Brasil, especificamente, as cidades explodiram, como veremos ao longo
das análises trazidas pelo Fascículo e, com este crescimento e inchamento urbanos,
1 Graduado em Letras pela Universidade Estadual da Paraíba, mestre em Sociologia Rural, pela
Universidade Federal da Paraíba e doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. É
professor do Curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e pesquisador do
Laboratório de Estudos da Violência – LEV, da UFC. E do Laboratório de Estudos da Conflitualidade
e Violência – COVIO/GPDU, da UECE. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação
Continuada para as Humanidades – HUMANAS/UFC, organiza e apresenta a presente coleção.
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“5”
advieram não só aspectos positivos da vida na urbe, como as conseqüências negativas de um modelo de desenvolvimento econômico e social adotado no País, ao
longo de sua história, com base na concentração de riquezas nas mãos de poucos,
sobretudo a concentração das terras, como abordada no Fascículo anterior denominado Terra, Trabalho e Pão.
Produzimos, com isto, condições sociais e econômicas favoráveis ao aparecimento das desigualdades sociais presentes tanto no campo quanto nas cidades
do País. A hipervalorização dos padrões urbanos como modo de vida “moderno”,
associado à falta de condições estruturais de trabalho no campo são grandes responsáveis pelo fenômeno do superpovoamento das cidades brasileiras que traz, em
seu esteio, a queda na qualidade de vida dos moradores em virtude da ineficácia
do Estado em elaborar e gerir políticas públicas que respondam às demandas de
bem-estar das populações pobres das cidades. Com isto, intensificam-se o agravamento das desigualdades e a disseminação de novas configurações de problemas
sociais, como a violência urbana.
A vida nas cidades nos parece, deste modo, um sonho desejado tanto quanto
temido. Que disjunções podemos perceber entre um estatuto de direitos sociais e
civis, juridicamente assegurados, e as práticas cotidianas forjadas entre o desejo
de fruição pleno da cidade e as sensações de insegurança e mal-estar cada vez
mais experimentadas e reproduzidas como verdades vividas ou projetadas que
nos aprisionam sob o signo do medo e da violência?
Para elucidar estas e outras questões não menos relevantes, apresentamos reflexões teórico-práticas de três convidados que se dispuseram a escrever os textos
que constituem este Fascículo, tendo por base seus estudos e ou intervenções sobre
e na cidade, em especial, a cidade de Fortaleza: o cientista social Luiz Fábio Silva
Paiva; a cientista social Rosemary de Oliveira Almeida; e o dirigente comunitário e
educador social Francisco José Pereira de Lima (Preto Zezé).
As questões aqui refletidas sobre a cidade se propõem a compreendê-la como
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“6”
espaço de contradições e de lutas. De lutas econômicas, políticas, sociais e simbólicas. Lutas que instituem espaços e agentes marcados por estigmas territoriais,
culturais e econômicos que contribuem com esquemas classificatórios que se impõem, não sem conflitos, como linguagens sobre a cidade e seus habitantes.
É-nos possível, portanto, compreender a cidade e seus conflitos sob diferentes
ópticas mediante leituras reflexivas capazes de questionar as pré-noções próprias
do senso comum, reelaborando-as mediante o exercício da desconstrução das verdades cristalizadas sobre os problemas e perspectivas da vida na cidade. O que nos
cabem fazer?
Nesta busca de reelaboração e aprofundamento de saberes e quereres, entrecruzam-se as dinâmicas da vida no e do campo com os desafios da vida na cidade
em que todos, de um modo ou de outro, forjam dependências mútuas. É nesta
encruzilhada que o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada para
as Humanidades, HUMANAS/UFC, foca suas atividades pedagógicas no campo
da formação continuada de professores.
O Núcleo é parte de uma Rede Nacional de Formação Continuada de Professores da Educação Básica2, com apoio do MEC. O desafio deste Núcleo é o de realizar experimentos e ações formativas na área das Ciências Humanas que aproxime
o conhecimento científico e as ferramentas de sua produção, acumulados pelas
universidades, e o ensino realizado nas escolas públicas de Educação Básica.
Esta perspectiva do HUMANAS/UFC implica em reconhecer que a formação
de professores das escolas públicas do Ensino Básico não deve ser traduzida pela
prática de reciclagens isoladas, mas pretendida e realizada, primeiramente, como
uma política pública de formação continuada que resulte no alargamento e circulação dos conhecimentos produzidos pelas Ciências Humanas e Sociais, associados aos saberes locais, experimentados de maneira crítica e reflexiva.
A formação continuada desenvolvida pelo Humanas, nesta perspectiva, busca o fortalecimento do professor como agente produtor de conhecimentos e não
apenas como reprodutor deles. Professores que, tomados pelo prazer de aprender,
sejam capazes de também ensinar e, com este desejo mútuo, tomem como matériaprima das matérias ensinadas, a beleza e a força das transformações que podemos
operar com o encontro de teorias gerais, produzidas pela ciência, com o mundo e
as experiências significativas, dos professores, tanto no plano individual quanto
no coletivo.
A atitude reflexiva do professor-aprendente impõe-se como uma prática pedagógica essencial nesta proposta de formação continuada de professor do ensino
básico. Acreditamos que o confronto criativo entre teoria e empiria, entre pensamento e ação, entre verdades cristalizadas e as possibilidades de desconstrução
delas, configura-se como espaço de recriação e de produção de saberes mais competentes e focados no que a dinâmica da vida na sala de aula e do seu entorno
exige para descobrir o que é e acertar no que é fundamental. Este acerto é condição
sine qua non para o ato de aprender e de ensinar.
Pensamos que a ação reflexiva como um método na formação continuada,
propõe-se a agir diretamente no modus operandi do professor como agente produtor de conhecimentos, ou seja, a formação como experimento de oportunidades de
acesso a ferramentas teórico-metodológicas visando à qualificação do saber-fazer
do professor em formação e do próprio aluno em sala de aula, e à superação da di2 �������������������������������������������������������������������������������������������
A Rede é constituída por dezenove centros localizados em Universidades Públicas e Comunitárias, distribuídas em todo o País, e abrange as áreas de Alfabetização e Linguagem, Matemática e
Ciências, Ciências Humanas e Sociais, Arte e Educação Física e Avaliação da Educação. O Núcleo
Humanas/UFC compõe a área das Ciências Humanas e Sociais, tecendo um fio da trama desta Rede
juntamente com a Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e a Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais (PUC-MG). Para aprofundamento desta questão, confira a publicação Trabalho, desenvolvimento e educação: processos sociais e ação docente. Guia didático-metodológico. ARAÚJO, M. N
de O.; BRITO, A. R. de S .; FILHO, J. A de C. (Orgs.). Fortaleza: Tiprogresso, 2007.
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“7”
cotomia teoria versus prática e da teoria versus metodologia, equívocos epistemológicos produtores da perversa separação entre trabalhadores intelectuais pensantes
e trabalhadores intelectuais executantes.
Nas demais produções teórico-metodológicas já publicadas pelo Núcleo Humanas3, voltadas para você, professor(a) do Ensino Básico, tem destaque a idéia
de “no chão da escola”, professores(as) enfrentam, a todo o momento, situações
cotidianas das mais simples às mais complexas, sem que possam fugir delas e que
por elas são requeridos(as) a agir. Acreditamos que mediante uma prática reflexiva
que integre experiências acumuladas tanto pelos agentes locais, quanto pelo conhecimento produzido pelas Ciências Humanas e Sociais, tais situações não apenas serão mais bem compreendidas como superadas, em parte ou no todo.
O foco do Humanas: o conhecimento das Humanidades
Dito isto, é possível compreender mais claramente o foco do Humanas: a formação do professor na área de conhecimento das Humanidades, articulando, no
conteúdo de seus processos formativos, contribuições teóricas e metodológicas da
Filosofia, da Economia, das Ciências Sociais (Sociologia, Antropologia, e Ciência
Política), da Psicologia, da Literatura e das Artes em geral como instrumentais de
mediação do conhecimento sobre as realidades global e local, o dentro e o fora da
escola, de modo que resulte, para os professores, três processos intelectuais e políticos irredutíveis entre si: saber conhecer, saber pensar e saber intervir.
As trilhas deste caminho assumidas pela formação continuada de professores
do Núcleo Humanas, são balizadas pelo referencial teórico-metodológico ancorado na temática geral Trabalho, Desenvolvimento e Educação: processos sociais e ação
docente - (TDE).
O aprofundamento destas três categorias gerais visa à compreensão teórica
mais ampla de que a escola é um “espaço socialmente contextualizado, onde se enA CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“8”
trecruzam diferentes dimensões da experiência do conhecimento” e que deve ser
compreendido sob uma perspectiva relacional e histórica, não dissociada destas
categorias significativas para a interpretação da sociedade moderna.
3 As publicações expressam as temáticas desenvolvidas na formação, consoante aos eixos teóricometodológicos dos cursos. No curso Trabalho, Desenvolvimento e Educação, foram produzidos 3
fascículos, versando sobre as três categorias centrais: Fascículo 1: TRABALHO: um conceito para a
construção da aprendizagem, de autoria de Maria Neyara de Oliveira Araújo; Fascículo 2: DESENVOLVIMENTO: uma proposta para a emancipação social, de autoria de Maria Iara de Araújo; e Fascículo 3:
EDUCAÇÃO; uma política para a construção da cidadania, de autoria de Francisco Alencar Mota. Para a
temática seguinte, intitulada MAPAS, MEMÓRIAS E MENTES: espaço, tempo e conhecimento nas ações
humanas, foram publicados três fascículos: Fascículo 1: Mapas: o mundo está nas mãos e nas mentes
de quem busca conhecê-lo, de autoria de Maria Florice Raposo Pereira; Fascículo 2: Memórias: as
mãos, as mentes e o mundo, de autoria de Frederico de Castro Neves; Fascículo 3: Mentes: nas mãos
de quem procura conhecimento está o mundo, de autoria de Milena Marcintha A. Braz, Joannes Paulus
S. Forte e Adalberto Ximenes. Os dois conjuntos de fascículos são acompanhados por guias teóricometodológicos orientadores do seu uso.
Tendo estes eixos basilares como ponto de partida teórico, a formação continuada do Humanas propõe-se a pensar a escola como produto de relações sociais
mais amplas, ao mesmo tempo em que como produtoras e reprodutoras de realidades sociais locais só compreensíveis pela apreensão histórico-dialética destas
realidades, fundadas na diversidade e nas diferenças de atores, de práticas e de
significados sociais.
O diálogo entre o geral e particular, entre o global anunciado pela análise dos
três processos acima referidos e o local, revelado pelas relações cotidianas engendradas no interior desses processos, será apreendido ao nos debruçarmos sobre
os significados do espaço, do tempo e do conhecimento, aspectos mediante os quais a
ação cotidiana do professor se dá em sua plenitude.
A compreensão da relação espaço, tempo e cultura como esteio da ação cotidiana dos professores e da escola é a tarefa dos conteúdos propostos pela trilogia
Mapas, Memórias e Mentes, cuja intenção é possibilitar, ao professor, uma reflexão
sobre as conexões históricas e sociais da escola e das próprias histórias e trajetórias
sociais de cada um – dos professores e dos alunos – com o conjunto das transformações da sociedade brasileira e dos desafios postos por estas relações. O conhecimento será válido na medida em que vislumbre a superação do pensamento
subalterno e das intolerâncias e das desigualdades sociais, culturais, de gênero, de
sexo, de raça e das mazelas sociais deles decorrentes.
A escola e o direito à diversidade
É na mesma perspectiva teórica e metodológica do reconhecimento da complexidade do real, que exige, igualmente, um pensamento complexo e não linear
sobre ele, que apresentamos o curso Respeitar as diversidades e combater as desigualdades, a ser realizado pelo Núcleo Humanas junto aos professores da Rede pública
do Ensino Fundamental.
Que questões esta problematização nos revelam, à luz das Ciências Humanas
e Sociais e das nossas práticas cotidianas? Como estas se imbricam nos padrões
normativos dominantes, e convivem, ora como artefatos, ora como artífices da
produção dessas diferenças e desses lugares advindos da situação dos agentes,
nomeados por critérios diferenciadores dos sexos masculino e feminino, de raça,
de etnia, de orientação sexual, de pertencimentos geográficos, entre outras formas
classificatórias de pessoas ou grupos sociais?
Para dialogar com estas diferentes implicações, o Curso contempla cinco temas que se inter-relacionam pela complexidade teórica e política que os unem: 1)
África Mãe Preta, abordando conceitos de raça, racismo e lutas sociais; 2) Todo dia
é dia de índio, que busca recobrar a história dos povos indígenas no País e as estratégias de afirmação de seus processos identificatórios; 3) Terra, Trabalho e Pão, que
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“9”
traz ao debate o processo histórico de ocupação das terras no Brasil, os diferentes
modos e acepções sobre o valor e uso da terra pelos diferentes segmentos sociais,
culminado com a politização da luta pela terra e da educação no e para o campo
como elementos afirmadores de direitos e de justiça sociais; 4) A Cidade que Devora,
nos convida a refletir sobre o estágio atual do desenvolvimento das cidades, o estrangulamento de suas relações advindo das desigualdades sociais que ela encerra,
culminando, daí, modalidades diferenciadas de violências urbanas na atualidade
e suas expressões particulares no interior das escolas; e 5) Deus é Menino e Menina,
que nos traz à reflexão a imposição histórica da normatividade padronizada às
possibilidades de expressão da diversidade sexual, produzindo violências física
e simbólica na medida em que a intolerância e a incapacidade de viver esta diversidade geram formas discriminatórias, como a homofobia e demais preconceitos,
sobre grupos identificados como fora dos padrões sociais dominantes.
O conjunto destas temáticas nos descortina, sob diferentes ângulos, a construção social da realidade mediada pelo estudo histórico das mentalidades e das
práticas políticas e culturais dos agentes e das classes sociais, ao mesmo tempo,
nos interpela a mergulhar, criticamente, no nosso cotidiano ordinário, vivido por
todos nós, professores e cidadãos, no interior das escolas e nos demais espaços
de convivência social dos quais a escola nos parece uma síntese de suas contradições.
O presente curso tem como material didático, portanto, estas cinco conferências temáticas, gravadas em DVD, e cinco fascículos temáticos correspondentes,
constituídos, cada qual, com três artigos escritos pelos expositores de cada conferência temática, consoante ao conteúdo exposto.
As atividades previstas do curso, em cada município, serão acompanhadas
por professores tutores, já formados pelo Núcleo Humanas, que atuarão como mediadores das atividades pedagógicas, que se realizam intercaladas entre atividades
presenciais e não presenciais. As presenciais, com a mediação direta do monitor,
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“10”
se realizam mediante o uso de dos vídeos-conferência a cada encontro, seguido
de debates e reflexões sobre os conteúdos apresentados. Ainda neste processo, o
monitor intermedia a socialização dos resultados dos estudos realizados no processo de trabalho em Células4, e dá orientação teórico-metodológica voltada para
a elaboração de projetos de intervenção dos grupos em seus locais de trabalho ou
na comunidade em que vivem.).
Como atividades não presenciais, são considerados os encontros sistemáticos
de estudos dos grupos de trabalho, mediados pelas referidas Células, dos quais
resultam: a) produção de textos relacionados às temáticas específicas a que o pro4 ���������������������������������������������������������������������������������������������
O trabalho em Células contempla três dimensões, a saber: troca de conhecimentos entre os membros dos grupos (estudos em grupos dos fascículos no local dos participantes); socialização dos resultados dos estudos em plenária; formulação e proposição de projetos de intervenção na comunidade
escolar ou fora dela, inspirados nas temáticas e problemas estudados.
fessor é convidado a refletir; e b) elaboração de projetos e encaminhamento deles
às possíveis instituições de apoio e fomento a essas iniciativas. Estes projetos de intervenção são formulados pelos(as) professores(as), agrupados(as) pela própria dinâmica das Células e que, conclamados por meio desta formação a uma disposição
intelectual e política em relação à adoção de atitudes de combate às desigualdades
e pelo respeito às diferenças, possam agir de modo qualificado nos seus espaços
de trabalho, de reflexão e de vida.
A cidade que devora: um campo de produção de verdades e lutas
Convidamos agora vocês, caros(as) leitores(as) deste Fascicúlo 4 a explorar
os três artigos que o compõem. O primeiro, escrito por Luiz Fábio Silva Paiva,
intitula-se As cidades contemporâneas, seus problemas e contradições. Com ele, temos
a oportunidade de discutir, conceitualmente, a cidade e suas conexões históricas,
mergulhando, também, nos processos de organização de espaços sociais apartados
onde se configuram e se legitimam as diferenças de classe e os fossos sociais que
orientam o funcionamento das cidades atuais. Esta discussão desemboca numa
reflexão sobre as implicações entre violência urbana e a construção de relações
democráticas efetivas.
O segundo artigo, intitulado Cidade em conflito: violência, poder e autoridade, é de
autoria de Rosemary de Oliveira Almeida e nos revela, por meio de uma crônica
da Cidade, situações cotidianas de Fortaleza. Dos conflitos locais, somos catapultados a refletir uma universalidade mediados pelos conceitos de autoridade, poder
e violência, tendo como perspectiva teórica a categoria conflito como elemento
estruturador da sociedade.
O terceiro e último capítulo, denominado A cidade apartada: uma estória não
contada, escrito por Francisco José Pereira de Lima (Preto Zezé), articula questões
do racismo, já exploradas pelo Fascículo 1 - África Mãe-Preta, contextualizando-as,
na prática, nos espaços da cidade de Fortaleza, ao mesmo tempo em que nos revela
ações concretas de constituição de atores políticos juvenis no enfrentamento das
desiguladades sociais e na reconstrução de novos espaços cogniscentes sobre e na
Cidade, em especial nas favelas de Fortaleza.
As questões aqui refletidas são instigantes e nos fazem pensar sobre as desigualdades sociais como resultantes de um modo de organização e circulação da riqueza produzida socialmente. Quais perspectivas se anunciam para a convivência
coletiva nas grandes cidades? Qual o papel do Estado-governo e da sociedade civil
na inversão do quadro de esgarçamento social vividos na urbe? Como recuperar o
elemento confiança, abalado pela orquestração social massificada de produção de
linguagens sobre a cidade, sobretudo sobre seus territórios habitados pelas populações urbanas pobres e seus segmentos juvenis?
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“11”
Estamos vivendo na cidade, no tocante à segurança pública, uma crise de autoridade em seus mais diversos significados advinda ora pelo excesso de autoridade dos agentes estatais junto aos segmentos mais pobres, ora pela ausência
quase completa da justiça oficial junto a essa população? A violência, o poder de
fogo dos grupos, gangues, galeras e outras facções urbanas agindo com poderes e
liberdade à revelia do Estado de Direito, tem significado uma nova compreensão e
percepção do que seja a quebra do monopólio legítimo da violência pelo Estado? E
a escola, em que medida está sendo afetada por estas relações e qual o papel dela
na constituição de novos saberes e agentes pensantes e atuantes na cidade da qual
faz parte?
Estas indagações e outras resultam da leitura reflexiva deste Fascículo, cujo
tema, atualmente, é objeto de discussão, de disputa e de ação de variados agentes
sociais, seja do campo governamental, seja do campo político, seja da sociedade
civil. As artes, por sua vez, cada vez mais transformam estas questões em estética
cognitiva, que nos faz pensar sobre o que nos trazem os três autores neste Fascículo, o que nos fez lembrar dos cantores e compositores Lenine e Paulinho Moska,
em célebre canção intitulada Relampiano:
Tá relampiano
Cadê neném?
Tá vendendo drops
No sinal prá alguém
[...]
Todo dia é dia
Toda hora é hora
Neném não demora
Prá se levantar...
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“12”
Mãe lavando roupa
Pai já foi embora
E o caçula chora
Prá se acostumar
Com a vida lá de fora
Do barraco...
Hai que endurecer
Um coração tão fraco
Prá vencer o mêdo
Do trovão
Sua vida aponta
A contramão...
[...]
Tudo é tão normal
Todo tal e qual
Neném não tem hora
Prá ir se deitar...
Mãe passando roupa
Do pai de agora
De um outro caçula
Que ainda vai chegar...
É mais uma bôca
Dentro do barraco
Mais um quilo de farinha
Do mesmo saco
Para alimentar
Um novo João Ninguém
A cidade cresce junto
Com neném...
Como costumamos afirmar nos fascículos anteriores, reafirmamos, igualmente, neste quarto Fascículo, nosso convite final: agora é com vocês, professores e
professoras!
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“13”
As Cidades Contemporâneas,
Seus Problemas e Contradições
Luiz Fábio Silva Paiva5
A construção de cidades, sua dinâmica e organização acompanham a história
da humanidade desde a antiguidade, antes mesmo da escrita, até a era moderna.
No transcorrer da história, cidades, como Jerusalém, se tornaram símbolos da religiosidade de diferentes povos, enquanto algumas, como Paris e Londres, representaram as luzes da razão iluminista e da estética, além de outras que, a exemplo
da antiga Roma e da moderna Nova Iorque, se tornaram ícones do poder político
e econômico de impérios e nações.
No mundo contemporâneo, pode-se dizer que as cidades, egressas do século
XX, são símbolos da profunda contradição humana ao não conseguir aliar o desenvolvimento econômico e tecnológico ao estado de bem-estar mínimo para todos os
cidadãos. Enquanto a elite econômica das cidades desfruta de bens e serviços que
expressam em si a capacidade humana de transformar a natureza a seu favor, os
mais pobres, de praticamente todas as partes do mundo, ainda sofrem devido à incapacidade dos governantes de gerenciarem recursos adequadamente ao bem-estar desta população. Cada cidade do mundo dispõe em si de certas especificidades
relativas às suas dinâmicas de sociabilidade e conflitualidade presentes nas formas
de interações existentes entre os mais diversos grupos que moram ou passam por
elas, resguardando em suas entranhas a “a dor e a alegria de ser o que são”.
1.1 Considerações preliminares sobre as cidades das quais falamos
Não há uma definição fechada sobre o que é uma cidade. Weber (2004) dizia
que se podia definir cidade de modos diversos, considerando apenas um elemento comum a todas elas: “que se trata, em todo caso, de um assentamento fechado
(pelo menos relativamente), um ‘povoado’, e não de uma ou várias moradias isoladas” (p. 408). Diante disso, inúmeros tipos de qualidade poderiam vir a caracterizar diversos modos de organização urbana ao longo da história da humanidade.
5 �������������������������������������������������������������������������������������������
Doutorando em Sociologia, professor substituto da Universidade Federal do Ceará (UFC), pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV/UFC) e do Núcleo de Estudos Pesquisa e
Extensão: Gestão Pública e Desenvolvimento Urbano da Universidade Estadual do Ceará (GPDU/
UECE), no qual integra o Laboratório de Estudos da Conflitualidade e Violência (COVIO). Endereço
eletrônico: [email protected]
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“15”
Ademais, nem sempre os cidadãos urbanos foram trabalhadores assalariados, mas
na Antiguidade o cidadão pleno era agricultor, mantenedor de um lote de terra
(kleros) cuja função era provisão alimentar da economia doméstica (WEBER, 2004,
p. 413).
Segundo Simmel (2005), as grandes cidades ocidentais do século XIX se caracterizam pela “intensificação da vida nervosa, que resulta da mudança rápida
e ininterrupta de impressões interiores e exteriores” (SIMMEL, 2005, p. 577-578).
Neste mundo de emoções intensas, os homens organizam sua sociabilidade em
meio a simpatias e antipatias que compõem formas diversas de socialização, em
um espaço cosmopolita de lutas não mais contra a natureza, mas contra outros homens. Ainda de acordo com Simmel, uma característica que lhe pareceu intrínseca
ao modo de vida das cidades modernas seria o caráter blasé.
A essência do caráter blasé é o embotamento frente à distinção
das coisas; não no sentido de que elas não sejam percebidas, como
no caso dos parvos, mas sim de tal modo que o significado e o
valor da distinção das coisas e com isso das próprias coisas são
sentidos como nulos. Elas aparecem ao blasé em uma tonalidade
acinzentada e baça, e não vale a pena preferir umas em relação
às outras. Essa disposição anímica é o reflexo subjetivo fiel da
economia monetária completamente difusa. Na medida em que
o dinheiro compensa de modo igual toda a pluralidade das coisas; exprime todas as distinções qualitativas entre elas mediante
distinções do quanto; na medida em que o dinheiro, com sua
ausência de cor e indiferença, se alça a denominador comum de
todos os valores, ele se torna o mais terrível nivelador, ele corrói
irremediavelmente o núcleo das coisas, sua peculiaridade, seu
valor específico, sua incomparabilidade (SIMMEL, 2005, p. 581).
Nestas novas cidades, onde as sociabilidades são mediadas por condições
monetárias, a integração e a percepção do outro passam a ser marcadas pela atitude blasé do citadino moderno, cujas relações são marcadas por reservas em relação às possibilidades de socialização. Assim, conforme pensou Simmel, as cidades
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“16”
grandes da era moderna possibilitaram novas formas de existência pessoal, caracterizada por buscas de realização mais individuais em meio a uma organização
monstruosa de coisas e potências (IBID, p. 588).
De acordo com Lefebvre (2004), com a consolidação do capitalismo no ocidente, a cidade perde sua dimensão de lugar público de efetivação da cidadania, como
era para os gregos, e passa a existir como um espaço de troca entre proprietários,
sustentada pela ideologia urbanística do consumo do espaço e do tempo (p. 43).
Seguindo uma perspectiva de análise aberta pelo pensador alemão Karl Marx, Lefebvre destaca que as concentrações urbanas seguiram a lógica das concentrações
de capital. Ademais, elas se tornaram arena privilegiada da luta de classe, sendo
que algumas delas passaram a ser local privilegiado de exercício do poder político
e econômico de grandes Nações. Importante destacar que, na perspectiva de Lefe-
bvre, os processos de urbanização se orientam por meio de “estratégia de classe”
que são, em linhas gerais, formas não totalmente coordenadas e planejadas de organização dos espaços e de dominação das classes proletárias, evitando a possibilidade de uma vida urbana pautada nos encontros, confrontos e reconhecimentos
recíprocos dos modos de viver distintos que coexistem nas cidades.
As cidades cresceram e se tornaram metrópoles, incorporando, a exemplo do
que ocorre em Fortaleza, outras cidades à sua zona metropolitana. Elas também
“envelheceram”, modos de vida desapareceram, mas não sem deixar um registro
significativo na memória de moradores, que sempre se remetem ao passado para
falar de suas próprias vidas, de como eram boas, tranqüilas e felizes. Assim, em
capitais do Nordeste brasileiro, em geral, gestores e citadinos insistem em discursos sobre a necessidade de preservação do patrimônio histórico da cidade e a
revitalização de antigos espaços urbanos degredados ao longo do tempo. Barreira
(2003) destaca que a recuperação discursiva do passado da cidade não é apenas
uma tentativa de repetir o tempo, mas de reinventá-lo.
No plano das sociabilidades, objetiva-se reaver formas anteriores de comunicação coletiva. As velhas praças, lugarejos e sentidos herdados de uma tradição cultural são reativados e se tenta,
com isso, recompor antigas referências associativas, solapadas
por uma modernidade que tornou a cidade funcional para o desempenho das atividades produtivas, mas bastante problemática
para o convívio humano. (BARREIRA, 2003, p. 320).
As questões suscitadas pela autora são bastante pertinentes ao atual cenário
urbano mundial. De acordo com prognósticos baseados no relatório do Fundo de
População das Nações Unidas (UNFPA, 2007), em 2008, pela primeira vez na história humana, mais da metade da população do planeta viverá em cidades. A intensificação dos processos de urbanização6 consolida o estilo de vida urbano como
o principal referencial de sociabilidade existente no mundo contemporâneo, ao
mesmo tempo em que se observa a degradação desse estilo de vida e do próprio
espaço urbano, principalmente devido ao crescimento desordenado e ao aumento
das desigualdades sociais no interior das cidades.
1.2 Desigualdades: das cidades de vidro às cidades de restos
... as cidades do futuro,
em vez de feitas de vidro e aço,
como fora previsto por gerações anteriores de urbanistas,
serão construídas em grande parte
de tijolo aparente, palha,
plástico reciclado,
blocos de cimento e restos de madeira.
Mike Davis
6 Sucintamente, o relatório da UNFPA (2007) define como urbanização o processo de transição de
uma sociedade rural para uma sociedade mais concentrada em cidades.
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“17”
Uma das características do crescimento urbano mundial, experimentado no
mundo nos últimos cinqüenta anos, é a expansão da pobreza nas cidades. Tanto
no bloco de países desenvolvidos, quanto nos considerados em desenvolvimento,
embora de forma distinta, a expansão da pobreza parece ser uma característica
significativa da urbanização moderna. Obviamente, é nos países “terceiro mundistas” que o crescimento desordenado afeta de forma mais grave a população urbana, principalmente pela incapacidade dos governos em oferecer soluções rápidas
e eficientes às novas ocupações territoriais que, quase diariamente, surgem no interior das periferias de cidades como São Paulo, Buenos Aires, Cidade do México,
Jacarta, Délhi, Fortaleza, dentre muitas outras.
Conforme relatório da UNFPA (2007), o primeiro ciclo de crescimento urbano,
em escala mundial, correspondeu ao período de 1750 a 1950, concentrando-se nas
cidades da Europa e da América do Norte. Nesta época, a população das cidades passou de 15 milhões de habitantes para 423 milhões, saltando do percentual
de 10% para 52% de concentração da população mundial em áreas urbanas. Um
crescimento similar ao desse período de duzentos anos o mundo vivenciou em
apenas quatro décadas do século XX, sendo que, neste novo ciclo de crescimento
da população urbana mundial, são nas cidades da África e Ásia que se verificaram
as maiores taxas de crescimento. Enquanto em 1900, a população urbana mundial
era de cerca de 220 milhões de pessoas, em 2000, essa população saltou para mais
de 2 bilhões e 840 milhões. Estima-se que os países em desenvolvimento, em 2030,
concentrarão 80% da população urbana do mundo e para cada dez habitantes urbanos do globo, sete viverão na África ou na Ásia. Na América Latina e no Caribe,
em 2005, 77% dos seus habitantes se definiam como moradores de áreas urbanas
(UNFPA, 2007, p. 10).
Neste novo ciclo de crescimento urbano, a generalização das favelas7 é uma
das preocupações fundamentais de agências das Nações Unidas, pois conforme relatório The challenge of Slums (2003), do Programa de Assentamentos Humanos das
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“18”
Nações Unidas (UN-Habitat), a pobreza urbana é o problema mais importante e
“politicamente explosivo” do século XXI. De acordo com relatório do Programa da
ONU, 31,6% da população urbana mundial vivem em favelas, sendo que, no bloco
de países considerados mais desenvolvidos, este percentual é de 6%, enquanto
no bloco considerado menos desenvolvido o percentual é de 78,2%. Conforme
estimativas levantadas por Davis (2006), considerando o relatório da UN-Habitat,
entre outras fontes, no Brasil, aproximadamente 36,6% dos habitantes urbanos moram em favelas.
Em um capítulo de seu livro Planeta Favela, intitulado A traição do Estado,
7 ������������������������������������������������������������������������������������������������
Não há um critério absoluto sobre as características definidoras de uma ocupação territorial urbana denominada favela (slum em inglês), mas, em uma perspectiva operacional, a Organização das
Nações Unidas (ONU) definiu, numa reunião oficial realizada na cidade de Nairóbi, em 2002, que as
favelas se caracterizam pelo excesso de população, habitações pobres ou informais, acesso inadequado à água potável a condições sanitárias e insegurança da posse da moradia.
Davis (2006) destaca que o crescimento descontrolado de favelas não era um fenômeno urbano inevitável. Segundo o autor, os Estados pós-coloniais traíram os pobres urbanos ao não incluí-los em programas fundamentais de acesso a condições
dignas de moradia, privilegiando as camadas com melhores condições financeiras
de suas respectivas áreas urbanas.
[...] O consenso entre os estudiosos da cidade é que, no terceiro
Mundo, a moradia pública e com auxílio estatal beneficiou principalmente as classes médias e as elites urbanas, que esperam pagar poucos tributos e receber alto nível de serviços municipais.
No Egito, Ahmed Soliman conclui que “o investimento público
[habitacional] tem sido em grande parte desperdiçado”, com o
resultado de que “cerca de 20 milhões de pessoas moram hoje
em casas prejudiciais à sua saúde e segurança”. (DAVIS, 2006,
p. 77)
Segundo Davis, quando os governos dos países do terceiro mundo praticamente abdicaram da batalha contra favela, na década de 1970, instituições internacionais, gerenciadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco
Mundial, assumiram um papel ativo na determinação de parâmetros para política
habitacional urbana desses países. Em suma, a preocupação central não se concentrou na substituição das áreas de favela por áreas urbanas planejadas, mas na
melhoria das condições de vida da população na própria favela. Uma série de
Organizações Não-Governamentais e associações locais de moradores passaram
a receber recursos para desenvolvimento de projetos no interior das áreas mais
pobres das cidades.
As políticas implantadas pelo FMI e pelo Banco Mundial, apoiadas pelos governos nacionais, geraram resultados, no mínimo, curiosos. Ao verificar dados
pertinentes ao Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM)8, no Brasil,
correspondentes ao período de 1991 a 2001, constata-se melhorias significativas no
padrão de vida da população brasileira. Conforme dados do Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em 1991, o IDHM do Brasil era de 0,696,
passando para 0,766, em 2000. Enquanto, em 1991, não havia nenhum Estado brasileiro com alto índice de desenvolvimento humano (com IDH superior a 0,800), em
2000, 18,5% atingiram esta condição. De acordo com dados do PNUD, presentes
no Relatório de Desenvolvimento Humano 2007/2008, em 2005, o País atingiu um
alto índice de desenvolvimento, com IDH nacional de 0,8009, ocupando a 70ª posição
num ranking composto por 177 países.
8 ����������������������������������������������������������������������������������������
Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o conceito de Desenvolvimento Humano é a base do Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH), publicado anualmente,
e também do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Ele parte do pressuposto de que para
aferir o avanço de uma população não se deve considerar apenas a dimensão econômica, mas também outras características sociais, culturais e políticas que influenciam a qualidade da vida humana.
Quanto mais próximo de 1, melhores são as condições de desenvolvimento humano de determinada
população. Informações e relatórios disponíveis em: http://www.pnud.org.br/idh/
9 ��������������������������������������������������������������������������������������������
O relatório do PNUD ressalta o Programa Bolsa Família do governo federal como um dos principais instrumentos para a melhoria das condições de vida dos mais pobres no Brasil.
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“19”
O paradoxo brasileiro tem sido o fato de concomitante às melhorias apontadas pelos indicadores de desenvolvimento humano, no período de 1991 a 2000, ter
aumentado os indicadores de desigualdade social no País. De acordo com Índice
GINI10, em 1991, a taxa de desigualdade era de 0,63, saltando, em 2000, para 0,65.
Apenas nos últimos quatro anos o País experimentou uma redução nas taxas de
desigualdade social, quando, em 2004, o Índice GINI do Brasil mediu 0,57. Ainda
assim, no mesmo ano, os 20% mais pobres da população detinham apenas 2,8%
dos rendimentos ou consumo no País, enquanto os 10% mais ricos detinham sozinhos 44,8%.
As causas da desigualdade social, verificada a “olho nu” nas cidades brasileiras, são referidos por Schwartzman (2004) como resultado de um modelo de
desenvolvimento excludente.
Historicamente, o Brasil se desenvolveu através de um processo
denominado “modernização conservadora”, cuja característica
principal é, precisamente, a não-incorporação de grandes segmentos da população aos setores modernos da economia, da sociedade e do sistema político. (SCHWARTZMAN, 2004, p. 32)
Vive-se nas cidades brasileiras, a exemplo do que ocorre em outras aglomerações urbanas, o que o sociólogo Ives Pedrazinni (2006) chamou de “era dos acessos”, caracterizada por um urbanismo focado nas possibilidades de consumo de
determinados setores em detrimento de outros. Assim, os segmentos mais ricos da
população urbana brasileira adquirem pra si serviços de saúde, educação, moradia, segurança, abastecimento de água, dentre outros que são relegados à população mais pobre ou funcionam de maneira precária e ineficiente.
De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS)11, 4,34% da
população urbana brasileira não contavam, em 2000, com serviços de abastecimento de água, enquanto 5,02% contavam apenas com um serviço de abastecimento
razoável. Ademais, 40,92% da população não dispunham de serviços de ligação
aos esgotos sanitários, sendo prejudicados em seu cotidiano por infestações de doA CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
enças infecciosas e parasitárias decorrentes das péssimas ou inexistentes condições
“20”
vam-se cenários de contradições evidenciadas nas situações distintas de moradia
de saneamento e abastecimento de água.
Em bairros urbanos de grandes cidades como São Paulo e Fortaleza, obserde segmentos populacionais que vivem espacialmente muito próximos, mas experimentam condições sociais completamente diferentes. Caldeira (2003) observa
que, em certos bairros urbanos da periferia de São Paulo, moradores das classes
10 �������������������������������������������������������������������������������������������
Mede o grau de desigualdade existente na distribuição de indivíduos segundo a renda domiciliar per capita. Seu valor varia de 0, quando não há desigualdade (a renda de todos os indivíduos tem
o mesmo valor), a 1, quando a desigualdade é máxima (apenas um indivíduo detém toda a renda da
sociedade e a renda de todos os outros indivíduos é nula).
11 ����������������
Disponíveis em: http://www.cepis.ops-oms.org/powww/eva2000/brasil/cobertura/saneau.html.
Acesso em 10 de fevereiro de 2008.
média e alta dividem espaço com moradores pobres, estando separados por meio
dos grandes muros e sistemas de segurança de condomínios de luxo que existem
na periferia como espaços apartados, não compartilhando com a população das favelas dos mesmos problemas experimentados por seus habitantes. Situação semelhante observa-se em áreas urbanas de Fortaleza, inclusive em sua orla marítima,
símbolo do apelo turístico local. Nela estão presentes tanto os empreendimentos
imobiliários de luxo, em zonas urbanas privilegiadas, quanto amplas áreas residências dispostas em bairros urbanos como o Grande Mucuripe e Pirambu que
dispõem de péssimas condições de salubridade para milhares de famílias.
Em geral, nas cidades brasileiras, segmentos da elite e da classe média da desfrutam das benesses provenientes do seu poder econômico, enquanto os pobres
continuam à mercê das medidas paliativas dos poderes públicos institucionalizados. Assim, a construção de um bairro com condições dignas de salubridade e
segurança deixou de ser uma questão coletiva para ser uma questão individual,
estando parte dos citadinos mais preocupada em angariar para si condições econômicas para aquisição de bens e serviços, provenientes da sua realização pessoal,
do que de construir, coletivamente, mediante mobilizações reivindicatórias, melhorias para todos os moradores urbanos.
Nesse contexto, alteram-se consideravelmente as possibilidades de socialização e as formas de sociabilidade entre os habitantes urbanos, diminuindo consideravelmente a integração e a interação das classes sociais na medida em que se
acirram as diferenças e os ressentimentos advindos do acesso desigual ao mercado
de bens e consumo. Novos confrontos e conflitos são experimentados no interior
do espaço urbano regidos pela lógica individualizada de organização da vida social, sendo que, nas cidades brasileiras, com o desenvolvimento do comércio ilegal
de armas e drogas, a violência urbana passou a ser um dos principais fenômenos
que afetam, distintamente, todas as camadas sociais.
1.3 Violência urbana em uma “sociedade democrática”
Conforme já observaram diversos cientistas sociais, no Brasil, assim como em
outros países latino-americanos, é a partir do final do regime militar e da ascensão
da democracia que a violência urbana emerge como um problema social significativo no rol de preocupações das classes sociais e dos governos dos Estados e
da Federação. Isso não atesta a inexistência desse problema no período ditatorial,
mas que a sua visibilidade não era tão importante para determinados segmentos
sociais, mais preocupados com a disseminação da violência política perpetrada
pelo governo militar contra seus opositores ou supostos opositores políticos. Com
a abertura política, em um novo cenário econômico global, o País convive com
o estabelecimento de um governo democrático, concomitante à disseminação de
nova configuração de problemas sociais, dentre os quais a violência urbana.
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“21”
A partir do final dos anos de 1980, Adorno (2002) explica que a sociedade
brasileira experimentou pelo menos quatro tendências relativas ao problema da
violência:
1. O crescimento da delinqüência urbana, em especial dos crimes contra o patrimônio (roubo, extorsão mediante seqüestro), e de homicídios dolosos;
2. A emergência da criminalidade organizada, em particular em torno do tráfico nacional de drogas, que modificou os modelos e perfis convencionais
da delinqüência urbana e propôs problemas novos para ao direito penal e
ao funcionamento da justiça criminal;
3. Graves violações de direitos humanos que comprometeram a consolidação
de uma ordem política e democrática;
4. A explosão de conflitos nas relações intersubjetivas, mais propriamente
conflitos de vizinhança, com tendências a convergir para desfechos fatais.
Esta nova configuração da violência afetou, ao longo da década de 1990, as
redes de sociabilidade existentes no mundo urbano brasileiro, principalmente porque reforçaram as distâncias entre os ricos e pobres. Enquanto os primeiros se refugiaram cada vez mais em condomínios e residências protegidas por sofisticados
sistemas de segurança, os pobres urbanos passaram a sofrer duplamente, tanto
com a violência perpetrada no interior dos seus espaços residenciais quanto por
processos de exclusão social reforçados por estigmas de que eles eram os principais autores deste novo cenário de violência existente nas cidades.
A idéia dos pobres urbanos serem sujeitos endêmicos da violência figura no
imaginário brasileiro, reforçada tanto pelos noticiosos que narram exaustivamente
a violência na periferia das cidades, quanto por filmes de ficção que, nos últimos
anos, tem feito enorme sucesso nas bilheterias dos cinemas brasileiros. Um exemplo disso é o filme Cidade de Deus, que narra a história do bairro homônimo, na
cidade do Rio de Janeiro, com base na difusão do crime e do tráfico de drogas.
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“22”
O bairro Cidade de Deus aparece no filme aos olhos do espectador como arena de
guerra pelo controle do tráfico de drogas, em que qualquer um pode ser agente ou
vítima da luta armada.
A antropóloga Alba Zaluar atesta que, em 1980, quando iniciou no Rio de
Janeiro sua pesquisa no bairro Cidade de Deus, os jornais noticiavam amplamente
sobre a guerra existente no bairro. Segundo ela, as manchetes transmitiam a idéia
de que todos os moradores da Cidade de Deus estavam vivendo em guerra, o que
não se confirmou a partir de suas observações:
Cidade de Deus era apontada como um dos principais focos do
tráfico de maconha e, portanto, do clima de guerra e violência
que tomava conta da cidade. Havia realmente uma guerra entre
as três quadrilhas da Cidade de Deus. Mas essa guerra tinha regras que tornavam a sua violência até certo ponto compreendida pelos moradores locais. A guerra era assunto de “bandidos”
apenas. O resto da população vivia seu cotidiano de trabalho e
de luta para manter um padrão de vida digno. Os jornais confundiam o que para eles deveria estar claramente separado, além de
difamá-los por não mostrar o lado “bom”, positivo, do conjunto.
Isso só acrescentava dificuldades ao seu viver, já tão prejudicado
pela pobreza, e os “revoltava”. (ZALUAR, 2000, p.13)
É importante destacar que no contexto das grandes cidades brasileiras, algumas periferias se tornaram símbolos da violência existente em determinada cidade. Zaluar demonstrou que a Cidade de Deus não era apenas o local da ação do
crime organizado, das quadrilhas de marginais, do bandido Zé Galinha e do tráfico de drogas e armas, mas também, e principalmente, local de residência de trabalhadores. Por meio de uma superexposição da violência nas áreas desprestigiadas
da cidade, criou-se uma imagem de degradação permanente da população dos
bairros populares, pautada na homogeneização das suas diferenças, sem nenhuma
relativização das distinções relativas às vidas de seus moradores. Vale ressaltar
que este fenômeno não está presente apenas nas cidades brasileiras.
Como demonstra Wacquant (2005), as cidades contemporâneas, em geral, são
palcos de um intenso movimento de distinção social, cuja maior expressão em
países como França e Estados Unidos tem sido a crescente marginalização das
camadas mais pobres da população. Este movimento se caracteriza, principalmente, pela construção de estigmas territoriais12 sedimentados na distinção do espaço
da cidade e na discriminação residencial dos lugares de moradia dos segmentos
sociais que ocupam uma posição desprivilegiada no cenário cultural e social da
cidade. A segregação urbana nos países capitalistas, segundo Wacquant, é representada por formas de classificação negativa dos lugares da cidade considerados
de menor valor no contexto dos capitais simbólicos em jogo: o gueto nos Estados
Unidos, poblacione no Chile, villa miséria na Argentina, cantegril no Uruguai, rancho
na Venezuela, banlieue na França e favela no Brasil.
Embora seja possível afirmar que, historicamente, sempre houve distinções
estabelecidas por sistemas classificatórios de diversas espécies, a segregação urbana das cidades contemporâneas reflete a incapacidade dos Estados Nações realizarem um ideal da modernidade, qual seja a efetivação de um estado de bem estar social
para todos. Aos poucos, as utopias de um mundo belo, justo, e bom dão lugar às
incertezas e à emergência de políticas de repressão das classes consideradas perigosas, estigmatizadas e penalizadas pela sua própria condição.
No Brasil, os moradores urbanos vivenciam “uma situação em que a cidadania não se impôs como valor nem implementou mecanismos democráticos que
possibilitassem o desenvolvimento de um sistema sócio-político minimamente
12 �����������������������������������������������������������������������������������������������
Em suma, é possível compreender por estigma territorial as formas de classificação antecipadas
e negativas dos moradores residentes nas áreas mais pobres da cidade. O estigma é uma espécie de
marca negativa atribuída ao indivíduo pela sua condição de morador de uma área conhecida e reconhecida socialmente como perigosa e violenta.
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“23”
satisfatório para a maior parte da população do País” (VELHO, 1996, p. 14). Para
Caldeira (2003), a consolidação da democracia brasileira e dos direitos políticos
ocorreu sem a efetivação de direitos civis e sociais. Deste modo, os segmentos populares foram integrados ao jogo político, mesmo que apenas pelo direito ao voto,
mas, sem experimentar uma melhoria significativa na sua condição social, continuando a sofrer com problemas como a desigualdade social, falta de acesso a serviços
públicos essenciais e graves violações dos seus direitos individuais, promovidos
pelo próprio Estado, como nos casos de abusos das forças policiais ocorridos nas
áreas mais pobres das cidades.
Neste cenário de desrespeito sistemático aos direitos de cidadania dos mais
pobres, os jovens urbanos das camadas populares são os moradores das cidades
que mais sofrem com as dificuldades impostas pela discriminação relativa ao local
de moradia. Sendo a parte da população jovem da cidade com menor grau de escolaridade e qualificação profissional, os jovens residentes nas periferias urbanas
ainda sofrem com a dificuldade de trazerem consigo a imagem de “sujeitos perigosos”, acusados antecipadamente de propensos à realização de práticas criminosas13.
É preciso considerar, ao analisar a violência das grandes cidades, que a difusão de práticas criminosas violentas e a participação de crianças e adolescentes
são fatos objetivos. Não há no Brasil, entretanto, nenhuma criança ou adolescente
que produza drogas e armas de fogo. Tanto as drogas quanto as armas de fogo são
combustíveis significativos para produção de ações criminosas, seja na articulação
direta de pessoas com as quadrilhas de traficantes, seja na difusão de práticas ilegais para viabilização de recursos do consumo. Seu combate deve ser intensificado
com a criação de redes institucionais de inteligência policial capazes de interceptar
as fontes que alimentam o tráfico de drogas e armas na cidade, ao contrário do que
propõem certos segmentos que acreditam no aumento da punição para menores
de dezoito anos como saída para o problema.
Um dado importante sobre a violência nas cidades brasileiras refere-se ao fato
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
do aumento da circulação de armas ter proporcionado um crescimento significati-
“24”
tos de troca de tiros. As performances presentes nas lutas de grupos rivais (gan-
vo no grau de letalidade dos crimes e confrontos urbanos. Muitas situações como
brigas de gangue deixaram de ser eventos de troca de socos e chutes para ser evengues, torcidas organizadas etc.) deixaram de ser exposições públicas de masculini13 �����������������������������������������������������������
Para melhores informações sobre a juventude no Brasil ver: Perfil da Juventude Brasileira. Pesquisa realizada sob a responsabilidade técnica da Criterium Assessoria em Pesquisas, retomando e
ampliando temas e questões investigados em outubro de 1999 pelo Núcleo de Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo. O relatório completo com dados da pesquisa está disponível no sítio http://
www.projetojuventude.org.br. A pesquisa também subsidiou uma coletânea de artigos organizados
por Helena Abramo e Pedro Paulo Martoni Branco. Cf. Helena Wendel Abramo e Pedro Paulo Martoni Branco (orgs.). Retratos da juventude brasileira: análises de uma pesquisa nacional. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo/Instituto Cidadania, 2005, 448 pp.
dade para acontecimentos mais sutis e táticos, com utilização de artimanhas cuja
função é surpreender o adversário com que se tem “contas a acertar”. Se outrora
era possível identificar códigos de honra merecedores de respeito, mesmo entre
grupos rivais — como, por exemplo, “não matar à traição” —, atualmente parece
que certos participantes de confrontos urbanos não parecem considerar sequer as
pessoas que não têm relação direta com o confronto14.
1.4 Considerações finais
Em suma, os moradores das cidades vivenciam, no mundo contemporâneo,
problemas que expõem formas e conteúdos fundamentais pertinentes ao seu estilo
de vida. Na medida em que as cidades crescem e se modificam em velocidade cada
vez maior, alteram-se as rotinas, os conflitos e as integrações possíveis entre os moradores urbanos. Um dos principais desafios da urbanização moderna, fundada
no ideal de realização pessoal em detrimento da vida coletiva, é a criação de redes
de reciprocidade capazes de integrarem múltiplos interesses em torno de problemas comuns ao habitat de mais da metade da população humana.
É importante destacar que, conforme relatório UNFPA (2007), 52% dos moradores urbanos residem em cidades pequenas, com até 500.000 habitantes. Embora
as grandes metrópoles são as que chamam para si a atenção dos governantes, é
preciso estar atento aos problemas vivenciados pelas cidades de pequeno e médio
porte, principalmente porque, mesmo com melhores condições de implementação
de políticas públicas devido a seus complexos urbanos serem menores, elas dispõem também de menos recursos financeiros do que os grandes centros. Assim, as
medidas pertinentes às áreas urbanas em nações como o Brasil, exige pensamentos
e ações estratégicas que vislumbrem medidas focalizadas, contemplando políticas
públicas locais, e universalizadas, tratando a gestão urbana como questão de Estado.
Por fim, a cidade articula a expressão mais individual da pessoa, ao mesmo
tempo em que a congrega numa intensa rede de reciprocidades. Embora seja possível, a partir de uma atitude blasé, ser indiferente ao outro, não é possível imaginar melhoras efetivas das condições de vida na cidade sem pensar e agir com os
outros. Deste modo, resolver problemas da periferia é, também, pensar as classes
média e alta, suas maneiras de aproximação e distanciamento.
Os seres humanos estabelecem relações ao viverem em grandes cidades, mesmo que elas pareçam compor universos de pessoas diferentes e estranhas. Assim,
pensar a realização do ideal de uma cidade democrática é pensar, sobretudo, um
14 ���������������������������������������������������������������������������������������������
Em Itaitinga, região metropolitana de Fortaleza, no dia 11/02/2008, um homem, seu filho e sobrinho foram assassinados por dois atiradores em uma moto. Segundo depoimentos de moradores e
policiais, o crime foi um “acerto de contas”. Durante a fuga, os atiradores teriam dito que as crianças
eram “os juros” da dívida. Cf. Diário do Nordeste, 12 de fevereiro de 2008.
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“25”
complexo mundo de pessoas tentando viver bem juntas, em situações distintas
conforme suas características, mas com direitos e possibilidades iguais de exercício da cidadania.
Bibliografia
ADORNO, S. Exclusão socioeconômica e violência urbana. In: Sociologias. Porto
Alegre: ano 4, n. 8, jul/dez de 2002.
BARREIRA, Irlys. A. F. A cidade no fluxo do tempo: invenção do passado e patrimônio. In: Sociologias. Porto Alegre, ano 5, p. 314-339, jan/jun 2003.
CALDEIRA, T. P. do R. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São
Paulo. São Paulo: Edusp, 2000.
DAVIS, M. Planeta favela. São Paulo: Boitempo, 2006.
Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). Estado da população mundial
2007: liberar o potencial crescimento urbano. UNFPA, 2007.
LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.
PEDRAZZINI, Yves. A violência das cidades. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Relatório de
desenvolvimento humano 2007/2008. Combater as alterações climáticas: solidariedade
humana num mundo dividido. PNUD, 2007.
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“26”
SCHWARTZMAN, Simon. As causas da pobreza. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito. In: Revista Mana. v. 2 n.
11(2). Rio de Janeiro, 2005.
United Nations Human Settlements Programme (UN-Habitat). The challenge of
slums: global report on human settlements 2003. UN-Habitat, 2003.
VELHO, Gilberto & ALVITO, Marcos (orgs). Cidadania e Violência. Rio de Janeiro:
Ed. UFRJ: Ed. FGV, 1996.
WACQUANT, Loïc. Os condenados da cidade: estudos sobre marginalidade avançada. Rio de Janeiro: Revan FASE, 2. ed., 2005.
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva.
V.II. Editora UNB: São Paulo, 2004.
ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado
da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 2000.
Para Saber Mais
BORZZACHIELLO DA SILVA, J. A cidade contemporânea no Ceará. In: SOUZA,
S. de. [org.] et. al. Uma nova História do Ceará. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha,
2000.
ELIAS, N. & SCOTSON, J. L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações
de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
GONDIM. L. M. de P. Fortaleza entre apocalípticos e integrados – imagens da
cidade e pacto social urbano. In: IN: FISCHER, T. [org.]. Gestão contemporânea, cidades, estratégias e organizações locais. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio
Vargas, 1997.
Filmes Para Assistir
Cidade de Deus, de Fernando Meirelles (ficção), 2002.
Notícias de uma Guerra Particular, de João Moreira Salles e Kátia Lund (documentário), 1999.
Para Refletir
1. Que possibilidades de integração dos múltiplos segmentos sociais que compõem a sua cidade para se pensar políticas públicas para contenção do crescimento da desigualdade social e da violência urbana?
2. Qual o papel da escola em relação aos problemas da sua cidade e como
se pode, mediante ações desenvolvidas pelo corpo discente e docente, mudar
essa realidade?
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“27”
Cidade em Conflito:
Violência, Poder e Autoridade
Rosemary de Oliveira Almeida15
2.1 Um conflito na cidade
Era dia de domingo, claro, ensolarado, tinha tudo para ser um dia calmo. A
vida no bairro transcorria no cotidiano alvoroçado da cidade. Da minha janela
podia ver o movimento deste dia. Algumas pessoas conversavam nas calçadas,
outras transitavam pela rua. Algumas saíam de casa para aproveitar o dia livre;
outras preferiam ficar em casa para descansar... Mas, dava para descansar dentro
de casa? Da minha janela podia ver o movimento da rua, ou melhor, ouvir o barulho da rua, ensurdecedor, brutal, violento. Era o som eletrônico amplificado que
vinha de uma das casas vizinhas, invadia as ruas e adentrava nas demais casas. O
dono do som comemorava o seu aniversário e a rua inteira, mesmo sem ser convidada, teve que participar da festa de forma forçada, tendo que ouvir a música, ou
melhor, o barulho eletrônico. À noite, o dono do som e seus amigos incrementaram
a festa e, assim, expuseram as caixas de som na calçada, defronte à vizinhança, sem
o menor constrangimento diante da magnitude do barulho que ele proporcionara
a todos. O descanso de domingo se desvaneceu com o som alto adentrando pela
noite, pela madrugada...
O que significa tão grande invasão no dia de descanso do outro? O resultado
desta cena? Os vizinhos chamaram a polícia. A polícia chegou e teve que voltar
três vezes até que se chegasse a um comum acordo, que não ocorreu sem conflitos.
Sorte! Nem sempre a polícia atende a esse tipo de chamada em nossa Cidade! Mas
desta vez, ela veio. Ao chegar, o volume do som era baixado; três minutos depois
que a polícia saía, o som aumentava em volume duplicado.
Da minha janela ouvi o diálogo entre policiais e festeiros que se confrontavam, na primeira abordagem, entre argumentações e, depois, entre ameaças dos
dois lados. A polícia argumentava sobre as chamadas dos vizinhos, que lhe suplicavam agir em favor do respeito ao silêncio e ao seu descanso; argumentava o
15 ������������������������������������������������������������������������������������������
Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. Professora do Curso de Ciências
Sociais e do Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade, da Universidade Estadual do
Ceará (UECE). Coordenadora do Laboratório de Estudos da Conflitualidade e da Violência, um dos
três laboratórios que compõem o Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão Gestão Pública e Desenvolvimento Urbano - COVIO/GPDU-UECE. Pesquisadora do Laboratório de Estudos da Violência/LEV
da Universidade Federal do Ceará/UFC. Endereço eletrônico: [email protected]
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“29”
fato de estar perdendo tempo com aquele conflito menor, enquanto deveria estar
atendendo a chamadas mais graves; na abordagem seguinte, a polícia ameaçou
confiscar o som e prender os responsáveis, já que não estavam obedecendo à autoridade policial. Os festeiros, inicialmente, alegaram se tratar de uma comemoração
e que iriam diminuir o som e concluir a festa até a meia-noite; depois, ameaçaram
denunciar os policiais, alegando que eles não tinham autoridade para agir daquela
forma. Da minha janela, vi o desfecho por volta das duas horas da madrugada de
segunda-feira, dia de trabalho para muitos daquela rua, que não puderam mais
descansar... Na última visita, os policiais permaneceram no local até que o som
fosse desligado sob protestos. A polícia foi embora; os festeiros arrancaram de lá
com seu carro e, sem mais poderem ligar o som, acionaram a buzina por aproximadamente 10 minutos, para desespero dos que esperavam finalmente pelo silêncio.
Depois, foram todos para suas vidas...
Escrevo de um pedaço da Cidade, de um espaço minúsculo inserido na grande metrópole urbana: o bairro. Escrevo sobre pessoas viventes neste espaço, que
estabelecem relações diversas de amizade, de familiaridade, mas também de inimizades e desentendimentos, enfim, de conflitos. Afinal, viver em sociedade é formar uma associação, ou seja, é viver “uns com os outros”, “uns pelos outros” e
“uns contra os outros”, como afirma o autor Georg Simmel (1983). Faz parte da
socialização humana viver em comum acordo, mas também lado a lado com as
tensões individuais e sociais que o viver junto acarreta. Tal espaço é criado e recriado por um cotidiano dominado por relações conflituosas que são acrescidas pela
cidade-metrópole.
O conflito presente nestas relações é parte do processo socializador. O conflito
faz parte de um processo de associação contraditório, porém cada vez mais central
para se entender as sociedades modernas. Contraditório, pois, segundo Simmel
(1983), o conflito funda a sociedade e firma um consenso, mesmo que seja com a
luta ou o extermínio do adversário, o outro. E central, pois é o fenômeno que mais
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“30”
cresce com a urbanização desordenada e o crescimento dos índices populacionais
das grandes cidades.
2.2 Autoridade, Poder e Violência: algumas distinções
A cena que descrevi há pouco tem várias dimensões para pensarmos a cidade,
o conflito e a violência. Poderia, neste pedaço de papel, analisar vários ângulos,
como por exemplo, o conflito em si do barulho que vem prejudicando a tranqüilidade de muita gente nas cidades e que, a meu ver, é um delito propagador de
outros crimes, embora nem sempre visto como tal. Poderia olhar para as relações
de vizinhança, o cotidiano do bairro ou analisar a instituição policial etc. Essas
questões e outras mais, contidas nesta cena, me servirão para pensar as relações
sociais da vida cotidiana que não existem sem conflitos. Gostaria de voltar o olhar
aqui, entretanto, para um eixo do conflito urbano: a relação de autoridade e seus
desdobramentos no que diz respeito à violência nas cidades.
É sabido que o espaço urbano das grandes cidades vem crescendo de forma
desordenada, sem, no entanto, reunir condições suficientes para abrigar decentemente sua população, com equipamentos e serviços urbanos como moradia, geração de emprego, serviços de saúde, saneamento básico, espaço para lazer, educação
etc. O significado desta realidade vivenciada nas metrópoles revela a prioridade
da lógica do capitalismo e das relações econômicas que primam pelo aceleramento
do mercado, do consumo e do lucro, mesmo que isso resulte na mudança das práticas urbanas e no mau uso do espaço urbano, segregando-o objetivamente para
beneficiar o capital, em detrimento da qualidade de vida e das relações cotidianas
das pessoas nos bairros.
Desta feita, a maioria das pessoas fica à mercê dessa lógica e se inserem quase
inconscientemente nas regras deste jogo, deixando de lado, muitas vezes, a construção da subjetividade e da proximidade criada e renovada nas relações de vizinhança. O lado frio da cidade adentra nas casas e todos vivenciam o conflito entre
as relações interpessoais da casa, da vizinhança, da amizade e as relações baseadas
na valorização do individualismo, do consumo e, portanto, do desrespeito à comunidade que se instaura nos bairros. Entretanto, se por um lado, esse conflito
produz a segregação dos espaços da cidade, criando diferenciação entre o lugar
rico e o lugar pobre (dicotomia centro-periferia) e produzindo relações individualistas, por outro lado, em alguns espaços, o bairro ainda é o lugar de relações de
vizinhança, de possibilidades de uma vida comunitária e da sociabilidade de seus
moradores. Ainda é possível pensar assim?
Voltando à cena e ao eixo que escolhi estudar aqui, pergunto-me em que medida a violência crescente nas cidades tem relação com pequenos delitos, como brigas entre vizinhos, ocasionadas pelo barulho de som alto ou brigas entre casais ou,
ainda, desordens ocasionadas pelo uso de entorpecentes etc.? E de que forma tais
delitos e conflitos são resolvidos pelas instituições públicas destinadas a trabalhar
pela segurança e pelo bem comum de um povo?
Ora, a violência que se instaura cada vez mais no cotidiano citadino assume
vários sentidos na contemporaneidade. No final do séc. XX, assistiu-se, em quase
todo o mundo, a um crescimento desmesurado da violência, sobretudo daquela
realizada no espaço urbano, no cotidiano da população em geral e, particularmente no Brasil, entre a juventude, a partir dos anos 1980, quando o tráfico de armas e
drogas se intensificou. Vale lembrar que não foi só o crime organizado e os índices
de homicídio que ocuparam manchetes nos meios de comunicação; também as
incidências cotidianas de brigas, desordens e pequenos furtos ocuparam esse espaço. Presencia-se um caminhar para a banalização da violência urbana que, dia
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“31”
após dia, invade com mais força o cotidiano das pessoas.
Relevante é perceber que a violência é compreendida além do fato em si. É,
antes, uma representação social, uma criação que se mantém no imaginário social,
como sendo uma ação criminosa diretamente relacionada a alguns segmentos sociais, especialmente os pobres e os jovens. É preciso desmistificar a tendência que
se tem de identificar todo morador de favela como criminoso, maconheiro, etc.,
especialmente por parte das instituições reguladoras como a polícia que, além de
detentora do controle e da repressão, também é investida da autoridade de proteger, de dar segurança aos cidadãos.
O sociólogo Sergio Adorno (2002) ajuda a compreender que há pelo menos
três dimensões para perceber o fenômeno da violência: a dimensão das percepções, das representações sociais que temos dos fatos, dos autores e vítimas de crimes; a dimensão dos fatos violentos e a dimensão das explicações.
O fato violento em si existe, porém, muitas vezes, é acrescido de estereótipos
criados pela imagem que se tem do drogado, do malandro, do morador de rua
e outras conotações discriminatórias. Entende-se que esta conotação precisa ser
necessariamente corrigida. A mídia, segundo ainda Adorno (IDEM) é, de certa forma, porta-voz das conversas sobre crimes de toda ordem, ampliando as práticas
criminosas e, geralmente, diluindo para o público a representação estereotipada
do pobre, do mendigo, do jovem e do negro, geralmente como os autores do mal
absoluto.
A violência pode ser abordada como um fenômeno de exposição da população às situações de risco contra seus direitos de cidadania, o que significa um amplo espectro de violências: os crimes comuns como furtos, roubos, além de crimes
maiores como o narcotráfico e homicídios; os crimes que violam os direitos humanos praticados, muitas vezes, por policiais e outros grupos que se acham no direito
de matar como os grupos de extermínio e, por fim, os crimes de menor potencial
ofensivo como conflitos entre vizinhos, brigas nos bares e nas ruas, conflitos entre
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“32”
pai e filho, marido e mulher, muitas vezes motivados por assuntos fúteis. Tais delitos podem evoluir para crimes mais graves como homicídios.
A dimensão da explicação leva-me a reconhecer que a violência é um fenômeno que mudou no mundo inteiro e, portanto, reelabora novos perfis como o do
crime organizado e o do narcotráfico, que, por sua vez, expressam novas formas de
violência que precisam ser combatidas no campo da justiça criminal. Além disso,
elas têm relação evidente com as condições sociais em geral, de desigualdades sociais alarmantes, sem, no entanto, associar pobreza e violência. E, por último, um
fator de explicação que gostaria de aprofundar um pouco mais diz respeito à crise
de autoridade das instituições públicas voltadas para a segurança pública e o sistema de justiça que não acompanharam as mudanças no padrão de criminalidade.
Crimes sempre existiram. O que mudou foi o aumento de crimes que terminam
em morte motivada por questões banais, como diz Adorno, delitos que concorrem
para o desfecho fatal. Eles “revelam quanto o tecido social encontra-se sensível a
tensões e confrontos que, no passado, não pareciam convergir tão abruptamente
para um desfecho fatal” (Adorno, 2002, p. 100).
O espaço urbano está sensível ao crime, o que revela a ausência da autoridade,
ou seja, há uma crise de autoridade nas instituições de controle que deveriam ser
mediadoras dos conflitos; há uma crise de autoridade também nas instituições sociais como um todo, nos campos, familiar, educacional, político, religioso, jurídico,
deixando os conflitos de toda ordem, seja na rua, na escola ou no trabalho, à mercê
das relações interpessoais.
O que é a autoridade na sociedade brasileira? É necessária? Quem é legitimado para se investir de autoridade? Um pai com seu filho? Um professor em relação
a seu aluno? A polícia em relação aos moradores barulhentos?
Autoridade não é autoritarismo, como era representada na época do regime
militar; também não o é quando penso em pessoas que se investem de autoridade
como “manda-chuvas do pedaço”. Isto porque hoje vivo em um país democrático ou, pelo menos, em construção da democracia. Como afirma Peralva (2000), o
Brasil iniciou uma retomada à democracia nos anos 1980, à medida que se transitava da ditadura para um sistema democratizado, em que movimentos sociais
se formavam durante o regime ditatorial e prosseguiam, concretamente, experimentando outras maneiras de conceber e fazer política, livres das concepções do
clientelismo tradicional.
Na medida em que a transição democrática ocorreu, sob fortes pressões e demandas populares, provocando rupturas com a experiência autoritária, parcela das
instituições públicas, especialmente, setores importantes responsáveis pela segurança pública, não acompanharam esse movimento, deixando-se permanecer em
práticas e mentalidade autoritárias. Como não se adequaram às novas instituições
e não mais dispuseram dos mecanismos autoritários de manutenção da ordem,
esta etapa de transição acabou por abrir espaço para que a violência ascendesse
rapidamente no Brasil.
Este processo de redemocratização, entretanto, vem acompanhado, em igual
intensidade, do agravamento da pobreza, da miséria e da exclusão social, ao mesmo tempo em que aumentam os níveis de concentração dos bens materiais e culturais nas mãos de seletos grupos sociais. Tal processo, no entanto, convém compreendê-lo como um fenômeno de tendências mundiais no contexto denominado
de globalização.
Para continuar a reflexão, convido o leitor para revisitar a cena inicial do texto, no momento em que se deu o confronto entre policiais e festeiros. Ambos argumentavam sobre o uso do som alto até o conflito se ampliar quando a autoridade policial foi questionada. Os festeiros estavam diante dos policiais, mas não
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“33”
reconheciam a autoridade legítima da polícia para meio de impedir o delito que
cometiam. Ora, a instituição policial é autorizada pelo Estado para agir em prol da
segurança, usando da autoridade legítima, podendo usar da força para frear um ato
contrário à lei e à ordem. O que ocorre é que nem sempre a polícia utiliza a legítima autoridade, muitas vezes, ultrapassa a sua função primorosa de dar segurança à
população, de reprimir e investigar crimes. Nem sempre os policiais são formados
devidamente para assumir a autoridade que lhe é investida.
Como escrevi acima, a instituição não acompanhou o ritmo da democratização, nem nossas lideranças políticas fizeram valer esse procedimento. Ademais, o
sistema de justiça é ineficiente e envelhecido diante das mudanças que ocorreram
nos últimos anos. Diante disso, freqüentemente, atitudes da população revelam
não acreditar nas instituições de segurança pública. Mas, neste caso específico aqui
narrado, algo me intrigou: observei que a polícia agiu conforme a lei, haja vista
que atendeu aos chamados da população, utilizou o diálogo em busca de convencimento, argumentou sobre a lei do silêncio, sobre o respeito aos vizinhos etc., até
utilizar a ameaça de prisão, agora com a arma em punho (mas com o cano da arma
para baixo), caso não obedecessem e retirassem o som, já que era a quarta vez que
vinham ao local para mediar o conflito. O que isso quer dizer?
É importante perceber que a confusão sobre o tema da autoridade e a crise que
sobre ela se abateu não se dá de forma unilateral. A população brasileira, desde sua
formação, é tão autoritária quanto as instituições de segurança, não porque quer,
mas porque assim se constituiu. Muitas vezes, pede violência e só acredita na autoridade que bate, que age com truculência, confundindo, portanto, o conceito de
autoridade com o de violência. Não estou afirmando, com isto, que o povo brasileiro gosta de violência e de sangue etc. O que quero afirmar é que há uma crise de
autoridade social em que, muitas vezes, a população não reconhece a legitimidade
das instituições públicas ou de pessoas a quem se deve obedecer porque estão
investidas desta função em nome do bem comum. Não acreditam em instituições
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“34”
envelhecidas e estas, por sua vez, não fazem valer sua função. Polícia e população,
ao não compreender o valor da esfera pública como o lugar da comunidade, primam pelas relações interpessoais em detrimento das relações comunitárias, para a
resolução dos conflitos.
A autoridade existe quando há obediência consentida, como diz a filósofa
Hannah Arendt; quando há o “reconhecimento inquestionável por aqueles a quem
se pede que obedeçam; nem a coerção nem a persuasão são necessárias” (ARENDT, 1994, p. 37). No entanto, essa obediência não é natural e cega. Para a autora,
um pai pode perder sua autoridade quando bate no seu filho, assim também quando o trata como um igual. Pai e filho não são iguais; há uma relação de autoridade
aí. Para esta pensadora, “conservar a autoridade requer respeito pela pessoa ou
pelo cargo. O maior inimigo da autoridade é, portanto, o desprezo, e o mais seguro
meio para miná-la é a risada” (IDEM, p. 37).
A autora nos ajuda a perceber quão desgastada está a relação de autoridade
que se estabelece entre a população brasileira e a instituição policial. E aí, mesmo
quando a polícia age legalmente e de forma legítima, como no caso da cena relatada, a população não reconhece mais sua autoridade pelos motivos acima expostos
e outros mais.
Conforme Arendt, há uma confusão entre a autoridade, a violência e o poder.
Para ela, a ordem de um policial é diferente da de um assaltante, mas ambos estão
com armas. O que é diferente? O policial é o homem da lei a que a população deve
obediência porque é algo consentido quando se vive em sociedade, quando uma
comunidade de cidadãos se une em torno de instituições sociais e políticas que
existem sob seu consentimento. É essa forma de associação que dá poder às instituições públicas. O assaltante é um fora da lei e usa a arma de forma não consentida e, portanto, violenta. Entretanto, o apoio às instituições não é inquestionável:
Tal apoio nunca é inquestionável, e no que concerne à segurança
ele não pode alcançar a “obediência inquestionável” que, de fato,
um ato de violência pode impor – a obediência com a qual pode
contar todo criminoso quando me arrebata a carteira com a ajuda
de uma faca, ou rouba um banco com a ajuda de uma arma. É o
apoio do povo que confere poder às instituições de um país, e
este apoio não é mais do que a continuação do consentimento
que trouxe as leis à existência. Sob condições de um governo representativo, supõe-se que o povo domina aqueles que o governam (ARENDT, 1994, p. 34).
Neste sentido, a cena entre festeiros e policiais é apenas um exemplo da dificuldade que temos, na sociedade brasileira, de resolver os conflitos pela via do
diálogo, da argumentação e com amparo das instituições públicas responsáveis.
Na maioria das vezes, temos resolvido nossos problemas mediante gostos e práticas individuais. Outro fator importante é que a maioria da população, muitas
vezes, silencia diante de cenas que lhe exigem uma maior participação e deixa
que poucos comandem processos de violências e injustiças. Os vizinhos poderiam
participar da cena? Poderiam entrar no diálogo e declarar seu apoio à instituição
naquele momento em que a desordem e a desobediência avançavam?
No que concerne à idéia de poder, para Arendt (1994, p. 36), “o poder nunca
é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo”. O poder existe em comum
acordo com o grupo, tem relação com a política, com o bem comum. A autora não
está argumentando sobre o poder do tirano, do despótico, mas do poder utilizado
em comum acordo que seria o espaço da palavra, do discurso, da persuasão, portanto, espaço público onde se registra a história do ser político. Nas sociedades democráticas é assim que se concebe a legítima autoridade das instituições. A autora
exemplifica essa relação de poder pouco visível relatando uma cena que ocorre em
uma instituição de ensino em que uma ínfima minoria desarmada, utilizando de
gritos e tumulto, invadem salas de aula porque são contra certos processos acadê-
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“35”
micos e, contradizendo a maioria que votara a favor de procedimentos corriqueiros de ensino, interrompe com sucesso o processo. Para Arendt
[...] o que de fato acontece nesses casos é algo muito mais sério:
a maioria claramente recusa-se a usar o poder para subjugar os
desordeiros; os processos acadêmicos interrompem-se porque
ninguém está disposto a levantar mais do que um dedo e votar
pelo status quo (1994, p. 35, grifos da autora).
Não estou aqui fazendo juízo se a maioria ou a minoria que protestava estava
certa ou não. Estou apenas corroborando com a autora para afirmar que a população não utiliza seu poder para dar legitimidade àqueles investidos de autoridade
para conter crimes e desordens. No processo democrático em que vivemos, muitos
se resumem apenas em votar ou denunciar, sem uma maior participação nesse
processo.
A confusão entre autoridade, poder e violência é algo sério, portanto. Por
exemplo, a um policial não é dado o “poder” de matar, de usar a força sem que isso
seja absolutamente necessário para a restauração da ordem. O policial se iguala ao
criminoso quando transpõe a lei, sai da condição de instituição pública que prioriza o entendimento e adere à violência pelo uso desenfreado da arma. O poder
declina e dá lugar à violência, dá lugar à ausência das instituições, ao lema “cada
um por si”.
Ao policial é dada a autoridade legítima de defender a população dos crimes
e, inclusive, de matar em nome da lei e da restauração da ordem e da segurança
pública. Mas não lhe é dada autorização para agir, primeiramente, com violência
que, para a autora, é instrumental, já que é praticada com instrumentos violentos,
como armas. A violência é, portanto, bruscamente indigna e arbitrária, sendo baseada não na grandeza da ação política que liberta, mas na quantidade de implementos violentos disponíveis, especialmente, nas guerras e revoluções e, assim, na
capacidade de destruição (ARENDT, 1994). Desta forma, a violência é estendida
a todos os setores sociais, inutilizando o discurso e a argumentação; é uma antiA CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“36”
política. Quando não existe mais a fala, reina a violência. Ao perder a palavra,
passa-se ao ato, ao crime.
2.3 Conclusão
Mas, aonde quero chegar com todos esses conceitos? Minha intenção é levar
os leitores a pensar na idéia de que a violência se instaurou na sociedade de tal
forma, com suas mudanças de direção, desgastando muito o espaço social, e mais
ainda o espaço da cidade, devido à ausência do Estado e de suas instituições sociais que deveriam promover o bem comum e, especificamente, devido à ausência
das instituições de mediação de conflitos que não acompanharam as mudanças e
se mantiveram aquém das práticas criminosas.
Veja bem: diante de um conflito aparentemente menor como o barulho de
som, me parece não ser possível a mediação pela palavra, pela ação legítima da
autoridade. O tecido social está tão desgastado que, mesmo quando os policiais
tentaram usar a argumentação para se fazer obedecer, ou seja, a legítima autoridade de fazer cumprir a ordem, eles não foram ouvidos porque a população
mesma se revestiu do direito de não legitimar a ação policial. Não reconheceram a
autoridade e a questionaram. Pergunto-me: se a polícia chegasse batendo em todo
mundo, atirando e prendendo, qual seria a reação? A obediência? A concordância?
Não! Seria violência, seria truculência. Mas, será que a população está preparada
para compreender a autoridade pelo uso correto da insígnia da obediência?
A meu ver, o problema da autoridade passa, assim, pela forma de como nossa
sociedade encara o espaço público como espaço do entendimento e da experiência das relações comuns. Infelizmente, a sociedade brasileira ainda se molda pela
ausência da esfera pública desde a sua formação, baseada em relações escravistas,
e pela longa história de ditadura, desembocando ainda nas relações orientadas
por interesses privados. Os indivíduos contemporâneos ainda não aprenderam a
construir o bem comum.
A sociedade dita de “massas” aproxima os homens entre si, mas sob relação
de controle, ou seja, uma aproximação solitária, tendo em vista que todos estão
juntos num mundo aparentemente comum, mas separados pelo hábito da ausência da palavra, pelo comportamento conformista imposto por normas de conduta
que os qualifica com uma suposta igualdade. Se assim continuo agindo, serei totalmente engolida pela massificação das relações.
Felizmente, a cidade ainda não nos devorou. A cidade nos apresenta a imagem da grande metrópole envolvida no rumo das relações econômicas frias e individualistas. Ela também é feita de pedacinhos, de pequenos lugares onde a vida
transcorre na tensão cotidiana, seja, no dia a dia de trabalho e de desgastes, conflitos etc., seja no dia a dia da tranqüilidade ainda existentes em alguns espaços, das
festas de ruas, dos contatos entre vizinhos, da solidariedade tensa na vida das pessoas, especialmente quando observo o cotidiano dos bairros populares, onde não
há só frieza e individualismo. O bairro ainda é o lugar de relações de vizinhança,
do poder da subjetividade e da construção da sociabilidade de seus moradores.
Ainda é possível, mesmo entre conflitos, observar as relações de vizinhança e coleguismo nos bairros e comunidades da cidade. Resta-nos ficarmos atentos para a
forma como a população participa e dá vazão ao próprio poder. Pensando como
coletividade, a cidade que tememos ainda não devorou, totalmente, os espaços da
cidade que temos e que não a queremos perdê-la.
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“37”
Referências bibliográficas
ADORNO, Sergio. Exclusão socioeconômica e violência urbana. In: Sociologias.
Porto Alegre: ano 4. n. 8,. jul./dez., 2002, p. 84-135.
ARENDT, Hannah. Sobre a Violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
PERALVA, Angelina. Violência e Democracia: o paradoxo brasileiro. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2000.
SIMMEL, Georg. A natureza sociológica do conflito. In: FILHO, Evaristo de Moraes. Sociologia. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1983.
Para Saber Mais
Livros e artigos interessantes:
ADORNO, Sergio. Lei e ordem no Segundo governo FHC. Revista Tempo Social.
São Paulo: USP, nov. 2006.
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Trad.: Roberto Raposo. 8. ed. Rio de
Janeiro: Editora Florense Universitária, 1997.
AVRITZER, Leonardo. Ação, Fundação e Autoridade em Hannah Arendt. In:
Revista Lua Nova. São Paulo: n. 68: 147-167, 2006.
SOARES, Luiz Eduardo. Meu casaco de General: 500 dias no front da Segurança
Pública do Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“38”
Filmes:
Tropa de Elite, de José Padilha, 2007. (mostra os abusos da autoridade policial)
Meu Nome Não é Johnny , de Mauro Lima, 2008 (explora as fronteiras da percepção do crime em contextos urbanos por um jovem da classe média)
Para Refletir
1. Qual a relação entre conflitos urbanos, violência urbana crescente e o conceito de autoridade?
2. Como são vividos e tratados os conflitos na Escola, e, como a violência tem
afetado o cotidiano escolar?
A Cidade Apartada:
Uma Estória Não Contada
Preto Zezé (Francisco José Pereira de Lima)16
3.1 Introdução
O ponto de partida da leitura que compartilhamos nas comunidades inicia-se
de um contexto histórico no qual presenciamos diversos crimes, principalmente,
contra índios, negros e à nossa biodiversidade. O Colonialismo europeu, na busca por expandir seus mercados, desencadeou
em terras brasileiras um verdadeiro genocídio de milhares de comunidades indígenas, além do saque de recursos naturais, o tráfico de negros e mais de três
séculos de escravidão.
Passados, pouco mais de cinco séculos de história, convivemos com as seqüelas de uma sociedade colonizada para ser injusta socialmente: segregada de
maneira ímpar e peculiar racialmente, e ainda, uma biodiversidade saqueada para
garantir a qualidade de vida e os padrões insustentáveis de produção e consumo
do ocidente primeiro mundista.
▪▪ Esta história não é contada nos livros de história, já que a base intelectual
elaborada pela academia constrói uma suposta democracia racial num país
pacífico, para não dizer acomodado, ausentando sempre do cenário das
lutas e conquistas as manifestações oriundas dos(as) “invisíveis”. Porém,
quando acontece essa aparição, os invisíveis aparecem sempre como coadjuvantes da sua própria história, tendo sua liberdade apadrinhada por
algum herói ou heroína das elites brancas coloniais.
▪▪ A abolição, tão exaltada como sinônimo de sensibilidade e senso humanitários das elites, nada mais foi que o “despejo” de quem com sangue, suor
e vida construiu as bases econômicas da sociedade brasileira, isto é, à custa
do trabalho escravo, fato este que até hoje não é reconhecido. A história do
trabalho é uma versão imposta a partir da chegada dos imigrantes, confirmado, inclusive, por meio de produções acadêmicas do chamado mundo
do trabalho: conivência e cumplicidade com o silêncio sobre a participação
popular, negra e escravizada no desenvolvimento econômico da sociedade
brasileira.
16 �����������������������������������������������������������������������������������������
Coordenador Geral da Central Única das Favelas- CUFA/CE. Arte-educador e produtor do programa de Rádio “Se liga”, da FM Universitária e membro do Movimento Cultura de Rua, na cidade
de Fortaleza. Endereço eletrônico: [email protected]
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“39”
Chegado o Século XXI, podemos comprovar por todas as pesquisas realizadas
neste País, o resultado desse crime politicamente correto intitulado “Descobrimento do Brasil”, ou seja, em todas as esferas da sociedade brasileira, observamos que
o capitalismo brasileiro e sua lógica acumulativa de capital garantiram uma inclusão perversa para negros, índios e seus descendentes.
3.2 O Racismo como estratégia estruturante do sistema de dominação brasileiro
Muito se fala e se comprova sobre a face socialmente injusta do Brasil. Porém,
pouco ou quase nada se discute sobre quem são esses(as) injustiçados(as). Esta
negação se dá pelo fato de impedir a publicizacão da temática do racismo, da discriminação racial e do preconceito de cor e origem.
▪▪ Para termos dimensão da eficácia de como opera o racismo brasileiro, basta
realizarmos um teste em um pequeno coletivo questionando se há ou não
racismo no Brasil. Em seguida, façamos um segundo questionamento aos
presentes: quem é ou não racista? O resultado, na maioria das vezes em
que fizemos este exercício é de que a maior parte dos presentes concorda
que existe racismo na sociedade brasileira, no entanto, somente uma minoria se assume como autores desta prática. Logo virá à tona um outro
questionamento: onde você guarda o seu racismo?
▪▪ O teste acima pode ser aplicado em qualquer grupo, inclusive, em grupos
de negros e o resultado é sempre o mesmo. Tal fato nos comprova o efeito
perverso de como foi engendrado o racismo à brasileira. Este racismo gerou,
na nossa sociedade, métodos e dinâmicas que possibilitam a imposição
institucional e social de um fenômeno que chamaremos de “invisibilidade”,
ou seja, um conjunto de práticas e de relações sociais somadas à ausência
de uma combinação de políticas públicas, contexto que acaba por contribuir para manutenção de um status quo referendado na classe, na cor/etnia
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“40”
e no sexo.
3.3 Fortaleza: a cidade apartada
A cidade de Fortaleza desde seu nascedouro como Forte de Nossa Senhora
de Assunção, até os dias de hoje, se guia pela lógica da segregação e de vigilância
dos setores perversamente excluídos, na sua maioria negros, índios, quase sempre,
pobres.
O processo de desenvolvimento arquitetônico e de ocupação do solo urbano
foi regido única e exclusivamente pelos interesses de acumulação do capital que
seguiram livremente sem intervenção do poder público. Para as comunidades da
periferia de Fortaleza, uma das poucas vantagens é o Plano Diretor17 pelo qual
movimentos sociais avançam no que diz respeito à regulamentação do uso do solo
e de sua utilização social.
As comunidades históricas de Fortaleza sofrem com um Racismo Ambiental
que os impedem de ter espaços para manifestar suas crenças locais. Vivenciam
uma espécie de exílio compulsório, pois, muitos nunca saíram da Cidade. Os grandes grupos econômicos não entendem que, progresso algum, paga os recursos naturais e os usos do território, questões tão fundamentais para as populações aqui
citadas garantirem sua história, sua identidade, seus vínculos afetivos e a reprodução da sua vida social e cultural.
Esse apartheid é o mesmo que garante a derrubada dos barracos da periferia e
que destrói a natureza para construção de campos de golfe ou resorts. Este processo é financiado por milhares de dólares, sob a promessa de progresso e emprego.
Os sinais de sua fatura, no entanto, não condizem com suas promessas. Quem
duvida? Basta observarmos o que foi feito na conhecida Praia de Iracema, onde
a comunidade local teve sua praia ocupada pela intelectualidade emergente, em
seguida, pela burguesia ascendente, sobressaindo o discurso do progresso e da
urbanização. Território este que, processualmente, foi expulsando seus pobres, até
que hoje resta somente o rastro de latinhas perfuradas sinalizando que ali os cracks
que residem ali não mais são os de bola.
A Cidade apartada precisa de mais de 40 mil homens da segurança privada
para poder transitar, enquanto o contingente da Polícia Militar do Estado inteiro
não chega a 15 mil homens. O resultado maior da acumulação de renda do País é
as mais de 700 favelas; a lógica do consumo automobilístico e da indústria da construção civil, via especulação imobiliária, poluem as cidades e destroem os recursos
naturais, impossibilitando, inclusive, o povo de desfrutar dos privilégios e serviços ambientais que a natureza oferece. Mesmo com todos os indicadores da crise,
quando se propõem a discutir Fortaleza com base em suas características locais,
comprometida com as demandas ambientais e sociais, grandes grupos econômicos
se levantam para continuar garantindo a manutenção deste apartheid.
É preciso selar um pacto comprometendo os vários setores da sociedade, em
particular com a Prefeitura, com um novo projeto para Fortaleza, caso contrário,
na medida em que não dividimos as riquezas e não pensamos num modelo diferenciado da relação homem-natureza-economia, estaremos todos condenados a
dividirmos as tragédias sociais e os castigos da natureza.
17 ����������������������������
O Plano Diretor intervém no apartheid que foi construído na quarta maior capital do País. As
comunidades foram historicamente e ainda são constantemente varridas do mapa pelos empreendimentos, muito deles chancelados e financiados com recursos públicos. Como exemplo, observemos
as vias expressas e a remoção das populações pobres e pretas das proximidades dos bairros mais estruturados, tais como Aldeota, Meireles e Dionísio Torres, revelando uma política de limpeza étnica
e social.
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“41”
3.4 Por um novo fazer e pensar político nas favelas: a periferia é o centro
As dimensões econômica, social, cultural e de desenvolvimento humano das
juventudes revelam um ambiente de miséria, repressão do Estado, racismo, e pobreza, aliada aos atuais padrões de produção e consumo insustentáveis. São questões que atuam como uma teia que submete a juventude à invisibilidade humana,
social, cultural e política.
Os dados revelam a presença da juventude, em particular, da juventude negra dos grandes centros urbanos, como segmento atingido constantemente pelas
graves crises sócio-ambientais e pela má qualidade de vida nas grandes cidades
brasileiras.
Esse grupo desenvolve sua sociabilidade fora dos espaços institucionais, isto
é, são jovens evadidos da escola (seja por fatores econômicos ou por falta de identidade com o ambiente e a trajetória escolar); jovens atuando politicamente em trajetórias próprias, segundo sua própria dinâmica, tendo, inclusive, a criminalidade
como estratégia para furar os bloqueios e superar a invisibilidade conferida pela
situação de desigualdade da sociedade de consumo.
As poucas políticas públicas que atendem aos jovens, não conseguem agregálos por meio de seus conhecimentos, habilidades e atitudes, muito menos através
de métodos educacionais alternativos, atividades de afirmação da juventude e de
sua diversidade sócio-cultural. Pelo contrário, o poder público não dialoga com o
imaginário juvenil, não toca em seus corações, não consegue seduzir suas mentes
e envolver suas almas.
Ao mesmo tempo, na contramão da inserção perversa do capital, novos fazeres políticos e novas dinâmicas de atuação e de leituras de mundo são gestadas,
gerando uma espécie de efeito colateral do próprio sistema.
A exemplo de outros movimentos sociais que navegam na contramão das ondas da sociedade de consumo e das correntezas do grande capital, a nossa expeA CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“42”
riência cotidiana na CUFA propicia o desenvolvimento de algumas estratégias de
articulação e de ativismo nas comunidades. Citaremos aqui algumas de nossas
reflexões consideradas fundamentais nas nossas práticas, a saber:
▪▪ Ativismos políticos diferenciados, tendo como referencial a ecologia social
urbana, para compreender as relações de produção e de consumo global,
os impactos sobre nós mesmos e nossas comunidades, orientados por um
conjunto de iniciativas e práticas individual e coletiva que possibilitam o
desenvolvimento intelectual e de habilidades técnicas, além da capacidade
de leitura políticas com base na ótica local;
▪▪ Um processo de participação, de formação técnica e política adaptado às
realidades locais, ou seja, considerando as especificidades de cada comunidade, suas lutas e conjunturas social, cultural, ambiental e econômica. Na
nossa perspectiva, este processo se dá “de baixo para baixo”, referenciado
nos recortes étnicos, de classe e sob a dinâmica da juventude como ponto
central e não periférico. Para tanto, as leituras das dimensões do cotidiano
de vida desses/as jovens, seus códigos simbólicos e suas práticas são para
nós elementos constitutivos das nossas ações, no sentido de reconhecer
as suas essências de vida como configuração humana e social. Portanto,
a proposta não tem como referencial único os conhecimentos oficiais produzidos no interior dos muros da academia e do modelo de ensino formal
brasileiro, tão pouco o modelo da democracia representativa vigente;
▪▪ A organização local é autônoma, outro fator diferencial e essencial na nossa organização, pois há o entendimento das comunidades como territórios
de afirmação, de potencialidades e de acúmulo e produção cultural local,
isto é, não mais como meramente público alvo ou quantitativo numérico,
mas como sujeitos ativos. Na prática, nossas bases se negam a legitimar
“modelos de participação” institucionais formais, uma vez que criamos
nossas próprias leituras, espaços, dinâmicas de coletividade, democracia
e intervenção;
▪▪ A apropriação das tecnologias e das ferramentas de comunicação de massa, além do desenvolvimento de habilidades técnicas, garantem os veículos
de intervenção e expressão. Fazemos, portanto, o conceito de participação
uma conquista e não uma dádiva, indo na contramão do processo de dominação e tutela das nossas demandas e coletividades, como historicamente
fazem parte de grupos políticos partidários e o próprio aparelho de Estado.
Ao mesmo tempo, nossa metodologia possibilita a auto-representatividade
dos jovens, por meio da escuta de suas reivindicações, do diálogo permanente, do desenvolvimento de iniciativas de geração de renda, sustentabilidade econômica individual e coletiva, recusando-nos, assim, a sermos
coadjuvantes da nossa própria história;
▪▪ Uma Formação Educacional e Cultural gerada pelas organizações locais
autônomas com currículos formulados com base nos desafios da comunidade e planos de vida; além da pedagogia e de processos práticos adequados que formam uma rede de competências e habilidades entre nossos
membros que atuam em equipes por áreas estratégicas das nossas comunidades, como: trabalho, cultura, assistência social, saúde, esporte e lazer,
dentre e outras.
Neste sentido, nossa pretensão é elevar o nível intelectual “dos nossos”, nosso
capital humano e social, desenvolvendo habilidades de leitura de mundo, do cotidiano urbano, da relação comunidade e natureza, da profissionalização técnica,
geração de renda e ativismo social local da juventude negra e das comunidades.
A CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“43”
Assim, os núcleos de cada comunidade têm como seu ponto de partida ações
desenvolvidas por agentes jovens e dirigidas para outros jovens. A metodologia
pedagógica é centrada, ainda, no contexto cotidiano da comunidade local, fazendo
interagir dinâmicas próprias para cada um desses núcleos, produzindo conhecimentos diversos e plurais, gerando renda e novos caminhos de formação e capacitação pedagógicas.
Atualmente, conseguimos formar núcleos em três comunidades da periferia
de Fortaleza, que demonstram resultados significativos no processo de formação e
de desenvolvimento da juventude, conseguindo assim, reverter a lógica da violência estigmatizada para o carisma do ativismo social juvenil.
O esforço é o de, possibilitar, também, a articulação dos núcleos em forma
de centro de interesses e educação, e ainda, incitativas de empreendedorismo juvenil. Neste sentido, é importante considerar o princípio dialógico na rede, entre
seus núcleos e as comunidades. Considerando, portanto, suas especificidades, nas
quais é significativa a construção de um perfil próprio de desenvolvimento de interesse, de educação e de desenvolvimento socioeconômico de cada comunidade
onde desejamos atuar. Cada núcleo é fortalecido e apoiado nos processos de sistematização, avaliação e monitoramento das ações e das iniciativas já em andamento, considerando, porém, os enfrentamentos das barreiras sociais e raciais.
A CUFA, todavia, deseja estar articulada com o espaço acadêmico, a fim de
criar um campo de interesses em comum e de trocas de conhecimentos produzidos
entre os conhecimentos científicos e aqueles produzidos pelos/as jovens nas ruas
da Cidade, nas comunidades e nas suas organizações políticas.
O objetivo da CUFA, enfim, é o de valorizar o saber da juventude construído
empiricamente na prática da vida diária, possibilitar, por conseguinte, a troca de
experiência entre o conhecimento cientifico e o não-científico, gerando o reconhecimento cultural e a reafirmação da cidadania juvenil por meio de um processo pedagógico e dialógico com referências na educação popular para o desenvolvimenA CIDADE
QUE DEVORA
Respeitar as diversidades e combater as
desigualdades.
“44”
to de habilidades educacionais, profissionalizantes e de implementação de ações
afirmativas, com recorte étnico/racial.
A CUFA propõe a sinergia entre apropriação de conhecimentos técnicos e
científicos com a criatividade, talento, empoderamento, potencializando sempre o
protagonismo da juventude negra das comunidades cearenses.

Documentos relacionados