Princípios gerais e considerações práticas para quem trabalha com
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Princípios gerais e considerações práticas para quem trabalha com
Princípios gerais e considerações práticas para quem trabalha com animais de laboratório Maria José Pinto de Barros Pereira * 11 *Assistente Hospitalar do Hospital de S. Marcos - Braga Resumo Os investigadores devem estar preparados para o uso adequado dos animais na investigação. Devem ter conhecimentos sobre: a biologia e as particularidades dos animais de laboratório, as doenças e a microbiologia, os cuidados de saúde e de práticas seguras no biotério, o projecto e condução de uma experiência com animais, a anestesia, a analgesia e os procedimentos experimentais, assim como aspectos éticos e legais do uso dos animais de laboratório e ainda alternativas a esse uso. Palavras-chave: Animais, modelos, laboratório, investigação Abstract General principles and practical considerations to people who works with laboratory animals The researchers must be prepared for appropriate use of animals in scientific experiments.Their knowledge must cover biology and husbandry of laboratory animals, aspects of microbiology and diseases, health hazards and safe practices in the animal house, the design and conduct of animal experiments, anaesthesia, analgesia and experimental procedures, as well as the ethical and legal aspects of animal experimentation and alternatives to animal use. Key Words: Animal, models, laboratory, research CORRESPONDÊNCIA: Maria José Pinto de Barros Pereira Assistente Hospitalar do Hospital de S. Marcos - Braga Travessa Padre Vitorino Sousa Alves nº4 4ºDto. Centro 4715-399 Braga Tlf. 00351253611385 Tlm. 00351919193417 Revista SPA ‘ vol. 16 ‘ nº 2 ‘ Abril 2007 Introdução 12 Os animais de laboratório têm um papel fundamental na investigação científica, fornecendo informações que facilitam o progresso da ciência e tecnologia. Os cientistas têm o privilégio, mas não o direito, de usar animais na investigação. Este privilégio não lhes confere o poder de abuso. Por razões éticas e científicas é necessário e obrigatório que quem trabalhe em investigação com animais conheça com profundidade o “objecto” do seu trabalho. Deste modo, antes de iniciar um estudo, os investigadores devem dedicar tempo para uma revisão da literatura, para o conhecimento dos modelos animais disponíveis e quais os modelos mais adequados ao estudo em causa, e para aprender quais as particularidades de determinadas espécies, raças ou estirpes1. Ter conhecimentos sobre história, legislação, ética e alternativas ao uso de animais de laboratório também deve fazer parte do seu domínio. História Foi na Grécia que as primeiras práticas vivisseccionistas (literalmente: corte em organismos vivos) realizadas pelos Filósofos tiveram objectivos científicos. O primeiro livro médico de bolso, Corpus Hippocraticum (400 A.C.), fazia várias referências ao uso de animais. Neste período a ciência médica era sobretudo descritiva, dando grande ênfase à anatomia. Em Roma, com Galeno (130-201 D.C.), terminou a primeira era médica da investigação. Este médico e fisiologista, investigando com porcos, macacos e cães, forneceu conhecimentos para a prática médica que foram úteis não só na sua época mas também durante vários séculos. A cultura romana não permitia o melhor clima para o desenvolvimento da medicina e da biologia. Após a emergência do Cristianismo a ciência experimental cessou completamente. Os estudos empíricos foram totalmente banidos durante mais de um milénio e nenhuma experiência com animais nem nenhum estudo foram mencionados até ao início da época renascentista, no século XV. O renascimento da medicina e da biologia experimental fez parte de um renascimento total do Revista SPA ‘ vol. 16 ‘ nº 2 ‘ Abril 2007 conhecimento.A experimentação empírica foi ganhando terreno, inicialmente dando mais ênfase à anatomia (Vesalius, De Humani Corporis Fabrica, 1543) mas no século XVII a fisiologia também foi alvo de estudo (Harvey, Anatomica de Motu Cordis et Sanguinis in Animalibus, Exercitatio, 1628). Nesta época os animais não eram vistos como criaturas que sentem. Pensava-se que a grande diferença entre o homem e os animais era a alma e por isso os animais não tendo alma, não tinham consciência e não sentiam dor. Em 1789 Jeremy Bentham deu um precioso contributo ao debate sobre o uso de animais na experimentação. No seu famoso Introduction to the Principles of Morals and Legislation ele rejeitou a visão cartesiana de que os animais não tinham a capacidade de sentir dor. Do ponto de vista moral a grande questão não era se pensavam ou se falavam mas sim se sofriam. Durante o século XVIII foi-se aceitando gradualmente que os resultados da medicina experimental contribuíam para o bem-estar e para melhorar a condição de vida dos homens, tornando-se evidente que o desenvolvimento da medicina dependia dos resultados das experiências com animais. Mas isto não significava que toda a gente concordava com o uso de animais para este fim. No final do século XIX, principalmente na Inglaterra vitoriana, o uso de animais para a investigação levou ao aparecimento de um movimento anti-vivisseccionista (AV) e em 1875 aí surge a primeira organização antivivisseccionista “The Victoria Street Society”. Foi também em Inglaterra que apareceu a primeira lei de protecção aos animais de laboratório (Cruelty to Animals Act, 1876). Este movimento afastou-se dos princípios da defesa e bem-estar dos animais, baseando a sua argumentações no medo da ciência e provavelmente em sentimentos misantropos. O actual movimento de defesa dos direitos dos animais teve a sua origem no movimento AV Vitoriano. Os novos AV têm os mesmos objectivos e usam os mesmos argumentos e tácticas que usaram os seus antecessores para persuadir o público sobre a verdade da sua “causa” 1 - 3 . Estas opiniões extremistas, que aboliam totalmente o uso de animais na investigação, não foram partilhadas por toda a sociedade. Durante o século XIX o aumento da experimentação animal tornou-a numa parte integral da investigação biomédica. A partir do início do século XIX deu-se um grande avanço nos conhecimentos médicos, em grande parte devido ao uso de animais de laboratório. Foram extrapolados para o Homem muitos conhecimentos adquiridos em experiências com animais. Durante o século XX não só aumentou o número total de animais usados mas também o número de espécies utilizadas. Até ao final do século passado foram utilizadas pelos investigadores várias espécies de animais domésticos preferencialmente determinadas estirpes de ratos e de ratinhos. Mais recentemente são utilizadas outras espécies de mamíferos e também de aves, répteis, anfíbios e peixes. O crescimento do número de animais utilizados estabilizou nos anos 70 do século XX e começou a diminuir nos anos 80. Nessa década a experimentação animal foi alvo de interesse político e a regulamentação legislativa da protecção dos animais para fins experimentais foi criada e implementada. Não só os governos se depararam com as questões de regulamentação do uso de animais para fins científicos mas também as sociedades científicas prepararam as suas próprias linhas de orientação. A legislação recentemente introduzida por muitos países teve grande influência no desenvolvimento da ciência dos animais de laboratório. O livro The principles of humane experimental technique, de Russel and Burch, elaborado há 50 anos, tornou-se o tema central da ciência dos animais de laboratório. Este livro centrase na questão de como se poderão diminuir ou retirar os aspectos desumanos da experimentação animal. Os seus autores introduziram o conceito dos três R (Replacement, Reduction, Refinement), como linha de orientação para o uso responsável de animais de laboratório4-8: - Replacement – refere-se à substituição de animais vivos por técnicas in vitro, modelos computarizados, videos, filmes... A experiência é substituída por um processo alternativo que leve ao mesmo resultado sem recurso a seres vivos. - Reduction – refere-se à diminuição do número de animais utilizados em cada experiência. Isto conseguese padronizando a população animal, controlando rigorosamente os factores ambientais, escolhendo procedimentos correctos... Desta forma, reduzindo as variáveis reduz-se o número de animais necessários. - Refinement – refere-se a qualquer medida para diminuir a incidência ou a severidade da dor ou do sofrimento provocados pelos procedimentos nos animais. Pode realizar-se mesmo antes da experiência, através de um conhecimento rigoroso das necessidades biológicas do animal que se proporcionarão na medida do possível no laboratório. Também se realiza durante a fase de experimentação, através da melhoria dos procedimentos, ou dos métodos de anestesia ou analgesia que diminuirão o sofrimento dos animais. Os investigadores deverão ter em conta que o Refinement não só melhora o bem-estar dos animais como a qualidade das experiências. Os três R também trouxeram o conceito de alternativas ao uso de animais. A procura de alternativas despertou um crescente interesse. Publicaram-se artigos em importantes jornais e realizaram-se congressos internacionais sobre alternativas ao uso de animais (1993 em Baltimore organizou-se o I World Congress on Animal Alternatives, em 1996 realizou a II reunião em Utrecht e em 1999 a III em Bolonha)9. Em todas estas reuniões o conceito dos três R de Russel e Burch foi o tema central. 13 Legislação A primeira legislação relativa a animais de laboratório surgiu em 1876 no Reino Unido sob a forma de Cruelity to Animals Act. Este estatuto resultou de de um longo debate entre cientistas e defensores dos animais. O Reino Unido foi o primeiro e, durante muitos anos o único, país com legislação protegendo os animais usados para fins científicos. Nos Estados Unidos a principal lei federal, Animal Welfare Act, sobre protecção dos animais de laboratório e que data de 1966, foi alterada em 1985 através da publicação da Improved Standard for the Laboratory Act10. Inicialmente a lei centrava-se na prevenção da transferência ilegal de animais de estimação para instituições de investigação e na transformação de animais de laboratório em animais de estimação. Posteriormente a alteração à lei focalizou-se no recurso a analgésicos e anestésicos e ao enriquecimento do meio ambiente de cães e primatas não humanos, aliviando-lhes o sofrimento. Mais tarde estas alterações estenderam-se a outros animais (cavalos, animais de quinta) estando prestes a englobar ratos, ratinhos e pássaros. Subsequentes alterações foram adoptadas: a revisão pelo Institutional Animal Commitees exigiu protocolos para estudos com animais, cuidados Revista SPA ‘ vol. 16 ‘ nº 2 ‘ Abril 2007 14 prestados aos animais por veterinários e qualificações do pessoal dos laboratórios, passando a ser da responsabilidade do Comité exigir à instituição o treino e a preparação dos investigadores e outro pessoal envolvido no cuidado e tratamento dos animais. Em 1985 introduziu-se o Health Research Extension Act como complemento à regulamentação do Animal Welfare Act. Assim, as instituições que recebam subsídios dos Serviços Públicos de Saúde passaram a ter de complementar a legislação aplicada aos animais de laboratório com a política dos Serviços Públicos de Saúde. A principal caracteristíca desta política é a adopção das linhas de orientação do Guide for the Care and Use of Laboratory Animals e a criação de um Institutional Animal Care and Use Committee cuja constituição e responsabilidades estão em consonância com os definidos pelo Institutional Animal Committees no Animal Welfare Act. Todos os animais vertebrados passam a estar cobertos pela política dos Serviços Públicos de Saúde. Na Europa apareceram dois importantes documentos na década de 80 para controlar o uso de animais na experimentação. Em 1985, em Estrasburgo, depois de vários anos de discussão, 26 países do Conselho Europeu chegaram a acordo na Convention for the Protection of Vertebrate Animals used Experimental and other Scientific Purposes (ETS123). Esta convenção, não sendo um documento cego, não tinha qualquer força legislativa. Em 1986, baseado nesta convenção, mas de forma mais concisa e com exigências mais apertadas, apareceu outro documento, o Directive for the Protection of Vertebrate Animals used for Experimental and other Scientific Purposes ( 86/609/EEC ), adoptado pelo Conselho de Ministros da Comunidade Europeia11-12. Todos os estados membros da Comunidade Europeia são obrigados a implementar esta Directiva na legislação nacional. Esta Directiva deve ser encarada como exigência mínima, sendo cada Estado Membro livre de regulamentar mais estritamente, se assim o desejar. O objectivo central da legislação comunitária introduzida para controlar a experimentação animal é conciliar as necessidades dos cientistas com as exigências da humanidade. Toda a legislação de protecção dos animais de laboratório é baseada na premissa de que, sob certas condições, é moralmente aceitável o uso de animais para fins experimentais e outros fins científicos. Muitas leis impõem condições Revista SPA ‘ vol. 16 ‘ nº 2 ‘ Abril 2007 que assegurem a redução do número de animais ao mínimo possível. A maioria da legislação tem os seguintes objectivos: - definir o legítimo objectivo para o uso dos animais, - assegurar a competência de todo o pessoal do laboratório e dos investigadores, - limitar o uso dos animais quando houver outra alternativa, - prevenir a dor ou outras agressões aos animais, - prover inspecções dos procedimentos e técnicas, - assegurar a responsabilidade pública . Os cientistas que usam animais para a investigação irão estar sujeitos, cada vez mais, a mais regulamentações. A legislação portuguesa relativa à protecção dos animais usados para fins experimentais e outros fins científicos consta no Decreto-Lei 129/92 de 6 de Julho de 1992, que transpõe para o direito interno a Directiva nº 86/609/CEE, e consta na Portaria nº 1005/92 de 23 de Outubro de 1992. O Decreto-Lei nº 197/96 de 16 de Outubro de 1996 veio alterar o diploma anterior, habilitando também o Ministério da Ciência e da Tecnologia, conjuntamente com os Ministérios da Economia, da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas, da Educação e da Saúde, a aprovar as normas técnicas de execução do diploma. Na Portaria nº1131/97 de 7 de Novembro de 1997 passa a ser a Direcção-Geral de Veterinária a autoridade competente para fiscalizar o cumprimento do diploma e para supervisionar as experiências, papel anteriormente desempenhado pela Direcção-Geral da Pecuária12-16. Modelo Animal Na maioria das experiências o animal serve para substituir o homem e por isso é designado como modelo animal. O significado dos resultados de uma experiência com animais depende da selecção do modelo animal. A forma como os resultados podem ser extrapolados depende do tipo de modelo animal e da natureza da investigação. Não há regras quanto à escolha do modelo animal mais adequado nem quanto à extrapolação dos resultados do modelo para outra espécie animal ou para o homem. Contudo, é conveniente ter noção dos aspectos biomédicos comparáveis mais relevantes. Os modelos animais usados para estudar doenças do homem podem ser divididos em vários grupos: modelos induzidos (incluindo modelos transgénicos), modelos espontâneos, modelos negativos e modelos órfãos. Os mais importantes são os modelos induzidos e os modelos espontâneos. Nos modelos induzidos uma doença ou alteração é induzida experimentalmente (por cirurgia, administração de substância activa biologicamente, alterações genéticas), de forma a obter semelhança dos sintomas e etiologia dos da espécie alvo. Interferindo no meio ambiente, na alimentação, na endocrinologia, ou no estado infeccioso do animal, criaram-se vários modelos de uma variedade de disfunções e doenças humanas. O desenvolvimento da engenharia genética tornou os animais transgénicos na principal categoria de modelos animais. Apesar de se usarem outros animais, incluindo os peixes, os ratinhos são os animais transgénicos preferidos para fins experimentais. Os modelos animais espontâneos de doenças humanas são aqueles que têm variações genéticas que ocorrem naturalmente, há centenas de estirpes de animais analisadas e categorizadas que apresentam espontaneamente doenças semelhantes às do homem. Os modelos negativos são espécies, raças ou estirpes nas quais determinada doença não se desenvolve. Também têm esta designação os modelos que são insensíveis a um determinado estímulo, que normalmente causa um efeito noutra espécie ou raça. Os modelos animais órfãos referem-se aos modelos onde uma doença é inicialmente reconhecida e estudada numa espécie animal com a consciência de que posteriormente pode ser identificada no homem. Só raramente um modelo animal espelha um estado de saúde ou de doença do homem. A escolha do modelo animal baseia-se num aspecto ou fenómeno que se pretende estudar. Vários modelos diferentes, espontâneos ou induzidos para a mesma condição, têm que ser usados para escrutinar os diferentes mecanismos possíveis envolvidos. Quando se escolhe usar um determinado modelo animal é importante considerar o grau de generalização dos resultados obtidos. A base para extrapolar resultados para outras espécies é a homologia. A homologia refere-se à semelhança evolutiva entre estruturas morfológicas e processos fisiológicos em diferentes espécies e também entre animais e o homem. Apesar de terem ocorrido grandes divergências na evolução das espécies, ainda há muitas semelhanças entre várias espécies e entre animais e o homem. Quando se vai estudar um determinado aspecto, é necessário escolher a espécie ou raça que tenha total conformidade com o aspecto anatómico ou fisiológico específico da espécie para a qual o resultado vai ser extrapolado. A extrapolação dos animais para o homem tem que ser feita com alguma reserva. Resultados de testes obtidos em animais vão posteriormente ter que ser verificados com estudos com humanos. Isto leva a uma discussão sobre qual será então o interesse da extrapolação do animal para o homem. Julga-se que os testes com animais podem reduzir riscos para os humanos. Os animais usam-se muito para testar substâncias empregues na agricultura, indústria e processamento alimentar, mesmo assim a toxicidade derivada destes testes não garante total segurança para os humanos. O risco de falsa extrapolação pode ser minimizado usando várias espécies de animais. No caso do despiste toxicológico as autoridades exigem o uso de duas espécies, uma das quais não pode ser roedor. Os testes animais podem acelerar o progresso na investigação para combater doenças dos homens. A observação de fenómenos nos animais fornece ideias para orientar a investigação nos homens e também torna esta investigação mais segura. A selecção de um modelo animal para a investigação requer um planeamento cuidado e meticuloso. Antes de começar, a questão chave ou hipótese deve estar clara pois é isto que vai determinar a escolha do modelo animal. Quando a questão chave estiver claramente definida poder-se-á pensar qual o “substracto chave” necessário para responder à questão (determinado tipo de células, tecidos, órgãos ou interacção entre órgãos). Depois de definir o substracto pergunta-se se ele deverá ser saudável ou doente, em crescimento, adulto ou velho. Se a escolha recai sobre um substracto doente, a questão seguinte será se se escolhe um modelo induzido ou se um modelo espontâneo será suficiente.Tendo claramente definido o “substracto chave” é então possível ver qual a espécie ou raça que reúne as características requeridas. O passo seguinte será determinar se o “substracto chave” usado como tal (i.e. órgão in vitro), ou se será necessário usar o animal intacto vivo. Os passos na selecção de um modelo animal podem sumariar-se da seguinte forma: 1º Definir a questão chave; 15 Revista SPA ‘ vol. 16 ‘ nº 2 ‘ Abril 2007 16 2º Definir o “substracto chave”; 3º Determinar as espécies ou raças de animais onde se encontra o “substracto chave”; 4º Estabelecer dentre as espécies ou raças de animais que possuem o “substracto chave” quais as mais vantajosas do ponto de vista técnico e onde se causa o menor desconforto para o animal; 5º Estabelecer quais os factores práticos que devem ser decisivos, i.e., disponibilidade, acomodação, cuidado, tratamento, equipamento, informação publicada, perícia e custos. 6º Escolha do modelo animal com base em considerações científicas, práticas e éticas. A pesquisa da literatura disponível poderá indicar as espécies mais usadas para o objectivo em causa mas, na maioria das vezes, estas espécies foram usadas mais por uma questão de hábito do que por uma escolha baseada em estudos comparativos. Há razões práticas óbvias para o uso de espécies de animais comuns de laboratório, como os ratos e os ratinhos. O rato é um modelo animal com particular interesse pelo grande número de linhas transgénicas disponíveis e pelo detalhado conhecimento do mapa genético desta espécie. Quando um modelo animal não está disponível, o investigador pode considerar a hipótese de desenvolver um modelo, mas isto consumir-lhe-á muito tempo. Manuseamento, anestesia, analgesia e eutanásia Quem trabalha num laboratório não deve iniciar o manuseamento de um instrumento científico delicado e complicado sem o conhecer profundamente, porque a possibilidade de o danificar, de trabalhar de forma errada ou de se injuriar está sempre presente. Quando se trata do “instrumento” científico mais delicado e complicado do laboratório, como são os animais de laboratório, esta premissa é ainda mais importante. O pessoal que trabalha com animais de laboratório tem que conhecer os métodos de manuseio da espécie em causa. O incorrecto manuseamento pode levar quer ao sofrimento do animal, quer a alterações do resultado da experiência, quer ainda em injurias para o manuseador. Quando se manipulam animais de laboratório o tratamento dos animais de uma forma Revista SPA ‘ vol. 16 ‘ nº 2 ‘ Abril 2007 correcta e a segurança do manuseador devem ser premissas presentes em todos os procedimentos. As experiências podem produzir agressão e dor nos animais que, por razões éticas e científicas, têm de ser reduzidas ao mínimo ou mesmo completamente eliminadas. A experiência dolorosa que ocorre durante um procedimento cirúrgico pode ser completamente abolida com recurso a técnicas anestésicas adequadas. A dor e o desconforto podem desencadear uma série de respostas fisiológicas, que afectam vários órgãos e sistemas podendo alterar a validade de um modelo animal. Por outro lado muitos dos anestésicos também alteraram órgãos e sistemas e assim interferem com o protocolo experimental 17 . Para reduzir estas interacções o regime anestésico tem que ser cuidadosamente seleccionado, após considerar a farmacologia das drogas envolvidas. A legislação actual12,14 exige anestesia apropriada para os animais usados para fins científicos. Como há uma grande variedade de espécies usadas em laboratórios, a anestesia mais apropriada para cada espécie ultrapassa um pouco o âmbito deste texto, contudo os tratados de anestesia veterinária informam sobre os princípios anestésicos, as considerações de cada espécie, o equipamento e os fármacos mais adequados18. Além disso na maioria das instituições há especialistas em anestesia veterinária, farmacologia e fisiologia, capazes de nos ajudarem quanto ao planeamento do regime anestésico mais adequado. Se uma anestesia geral é necessária, o regime escolhido deve levar a uma condição controlável e reversível na qual a percepção de estímulos nóxicos é suprimida, a perda de consciência é conseguida e, muitas vezes, o relaxamento muscular é necessário. Normalmente no final do procedimento é desejável um rápido recobro. Há várias considerações a fazer, quanto ao procedimento em si, no momento de escolha do regime anestésico mais adequado, como a duração do procedimento, o grau e o tipo de dor que irá produzir e o stress que irá causar. Quando o procedimento é menos agressivo pode recorrer-se simplesmente a uma anestesia local (infiltração, bloqueio de um nervo, anestesia tópica...) ou regional (epidural, bloqueio subaracnoideu, bloqueio de um plexo nervoso...), mantendo o animal consciente. Estas técnicas também se podem associar a uma ligeira sedação para diminuir o stress induzido ao animal. A legislação actual12,14 também exige analgesia adequada, por isso é necessário ter bem presente o potencial álgico do procedimento, bem como o correcto manuseamento e selecção da técnica analgésica mais adequada. A dor é um fenómeno complexo e heterogéneo associado a algumas agressões, é um conceito subjectivo e por isso difícil de interpretar nos animais19,20. As directivas da Comunidade Europeia também ditam que os animais não devem ficar vivos após uma experiência se, mesmo tendo recuperado o seu estado normal de saúde, sob todos os outros aspectos, for provável que fiquem em condições de sofrimento e aflição permanentes12,14. A selecção do método de eutanásia mais apropriado vai depender: da espécie animal utilizada, do número de animais, dos meios disponíveis, da perícia do executante e do efeito do método de eutanásia nos resultados da experiência. Em geral as técnicas de eutanásia devem provocar rápida perda de consciência, seguida de paragem cardiorrespiratória e por fim perda das funções cerebrais. Além disso as técnicas de eutanásia devem reduzir ao mínimo o stress e a ansiedade experimentados pelo animal antes de perder a consciência. Para reduzir o sofrimento durante a eutanásia o pessoal que a realiza deve ter treino e experiência com a técnica escolhida. Este treino e experiência deve incluir familiaridade com o normal comportamento da espécie, saber como o manuseamento afecta esse comportamento e compreender o mecanismo pelo qual a técnica escolhida induz inconsciência e morte. É mandatório que a morte seja verificada após a eutanásia e antes de se desfazerem do animal. Aspectos éticos da experimentação animal Todo o investigador que vá trabalhar com animais tem que submeter a sua experiência a uma avaliação em termos éticos21. Existem comités avaliadores em todos os países. Muitas vezes os animais são vistos como meros meios para solucionar problemas e não como os próprios fins. Nas publicações científicas os animais vem simplesmente mencionados na parte dos “Materiais e Métodos”, e no laboratório não são mais do que objectos experimentais: são considerados instrumentos vivos, o seu único valor é a capacidade que têm de maximizar a validade e a segurança das experiências científicas. No entanto os animais têm um valor intrínseco que foi conferido pelo homem. O reconhecimento do valor intrínseco dos animais foi interpretado por alguns éticos como um princípio de justiça moral; por outros levou a aceitar que o homem e os animais devem ser encarados igualmente, pelo menos em certos aspectos morais mais relevantes. O reconhecimento do intrínseco valor dos animais tem consequências para o investigador, algumas delas mencionadas em seguida: - a qualidade científica de uma experiência é a condição que tem que ser satisfeita obrigatoriamente antes de se fazer qualquer avaliação ética, - quando existirem métodos alternativos, que não requeiram o uso de animais, mesmo que sejam mais dispendiosos, não deverão ser usados animais para fins experimentais, - se não existirem alternativas disponíveis e surgir um conflito entre os interesses do homem e os do animal tudo terá que ser pesado, sendo tolerável a sua execução quando a não realização da experiência for mais grave do que os efeitos adversos impostos ao animal, - nos casos em que o uso de animais é considerado tolerável é essencial que lhes sejam proporcionadas todos os seus “requisitos” sempre que possível antes, durante e depois da realização da experiência, - os investigadores envolvidos em experiências com animais têm a obrigação moral de procurar métodos alternativos que satisfaçam os seus objectivos. 17 O futuro dos métodos alternativos Ocorreram rápidos progressos nas alternativas à experimentação animal com o desenvolvimento da tecnologia informática, de técnicas imunológicas, de técnicas de cultura de tecidos, da engenharia genética, entre outros. As questões éticas não foram a única causa deste desenvolvimento, mas contribuíram para o recurso a métodos alternativos de forma muito positiva. Provavelmente no futuro vão continuar a ser necessários animais na investigação mas, o papel dos animais pode ser precedido por experiências in vitro, tal como a investigação nos homens é precedida por testes animais. Revista SPA ‘ vol. 16 ‘ nº 2 ‘ Abril 2007 Não se consegue predizer o papel dos métodos alternativos no futuro do uso de animais de laboratório. Se por um lado vão ser necessários menos animais para responder a questões científicas, por outro lado os métodos alternativos podem gerar novas questões que terão de ser respondidas com recurso a experimentação animal. 18 Conclusão A utilização de animais de laboratório pode ser definida como um ramo multidisciplinar da ciência que contribuiu para o uso de modelos animais na investigação biomédica e para a colheita de informação, não “inviesada” e reprodutível. A ciência dos animais de laboratório implica o estudo da biologia dos animais, da sua preservação e das suas necessidades ambientais, dos processos de padronização genética e microbiológica; implica também a prevenção e o tratamento das suas doenças, a optimização das técnicas experimentais e das técnicas de anestesia, analgesia e de eutanásia. Pertencem ainda ao âmbito desta ciência os aspectos éticos da experimentação animal e a procura de alternativas. Revista SPA ‘ vol. 16 ‘ nº 2 ‘ Abril 2007 Bibliografia 1. Wright KC. Working with laboratory animals: principles and practical consideration, J Vasc Interv Radiol 1997 ; 8(3): 363-373. 2. Nicolll CS, Russel SM. Analysis of animal rights literature reveals the underlying motives of the movement ammunition for counteroffensive by scientists. Endocrinology 1990; 127: 985-989. 3. Horton, L . The enduring animal issue. J Natl Cancer Inst 1998; 81: 736-743. 4. OhnoY. 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